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1.
Que pai?
Que
pai? O pai que logo veremos no cinema, o pai que elege sua
esterilidade, aquele que ferido de morte cria credos, aquele
que aterroriza às crianças com a cara de Freddy, aquele
que alimenta esperanças de ser visto nos céus, aquele que assume
o silêncio depois de provocar o trovão, aquele que ameaça de
morte em som de paz, aquele que adora o silêncio dos abismos,
aquele que não responde, aquele que farto de ser fera se mostra
tranqüilo, aquele que reina no coração de cada homem e mulher
do mundo, o necessário, o que viaja porque não habita em nenhum
lugar.... ¿esse pai?.
Ou
o outro, pequenino, mais que pai, irmão; que não sabe o que
quer, que se une a companheiros para ir à caça, quem sem saber
lutar vai à guerra, e ainda pior leva seu filho, o que hoje...
tempos sem contenda, vai ao campo, ao banco, ao hospital, ao estádio,
ao vídeo clube, e em seu tempo livre faz bricolagem, em sua casa
habitual, chalé, apartamento ou casa de campo.
Que
pai? Se deveria perguntar a cada homem qual é a sua escolha, já
que se pode encarnar a ambos.
O
primeiro tem tanto medo da filiação que em seu maior refinamento
se torna celibatário, ou se angustia quando lhe dizem: o teste de
gravidez deu positivo.
O
segundo, proclama, brama, apregoa: quero um filho, claro, um
homem, e cada vez mais acaba em clínicas de reprodução artificial com uma das etiquetas modernas dos sintomas da
medicina posta no pênis: esperma preguiçoso. Arre!
Um
pai tem o pênis inútil, e o outro o esperma preguiçoso. Deus! E
as mulheres... colocadas com poder para eleger,
para variar fazem desatinos, pois escolhem o metro-sexual
que quer, além de tudo, ser passivo na cama. E, com ele, formam o
casal, que chegam ao cúmulo de chamar heterossexual, quando é edípico,
nem mesmo como Édipo em Colônia, mas aquele com a mãe mesmo.
Que
pesadelo, os seminários religiosos vazios e todo mundo
futebolista, pois homossexualidade latente há nos dois lugares,
mas o seminarista - que levante a mão a primeira mulher que nunca
pensou ou teve um gostinho estranho. Digo isso aqui entre nós,
mas é certo que se formos a um instituto de “desensino” médio,
ganha Beckam! As meninas, não sei se querem ser princesas, mas o
que querem os meninos é perseguir uma bola em um gramado, como
sacerdotes da época global.
A
questão é que por razões óbvias, Édipo se instalou no mundo
como o pai de família, deslocando muito, e digo em número, os
pais de antes, de tal forma que é ele quem guia nossa clínica do
lado da perversão e do lado da estrutura: neurose, psicose. O
destino sublimatório da pulsão, para citar todos os termos princeps
da época antiga, se deixava à arte... e quiçá tão somente à
pintura, pois na arte... logo
se localizará também a política.
Desta
mudança do pai, inclusive além dela, creio que temos una magnífica
reflexão, nas aulas de maio e junho do Curso de J. A. Miller, OL
III, 4,, quando por ocasião da criação da Escola Lacaniana do
Campo Freudiano na Itália, em Milão, falando sobre o tema “Os
psicanalistas na cidade”, nos faz partícipes do que chama suas
intuições milanesas, referidas às relações do inconsciente e
da política, e que são também um percurso pelo legado clínico
e civilizatório que nos deixou Lacan ante o declinar do pai e sua
desaparição tal e como o conhecemos, como Édipo Rei, uma pèr(e)-version
que desfalece.
2.
A psicanálise na época global
Suas
intuições milanesas são dez e giram em torno de duas frases de
Lacan, duas épocas da humanidade, três fases de Lacan no ensino
e na cura.
Duas
frases de Lacan, ditas em momentos distintos de seu ensino, marcam
a mudança de paradigma mundial, do “todo” ao “não-todo”.
Uma, dirá Miller, Lacan a pronuncia em seu Seminário
A lógica da fantasia “não
digo que a política é o inconsciente, senão simplesmente que o
inconsciente é a política”,
capta e efetua o zênite da lei dos irmãos no século XX, sob o
triunfo de Kant com Sade, século que assiste às mais ferozes
guerras declaradas pelo pai democrata ao pai totalitário. Sempre
ganhou o democrata, com o the
end de rendição
do totalitário em 1989, selado com a queda do muro de Berlim,
justamente por isso mesmo, por destruir e desterrar o totalitário,
teve o pai democrata seus dias contados, somente os necessários
para consumar a lei dos irmãos, sua sentença - que Freud comenta
tão delicadamente em Totem e Tabu – é a do
fim do “todos por um e um por todos”,
pois sem exceção não há “todos”.
“Não
há relação sexual”,
junto com “só há gozo”
é a segunda frase que assina o apagamento da regra, e se sai do
que retinha a psicanálise na época pré-global (autoritária),
abre-se o tempo da invenção sexual, da criatividade fora da
norma.
Nomearei
as dez reflexões, em seguida, sem desenvolver: a política é o
inconsciente, o inconsciente é a política, o inconsciente é político,
a Cidade não existe, Freud e a Rainha Vitória, Lacan e a rainha
gozo, a cura analítica na época da globalização, o
rebaixamento da psicanálise, as bolhas de certeza, a psicanálise
na época global.
Duas
épocas, que marcam a mudança de paradigma: a disciplinar e a do império,
limitadas pela queda do totalitarismo e a
transgressão que não agradou a todo mundo.
3.
Três
fases no ensino e três tempos na cura analítica em Lacan.
a)
No ensino:
Primeira
Fase:
Formalização da psicanálise na época disciplinar, o conceito
de inconsciente a partir do algoritmo do sintoma; formalização
unificante do Édipo, da castração e do recalque com o conceito
de Nome-do-Pai e metáfora; formalização da libido no desejo e
na metonímia. É o Lacan clássico, Freud formalizado.
Segunda
Fase:
Transição. Lacan leva a cabo una subversão do Nome-do-Pai, que
o pluraliza e o desloca, quando atribui o recalque, à linguagem e
não à proibição. Subversão do conceito de desejo ligado ao
proibido, substituído pelo gozo,
não pondo o acento sobre a falta, mas sobre o que preenche
a falta, que é a função de seu objeto a.
Terceira
Fase:
O que chamamos seu último ensino, no qual o termo essencial é o
gozo enquanto não tem contrário. O significante se torna
operador de gozo, a oposição prazer/gozo declina, o prazer chega
a ser um certo regime de gozo. A pulsão ocupa o primeiro plano
pois não está intrinsecamente articulada à defesa, "o sujeito é feliz”, ao nível da pulsão sempre, sempre se
satisfaz, diretamente, indiretamente, de maneira econômica,
dolorosa, prazerosa, etc..., axiomaticamente.
Lacan
introduz estas fases na época disciplinar organizada a partir do
proibido e da transgressão, até seu declínio e seu ocaso, tempo
no qual o fora, o externo vai deixando de existir. Época em que se evoca o pensamento
único, quando não ha mais pensamento único. A globalização é
o contrário da homogeneização,
nela tudo está desordenado, a cidade é uma nostalgia, não
existe, nada tem um lugar, como corresponde a uma época onde já
não é a falta o que dirige o mundo, senão o que ocupa o lugar
da falta. Neste mundo dirá Lacan só é questão de
posicionamento, de percurso.
b)
Na cura:
Primeiro
tempo:
concebida como tratamento, mas diferenciada do tratamento médico,
a cura está ordenada por um ideal de maturidade
e uma norma da personalidade, e o mesmo Lacan falou de
conclusão da personalidade ou de realização efetiva do Édipo e
da castração.
Segundo
tempo:
transição entre os paradigmas: a desmedicalização conseguida
na cura, fez com que se a concebesse como experiência e não mais
como um tratamento. A palavra experiência tem toda sua importância
como o lugar onde as coisas se passam. A cura proporciona um novo
sujeito, e isto se cristaliza com a noção do passe
pensado sob o modo transgressivo do atravessamento do fantasma.
Terceiro
tempo:
próprio ao regime da globalização. Lacan não nega o passe, mas
o resgata enquanto um relato, narrativa acertada que satisfaz a um
auditório como procedimento, como espetáculo. Sendo inaudíveis
os temas da maturação, da conclusão e do término entramos na
inclusão do gozo nos direitos do homem, o que vai de par com a
promoção do sintoma, com o novo nome que lhe deu Lacan -
sinthome - para
indicar que é um sintoma que não tem contrário. O sintoma clássico
tinha seu contrário, a cura.
O
que se coloca em movimento no mundo,
o que é que faz com que no mundo se instale a globalização?
Miller dirá que é a máquina do “não-todo”, própria
à sexualidade feminina, com seu “não
ha relação sexual”.
A máquina do “não-todo” que é o que opera hoje no social,
esta máquina recolhe a frase da máquina anterior, (que foi a do
“todo”), a frase “o inconsciente é o discurso do Outro”,
e mesclando-a no “não-todo” obtém “o inconsciente é a política”,
porque está no lugar da ausência de relação sexual. O
inconsciente é político. É o que vincula os homens entre sí, o
que os opõe, o inconsciente é da ordem do vínculo social, através
dele nos relacionamos, pois quando não há relação sexual, se
constrói uma sociedade política, ausente quando estamos diante
de sociedades aparelhadas com estruturas elementares de
parentesco, apolíticas.
E
a que responde o “não-todo” que teoriza Lacan, em seu escrito
“L’etourdit?” (J.-A. Miller na aula de 22/05/2002). É uma
resposta ao “Anti-Édipo” que Deleuze e Guattari haviam
tentado captar. Desaparece o Édipo. A época da globalização
deixa de viver sob o reino do pai, do pai edípico.
Edipo,
pèr(e)-version de um
pai déspota deixa lugar à estrutura do “não-todo”, sem
limites, sem proibições, sem "fazer barreira" e que
requer uma nova clínica, aquela que Lacan introduz com o nó, que
possibilita arranjos e vínculos para que se relacionem entre si
os três registros, e desaloja a descontinuidade das estruturas clássicas;
neurose, perversão, psicose. O “não-todo” já está no lugar
da organização social, “não-todo” associado à sexualidade
feminina que gera a nostalgia do significante-amo, mais exacerbada
na medida em que aparece desligado do resto, pois no “não-todo”
social o significante não chega em blocos organizados, o que no
sujeito provoca um recuo a zonas limitadas de certeza, efeito otaku,
que
faz Miller sugerir que há algo da psicanálise pode ser concebido
como uma resposta otaku.
É
o fim da época do Nome do Pai e sua clínica, para dar passagem
à clínica do nó,
própria da sexualidade feminina, é a época na qual os analistas
se desconectam da prática analítica e se descobrem a partir do
passe, e que há que se pensar a formação do analista neste
contexto, fora de toda problemática do ideal e da forma.
4.
De Górgonas e Medéias a Sereias
No
seguimento do referido curso de 2001/2002, Eric Laurent e J. – A
Miller tomam a palavra, para refletir sobre a vergonha, o perdão,
a culpa, o pudor... e
o alcance de valores moralistas na época atual. Retomarei algumas
questões baseando-me nessas aulas, sobre o tema que nos convoca,
sobre o pai.
Há
um aumento do discurso moralista desde a queda de muro de Berlim,
nos dirão J. A. Miller e Eric Laurent, refletindo sobre os novos
valores. Aparece o discurso do perdão, frente ao da culpa, se
pede perdão por tudo, (desculpa-me se lhe estou fazendo mal...). As mulheres, que nesta historia do mundo têm sido, e são
ainda, vilipendiadas, penduradas, maltratadas, humilhadas (para não
empregar qualificativos mais fortes) apresentadas como solitárias (de Medusas a Medéias) levando
pânico como feiticeiras e bruxas etc. Vão ainda carregar nas
costas a estupidez de que a sexualidade feminina
tenha que ver com o aumento dos valores moralistas,
piedosos, como a proximidade, a escuta, a piedade, o perdão
etc?... Irão esses valores, uma vez mais, associar-se no mundo do
“não-todo”, à sexualidade feminina? Penso que não. Creio
que há um declínio à mais do pai.
Pois,
com efeito, a função do pai, está ligada à estrutura que Lacan
encontrou também na sexualidade masculina, que comporta um
“todo”, dotado de um elemento suplementar e antinômico que
faz as vezes de limite, e que permite ao todo, justamente,
constituir-se enquanto tal. Esta estrutura é a matriz mesma da
relação hierárquica. Mas que seja a matriz da organização
hierárquica, implica que seja a do pai como tal? A estrutura do
“não-todo”, não se opõe ao pai, nem está baseada nele, senão
sobre o falo, que o último Lacan bombardeia rebaixando-o ao órgão,
à função de puro órgão.
Não
creio que na estrutura do “não-todo” esteja ausente o pai, se
penso que o Édipo está. Mas que pai? Entre o pai da religião, o
pai eterno que está nos céus, e seu filho Édipo, está o pai do
homem, não preocupado pela filiação do lado masculino, talvez
se pudesse dizer ironicamente, o anti-cristo, já que é o anti-édipo.
Um homem contente com o lugar que tem no gozo, na sexualidade
feminina, cuja mais bela descrição temos na delicada figura de
Merlín presente na novela de Marion Zimmer Bradley “As brumas
de Avalón”. Merlín, Gandalf, o oráculo de matrix, yoda o
jedi... são seres míticos, homens com outros atributos de pai
que os que Édipo dá a Deus, o que mata para impor sua tirania.
Prescindir do pai na condição de servir-se dele, pode ser algo
simples, se se deixa Édipo consumindo-se em sua ilógica quimera,
no inferno de ser ou ter o falo, pois não prescindir do falo é
ser Edipo rei. Prescindir do pai na condição de servir-se dele,
fazer um uso distinto do edípico, é a condição possível,
creio, para um encontro entre o homem e a mulher, desta vez sob a
égide da sexualidade feminina, nada épica, nem sublime, nem
moralista, e sem garantia de que nela se ache outra pèr(e)-version ou simplesmente que a pulsão encontre outro
destino, que Freud deixou incompleto.
Tradução Márcia Aparecida Zucchi
Revisão Técnica Tania Coelho dos Santos
Bibliografia
BRADLEY,
Marion Zimmer Las nieblas
de Avalón Madrid: Salamandra, 1983.
DELEUZE,
Gilles & GUATTARI, Félix
El
antiedipo (1972).
LACAN,
Jacques El despertar de la primavera. In: Intervenciones
y textos: 2 Buenos
Aires: Manantial, 1993.
__________
La lógica del fantasma:
Seminario, 1966/67, livro XIV.
__________
L’etourdit. In: Otros escritos.
MILLER,
Jacques-Alain De la
naturaleza de los semblantes: Orientación lacaniana.
Paris: ECF, 1991/92.
__________
El desencanto del
psicoanálisis: Orientación lacaniana, clases de la 17 a la
21 Paris:
ECF, 2001/02.
__________
El inconsciente es la política. Cuadernos
de psicoanálisis: Revista del Instituto del Campo Freudiano
en España Madrid:
Eolia, n.29, set. 2003.
__________
L’angoisse de Jacques
Lacan: Orientación
lacaniana, clases de la 15 a la 20.
Paris: ECF, 2003/04.
__________
Piecès détachées:
Orientación lacaniana, clases de la 1 a la 9.
Paris: ECF. 2004/05.
GRAVES,
Robert La diosa blanca La
Coruña: Alianza, 1974.
N.R. O termo pére-version condensa na língua francesa o
sentido de versões do pai. Não tem tradução em português
e por essa razão vamos aludir a ele no original sempre que a
ocasião se apresente.
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