Invectivas
Vou
começar por uma leitura que me divertiu durante estas férias.
É uma carta de Petrarca que se chama “Invectivas contra um médico”,
e ela começa assim. “Quem tu és, tu que despertaste minha pena adormecida
e retiraste o leão de seu sono, ousemos dizer, por meio dos teus tediosos
urros, tu vais rapidamente te aperceber que triturar a reputação de alguém,
porque a língua te devora, é uma coisa, mas que saber defender a sua é
outra coisa! [...] Mas, uma vez que tu me constranges à isto que eu não
condescenderia jamais em fazer por minha própria iniciativa, pois é preciso
que eu diga alguma coisa, eu responderei pois à alguns de teus propósitos,
pedindo desculpas ao meu leitor, se emprego um tom contrário aos meus hábitos.
Pois tu derramas um tão grande número de imbecilidades que aquele que as
julgar dignas de resposta poderá passar sem pena pelo maior imbecil”
O
contexto da carta de Petrarca tem, de fato, todo interesse: isso se desenrola
em torno do papa. Acontece que “em setembro de 1351 Clemente IV, caiu
gravemente doente. O poeta lhe transmitiu então uma mensagem oral por intermédio
de um de seus próximos: ele deveria evitar de se confiar aos cuidados de
numerosos médicos e escolher somente um. O papa pediu à Petrarca que lhe
escrevesse suas recomendações, fingindo não tê-las compreendido,
provavelmente para suscitar a polêmica e oferecer uma diversão à corte
papal. Petrarca lhe enviou então a Fam V, 19 na data de 15 de março de 1352, violenta crítica da
medicina e daqueles que a praticam.
“Eu
sei que teu leito é assediado pelos médicos; eis a primeira razão que eu
tenho para estar inquieto. É intencionalmente, que eles estão em desacordo
entre si, pois eles têm vergonha de parecer seguir os traços uns dos outros
quando não trazem nada de novo. Está fora de dúvida, como afirma Plínio
com elegância, que todos esses indivíduos espreitam a glória por meio de
uma novidade qualquer, traficam nossas existências com desenvoltura ... que a
medicina é a única arte onde se deposita confiança no primeiro que se
apresenta como médico, uma vez que a impostura é nessa caso mais suspeita do
que em todos os demais lugares.”
É
a época charlatanesca da medicina, que explica, por razões de estrutura
extremamente profundas, a emoção que parece tomar o médico de hoje, diante
da idéia de que os charlatães curam, pois a acusação de charlatanismo
contra os médicos é multissecular.
“Nossos
riscos e perigos instruem os médicos, que prosseguem em suas experiências
graças aos mortos; somente o médico goza de total impunidade se
comete um homicídio. Considere, Pai, tão Clemente, o bando destas
criaturas como um exército de inimigos. Tu te lembras, à guisa de advertência,
da curta epígrafe que esse célebre infeliz mandou gravar em seu túmulo
‘Pereci, vítima de um exército de médicos’. Mas como nós não ousamos
mais viver sem médicos, sem os quais, ao contrário, muitas nações vivem
sem dúvida melhor e em melhor saúde, escolha um que se distinga não pela
sua ciência mas por sua retidão”. A ética, a deontologia... “Até o
presente, eles esquecem sua profissão [...] Para concluir: evite o médico
que brilhe por sua eloqüência e não por seu diagnóstico, tome-o por alguém
que quer atentar contra tua vida, um assassino, um envenenador!”
I
– O homem quantitativo
1.
O invencível Um
O
registro
A
polêmica é necessária, não se deve relegá-la aos lugares convenientes,
mas tentemos compreender, conforme à palavra de Spinoza; “Não se lamentar,
nem se regozijar, sed intelligere.”
Compreender o que ocorreu, compreender o fenômeno do qual nós somos,
nós mesmos, parte envolvida, ainda que à título de nos opormos, é o que eu
gostaria de fazer. Estes períodos perturbados, agitados. São muito
ativadores dos neurônios. Há uma arqueologia a fazer.
O
registro, ao qual parece aderir como um só homem, a maioria do Senado da República
– o que não foi feito ainda -, se inscreve claramente no mesmo contexto que
o da ideologia da avaliação. Tal como ela, o registro coloca diante dos
olhos o “devir unidade contável” do sujeito. Há um “devir unidade contável”
que vai bem além do M. Mattei, do grupo UMP
do Senado, e outras eminentes personalidades. Devir uma unidade contável e
comparável, é a tradução efetiva da dominação contemporânea do
significante mestre sob a forma a mais pura, a mais estúpida: o número 1.
Este
escritor profético que é Roberto Musil percebeu muito bem, por ocasião da
profunda reflexão que ele produziu sobre o pensamento estatístico, que o
conduziu a intitular seu grande romance “O homem sem qualidades”.
O homem sem qualidades é aquele cujo destino é o de não ter mais nenhuma
outra qualidade senão a de ser marcado pelo número 1 e, a este título, de
poder entrar na quantidade. O segredo do título de Musil é que o homem sem
qualidades é o homem quantitativo.
Nós
não temos necessidade de desfilar para cantar: ”Nós somos todos homens
quantitativos”, nós somos todos quantificáveis e quantificados. Isto pode
não nos agradar, mas o modo atual, o modo contemporâneo de gestão da
sociedade passa pelo quantificação, fazendo-a mesmo reinar de modo
exclusivo, uma vez que o discurso universal não tem outras qualidades, outras
identificações à nos propor que se sobreponham ao número 1 da fila, que
nos torna contáveis e comparáveis.
Lacan
nos anunciou: o significante-mestre é o significante do mestre, mas o mestre
e o escravo são categorias que desapareceram do discurso jurídico e não são
mais do que lembranças. Por quê, diz ele, os psicoterapeutas não se
registram nas prefeituras, como os quiropraticantes o fazem, os VRP, os
cartomantes, e recentemente – discretamente – os psicólogos? É obrigatório
para todo mundo registrar-se na prefeitura. Trata-se do
Estado que devém prefeitura.
Do
mesmo modo que, durante o “tornar-se unidade contável”, se destaca a essência
do significante mestre que fora outrora revestido com esplêndidas
vestimentas. O Estado desnudado revela o que é sua matriz, como dizia Hegel,
e como retomou Lacan: a polícia. Do mesmo modo, o significante-mestre revela
sua essência no número 1, o estado, nos enviando em grandes filas para as
prefeituras, nos indica o que faz, o que é o suporte, o pivô de sua
estrutura. Com exceção dos médicos e dos psicólogos, que já são
registrados de um certo modo, estenderemos isso
aos psicanalistas cujos nomes vão figurar nos anuários de associações analíticas.
Como vamos reconhecê-los? Como vamos defini-los? Vejam os decretos, que podem ser
qualquer coisa.
O
significante-mestre como unidade contável é ao mesmo tempo o mais estúpido
dos significantes-mestres que surgiram sobre a cena da história, o menos poético,
mas é também – reconheçamos – o mais elaborado, pois é justamente o
mais limpo de significações. Ele conduz ao que é, aparentemente, uma
necessidade das sociedades contemporâneas que é o estabelecimento de listas.
Lacan havia designado por a(s)no-à-lista
e, desse jogo de palavras,
surgiu o nome de um jornal que eu relancei recentemente -, mas é a sociedade,
o Estado, que pede este a(s)no-à-lista.
Ele precisa de listas, ele precisa nos colocar em listas: passagens de avião
ou cartomantes, psicoterapeutas, é o mesmo princípio. Isso não faz senão
recomeçar e vai marcar – vamos apostar, o século XXI, será o século das
listas.
Isso
é mesmo, talvez, mais profundo que aquilo que denunciamos sob o termo
mercantilização. Falamos do reino do dinheiro, ao qual opomos os valores
espirituais, humanistas. O dinheiro, o equivalente simbólico universal, não
é senão uma forma, uma realização do significante-mestre contável. Como
você avaliam, uma vez que as qualidades desapareceram? Não resta senão a
avaliação quantitativa, monetária. Não quer dizer que o aspecto comercial
domine. Ele não domina de jeito nenhum. O que domina, é esta espiritualização
do significante-mestre que se encarna no número 1, do qual precisamos dar
conta da aparição. Lacan esforçou-se para isso, com dificuldade, no seu Seminário
XX. Como o significante Um surgiu? Ele se colocava a questão, pois nós
podemos agora apreender que ele antecipava que este significante Um viria a
governar o sujeito, e que o grupo social, o laço social seria governado pelo
Um. Trata-se de um produto extremamente elaborado.
É
o reino da quantidade que se traduz pela avaliação financeira. O processo
mais profundo, é a redução ao significante mestre ao osso do Um, às
finalidades, que é preciso isolar como tais, que são finalidades de
controle.
Fiquemos
à distância da emoção, da perturbação. A sociedade reclama o controle.
Pode acontecer que os encarregados de organizar essa sociedade, coloquem em prática
esse controle, de forma desajeitada, como no assunto que ora nos ocupa. É uma
falta de tato, aproximar a palavra psicoterapia e a de prefeitura. Aqueles que
o fazem não tem habilidade e diplomacia,
felizmente talvez. Isto choca. Se eles fossem mais hábeis, talvez
o fizessem passar mais facilmente. Mas, quanto ao ponto sobre o qual eu
gostaria de desenvolver minhas considerações hoje, é secundário. A
sociedade reclama controles e há uma dinâmica do controle. Ela reclama saber
quais são os ingredientes dos alimentos que nós ingerimos. O que pode ser
mais legítimo? Na inquietude de cada um, o desejo de controle já está lá.
A
escritura
Eu
me perguntei sobre a origem francesa da palavra “controle”.
Isto me permitiu apreender que se tratava de uma palavra do século
quatorze. Não tive tempo de procurar precisamente, mas eu vou supor que foi
no meio da burocracia real, em vias de se estabelecer, que isto começou a
emergir ou que foi atestado. Contrôle”
vem de “contrerole”, o “rôle”
sendo um registro, no sentido antigo da palavra “rôle” (papel). O “contrerole” é uma duplicação do registro para verificar um
primeiro registro. Vocês têm um registro, e vocês têm um segundo registro
para verificar o primeiro, é o contrarol. Em particular, o “contrerole” é a apresentação nominal das pessoas que
pertencem a uma corpo, em particular o corpo militar.
A
palavra rol, ela própria, é mais antiga, do século doze. Surgiu do latim
medieval rotulus, rolo, pergaminho
enrolado. É um rolo, uma folha enrolada, se consignavam os atos notários, os
negócios e afazeres do tribunal. A expressão
francesa “à tour de role“ não significa de jeito nenhum o papel no
teatro, e sim “a sua vez de acordo com a lista, o registro, o rol”. Isso tomou, bem entendido, o sentido de
partes de uma peça de teatro que corresponde a um personagem, ele próprio,
com todas as expressões que se seguem: por exemplo “ele me deixa o belo
rol”.
O
registro, palavra do século treze, ele, veio do latim regerere,
e que deu regestus,
relatado, inscrito. Regerere, é
colocar atrás, adiar, transcrever e especialmente, anotar para guardar a
lembrança.
É
preciso aperceber-se neste caso que tomamos o caminho errado quando falamos de
nossa época como a do domínio das imagens. Sem dúvida, a produção de
imagens ela é prevalente, pregnante, extremamente multiplicada, multiforme.
Elas dominam por sua sedução, exercendo uma captura que o discurso político
tenta manejar. Mas de fato, o osso do negócio resta escritura, sob a forma de
registro. Foi isso que denunciava o filósofo italiano, Agamben, recentemente
na imprensa.
O corpo, ele próprio, o corpo contemporâneo, é exibido sob formas magníficas,
estilizado nas imagens de publicidade, as imagens cinematográficas,
televisuais. A imagem é exaltada, mas é escritura, o depósito eletrônico
do um por um contável, que é efetivo. O corpo é transformado em escritura,
quer dizer que procuram no seu corpo o que é escritura. Eu gostaria de poder
chocá-los citando as proposições, as pesquisas, a filosofia de Bertillon,
francês, que descobriu que nós portamos todos nas nossas mãos uma escritura
indelével, que encontrou a seu tempo uma marca, um símbolo, um significante
indelével.
Bertillon é um homem que refletiu, na prefeitura de Polícia, elevado lugar
do espírito. Não nos esqueçamos que Gaêtan Gatian de Clérambault exerceu
a clínica sob os auspícios da Prefeitura de Polícia e Lacan também. Se
podia ali, realmente, aprender a clínica, pois lá passavam por perturbações
da ordem social, as diferentes perturbações mentais, como se diz hoje em
dia. Na multidão de Bertillon,
fomos mais longe e, encontramos,
em particular no olho, índices escriturários suscetíveis de serem
traduzidos e de lhes identificar do nascimento até a morte. Uma aspiração
que anima toda a civilização contemporânea depois da revolução
industrial.
Bentham
foi o primeiro a dizer: “Seria preciso que cada um tivesse um número que
ele conservaria do nascimento até a morte, para que nos encontremos.” Isso
levou à carteira de identidade. Eu felicitei, na última vez, os ingleses por
terem resistido à carteira de identidade e eu suspeito que M. Blair deseja
introduzi-la.
Eu soube depois que a introdução da carteira de identidade a Grã Bretanha
está prevista para 2007. Parece que é o povo mais fotografado da terra: câmeras
de vigilância são colocadas nas ruas de Londres, de tal modo que o londrino
médio é fotografado, em média, quinhentas vezes por dia.
A
sociedade do medo
Nós
estamos nesse ponto. Nós estamos ainda mais aí, do que eu poderia pensar em
2003. Nós entramos, no começo de 2004. No século XXI, na época da vigilância.
Não é certo que se trate de “vigiar e punir”, mas é uma sociedade onde
a palavra de ordem é “vigiar e prevenir”. Nós estamos na época da
prevenção: sanitária e também guerreira. Fazer a guerra antes que país
nos faça a guerra está no mesmo espírito que despistar a doença mental
antes que ela se manifeste.
Os
fatos que se reagrupam depois do começo deste século nos indicam que um
grande capítulo dos grandes medos do século XXI começou a se escrever. O
medo dos psicoterapeutas é um pequeno medo acessório. Brincamos de nos meter
medo, mas são notas que se organizarão em uma sinfonia. Foi o que o eminente
sociólogo alemão Ulrich Beck chamou gentilmente de sociedade do risco,
é a sociedade do medo. O sujeito, no começo do século vinte e um, está em
perigo. Comer, respirar, se deslocar, se cuidar, se faz sob a égide do perigo
e da precaução à tomar. Reclamamos, ao menos na França, de modo genérico
ao Estado, que não é mais o Estado providência de antigamente, o Estado
maternal, um Estado ao qual demandamos de se fortalecer em suas tarefas próprias.
É a idéia do Estado estratégia.
E qual é a tarefa própria, fundamental, do Estado? A polícia. Logo,
reclamamos um Estado policial.
A
sociedade se experimenta como estando em perigo. Nós ouvimos, sob diferentes
formas, um “SOS sociedade”. É o que Ulrich Beck mascara sob o nome de
risco, talvez para não acrescentar o pânico. Nó nos tornaremos sociedades
do medo e do pânico. Eu tento construir algo sobre isso para que nós nos
guardemos com respeito à isso e, uma vez que nós somos os vermes a
exterminar ou os inclassificáveis a classificar, um certo saber da configuração
na qual entramos, e talvez esta ou aquela iniciativa possa desviar ou retardar
o processo.
Carl
Schmidt é essencial, de quem aliás podemos falar mal à beça, isolou
bastante bem na história a função do que ele chamou “o retardador” isto
que consegue retardar os processos inevitáveis. Quando retardamos, ganhamos
tempo; outros fatores podem entrar em jogo, e assim a fatalidade pode ser
contornada. Eis porque, saber que é inevitável, que tal lógica se aplica, não
implica de modo algum que a desarmemos.
2.
Quételet
Ironia
das Luzes
Foi
então que eu me disse, eu poderia aproveitar a ocasião desta pesquisa
arqueológica - na qual eu gostaria de me lançar - para fazê-los conhecer,
pois eu imagino que não aprendemos isso nas aulas, um grande espírito que me
parece um dos grandes nomes ligados à origem disto com que temos que lidar
que é o homem quantitativo, e que é Quételet.
Tenho
alguma coisa em comum com Quételet. O que me levou, aliás, a me interessar
um pouco demais nisso. Quételet era belga – não é o meu caso -, e
professor na Universidade de Gand, única universidade no mundo que, por erro
sem dúvida, achou por bem, outrora me nomear doutor honoris
causa. No agradecimento que enviei à Universidade de Gand, citei Quételet,
entre os augustos da universidade.
Quételet
era astrônomo e ele teve a idéia de aplicar concepções e métodos válidos
em astronomia às sociedades humanas, na primeira metade do século XIX. Na
origem da aplicação da estatística aos fenômenos sociais, como nos propõe
a epidemiologia em saúde mental, ele é o mais eminente.
Percebemos
a mudança de regime de pensamento que teve lugar entre o século XVIII e XIX.
No século XVIII, acumulamos, de um jeito distraído – que sempre me
encantou e do qual eu porto a marca – um número enorme de informações, de
descrições de sociedades diferentes das nossas. Sentimos já esse movimento
presente em Montaigne, que vai procurar as referências nos autores da
Antiguidade para mostrar a diversidade de costumes e de leis humanas, mas, no
século XVIII, multiplicação de relatos de viajantes, de aventureiros, de
missionários. Acumulamos toda uma literatura sobre a diversidade humana, a
diversidade de costumes, de usos e costumes, de religiões, de regimes políticos,
de leis e começamos a elaborá-los de modo eminente. Pensem no
Espírito das Leis de Montesquieu,
que se prestava ao chiste: “M. Montesquieu não fez o espírito das leis e
sim o espírito sobre as leis”. É muito injusto, mas isso assinala que no século
XVIII, o acúmulo destes dados sobre as sociedades valorizava a contingência,
mostrava que nossos costumes não eram necessários, nos convidava à nos
distanciar de nossas práticas, e era marcada por um certo esteticismo. Numa
pequena fala no teatro Hébertot,
eu disse que os filósofos do século XVIII, tendo uma idéia limitada da
natureza humana, colocaram no registro da comédia humana o fato de que aqui
comemos isso e que lá é proibido. Se o homem é um, se há uma unidade da
natureza humana, a diversidade releva da comédia humana.
No
século XVIII, a acumulação destes dados comparativos introduziu uma postura
irônica em definitivo, muito socrática, e podemos dizer, muito psicanalítica.
Era uma maneira se desprender destas identificações e de aprender que não há
senão nós, que não há senão esta maneira de fazer. Essa abordagem teve um
efeito de dissolver todo um imaginário envolvendo os significantes mestres.
Vocês são cristãos mas outros são mulçumanos, os outros reverenciam os
animais. A substância imaginária, a carne imaginária do significante-mestre
no século XVIII, secava e caía como tiras. Este momento tão delicioso de
ironia, que eu gosto de repetir do jeito que eu posso, é também uma etapa no
processo que vai em direção à simplificação do significante mestre. O
esqueleto aparece: é o número 1. A ironia dissolvente das Luzes é um
momento do processo histórico que conduz ao momento presente onde reina o
invencível.
O
real social
O
espírito do século XIX é totalmente diferente. Não é mais a ironia, mas,
se quisermos, o progresso do espírito científico avançando sobre dados,
procurando e construindo regularidades. Podemos dizer que partiu da observação.
Há regularidades que concernem aos nascimentos, aos mortos, aos casamento,
aos crimes. Há regularidades sociais, os patterns, as configurações regulares e estas regularidades
convidaram a procurar as leis no universo social. Foi o que Montesquieu esboçou
com espírito, e o que começamos a abordar pelos meios da quantificação,
com a convicção de que havia uma saber inscrito no social, logo que o social
estava no real ao mesmo título que o real da física.
Um
passo mais longe do que Descartes, que reservava esta pesquisa do saber matemático
inscrito no real ao universo da física, às ciências naturais, e à física
matemática. No que concerne a ordem social e política, seu conselho era o de
se vincular ao significante-mestre em vigor na sua própria sociedade, de não
começar a bancar o esperto, o sábio, com o significante-mestre. Este era o
ponto de vista de Montaigne. Deus sabe se os semblantes sociais não lhe
parecem necessários. Ele sabia que se tratavam de semblantes. Sua moral era a de
que a prudência quer que nos conformemos à moral de nossa sociedade no que
concerne à organização social. Vemos Descartes avançar no discurso científico,
mas, ao mesmo tempo, no domínio social e político, conservara a reserva
montaigniana.
Como
esta barreira foi atravessada? Eu não tenho, de fato, como reconstituir essa
arqueologia de memória. Seria preciso dar um lugar especial à economia política,
já no século XVIII ao espírito escocês. Há certamente coisas a encontrar
em Adam Ferguson e na escola escocesa, mas é no começo do século XIX, e a
partir do momento em que a revolução industrial opera uma sensacional
transferência da população do campo em direção às cidades, que tornou-se
um imperativo social possuir informações estatísticas sobre a população.
Marx
descreveu esse deslocamento do campo para a cidade de um modo sensacionalmente
poético. Isto foi remanejado pelos historiadores, mas resta, em suas grandes
linhas muito bem fundado: o processo de repartição ou de partição.
Acumula-se nas cidades uma população nova, assalariada, empobrecida e que
constitui um risco social. São imigrantes do interior. Este emigrados, que nós
vemos aqui com terror chegar de todos os lugares mediterrâneos da Europa,
vinham, na época, do campo. As invasões de emigrados, eram invasões de
rurais se acumulando nas cidades. Isto provocou um movimento epistêmico, o
desejo de obter informações quantitativas sobre a sociedade e sobre o que
passamos a chamar de população.
Ah,
esta palavra população! A população, não é o povo. O povo, que evocamos
na Revolução francesa como princípio de soberania, é um
significante-mestre. A população é outra coisa. São corpos, que estão lá,
um agregado de corpos nascentes, vivos, copulando e morrendo, e eventualmente
se agredindo uns aos outros. Vemos retornar, em todos os escritos deste período,
o nascimento, a morte, o casamento, o crime. População é populacho, mas sob
um vasto ponto de vista, estendido e considerado do ponto de vista biopolítico.
Aliás, uma das palavras que me atraíram no discurso de uma eminente
epidemiologista que nos visitou foi o adjetivo: “populacional”, muito
empregado, com efeito, em epidemiologia. Eu lhe disse: “Como, se fala assim
entre vocês: “populacional”? Ela logo
me respondeu: “Eu, não falo desse jeito, são os Quebequenses”. Não!
O ponto de vista populacional está presente desde o início de século XIX. Não
há de que se desculpar.
Estatísticas
Eu
gostaria de citar uma obra do século XVIII, que eu bem li, outrora, no tempo
dos meus estudos, o Essai sur le
principe de population
deste espírito eminente que foi o reverendo Malthus. Ele legou seu nome
ao maltusianismo de um modo bem injusto, como o marquês de Sade deu origem ao
sadismo, e Sacher-Masoch ao masoquismo. Eu gostaria de poder citar e reler eu
mesmo do ponto de vista daquilo que o assunto
atual me permitiu perceber.
Há
duas tendências que se opõem e que Lacan nos ajuda a situar. De um lado, vocês
tiveram no século XIX uma sociologia que tomou como princípios e normas e
instituições, as representações coletivas, como impostas, embora não seja
esse o seu vocabulário, digamos, a uma dada população. É o ponto de vista
de Émile Durkheim, à quem Lacan referiu-se porque, com efeito, isso dá uma
representação sociológica do grande Outro, um discurso feito de crenças,
de instituições que se impõem e que estruturam uma população. É nesta
direção que Lacan foi, imediatamente, durkheimiano, pelo menos no seu artigo
na Encyclopédie
. Temos aí um esboço daquilo que vai se desenvolver mais tarde como
sendo da ordem simbólica. Mas vocês têm uma outra sociologia, aquela que
triunfa na epidemiologia em saúde mental, aquela que não parte do alto, mas
de baixo. Ela não parte do grande Outro, mas das ações dos indivíduos e
das ações individuais multicoloridades que ela considera, ao contrário, que
as normas e as instituições resultam desta multitude de ações individuais,
e procura então, pelo cálculo estatístico, isolar as regularidades e parte
com efeito do quantitativo.
A
primeira abordagem parte do conteúdo significativo, enquanto que a segunda
parte do quantitativo. Quételet avança como astrônomo em direção à
sociedade – os planetas não falam – e armado da estatística e do princípio
de distribuição de erros de observações na astronomia. Ele diz: “Eu não
tenho teoria, eu não tenho sistema, eu observo, eu anoto.” Este segundo
ponto de vista é este do “Outro que não existe”, na nossa linguagem. É
o ponto de vista: o grande Outro resulta dos trilhamentos continuados do
sujeito. É o segundo ponto de vista de Lacan, conforme ao segundo
Wittgenstein, que vemos emergir no Seminário
Encore.
Aliás,
a sociologia durkheimiana , que sempre tomou como ponto de vista o todo,
funcionalista, um macro ponto de vista, sempre resistiu ao pensamento
distributivo e probabilista. O ponto de vista “ o Outro não existe” é um
ponto de vista micro, quer dizer que recolhe os dados quantitativos e que
estuda as distribuições, as médias, e as dispersões e desvios com relação
à média. Ela estuda as distribuições e, estudando as distribuições, ela
pode definir os meios, um espectro de dispersões, e de desvios com relação
à média, e isto, sem referência a nenhum conteúdo significativo, nem a
nenhum absoluto. Não dizemos : “O homem deve ter 1,72m”. Não o impomos.
Levantamos a altura dos homens de tal idade e dizemos: “A média é de
1,72m. Aqueles que não têm 1,72 são pequenos e aqueles têm mais são
grandes.” É um dos grandes exemplos de Quételet, o de ter
estudado a altura. É muito bem fundamentado. Vocês não imaginam o
entusiasmo que cercava os estudos de Quételet. A epidemiologia em saúde
mental faz exatamente a mesma coisa hoje, salvo que isto recai sobre a saúde
mental.
Constatamos,
ao longo da primeira metade do século XIX que acumulamos os dados
quantitativos. Há uma paixão por isso, justamente por que houve esta ruptura
e esta recomposição do laço social que se traduziram
por um perigo para a estabilidade social, um perigo para a segurança
– e toda a primeira metade do século XIX ficou ocupada em como garantir a
segurança – e também um perigo sanitário.
A
literatura porta todas as marcas disso, “Le bonheur dans le crime” de Barbey d’Aurevilly foi escrito
nesse contexto . De que fala Stendhal em “Le
Rouge et le Noir”, crônica de 1830? Ele fala de uma história, lida nos
jornais, de um valete de fazenda que se tornou amante da patroa e a matou. Em
seguida, nasce o detetive, Edgar Poe... Vocês não têm nada de comparável
na literatura do século XVIII onde, quando há crimes são pequenos delitos
divertidos, ou pequenos envenenamentos distraídos e estéticos. Tudo fica
negro depois do século XIX, porque nós estamos nesse contexto da
criminalidade.
Eu
não encontrei também nos meus livros a maior referência histórica sobre
isso, o livro de Louis Chevalier, lançado em 1955, “Classes laborieuses et Classes dangereuses,”
que nos dá um panorama da época. Falarei
à partir de minhas notas do meu concurso para professor adjunto. Ele explica
que o começo do século XIX é marcado por uma vontade quantificar, tudo
medir, tudo saber, sob o pretexto do perigo. Nós estamos nesse ponto. Nós
revivemos o começo do século XIX com os meios do século XX.
Eu fazia leituras engraçadas na época, tendo mais tempo para ler. Eu
fazia referência ao Doutor Parent-Duchâtelet, um médico francês que, em
particular, consagrou em 1836 uma
obra muito culta, “De la prostitution
dans la ville de Paris ...”,
onde ele faz estatísticas sobre prostitutas parisienses. É uma obra de referência
para a estatística.
Na
Inglaterra, passemos sobre o papel eminente que desempenharam os
utilitaristas, alunos de Bentham, e a criação, em 1857, por Lord Brougham um
benthamiano eminente, da Associação de Ciências Sociais. É a época onde
se criam as sociedades estatísticas – Quételet é ainda pesquisador
individual -, e se fazem equipes para reunir os dados e tratá-lo. Na França,
se começa a publicar todos os anos as coletas de números estatísticos.
Todos os anos, à partir de 1827, vão sair os dados quantitativos sobre os
crimes cometidos, aqueles que são elucidados, as punições que recaíram
sobre os criminosos. Isto ascende a esperança. Esse modo atingiu seu ápice
na primeira metade do século XIX e isto decresceu um pouco na segunda metade,
mas permaneceu presente.
Antes
de Quételet, os estudos tinham já observado regularidades estatísticas nas
variáveis demográficas, em particular no que concerne a mortalidade e o sex
ratio
no nascimento, que Lacan evoca em “L’étourdit.”
Estudamos o número comparado de meninas e meninos ao nascerem. Passamos a
tratar todos os domínios da vida social deste modo: o crime, o suicídio, os
nascimentos adulterinos, a freqüência às igrejas, a freqüência às
escolas, a pobreza, mesmo as doações filantrópicas. Passamos a anotar tudo
isso e a fazer comparações. Houve uma obra de 1833 sobre a criminalidade que
se intitula “Essai sur la statistique
morale en France”.
L’homme
moyen
Quételet
, ele próprio, que escreveu uma obra que se chama “Le
système social”, achou que
ia fundar uma ciência nova de física social. Ele promoveu o que do nosso
ponto de vista, continua sendo o princípio de uma epidemiologia em saúde
mental: a teoria do homem médio. Ele se deu conta, estudando as medidas de
altura dos recrutas militares, que a altura dos recrutas obedecia a uma curva
de Gauss e que os erros de observação obedeciam à distribuição normal dos
erros de medida em astronomia. Com seus dados sensacionais, verdadeiramente
inteligentes, ele colocou os princípios de uma espécie de astronomia social.
Do
mesmo modo que chegamos a reconhecer a existência, entre aspas, “de uma força
de gravitação”! – para o deslocamento dos corpos celestes
quer dizer, de uma fórmula matemática à qual obedece sua órbita,
devemos ao mesmo tempo reservar o lugar de uma multiplicidade de pequenas forças
de perturbação que fazem com que não reencontremos jamais exatamente em seu
lugar matemático o corpo celeste. Existe sempre uma ligeira perturbação, as
observações astronômicas têm sempre alguma coisa casual. Procura-se numa
zona do céu, à partir de cálculos, e depois há algo sempre um pouco fora
do lugar.
“Meu”
Quételet colocou que, no universo social e moral de representações do indivíduo,
há o equivalente da gravitação, e é o que ele chamava “a tendência”.
As tendências que obrigam a uma distribuição normal em curva de Gauss. Ele
distingue a tendência ao crime, a tendência ao suicídio, ou a tendência ao
casamento. Ele delimita que a taxa de criminalidade é maior entre os machos
entre vinte e vinte e nove anos. Eles estão no auge para o crime! Também há
as idades em que se dão os casamentos. Ele conclui que se pode encontrar no
universo moral do comportamento do indivíduo as mesmas leis que as da mecânica
celeste, e que é preciso ter em conta nesse momento as pequenas forças de
perturbação que fazem com que o cálculo não seja jamais exato, e que haja
sempre uma decalagem.
Essas
tendências são para ele formas do instinto e, com relação a isso, a
vontade humana lhe parece, na ordem normal, de intensidade zero. É uma força
pouco utilizada e ela não intervém senão como uma das mínimas forças de
perturbação com relação à regularidade orbital das tendências. O que lhe
parece, a base da estabilidade da ordem social, é o homem médio, são as
propriedades estatísticas que são estáveis nas principais ações humanas,
no casamento e no crime.
Isto
foi amplamente criticado. Um pré-sociólogo alemão, Drobisch, na “La
statistique morale”,
criticou o homem médio como uma ficção matemática abstrata. Max Weber também,
refere-se à Quételet e critica certa vontade de fornecer uma análise astronômica
dos eventos da vida, mas é sobretudo Durkheim que, por sua vez, se refere à
Quételet e, ao mesmo tempo lhe opõe um outro ponto de vista que é o
da exterioridade da ordem social aos indivíduos, enquanto que Quételet
a encontra nas regularidades da ações humanas.
O
célebre estudo e Durkheim sobre o suicídio se inscreve nessa polêmica. Ele faz uma análise bem
mais fina que a abordagem global quantitativa de Quételet , uma vez que ele
distingue as taxas de suicídio segundo qualidades muito finas: segundo os
grupos religiosos, o sexo, a profissão, a idade, e segundo o estado
matrimonial. Mas a ponta e a motivação do famoso estudo de Durkheim sobre o
suicídio se inscreve nesse contexto de Quételet. É uma polêmica com Quételet,
com este ponto de vista astronômico. Durkheim e Quételet estão de acordo em
várias coisas. São deterministas e, logo, eles colocam que no universo
social, nada se produz por acaso e que a sociedade é regida por leis. E,
ainda, Durkheim admite que podemos definir o normal e o patológico sem o
ideal, o normal é a média, o
patológico o desvio com relação à média. Este ponto de vista é leigo,
pois isto conduz à dizer que o crime é normal. Há uma regularidade no
crime, o que é anormal, ocorre um pouco demais ou, um pouco de menos. Quando
não ocorre o suficiente, falta energia. É o que dizia Stendhal. Quando os
italianos estavam sob o regime dos principados, eles se esfaqueavam
galhardamente, em seguida chegou a democracia, e eles perderam todo o ardor.
É um ponto de vista extremamente leigo, mas que é a ditadura da média.
Antes
de chegar aqui, para agir sobre a média do senador UMP, eu chamei meu amigo
François Ewald para lhe assinalar o estado desastroso de nossa campanha
parlamentar. Ele me prometeu fazer o impossível. Em seguida eu lhe disse:
“Apressemo-nos em terminar, pois eu vou falar um pouquinho de Quételet.”
Nós chegamos a um acordo sobre a grandeza de Quételet. E ele me disse: “A
idéia de Quételet implica em instalar um julgamento perpétuo da sociedade
por ela mesma”. Isto me pareceu muito justo. Com efeito, a média é um
ideal secretado pela própria estatística quantitativa. Isto não surge de
nenhuma prescrição, de nenhum comando, são números que lhes dão um ideal
por si mesmos, o ideal da norma, distinto do da lei. A lei guarda sempre sua
ancoragem no grande Outro. É a lei divina, a lei do estado, que num dado
momento se impôs do alto, do exterior. Enquanto que a norma – é muito mais
doce – é invisível – vem de vós, da combinação de suas decisões
individuais, e depois isso se desenvolve imperceptivelmente e não podemos
mais nos opor. Nessa pequena discussão, François Ewald me dizia: “O reino
da norma metia medo em Michel Foucault, porque não tinha exterior”. É
congruente com o que eu evocava na vez passada:
Podemos nos rebelar contra a lei - é o que nós fazemos – não podemos fazê-lo
contra a norma, contra a ditadura
da norma.
Isolar
essa referência à norma nos permite ver que, mesmo se ela se desenvolve a
partir da estatística, decidir conformar-se à norma, fazer da norma lei, é
uma escolha política. Aí podemos opor alguma coisa aos nossos estatísticos
em saúde mental, que pode ser o vetor de uma intervenção propriamente política:
fazer da norma, a lei, e perseguir todos os desviantes com respeito à norma
é um fator de estagnação. Isto se opõe precisamente àquilo que seria a
ambição de alguns, a inovação. Para preservar a inovação de uma
sociedade, é essencial que a norma não seja a lei. Depois de tudo, é lógico
que isto seja formulado à partir do discurso analítico.
II-
O objeto-máquina
1.
Acontecimento
Hold
up
Este
curso incide sobre a questão: como chegamos até esse ponto? Há uma espécie
de “então, era mais verdadeiro ainda do que nós poderíamos supor”. De
um lado, não há nada no que está acontecendo que nos surpreenda uma vez que
foi anunciado de todas as maneiras possíveis e, ao mesmo tempo, quando isso
ocorre, o acontecimento traz consigo, sempre, um elemento que desconcerta, que
nos deixa perplexos. A leitura que eu fiz de imediato daquilo que estava
acontecendo, é que se tentava encontrar os meios de reduzir, asfixiar e de
fazer desaparecer a psicanálise, projeto que mostra ao menos, que não se
pensou que a evolução pura e simples das coisas levaria a isso, que seria
preciso no mínimo dar um empurrãozinho.
O
que é a psicanálise para merecer este empreendimento? O que é a psicanálise
para ensejar este empreendimento, e para assemelhar-se, ao menos hoje, no
momento, a um núcleo de resistência a este empreendimento?
Uma
personagem de Balzac que se chama Vautrin, formulou esse belo princípio: “Não
há princípios, somente acontecimentos”. É o princípio do oportunismo, do
qual, o príncipe de Bénèvent, Talleyrand, foi quem inspirou Balzac. Nós
que temos princípios, constatamos que não é fácil fazer com que eles
dominem os eventos. O evento, qualquer que seja sua força, qualquer que seja
a surpresa que ele pode despertar, uma vez que recuamos um pouco, aparece
situado na estrutura e inscrito no processo.
Pronunciando
o nome de Quételet,
eu quis colocar um nome próprio – eu escolhi esse aí – supondo que ele não
era familiar a vocês – a origem de um processo que fez nascer, se expandir
e dominar um novo tipo de homens, aqueles que Robert Musil chamava de “os
homens sem qualidades”. Tomaram parte disso que Quételet percebeu sua
reflexão sobre a estatística, o cálculo das médias e a importância que
ele deu à emergência de uma psicologia quantitativa. O que produz o homem
sem qualidades é a quantificação, a entrada de sua pessoa no cálculo. A
palavra “pessoa” vai até aquilo que chamamos correntemente de psiquismo e
sobre o qual a palavra psicanálise guarda, infelizmente para ela, uma relação.
Apenas por respeito aos semblantes Lacan conservou este nome, que lhe pareceu
herança da história , e que está tão pouco de acordo com o que Lacan
estruturou sobre a prática freudiana. Um dia, será preciso prescindir desse
nome.
Nós
assistimos a um verdadeiro hold-up sob o nome de
“psicoterapeuta”, que não é o nosso, sem dúvida. Mas nós vemos como
isso se passa quando, num dado momento, a potência do Estado, sua mão, pode
se abater sobre um significante e decidir lhe dar um novo sentido, um novo uso
e novos agentes. Quaisquer que seja as diferenças finas que possamos ver
entre psicoterapia e psicanálise,
essas duas palavras portam o estigma do psiquismo. Essa zona foi tocada, uma
zona que durante um certo tempo, desde
os psicólogos e psiquiatras, era senão protegida, talvez não protegida,
quer dizer protegida do excesso de interesse que depositamos nela.
É preciso uma obtusidade especial para que alguns colegas tenham
formulado, se levarmos à sério um despacho da AFP desta manhã, que eles se
sentiam seguros.
Bem ao contrário, é preciso se perguntar em quanto tempo o nome de “psicanálise”
não será mais protegido, por quanto tempo esses protetores do futuro
permitirão que ele seja usado livremente, donde podemos constatar a que ponto
ele foi, no conjunto, na média, garantido por agentes que, ainda que indignos
dos ideais freudianos, asseguraram – valha o que valer a função. Nós
entramos num tempo onde nós temos que nos colocar a questão de como nós
deveremos ser chamados, talvez, para continuar a fazer aquilo que queremos.
A
morte do absoluto
A
entrada da pessoa na quantificação se traduz por isso que Musil chamava um
“desencantamento”. Foi durante um episódio de seu grande romance, quando
seu herói Ulrich – que acredita na ciência, que meditou sobre a estatística,
é conduzido ao posto de polícia. Como diz Musil de modo agradável: “Ele
continuava capaz de apreciar, mesmo nesse instante, o desencantamento ao qual
a estatística fazia a pessoa submeter-se, e o método de fichar e medir que o
policial lhe aplicava o entusiasmava como um poema de amor inventado por Satã.”
Ulrich está feliz em constatar que o “operador disseca a pessoa em
elementos insignificantes, derrisórios”, e depois, à partir desses
elementos pode recompô-lo e “lhe devolver-lhe novamente os traços que
distinguem dos outros, reconhecendo-o por seus traços”. Esta operação que
aqui é policial, é a operação científica decomposta em elementos
insignificantes. Foi igualmente assim que a lingüística procedeu quanto a
linguagem, e fomos conduzidos a distinguir os significantes e o significado
conforme à orientação estóica. Esta decomposição elementar, quando ela
se efetua sobre os grandes conjuntos,
tem por efeito a evaporação daquilo que durante séculos, chamamos de
liberdade.
Aí
se inscreve, impõe, o que poderíamos chamar de a lei de Quételet, à sombra
de quem Musil escrever seu próprio poema romanesco. “Quanto maior é o número
dos indivíduos, diz Quételet, mais a vontade individual se apaga e deixa
predominar a série de fatos genéricos que dependem de causas, por meio das
quais a sociedade crê, existe e se conserva. “É uma a constatação
corrente, que vocês tomam individualmente a decisão que vos convém sobre
onde passar suas férias, e que a SNCF se encontra em condições de calcular grosso
modo o número de viajantes que subirão nos trens, e de acrescentar vagões
suplementares se for o caso. O fato de que estes cálculos nos envolvem torna
ínfimo o indivíduo e lhe prescreve um novo tipo de destino, desconhecido dos
gregos, o destino estatístico, que pesa sobre a escrita de Musil, com o
efeito de evaporar o único e substituí-lo pelo típico. Há em Musil, tal
como sentimos crescer ao longo do século XX, “o espanto, a devastação, a
deploração de afiliação romântica dos intelectuais, dos escritores, dos
artistas, diante disso que emerge como homem das massas”, dizia Ortega y
Gasset.
Musil
escreve que a influência crescente das massas, do grande número, torna a
humanidade sempre mais média. Há um aumento específico na civilização,
daquilo que é médio. Emprego a palavra civilização em eco a título de
Freud, e sem que seja aqui questão de recalque. Um crescimento em potência
dos valores médios dos valores medianos cumpre-se irresistivelmente, e nós
vamos viver o triunfo dos valores medianos. É uma versão da morte do
absoluto, a substituição do absoluto pela média, quer dizer, pelo cálculo
estatístico, de tal sorte que Musil pode falar do verdadeiro suplantado pelo
provável.
O
incomparável
Eis
o quadro, o contexto que nós isolamos e no qual surgiu a psicanálise. Lacan
dizia que a condição do acontecimento-Freud foi a Rainha Vitória. É uma
forma/imagem, emblemática de assinalar que foi preciso haver um
recrudescimento social do recalcamento para que se produzisse aquilo que,
nesse contexto, devemos chamar de uma
liberação da fala. Observa-se isso nas pacientes de Freud. Elas encontram em
Freud um interlocutor, elas o formam para sê-lo, um ouvinte daquilo que elas
não podem dizer em outro lugar. Dócil ao
desejo delas de dizer, Freud conformou-se pouco à pouco àquilo que
para nós, de modo mais desencantado, é a posição do analista. Posição na
qual, aquilo que é recalcado pode vir a se dizer de outro modo, que não pelo
puro e simples retorno do recalcado, pode vir a se dizer de modo a se desenlaçar.
Freud previa que as sociedades vitorianas se desagregariam e que a psicanálise
viria a seria útil. Ele antecipava em seu famoso texto de 1910
que eu já comentei, uma Aufklärung
social, o triunfo das luzes na sociedade que faria com que aquilo que não se
pode dizer, exibir-se, massificar-se, nos regimes vitorianos, poderá trilhar
seu caminho.
Muito
disso se cumpriu nas sociedades em que vivemos. Eis porque, eu sugiro que não
foi somente graças à Rainha Vitória que a psicanálise foi possível ou que
se tornou necessária, mas que foi também por causa de Quételet, causa menos
espetacular sem dúvida, que a Rainha Vitória. A psicanálise apareceu na época
do homem sem qualidades e nós não saímos dessa época. Nós temos entrado
nela, mais do que nunca, decididamente. Nenhuma Aufklärung
nos protege, uma vez que o reino do cálculo, que avança com números e
medidas no domínio do psiquismo, pode se fundamentar, igualmente bem, no espírito
das luzes. Sem preconceitos!
É,
sem dúvida, porque a pressão dos grandes números, a emergência do homem
sem qualidades, tornou-se insuportável, que a psicanálise encarregou-se da
clínica, da arte do um por um. Ela encarregou-se, não do um por um da
enumeração, mas da restituição do único, na sua singularidade, no
incomparável. É o valor profético, poético, da recomendação técnica de
Freud, de escutar cada paciente como se fosse a primeira vez, esquecendo a
experiência adquirida, sem compará-la e sem pensar que nenhuma palavra que
saia de sua boca tem o mesmo uso que para um outro, e mesmo para si próprio,
e de instalar-se na experiência analítica na estranheza do único.
Isso
me parece convincente. Há um efeito em jogo, uma correlação, uma compensação
entre a dominação crescente da estatística e esta arte singular que
conheceu uma expansão universal durante um certo tempo nas sociedades que
praticam o cálculo dos grandes números. Um Bion levou as coisas até dizer
que: “Esqueçam tudo do mesmo paciente. Que cada sessão seja como a
primeira vez, seja uma emergência.” Ao mesmo tempo, trata-se da mesma época,
a de Freud e a de Quételet, a do homem sem qualidades, pois a psicanálise só
funciona sob o fundamento do mais desordenado determinismo. Foi que Lacan
cristalizou no significante do sujeito suposto saber.
A
associação livre, método que consiste em partir de um enunciado qualquer,
ao acaso, só é possível porque há no horizonte a noção de que se trata
de uma associação determinada. Portanto, cumpre-se na operação analítica
a mesma volatização da liberdade individual que no cálculo estatístico. A
associação livre aparece estritamente condicionada. Do lado do analista -,
é aí que Lacan via o fundamento mesmo da certeza do analista - , trata-se de
referir, demonstrar as regularidades no enunciado ocasional. Lacan dizia
“como espontâneamente” do analisando. Não são somente as leis da fala
que estarão aí em questão, as leis do significante, mas também as leis
internas ao discurso do paciente, e que permitem destacar as constantes e as
leis próprias de seu discurso.
2.
A prática do questionário
Múltipla
escolha
Para
continuar a mapear os elementos que tem relação com a época, podemos
colocar esta prática do questionário em correlação com o método da
associação livre, que apenas
começou, mas que deverá
expandir-se até atingir as vizinhanças de nosso ato. É um pouco distante
para nós, porém a geração que vem aí será formada desse jeito. Eu tomei,
estupefato, conhecimento dela, nos últimos dias do ano de 2003, em 29 de
dezembro, lendo o Boletim oficial da
Educação nacional de 11 de dezembro. Quem me trouxe foi Gabriel, como o Anjo
Gabriel, Gabriel Chantelauze. Os ministérios da Educação nacional e da Saúde
tomaram a decisão de obrigar as crianças da oitava série, no início do próximo
ano, a preencher questionários de saúde mental. Isso não é obra de alguém
impulsivo, foi refletido, e fundamentado no pensamento da administração.
Escutando
e observando o debate que se deu no senado na segunda feira, eu fiquei feliz
em ouvir ressoar no hemiciclo, na entranha da democracia, uma voz, a do M.
Jean-Pierre Sueur, senador e adjunto de gramática, que interpelou à quem ele
pode, sobre essa exorbitante decisão.
Se, se coloca isso em prática, as gerações futuras serão formadas desde a
mais tenra idade para pensar, e para se pensar em termos de questionário. Eu
não posso pré julgar se o questionário será: “você se sente triste?”.
E marcamos uma opção: um pouco, jamais, raramente, freqüentemente, muito, o
tempo todo.
A
prática do questionário tem fundamentos sem dúvida muito complexos. Em meio
ao burburinho atual, não tive tempo de remontar ao nascimento do questionário,
ao modo como ele foi formatado. Essa prática requer interrogar o sujeito,
dar-lhe a palavra, solicitá-lo, um movimento que é contrário ao da
medicina, que a cada vez mais prescinde do testemunho do sujeito. Ao menos
formalmente, isso tem alguma coisa a ver com a psicanálise. Dizemos,
“Fale”, ou então, “Escreva”. Convidamos a responder, mas ele já está
aprisionado num aparelho de escrita, num dispositivo que faz com que sua
resposta seja necessariamente comparável a de um outro, quer ela seja a
mesma, diferente, média ... Saberemos que 40% dos alunos ficam tristes de
tempos em tempos. O resultado, ou a inexatidão do resultado não interfere em
nada no procedimento. Pelo simples fato de que colocamos um sujeito num
dispositivo de escrita, ele já destituído do que é único. Se ele rasga a
folha, não responde, ele será colocado na percentagem dos refratários.
Trata-se de alguma coisa que não tem exterior.
Chegará
o momento em que os questionários serão queimados, e a escola também, e
onde nos recusaremos a imprimir questionários com seus pequenos retângulos,
pois elas terão nos colocado no bolso, esses pequenos retângulos que
marcamos. Não o nosso, mas o dos que estão por vir. Eis o instrumento que nós
vimos chegar ao uso. Não marcávamos retângulos antigamente. Constatamos que
era um meio muito cômodo de obter respostas calibradas, sem retórica. Este
instrumento comporta que tudo, na existência, é questão de mais ou menos, e
este mais ou menos não surge num continuum,
mas em unidades discretas. Compomos uma cadeia significante de zeros e de
um, uma cadeia significante binária, propriamente digital. Vocês entraram
agora no cálculo estatístico, um cálculo de médias. Não há nada que
explique melhor a prevalência da média do que o pequeno retângulo vazio
onde você vão marcar sua impressão digital sob as espécies da marca, esta
marca que Lacan repertoriou como sendo a do animal abatido. O animal abatidos
são vocês!
O
behaviorismo
É
preciso colocar Watson, o criador do behaviorismo, comportamentalismo em francês,
num bom lugar entre os encrenqueiros desta era. Durante muito tempo, não
dizíamos a palavra em inglês para acentuar que “é muito pouco para nós!”
mas eu retomei os textos originais de Watson, a introdução da segunda edição
de sua obra Behaviorism
. Ele diz com todas as letras: “Se, enquanto psicólogo, vocês pretendem
continuar científicos, vocês deve descrever o comportamento do homem em
termos que não são diferentes dos que vocês utilizariam para descrever”
– o que foi que ele escolheu dizer? –“ o comportamento de um boi que vocês
degolam”.
Vejam
vocês, mesmo quando eu me empolgo, tenho referências. O questionário que é
prenhe de uma cadeia significante, que lhes faz cadeia significante, é também
a encarnação, a materialização, de uma linguagem que quer ser unívoca.
Donde o cuidado depositado no estabelecimento do questionário, para que ele
seja totalmente sem ambigüidade. A padronização opera sobre a própria
linguagem, e vemos que de modo binário, a prática do questionário se opõe
termo à termo à prática analítica que, ao contrário, intensifica a ambigüidade.
A arte da análise é que, no contexto da sessão analítica, cada palavra
seja cheia de significações múltiplas, que a analista tem por disciplina
saber que não sabe o que você diz, que ele tem que aprender a sua língua, o
seu uso único da língua. Isso não é possível a menos que vocês mesmos
estejam, com respeito aos seus ditos, na mesma posição de estranheza. A
elaboração do questionário visa, ao contrário, constituir por meio da língua
corrente uma metalinguagem unívoca. Todas as questões lá são infinitas,
razão pela qual há edições de questionários. Monsieur X critica o
questionário de Monsieur Y, porque uma questão é sempre tendenciosa, ela não
é jamais suficientemente unívoca. Se a prática do questionário se expande
desde o berço isso terminará tendo um efeito de padronização sobre a língua.
Para poder servir-se dela como bem lhes aprouver, será preciso falar a língua
dela.
Trata-se disso no questionário: o operador lhes obriga a falar língua dele.
Na
análise, é o não saber o que isso quer dizer que produz o efeito de sujeito
suposto saber, enquanto que no outro caso a palavra de vocês endereçada a si
mesma. Se há determinismo, é um determinismo do único. Uma vez que aqui o
sujeito não é suposto, é o saber em pessoa que está presente. Podemos
falar de preenchimento de retângulos, como um ritual que impõe o saber
sagrado, a quem vocês entregam aquilo que ele demanda. Vocês aceitam se
reduzir a uma combinatória de pequenos retângulos, e então você se tornam
o “homem sem qualidades”. Todas as suas qualidades passam nos pequenos retângulos
e você podem ser recompostos a partir disso. Não há melhor representação
do sujeito barrado de Lacan do que o pequeno retângulo que marcamos e que não
é senão uma variável. Quando vocês preenchem o questionário, vocês
confessam que não são mais do que uma variável do questionário. Podemos
discutir a referência etológica que foi a primeira referência do
comportamentalismo e do qual você vêm o exemplo no: ”boi que degolamos”.
Vai ser preciso, um dia que eu ilustre o emblema do comportamentalismo: The
ox that you slaughter.
Eu não conheço da obra de Watson senão esse livro, mas talvez possamos
encontrar a relação que ele tinha com o açougue.
Ele
previu a resistência, a indignação. Ele retorquia, de um modo que não era
antipático, e onde vemos o parentesco de época com Freud, pois o behaviorism,
como a psicanálise estão entre as disciplinas que trouxeram a desidealização
à época do homem sem qualidades. A imagem é sanguinolenta, mas isso
participa deste grande movimento de desidealização do qual a psicanálise
faz parte e, do qual, nós a repreendemos por se afastar sublimando a
linguagem. Mas, nas terapias, o comportamentalismo, o cognitivismo e as
terapias que quisemos delas deduzir, não é o animal que é o modelo e sim a
máquina, o objeto-máquina.l
3.
O ideal de saúde mental
Obstrução
Chamamos,
um certo número de objetos, porque os considerávamos fúteis, os gadgets.
Trata-se de objetos nascidos da indústria, que incorporam o cálculo. A
relação, que eu quero colocar em evidência é a relação do sujeito a
objetos que comportam uma incorporação simbólica. É dizer muito pouco. São
objetos nascidos do simbólico. Os objetos nascidos do simbólico, que são
objetos construídos, deduzidos, calculados, produzidos maciçamente, em
numerosos exemplares, são um novo tipo de
real que surgiu na revolução industrial, um real que é o produto da medida
e do número – não de uma habilidade
-, e eles são os subprodutos do discurso científico, e operam por meio
do cálculo. Foi isso que Lacan visava, num tempo do seu trabalho, quando ele
evocava a invasão da vida pelo real, e este real, tornou-se para nós
extremamente incômodo.
Foi
circunscrever o mal-estar na civilização de uma outra maneira, diferente de
Freud, pois não passa pelo recalque, ou pela desacomodação das pulsões à
civilização. Foi delimitar esse mal-estar na civilização partindo de que
ele é dominado pelo discurso científico, que tem a propriedade de fundir
esse real de um modo muito especial. Lacan disse numa conferência na Itália,
tomando como exemplo a mesa do conferencista: ”Esta mesa é alguma coisa que
tem um outro acento, que não poderia jamais ter tido na vida anterior dos
homens.” Não é grande coisa, mas já não é um objeto manufaturado, ele não
depende mais de uma habilidade. Por meio de um certo número de mediações,
ele é filho do número e da medida. É um aparelho, e o aparelho substitui a
coisa. Não se trata do recalcamento que incomoda, trata-se da máquina
enquanto ela reconfigura o mundo e que tem um efeito de invasão e obstrução.
A psicanálise compensa. Lacan evocava a psicanálise, ela própria, como uma
resposta a este obstrução do real, como um meio de sobreviver a isso. Eis o
que lhe parecia justificar a necessidade de que houvesse analistas. A
necessidade não implica a probabilidade, mas ela indica uma maneira de levar
em conta o mal-estar na civilização: é preciso começar por permanecer
analista, por se furtar a devir esse objeto que se apreende entre o número e
a medida.
Eles
não nos pedem grande coisa: “Apresentem-nos a lista”. Apenas isso! Mas o
que se aponta nessa demanda é o convite e, ao mesmo tempo a promessa:
“Sejam como as máquinas. Vocês serão como as máquinas.” É uma
promessa, por exemplo, de que vocês poderão ser reparados, ser
reprogramados, quase tanto quanto a um computador. A grande promessa
prossegue! Estamos no banco de órgãos. Isto estará no mostruário dos
magazines. Eu vi isso representado, não nas utopias, mas nas projeções.
Quanto falta para que cheguemos ao ponto de passear entre os mostruários e
perguntar: “Quanto custa esse fígado?”
Trata-se do seu fígado. Você vai levá-lo consigo e mandar instalá-lo.
Tudo que gira em torno da clonagem, gira em torno do ideal da máquina. Para
que isso se realize, é preciso que tenhamos sido reduzidos, primeiro, ao
estado do homem sem qualidades, é preciso começar a marcar os pequenos retângulos.
Quando Lacan assinala que esse real é incômodo, insuportável, é a
própria definição do real como impossível de suportar. É a própria
definição que Lacan dava da clínica: “O real como impossível de
suportar”. De um certo modo, a clínica está por toda parte, e é bem por
que o real está cada vez mais difícil de suportar, que assistimos a promoção
da saúde mental.
Adaptação
Há
também uma história, uma arqueologia à fazer, que deverá esperar dias mais
serenos. Antes de procurar a arqueologia, vamos apreender como opera a lógica
em questão. A saúde mental é o ideal de um sujeito para quem o real
deixaria de ser insuportável. Quando partimos disso, só encontramos perturbações
mentais, disfunções. É preciso que a nossa língua não se deixe enganar
pelo sintagma da perturbação
mental. O conceito de perturbação mental veicula com ele a noção de saúde
mental, e foi este conceito de perturbação mental que desfez as soberbas
entidades nosológicas herdadas da clínica clássica. A perturbação mental
é uma unidade, é o que em
seguida pode ser circunscrito, repertoriado pelo método dos pequenos retângulos.
Não
é absurdo. Tive a ocasião de assinalar de passagem que o conceito lacaniano
de sinthoma respondia à mesma exigência
de prescindir das construções nosológicas para isolar as unidades discretas
de funcionamento. O sinthoma é a
perturbação mental considerada como um modo de extrair gozo. É o que lhes
faz encontrar o real insuportável e o que os faz gozar do real. Porque não tínhamos
antes esse ideal de saúde mental? Não tínhamos também a OMS. É preciso
interessar-se pela OMS, Organização Mundial de Saúde. Dado o que eu ví da
organização mundial da saúde na França, estou persuadido de que é terrível.
Procura-se por meio da organização mundial da saúde a resposta universal ao
mal-estar na civilização. Por que antes não havia essa promoção da saúde
mental? Como nós imaginávamos que o mundo era feito pelo homem, logo,
naturalmente, era uma relação harmônica. A harmonia hoje nos faria rir. Há
alguns ersatz, refúgios. Algumas
pessoas escapam para procurar uma pequena zona de harmonia, respirar ar puro,
não ver os congêneres, a natureza, o que ainda resta dela, mas o conceito
que suplantou o de harmonia e que dominou o imaginário ao longo dos séculos,
é o de adaptação.
Isso
diz tudo. É aliás, o único critério de saúde mental e aquele que
pretendeu introduzi-lo imediatamente na psicanálise, porque era muito
esperto, foi Heinz Hartmann. Ele fez uma monografia sobre adaptação, que é
um dos seus primeiros escritos.
O termo adaptação traduz
precisamente o fato de que precisaremos viver num mundo que não é mais feito
pelo homem, na medida em que ele é mais e mais feito pelo homem. Lacan
poderia dizer: “As pessoas são comidas pelo real” Podemos ver esse
pequeno retângulo à marcar, como uma boca que vai nos comer.
Um
real de semblante
O
real de que se trata aqui é o real? É um real, na medida em que é impossível
de suportar. Lacan disse: “É o real ao qual as pessoas são capazes de
alcançar”. Elas são capazes de alcançar o real que eles produziram a
partir do cálculo e do número, e elas fizeram para si mesmas uma vida
infernal. É um real “materializado” – Lacan emprega este adjetivo. É
preciso entender de que materialismo se trata. Este materialismo é também um
artificialismo. É exatamente o que animava a polêmica discreta de Lacan com
Lévi-Strauss, que pensava que a combinatória da estrutura tal como ele se
servia dela, por exemplo, no pensamento selvagem, que esta combinatória feita
de uma complexificação das relações binárias, refletia a estrutura do cérebro
– ele provocou escândalo na época quando concluiu, nesse sentido, que ela
refletia a estrutura da matéria como seu duplo. Esse não é uma
materialismo-artificialista, como aquele do século XVIII, mas um materialismo
primário.
Lacan
opunha a isto os argumentos que ele retirava também de Lévi-Strauss: não há
somente o mundo e a matéria enquanto tais, há também o lugar onde as coisas
se dizem, e que ele chamava de “o palco”. É preciso pois que o mundo suba
ao palco, onde é apanhado numa outra estrutura. É o que Lacan chamava de o
grande Outro. O lugar do Outro é o lugar onde se fala, qualquer que seja a
estrutura da matéria, as leis da física e mesmo da estatística social. Aliás,
é sem dúvida por essa razão que há tantas referências ao teatro em Lacan.
O teatro é como a reduplicação do palco onde o mundo tem que subir. A
linguagem impede de reduzir o mundo à imanência. Por causa da linguagem, a
imanência é afetada por uma transcendência, que é um efeito da linguagem.
É o que o grafo de Lacan traduz em dois estágios, que existe um mais além
atrelado ao próprio funcionamento da linguagem, um efeito de transcendência.
Se destacamos o efeito de transcendência, obteremos a instância de Deus Pai,
e o imaginamos anterior e criador, ao passo que para Freud e Lacan, Deus não
é criador e sim criado pela linguagem. E, se ele existe, é muito mais como
uma ex-sistência, uma substância à partir da linguagem.
O
mundo é reconfigurado pelo palco segundo as leis do significante. São leis
próprias, aquelas do significante, distintas das leis físicas ou estatísticas.
Lacan pode utilizar os próprios exemplos de Lévi-Strauss.
Há o calendário cronológico, e quando dizemos certas datas, elas são
carregadas de significação. Se dizemos 2 de dezembro, ou dezoito de junho,
ao menos no contexto cultural, são datas que marcam e que respondem à outras
funções, que têm uma outra presença, uma outra exigência diferente de uma
data puramente cronológica.
Apreendemos
ao menos a imaginarização que se apossa da coisa tal e qual, porém, um
passo mais à frente, a ciência, quando opera sobre uma realidade, faz com
que ela desapareça. Lacan
retomava o exemplo dos elefantes, no Seminário I,
a partir da linguagem. A explicação do que quer que seja, não deixa como
resíduo senão uma combinatória de elementos significantes daquilo de que se
trata. Ela volatiza tudo que, anteriormente, lhes atava à substância da própria
coisa. Quando a explicação científica se conclui, ela apaga a coisa e a
substitui pela lei. A ciência substituiu a coisa pelo significante e termina
criando semblantes. O que prova sua eficácia é poder se repetir. Há um
efeito de reprodução interna à operação científica. Este real que invade
e que não é o real, pode ser, podemos dizer que ele é ainda mais opressivo
e insuportável uma vez que é um real de semblante.
Afirmação
de si
Fracassamos
diante do objeto a, que não funciona no mesmo regime que o significante, pois se
este é universalizável, reprodutível, desmontável, que em última análise
é semblante. O objeto a não é universalizável mas, ao contrário, é
marcado pela singularidade do encontro. Donde a impossibilidade de que se
escreva S2 (o saber) dominando o objeto a (o gozo), e que está na linha
superior do discurso da universidade, como dizia Lacan, a impossibilidade de
dominar o gozo pelo saber. Há um mestre escondido que é a própria decisão
de instaurar o significante como mestre. O resultado da operação, e o
resultado que é esperado deste sujeição do gozo pelo saber, é encarnado em
todos os nossos questionários de saúde mental. Não se trata senão disso:
dominar os excesso, as emoções, a singularidade da experiência por meio de
um pequenos aparelho de saber ultra-reduzido, e cujo produto é transformá-los
em homens sem qualidades, um homem quantitativo, na esperança de reduzi-los,
o que é impossível, ao significante mestre. Qual é a chave de todas as
terapias comportamentais? É qualquer coisa que se chama afirmação de si.
Qualquer que seja a perspectiva que adotemos de todas as teorias
cognitivo-comportamentais, o núcleo central é a afirmação de si. Uma vez
que vocês sejam reduzidos a um homem sem qualidades, farão de você mestres
de si mesmos. A promessa vai longe. Vocês terão um poder ilimitado sobre si
mesmos.
Há
técnicas para isso. Eu me refiro a um manual que está na terceira edição.
Ele visa principalmente às pessoas que sofrem de perturbação das competências
sociais. Existirão pessoas que não tenham perturbações das suas competências
sociais? Isso pode estender-se aos grandes tímidos. O problema é que é
muito difícil tratá-los por meio de terapia em grupo. Eu vou lhes explicar
os princípios que só valem se você suporta a vida em grupo: “Freqüentemente,
os grupos de afirmação de si, devem ser precedidos de uma fase de terapia
cognitiva individual, pois a maior parte dos pacientes são muito frágeis
para abordar um grupo. Cingi (1966) desenvolveu um programa de terapia por
meio de um livro que propõe um seqüência de exercícios práticos. Este método
está sendo avaliado”.
Eis
o coração das técnicas de afirmação de si: “As técnicas de afirmação
de si preparam o sujeito para afrontar as situações difíceis, elas se enraízam
numa concepção democrática das relações humanas e podem se resumir a sete
mensagens principais.” É preciso repeti-las insistentemente, freqüentemente,
para que vocês se recondicionem e se reassegurem. A autoterapia é uma parte
importante do que temos que aprender. “primeiramente, seja respeitado pelos
outros. Em segundo lugar, afirme seus direitos.” Nós fazemos isso, Senhor!
“ Em terceiro lugar, não tente ser amado por todos.“
Eu tentei e não consegui. “Em quarto lugar, tenha uma imagem
positiva de você mesmo. Em quanto lugar, lute contra a depressão, agindo”.
Vocês não pensaram nisso! “Em sexto lugar, enfrente os outros. Em sétimo
lugar, pouco importa o fracasso, o importante é se afirmar.”
Eis
um esforço sensacional para preencher o abismo entre o sujeito barrado ($) e
o significante mestre (S1).
III
– Uma consciência de si
A
auto-avaliação
Eu
me dei ao trabalho de verificar o Boletim número 38 de novembro passado, do
Comitê de Avaliação das universidades (CNE),
fundado e presidido primeiramente por Laurent Schwartz , e que é confrontado
à constituição do espaço europeu no ensino superior. Trata-se de fazer
coletividades de ensino superior – e é generalizável a todas as
coletividades que trabalham, nos estabelecimentos, nos centros de atenção
– de sujeitos autônomos definidos como sujeitos responsáveis, na medida em
que eles se propõem a cumprir uma tarefa e que são capazes de responder
pelos seus compromissos. Há um esforço, através da avaliação de
transformar em sujeito, um coletivo. Ser responsável, é ser capaz de
responder diante de um Outro. O paradoxo, é que o fato de fazer destes
coletivos, sujeitos, e de lhes conferir uma autonomia responsável, faz surgir
um Outro ainda mais exigente que seu parceiro. Eu cito uma frase dessa
literatura um pouco ingrata: “Na perspectiva de uma autonomia crescente, o número
de parceiros aos quais será conveniente fornecer informações confiáveis e
pertinentes aumenta.”
Eis
um Outro. Um Outro ao qual é preciso informar, ao qual é preciso transmitir
uma saber que constantemente se inflaciona. É um Outro que não apenas exige
que façamos, que operemos, ajamos, mas que demonstremos. Precisamos
demonstrar que assumimos nossas responsabilidades, que respeitamos nossos
engajamentos, e isto ao menor custo. É um espaço onde os coletivos são
sujeitos que devem continuamente demonstrar, sob o olhar do Outro, que somos
confiáveis, exatamente demonstrar para dar confiança. Eles chamam isso de
“a lógica da demonstração”. Isso me parece estar no coração daquilo
que nos apercebemos na avaliação no passo seguinte do que eu havia evocado
precedentemente. Os dois pólos são estes: demonstração e confiança. Isso
não quer dizer senão uma só coisa: estes coletivos sujeitos têm a ver com
uma coisa que é de estrutura desconfiada, e frente à qual é preciso
exonerar-se permanentemente, se justificar permanentemente de existir e
funcionar.
O
discurso de Laurent Schwartz de maio 1985 para a instalação do Comitê
nacional de Avaliação não fala senão de confiança, liberdade, coragem,
objetividade e de transparência. Ele assegura que o Comitê de Avaliação não exerce um controle
policial. Isso dá confiança! Isso coloca em relevo que - para que esse
coletivo seja o sujeito - a etapa mais importante de subjetivação desse
coletivo é a auto-avalição. Lemos a recomendação que é sempre a mesma,
num coletivo é preciso sempre confiar numa instância específica que
assegura permanentemente a da pilotagem do coletivo.
Isso
não quer dizer senão uma só coisa: trata-se de dotar um coletivo de uma
consciência de si. A auto-avaliação, confiar numa instância que
permanentemente pilota o coletivo, eu não consegui conceituá-la senão como
uma consciência de si objetivável, sob a forma de um saber transparente e
comunicável ao Outro. Com o efeito de que toda a atividade do coletivo – e
isso desce, evidentemente aos elementos individuais – deve ser duplicada
permanentemente pelo saber sobre a atividade. Vocês têm uma tarefa à
cumprir, de cuidados à distribuir, sua atividade específica enquanto
coletiva deve ser duplicada pela atividade de elaboração de saber sobre essa
atividade. É aristotélico. Trata-se de criar uma alma coletiva, de dotar o
coletivo de um alma. Poderíamos mesmo dizer – talvez seja por isso que
existe tamanho entusiasmo religioso pela avaliação – porque isso faz parte
do processo de conscientização da humanidade no sentido de Teilhard de
Chardin. O coletivo acede à consciência através dos processos de avaliação.
Em termos aristotélicos, dotamos o coletivo de uma alma. No horizonte, a
auto-avaliação dota o coletivo de uma alma que o pilota.
...
e seu impasse
Vamos
dar mais um passo, o de nos apercebermos que é um modo, de fato, inédito de
formação da unidade dos coletivos. Nós conhecemos o modo isolado por Freud
na sua Massenpsychologie, o da formação
da unidade do coletivo pela identificação, e, nos termos de Lacan, queremos
saber se é graças ao significante-mestre ou ao objeto a. Trata-se de outra
coisa: tentem dar ao coletivo sua unidade através do saber, S2.
Não se tentou isso nunca, uma vez que todas essas formações
coletivas, inclusive a que Lacan estudou na “Psiquiatrie
anglaise et la guerre”, à partir de Rickman e Bion, passam pela função
do líder, do um a mais.
Esta função é absolutamente ausente de todos esses tratados de avaliação,
pois tentamos obter a subjetivação do coletivo únicamente por meio de
saber, e de um saber homogêneo. A função do mais-um, ou do menos-um, é
estritamente impensável nesse caso.
Esta
avaliação, a elaboração do saber de si da atividade, tem ele própria um
custo. Ela custa, e ao mesmo tempo distribuiu recursos ao coletivo onde ela se
implanta, e deve ela própria, justificar sua existência em termos de
custo-benefício. Eles são obrigados a notar que o primeiro efeito da
implantação da avaliação num coletivo é desorganizá-lo e empobrecê-lo,
e devem acrescentar: “a avaliação deve difundir uma cultura econômica,
para que suas vantagens sejam identificadas e superiores ao custo financeiro
que ela engendra”. Se, nessa passagem de ruína e pesadelo, deve luzir uma
esperança, isso vem do impasse intrínseco dessa operação de avaliação.
Primeiramente, não é possível obter a subjetivação de coletivos,
unicamente pelo saber. É um sonho burocrático. Em segundo lugar, esse sonho
é devorado pelos efeitos do paradoxo da avaliação, quer dizer, o
empobrecimento imediato e o caos que introduz a avaliação sob o pretexto de
organizar.
É
muito mais lúcido constatar, como fazia Lacan, um pouco depois sua “Psyquiatrie
Anglaise et la guerre”, que as regras de autonomia da consciência de
si, mesmo transpostas ao coletivo são condenadas ao advento do discurso sobre
o saber.
O império do saber é contraditório com este sonho remanescente da autonomia
e da consciência de si. A avaliação não faz senão traduzir esse sonho da
autonomia, ele próprio já desfeito pela época em que vivemos, de um saber
que ao contrário, é anônimo e impessoal. É um esforço desesperado, o de
restituir uma consciência de si ao coletivo, uma vez que é impossível que o
sujeito emerja no reino do saber.
Traduzido
por Tania Coelho dos Santos e Jésus Santiago. Nossos agradecimentos ao
autor, Jacques Alain Miller, que gentilmente nos autorizou a traduzi-lo e
publicá-lo.
Texto e notas estabelecido por Catherine Bonningue a partir das aulas de
14 e 21 de janeiro e 4 de fevereiro de 2004, de Orientação Lacaniana
III, 6, curso ministrado no quadro do Departamento de Psicanálise de
Paris VIII e da Seção Clínica de Paris Saint Denis, publicado na
revista La Cause Freudienne, n.
37, Paris: Difusión
Navarrin Seuil, p. 73-97. O começo da aula de 4 de fevereiro
(exposição de Éric Laurent assim como o comentário de J.-A. Miller)
foi publicado na Revista da Escola da Causa Freudiana da Bélgica, Quarto,
n.82.
Petrarque, Invectives, Paris: Jérôme
Millon, 2003, p. 45.
Miller quer se referir ao Deputado M. Mattei, autor de um projeto de
regulamentação das práticas psicoterapêuticas apresentado durante o
ano de 2004 , que pretendia exigir que todos os praticantes fossem
obrigatoriamente registrados nas prefeituras.
Musil, R. L’Homme sans qualités,
Paris, Seuil, Poche 1956 Cf. Bouveresse, J., La
voix de l’âme et le chemin de l’esprit. Dix études sur
Robert Musil, Paris, Seuil, 2001.
N.T.: o original, L’âne-à-liste, (asno-à-lista) é uma referência jocosa aos anuários,
às listas de analistas certificados por uma determinada instituição
psicanalítica.
Cf. Rey, A. Dictionnaire historique
de la langue française, Paris, le Robert, 2000.
Artigo publicado no Le Monde, datado de
domingo Segunda 11-12 de janeiro e citado por Philipe Sollers no Grande
Meeting da Mutualité de 10 de janeiro de 2004.
Alphonse Bertillon nasceu em 1853 no seio de uma família da qual muitos
membros foram demógrafos. Em torno de 1880, ele inventou a atnropometria
judiciária, um método de identificação dos criminosos fundado sobre
uma vintena de medidas antropométricas que permitia fornecer uma descrição
única e infalsificável de uma pessoa. O método que ele desenvolveu foi
chamado de bertillonage. Alphonse Bertillon foi empregado em 1879 na
prefeitura de Polícia para estabelecer fichas signaléticas dos
malfeitores. Ele imagina um “assinalamento antropométrico”
próprio à cada detento. Esta técnica consiste em uma enumeração
metódica e sistemática das características físicas, invariáveis de um
indívíduo: altura, envergadura, largura e cumprimento da cabeça, cor da
íris, cumprimento do médius, do auricular e do pé esquerdo. Em primeiro
de julho de 1887 foi oficialmente criado o “serviço de identificação
de detentos” naturalmente confiado a Bertillon. Este método se impôs
muito rapidamente pelo mundo: nos Estados Unidos o adotam desde 1888
alastrando-se por mais de uma cinquentena de países durante a década
seguinte. Este método vai, muito rapidamente,
ser completado pela “fotografia antropométrica” constituída
de clichês da face e do perfil dos detentos tomados sob certas condições
rigorosas (aparelho e assento fixo, luminosidade constante). Esse método
eficaz será entretanto substituído, no começo do século XX, pela
impressão digital, de manejo mais simples e de um custo menos oneroso.
Em torno de 1914, um pouco antes de sua morte, Alphonse Bertillon
vai sugerir aos artistas de colocar suas impressões digitais sobre seus
trabalhos para impedir a fraude. Um artigo sobre esse assunto foi lançado
no le Matin sob o título
“Bertillonage, on ne truquera plus les oeuvres d’art”, no qual um
certo número de artistas célebres, inclusive Rodin, se decalararam favoráveis
a esse sistema. http://www.prefecture-police-interieur.gouv.fr/documentation/reportages/liaisons76/p20.pdf
Cf. aula do dia 10 de dezembro 2003, publicada em Miller J. A e Milner, J.
C. Voulez-vous être évalués?
Paris: Grasset, 2004.
Cf. O relatório do INSERM sobre Le despistage de troubles mentaux chez
les enfants et les adolescents, lançado em dezembro de 2002, uma síntese
deste relatório está disponível no site do INSERM desde o começo de
2003
Cf. Beck U. La societé du risque
Sur la voie d’une autre modernité,
Paris, Aubier, 2001.
Cf. Bauby P. L’état stratége,
Paris, Les éditons ouvrières, coll. Portes ouvertes, 1991.
Cf Miller, J.–A. “L’ironie des lumières”, Thêatre Hébertot
10/11/2003: La question des Lumières. La règle du jeu, n. 24, 2004.
Cf. Malthus, T.R. Essai sur le
principe de population (1798), Paris: Garnier-Flammarion, 1992
Cf. Lacan, J. “Les complexes familiaux dans la formation de
l’individu” (1938), Autres Écrits,
Paris: Seuil, 2001, pp.23-84: texto publicado pela primeira vez no volume
VIII da Encyclopédie française.
Cf. Lacan, J. Le Seminaire Livre XX,
Encore, Paris: Seuil, 1973.
Cf. Chevalier, L. Classes
laborieuses et Classes dangereuses, à Paris pendant la première moitié
du XIX éme siécle, Collection civilisation d’hier et
aujourd’hui, 1958.
Cf. Parent- Duchâtelet A. La
prostituton à Paris au XIX éme siècle, Paris: Seuil, 1981.
Freqüência relativa de nascimentos de meninos ou meninas
Lacan, J. “L’étourdit (1973), Autres
écrits, op. cit. p. 460
Cf. Guerry A. M. Essai sur la
statistique morale de la France, Crochard, 1833
Cf. drobish M. W. Die Mondische
Statistik und die menschlich Willenfreiheit, Leipzig, L. Voss, 1867
Durkheim, É. Le suicide,
Paris: PUF, Quadrige, 2002
Cf. Aula do dia 10 de dezembro de 2003, publicada em Voulez-vous
être évalués?, op. cit.
N.T.: Ataque de surpresa. A expressão refere-se aos movimentos pela
regulamentação procedente do Estado, que tomaram, como um ataque feito
de surpresa,aos psicanalistas e psicoterapeutas desavisados.
Lambert Adolphe Quételet (Gand, 1796 –Bruxelles 1874) estudou
astronomia no Observatório de Paris e a teoria das probabilidades de
Lapplace. Ele foi doutor em Ciências da Universidade de Gand e depois
professor nos Atheneus reais de Gand e Bruxelas. Em Sur l’homme et le dévelloppement de ses facultés, ou Essai d’une
physique sociale (1835), Quételet apresentou sua concepção do homem
médio como valor central em torno do qual as medidas de uma característica
humana estariam agrupadas segundo uma curva normal.
Influenciado por Pierre Laplace e Joseph Fourrier, Quételet foi o
primeiro a utilizar a curva normal de outro modo, não apenas para reparar
erros. Seus estudos sobre a consistência numérica de crimes suscitaram
uma larga discussão entre liberdade de determinismo social. Para seu
governo, ele reunia e analisava as estatísticas sobre o crime, a
mortalidade e ele aportava as melhorias na atribuição de sanções. Seu
trabalho suscitou uma grande controvérsia entre os sociólogos do século
XIX. No Observatório de Bruxelas, que ele estabeleceu em 1833 à pedido
do governo belga, ele trabalhou sobre dados estatísticos, geográficos e
metereológicos, estudou as chuvas, meteoros, e estabeleceu os métodos de
comparação e de avaliação de dados. Quételet organizou a primeira
conferência internacional de estatística em 1853. A medida de obesidade,
utilizada internacionalmente, é o índice de Quételet. É QI (peso em
quilogramas) (altura em metros). Se QI >30, então uma pessoa é
oficialmente obesa.
Cf. O boletim da Agencia Lacaniana de Imprensa, A
guerra dos palotinos, notadamente o número 10, de 20 de janeiro de
2004 (site: www.forumpsy.org )
Podemos nos referir notadamente ao texto de J. A . Miller
“Psychanalyse pure et psychanalyse appliquée à thérapeutique e
psychothérapi” La Cause
Freudienne número 48 Paris, diffusion Seuil, 2001, pp. 7-35.
No sentido de grupos de pessoas que passam a ser tomado como populações
anônimas.
Cf. Freud Les chances d’avenir de
la thérapie psychanalytique (1910) Oeuvres complètes, Paris, PUF
1993, pag 63-73 este texto foi comentado por J. A . Miller em
L’orientation lacanienne III, 4 “Reflexions sur le moment présent”,
aula do dia 6 de fevereiro de 2002.
N.T. Por uma questão de respeito ao uso lingüístico, preferimos
traduzir a expressão cases à cocher, que significa, literalmente, marcar os retângulos,
por múltipla escolha. Esse termo em nossa língua designa o gesto de
escolher uma opção (entre parênteses,
colchetes, ou em retângulos)
e assinalá-la por meio de um traço entre outras tantas pré-determinadas.
Debate no senado de segunda feira 19 de janeiro de 2004 sobre a emenda
Accoyer-Giraud-Mattei, de que se pode ler a transcrição no site do
Senado.
Watson, J. B. Behaviorism trad. Francesa
Le behaviorisme, Paris Ed.
Du centre d’ètudes et de promotion de lecture, 1972
N.T. A língua da prática do questionário, do operador do questionário.
N.T. O boi que se degola.
Cf. Hartmann H., La psychologie du
moi et le problème de l’adaptation, Paris, PUF, 1968
Cf. Miller J.–A., L’orientation Lacanienne II (1997/98) aula do dia 28
de janeiro de 1998
Lacan J. Le Seminare Livre I,
Les écrits techiques de Freud, Paris: Les Éditions du Seuil, 1975
Cottraux J. Les thérapies
coomportamentales et cognitives, Paris, Masson, 1998
Este discurso é acessível no site do CNE.
cf. Lacan, J. “La psychiatrie
Anglaise et la guerre” (1947), Autres
Écrits, op. cit. p.107
Não encontramos a referência precisa. Talvez J.–A. Miller faça referência
ao “Discours de Rome” (1953), Autres Écrits, op. cit. pp 138 e seguintes.