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A era do homem sem qualidades [1]

 



Jacques-Alain Miller
 

Diretor do Departemento de Psicanálise/Universidade de Paris VIII
Psicanalista, Membro da École de la Cause Freudienne
Fundador da Associação Mundial de Psicanálise
jam@lacanian.net

Resumo:

O artigo versa sobre o homem quantitativo, homem- máquina que é o ideal da ciência e da política baseadas na estatística, ressaltando os efeitos de homogeneização, e de empobrecimento subjetivo e cultural, que resultam da expansão das práticas de avaliação. Ele nos apresenta uma tese inédita, à altura de sua inspiração foucaultiana, sobre o surgimento de um coletivo-sujeito, efeito da prática de auto-avaliação. Há uma ética em ação que determina: não é suficiente produzir, é preciso duplicar-se, colocar-se em discurso, relatar, transformar em saber aquilo que se faz. Esse novo coletivo-sujeito, não prescinde do conflito com o Outro. Ele é ao mesmo tempo um eu que executa e ideal dos outros que observa, avalia e quantifica.
 

 

 



The era of the man with no qualities


Abstract:

The article is about the quantitative man, machine man which is the ideal for sciences and politics based on statistics. It points out the effects of similarity, subjective and cultural unsatisfaction which result from the expansion of evaluation practices. It introduces us to a new thesis, similar to its foucaultianian inspiration about the outcome of a collective being, effect from auto evaluation practice. There is an ethics that determines: it is not enough to produce, one needs to double, put himself/herself in the discourse, report, transform in doing what he/ she does. This new collective being does not need conflicts with others. He/she is at the same time the one who executes and observes, evaluates and quantifies. 

 

 

 

Invectivas

Vou começar por uma leitura que me divertiu durante estas férias.[2] É uma carta de Petrarca que se chama “Invectivas contra um médico”[3], e ela começa assim. “Quem tu és, tu que despertaste minha pena adormecida e retiraste o leão de seu sono, ousemos dizer, por meio dos teus tediosos urros, tu vais rapidamente te aperceber que triturar a reputação de alguém, porque a língua te devora, é uma coisa, mas que saber defender a sua é outra coisa! [...] Mas, uma vez que tu me constranges à isto que eu não condescenderia jamais em fazer por minha própria iniciativa, pois é preciso que eu diga alguma coisa, eu responderei pois à alguns de teus propósitos, pedindo desculpas ao meu leitor, se emprego um tom contrário aos meus hábitos. Pois tu derramas um tão grande número de imbecilidades que aquele que as julgar dignas de resposta poderá passar sem pena pelo maior imbecil”

O contexto da carta de Petrarca tem, de fato, todo interesse: isso se desenrola  em torno do papa. Acontece que “em setembro de 1351 Clemente IV, caiu gravemente doente. O poeta lhe transmitiu então uma mensagem oral por intermédio de um de seus próximos: ele deveria evitar de se confiar aos cuidados de numerosos médicos e escolher somente um. O papa pediu à Petrarca que lhe escrevesse suas recomendações, fingindo não tê-las compreendido, provavelmente para suscitar a polêmica e oferecer uma diversão à corte papal. Petrarca lhe enviou então a Fam V, 19 na data de 15 de março de 1352, violenta crítica da medicina e daqueles que a praticam[4].

“Eu sei que teu leito é assediado pelos médicos; eis a primeira razão que eu tenho para estar inquieto. É intencionalmente, que eles estão em desacordo entre si, pois eles têm vergonha de parecer seguir os traços uns dos outros quando não trazem nada de novo. Está fora de dúvida, como afirma Plínio com elegância, que todos esses indivíduos espreitam a glória por meio de uma novidade qualquer, traficam nossas existências com desenvoltura ... que a medicina é a única arte onde se deposita confiança no primeiro que se apresenta como médico, uma vez que a impostura é nessa caso mais suspeita do que em todos os demais lugares.”

É a época charlatanesca da medicina, que explica, por razões de estrutura extremamente profundas, a emoção que parece tomar o médico de hoje, diante da idéia de que os charlatães curam, pois a acusação de charlatanismo contra os médicos é multissecular.

“Nossos riscos e perigos instruem os médicos, que prosseguem em suas experiências graças aos mortos; somente o médico goza de total impunidade se  comete um homicídio. Considere, Pai, tão Clemente, o bando destas criaturas como um exército de inimigos. Tu te lembras, à guisa de advertência, da curta epígrafe que esse célebre infeliz mandou gravar em seu túmulo ‘Pereci, vítima de um exército de médicos’. Mas como nós não ousamos mais viver sem médicos, sem os quais, ao contrário, muitas nações vivem sem dúvida melhor e em melhor saúde, escolha um que se distinga não pela sua ciência mas por sua retidão”. A ética, a deontologia... “Até o presente, eles esquecem sua profissão [...] Para concluir: evite o médico que brilhe por sua eloqüência e não por seu diagnóstico, tome-o por alguém que quer atentar contra tua vida, um assassino, um envenenador!”[5]

 

I – O homem quantitativo
1.     O invencível Um

 

O registro

A polêmica é necessária, não se deve relegá-la aos lugares convenientes, mas tentemos compreender, conforme à palavra de Spinoza; “Não se lamentar, nem se regozijar, sed intelligere.  Compreender o que ocorreu, compreender o fenômeno do qual nós somos, nós mesmos, parte envolvida, ainda que à título de nos opormos, é o que eu gostaria de fazer. Estes períodos perturbados, agitados. São muito ativadores dos neurônios. Há uma arqueologia a fazer.

O registro, ao qual parece aderir como um só homem, a maioria do Senado da República – o que não foi feito ainda -, se inscreve claramente no mesmo contexto que o da ideologia da avaliação. Tal como ela, o registro coloca diante dos olhos o “devir unidade contável” do sujeito. Há um “devir unidade contável” que vai bem além do M. Mattei, do grupo UMP[6] do Senado, e outras eminentes personalidades. Devir uma unidade contável e comparável, é a tradução efetiva da dominação contemporânea do significante mestre sob a forma a mais pura, a mais estúpida: o número 1.

Este escritor profético que é Roberto Musil percebeu muito bem, por ocasião da profunda reflexão que ele produziu sobre o pensamento estatístico, que o conduziu a intitular seu grande romance “O homem sem qualidades”[7]. O homem sem qualidades é aquele cujo destino é o de não ter mais nenhuma outra qualidade senão a de ser marcado pelo número 1 e, a este título, de poder entrar na quantidade. O segredo do título de Musil é que o homem sem qualidades é o homem quantitativo.

Nós não temos necessidade de desfilar para cantar: ”Nós somos todos homens quantitativos”, nós somos todos quantificáveis e quantificados. Isto pode não nos agradar, mas o modo atual, o modo contemporâneo de gestão da sociedade passa pelo quantificação, fazendo-a mesmo reinar de modo exclusivo, uma vez que o discurso universal não tem outras qualidades, outras identificações à nos propor que se sobreponham ao número 1 da fila, que nos torna contáveis e comparáveis.

Lacan nos anunciou: o significante-mestre é o significante do mestre, mas o mestre e o escravo são categorias que desapareceram do discurso jurídico e não são mais do que lembranças. Por quê, diz ele, os psicoterapeutas não se registram nas prefeituras, como os quiropraticantes o fazem, os VRP, os cartomantes, e recentemente – discretamente – os psicólogos? É obrigatório para todo mundo registrar-se na prefeitura. Trata-se do  Estado que devém prefeitura.

Do mesmo modo que, durante o “tornar-se unidade contável”, se destaca a essência do significante mestre que fora outrora revestido com esplêndidas vestimentas. O Estado desnudado revela o que é sua matriz, como dizia Hegel, e como retomou Lacan: a polícia. Do mesmo modo, o significante-mestre revela sua essência no número 1, o estado, nos enviando em grandes filas para as prefeituras, nos indica o que faz, o que é o suporte, o pivô de sua estrutura. Com exceção dos médicos e dos psicólogos, que já são registrados de um certo modo, estenderemos isso aos psicanalistas cujos nomes vão figurar nos anuários de associações analíticas. Como vamos reconhecê-los? Como vamos defini-los? Vejam os  decretos, que podem ser qualquer coisa.

O significante-mestre como unidade contável é ao mesmo tempo o mais estúpido dos significantes-mestres que surgiram sobre a cena da história, o menos poético, mas é também – reconheçamos – o mais elaborado, pois é justamente o mais limpo de significações. Ele conduz ao que é, aparentemente, uma necessidade das sociedades contemporâneas que é o estabelecimento de listas. Lacan havia designado por a(s)no-à-lista[8] e, desse jogo de palavras, surgiu o nome de um jornal que eu relancei recentemente -, mas é a sociedade, o Estado, que pede este a(s)no-à-lista. Ele precisa de listas, ele precisa nos colocar em listas: passagens de avião ou cartomantes, psicoterapeutas, é o mesmo princípio. Isso não faz senão recomeçar e vai marcar – vamos apostar, o século XXI, será o século das listas.

Isso é mesmo, talvez, mais profundo que aquilo que denunciamos sob o termo mercantilização. Falamos do reino do dinheiro, ao qual opomos os valores espirituais, humanistas. O dinheiro, o equivalente simbólico universal, não é senão uma forma, uma realização do significante-mestre contável. Como você avaliam, uma vez que as qualidades desapareceram? Não resta senão a avaliação quantitativa, monetária. Não quer dizer que o aspecto comercial domine. Ele não domina de jeito nenhum. O que domina, é esta espiritualização do significante-mestre que se encarna no número 1, do qual precisamos dar conta da aparição. Lacan esforçou-se para isso, com dificuldade, no seu Seminário XX. Como o significante Um surgiu? Ele se colocava a questão, pois nós podemos agora apreender que ele antecipava que este significante Um viria a governar o sujeito, e que o grupo social, o laço social seria governado pelo Um. Trata-se de um produto extremamente elaborado.

É o reino da quantidade que se traduz pela avaliação financeira. O processo mais profundo, é a redução ao significante mestre ao osso do Um, às finalidades, que é preciso isolar como tais, que são finalidades de controle.

Fiquemos à distância da emoção, da perturbação. A sociedade reclama o controle. Pode acontecer que os encarregados de organizar essa sociedade, coloquem em prática esse controle, de forma desajeitada, como no assunto que ora nos ocupa. É uma falta de tato, aproximar a palavra psicoterapia e a de prefeitura. Aqueles que o fazem não tem habilidade e diplomacia, felizmente talvez. Isto choca. Se eles fossem mais hábeis, talvez o fizessem passar mais facilmente. Mas, quanto ao ponto sobre o qual eu gostaria de desenvolver minhas considerações hoje, é secundário. A sociedade reclama controles e há uma dinâmica do controle. Ela reclama saber quais são os ingredientes dos alimentos que nós ingerimos. O que pode ser mais legítimo? Na inquietude de cada um, o desejo de controle já está lá.

 

A escritura

Eu me perguntei sobre a origem francesa da palavra “controle”. Isto me permitiu apreender que se tratava de uma palavra do século quatorze. Não tive tempo de procurar precisamente, mas eu vou supor que foi no meio da burocracia real, em vias de se estabelecer, que isto começou a emergir ou que foi atestado. Contrôle” vem de “contrerole”, o “rôle” sendo um registro, no sentido antigo da palavra “rôle” (papel). O “contrerole” é uma duplicação do registro para verificar um primeiro registro. Vocês têm um registro, e vocês têm um segundo registro para verificar o primeiro, é o contrarol. Em particular, o “contrerole” é a apresentação nominal das pessoas que pertencem a uma corpo, em particular o corpo militar.

A palavra rol, ela própria, é mais antiga, do século doze. Surgiu do latim medieval rotulus, rolo, pergaminho enrolado. É um rolo, uma folha enrolada, se consignavam os atos notários, os negócios e afazeres do tribunal. A expressão francesa “à tour de role“ não significa de jeito nenhum o papel no teatro, e sim “a sua vez de acordo com a lista,  o registro, o rol”. Isso tomou, bem entendido, o sentido de partes de uma peça de teatro que corresponde a um personagem, ele próprio, com todas as expressões que se seguem: por exemplo “ele me deixa o belo rol”.

O registro, palavra do século treze, ele, veio do latim regerere, e que deu regestus, relatado, inscrito. Regerere, é colocar atrás, adiar, transcrever e especialmente, anotar para guardar a lembrança.[9]

É preciso aperceber-se neste caso que tomamos o caminho errado quando falamos de nossa época como a do domínio das imagens. Sem dúvida, a produção de imagens ela é prevalente, pregnante, extremamente multiplicada, multiforme. Elas dominam por sua sedução, exercendo uma captura que o discurso político tenta manejar. Mas de fato, o osso do negócio resta escritura, sob a forma de registro. Foi isso que denunciava o filósofo italiano, Agamben, recentemente na imprensa[10]. O corpo, ele próprio, o corpo contemporâneo, é exibido sob formas magníficas, estilizado nas imagens de publicidade, as imagens cinematográficas, televisuais. A imagem é exaltada, mas é escritura, o depósito eletrônico do um por um contável, que é efetivo. O corpo é transformado em escritura, quer dizer que procuram no seu corpo o que é escritura. Eu gostaria de poder chocá-los citando as proposições, as pesquisas, a filosofia de Bertillon, francês, que descobriu que nós portamos todos nas nossas mãos uma escritura indelével, que encontrou a seu tempo uma marca, um símbolo, um significante indelével.[11] Bertillon é um homem que refletiu, na prefeitura de Polícia, elevado lugar do espírito. Não nos esqueçamos que Gaêtan Gatian de Clérambault exerceu a clínica sob os auspícios da Prefeitura de Polícia e Lacan também. Se podia ali, realmente, aprender a clínica, pois lá passavam por perturbações da ordem social, as diferentes perturbações mentais, como se diz hoje em dia.  Na multidão de Bertillon, fomos mais longe  e, encontramos, em particular no olho, índices escriturários suscetíveis de serem traduzidos e de lhes identificar do nascimento até a morte. Uma aspiração que anima toda a civilização contemporânea depois da revolução industrial.

Bentham foi o primeiro a dizer: “Seria preciso que cada um tivesse um número que ele conservaria do nascimento até a morte, para que nos encontremos.” Isso levou à carteira de identidade. Eu felicitei, na última vez, os ingleses por terem resistido à carteira de identidade e eu suspeito que M. Blair deseja introduzi-la[12]. Eu soube depois que a introdução da carteira de identidade a Grã Bretanha está prevista para 2007. Parece que é o povo mais fotografado da terra: câmeras de vigilância são colocadas nas ruas de Londres, de tal modo que o londrino médio é fotografado, em média, quinhentas vezes por dia.

 

A sociedade do medo

Nós estamos nesse ponto. Nós estamos ainda mais aí, do que eu poderia pensar em 2003. Nós entramos, no começo de 2004. No século XXI, na época da vigilância. Não é certo que se trate de “vigiar e punir”, mas é uma sociedade onde a palavra de ordem é “vigiar e prevenir”. Nós estamos na época da prevenção: sanitária e também guerreira. Fazer a guerra antes que país nos faça a guerra está no mesmo espírito que despistar a doença mental antes que ela se manifeste.[13]

Os fatos que se reagrupam depois do começo deste século nos indicam que um grande capítulo dos grandes medos do século XXI começou a se escrever. O medo dos psicoterapeutas é um pequeno medo acessório. Brincamos de nos meter medo, mas são notas que se organizarão em uma sinfonia. Foi o que o eminente sociólogo alemão Ulrich Beck chamou gentilmente de sociedade do risco[14], é a sociedade do medo. O sujeito, no começo do século vinte e um, está em perigo. Comer, respirar, se deslocar, se cuidar, se faz sob a égide do perigo e da precaução à tomar. Reclamamos, ao menos na França, de modo genérico ao Estado, que não é mais o Estado providência de antigamente, o Estado maternal, um Estado ao qual demandamos de se fortalecer em suas tarefas próprias. É a idéia do Estado estratégia[15]. E qual é a tarefa própria, fundamental, do Estado? A polícia. Logo, reclamamos um Estado policial.

A sociedade se experimenta como estando em perigo. Nós ouvimos, sob diferentes formas, um “SOS sociedade”. É o que Ulrich Beck mascara sob o nome de risco, talvez para não acrescentar o pânico. Nó nos tornaremos sociedades do medo e do pânico. Eu tento construir algo sobre isso para que nós nos guardemos com respeito à isso e, uma vez que nós somos os vermes a exterminar ou os inclassificáveis a classificar, um certo saber da configuração na qual entramos, e talvez esta ou aquela iniciativa possa desviar ou retardar o processo.

Carl Schmidt é essencial, de quem aliás podemos falar mal à beça, isolou bastante bem na história a função do que ele chamou “o retardador” isto que consegue retardar os processos inevitáveis. Quando retardamos, ganhamos tempo; outros fatores podem entrar em jogo, e assim a fatalidade pode ser contornada. Eis porque, saber que é inevitável, que tal lógica se aplica, não implica de modo algum que a desarmemos.

 

2.    Quételet

 

Ironia das Luzes

Foi então que eu me disse, eu poderia aproveitar a ocasião desta pesquisa arqueológica - na qual eu gostaria de me lançar - para fazê-los conhecer, pois eu imagino que não aprendemos isso nas aulas, um grande espírito que me parece um dos grandes nomes ligados à origem disto com que temos que lidar que é o homem quantitativo, e que é Quételet.

Tenho alguma coisa em comum com Quételet. O que me levou, aliás, a me interessar um pouco demais nisso. Quételet era belga – não é o meu caso -, e professor na Universidade de Gand, única universidade no mundo que, por erro sem dúvida, achou por bem, outrora me nomear doutor honoris causa. No agradecimento que enviei à Universidade de Gand, citei Quételet, entre os augustos da universidade.

Quételet era astrônomo e ele teve a idéia de aplicar concepções e métodos válidos em astronomia às sociedades humanas, na primeira metade do século XIX. Na origem da aplicação da estatística aos fenômenos sociais, como nos propõe a epidemiologia em saúde mental, ele é o mais eminente.

Percebemos a mudança de regime de pensamento que teve lugar entre o século XVIII e XIX. No século XVIII, acumulamos, de um jeito distraído – que sempre me encantou e do qual eu porto a marca – um número enorme de informações, de descrições de sociedades diferentes das nossas. Sentimos já esse movimento presente em Montaigne, que vai procurar as referências nos autores da Antiguidade para mostrar a diversidade de costumes e de leis humanas, mas, no século XVIII, multiplicação de relatos de viajantes, de aventureiros, de missionários. Acumulamos toda uma literatura sobre a diversidade humana, a diversidade de costumes, de usos e costumes, de religiões, de regimes políticos, de leis e começamos a elaborá-los de modo eminente. Pensem no Espírito das Leis de Montesquieu, que se prestava ao chiste: “M. Montesquieu não fez o espírito das leis e sim o espírito sobre as leis”. É muito injusto, mas isso assinala que no século XVIII, o acúmulo destes dados sobre as sociedades valorizava a contingência, mostrava que nossos costumes não eram necessários, nos convidava à nos distanciar de nossas práticas, e era marcada por um certo esteticismo. Numa pequena fala no teatro Hébertot[16], eu disse que os filósofos do século XVIII, tendo uma idéia limitada da natureza humana, colocaram no registro da comédia humana o fato de que aqui comemos isso e que lá é proibido. Se o homem é um, se há uma unidade da natureza humana, a diversidade releva da comédia humana.

No século XVIII, a acumulação destes dados comparativos introduziu uma postura irônica em definitivo, muito socrática, e podemos dizer, muito psicanalítica. Era uma maneira se desprender destas identificações e de aprender que não há senão nós, que não há senão esta maneira de fazer. Essa abordagem teve um efeito de dissolver todo um imaginário envolvendo os significantes mestres. Vocês são cristãos mas outros são mulçumanos, os outros reverenciam os animais. A substância imaginária, a carne imaginária do significante-mestre no século XVIII, secava e caía como tiras. Este momento tão delicioso de ironia, que eu gosto de repetir do jeito que eu posso, é também uma etapa no processo que vai em direção à simplificação do significante mestre. O esqueleto aparece: é o número 1. A ironia dissolvente das Luzes é um momento do processo histórico que conduz ao momento presente onde reina o invencível.

 

O real social

O espírito do século XIX é totalmente diferente. Não é mais a ironia, mas, se quisermos, o progresso do espírito científico avançando sobre dados, procurando e construindo regularidades. Podemos dizer que partiu da observação. Há regularidades que concernem aos nascimentos, aos mortos, aos casamento, aos crimes. Há regularidades sociais, os patterns, as configurações regulares e estas regularidades convidaram a procurar as leis no universo social. Foi o que Montesquieu esboçou com espírito, e o que começamos a abordar pelos meios da quantificação, com a convicção de que havia uma saber inscrito no social, logo que o social estava no real ao mesmo título que o real da física.

Um passo mais longe do que Descartes, que reservava esta pesquisa do saber matemático inscrito no real ao universo da física, às ciências naturais, e à física matemática. No que concerne a ordem social e política, seu conselho era o de se vincular ao significante-mestre em vigor na sua própria sociedade, de não começar a bancar o esperto, o sábio, com o significante-mestre. Este era o ponto de vista de Montaigne. Deus sabe se os semblantes sociais não lhe parecem necessários.  Ele sabia que se tratavam de semblantes. Sua moral era a de que a prudência quer que nos conformemos à moral de nossa sociedade no que concerne à organização social. Vemos Descartes avançar no discurso científico, mas, ao mesmo tempo, no domínio social e político, conservara a reserva montaigniana.

Como esta barreira foi atravessada? Eu não tenho, de fato, como reconstituir essa arqueologia de memória. Seria preciso dar um lugar especial à economia política, já no século XVIII ao espírito escocês. Há certamente coisas a encontrar em Adam Ferguson e na escola escocesa, mas é no começo do século XIX, e a partir do momento em que a revolução industrial opera uma sensacional transferência da população do campo em direção às cidades, que tornou-se um imperativo social possuir informações estatísticas sobre a população.

Marx descreveu esse deslocamento do campo para a cidade de um modo sensacionalmente poético. Isto foi remanejado pelos historiadores, mas resta, em suas grandes linhas muito bem fundado: o processo de repartição ou de partição. Acumula-se nas cidades uma população nova, assalariada, empobrecida e que constitui um risco social. São imigrantes do interior. Este emigrados, que nós vemos aqui com terror chegar de todos os lugares mediterrâneos da Europa, vinham, na época, do campo. As invasões de emigrados, eram invasões de rurais se acumulando nas cidades. Isto provocou um movimento epistêmico, o desejo de obter informações quantitativas sobre a sociedade e sobre o que passamos a chamar de população.

Ah, esta palavra população! A população, não é o povo. O povo, que evocamos na Revolução francesa como princípio de soberania, é um significante-mestre. A população é outra coisa. São corpos, que estão lá, um agregado de corpos nascentes, vivos, copulando e morrendo, e eventualmente se agredindo uns aos outros. Vemos retornar, em todos os escritos deste período, o nascimento, a morte, o casamento, o crime. População é populacho, mas sob um vasto ponto de vista, estendido e considerado do ponto de vista biopolítico. Aliás, uma das palavras que me atraíram no discurso de uma eminente epidemiologista que nos visitou foi o adjetivo: “populacional”, muito empregado, com efeito, em epidemiologia. Eu lhe disse: “Como, se fala assim entre vocês: “populacional”? Ela logo  me respondeu: “Eu, não falo desse jeito, são os Quebequenses”. Não! O ponto de vista populacional está presente desde o início de século XIX. Não há de que se desculpar.

 

Estatísticas

Eu gostaria de citar uma obra do século XVIII, que eu bem li, outrora, no tempo dos meus estudos, o Essai sur le principe de population[17] deste espírito eminente que foi o reverendo Malthus. Ele legou seu nome ao maltusianismo de um modo bem injusto, como o marquês de Sade deu origem ao sadismo, e Sacher-Masoch ao masoquismo. Eu gostaria de poder citar e reler eu mesmo do ponto de vista daquilo que o assunto  atual me permitiu perceber.

Há duas tendências que se opõem e que Lacan nos ajuda a situar. De um lado, vocês tiveram no século XIX uma sociologia que tomou como princípios e normas e instituições, as representações coletivas, como impostas, embora não seja esse o seu vocabulário, digamos, a uma dada população. É o ponto de vista de Émile Durkheim, à quem Lacan referiu-se porque, com efeito, isso dá uma representação sociológica do grande Outro, um discurso feito de crenças, de instituições que se impõem e que estruturam uma população. É nesta direção que Lacan foi, imediatamente, durkheimiano, pelo menos no seu artigo na Encyclopédie[18] . Temos aí um esboço daquilo que vai se desenvolver mais tarde como sendo da ordem simbólica. Mas vocês têm uma outra sociologia, aquela que triunfa na epidemiologia em saúde mental, aquela que não parte do alto, mas de baixo. Ela não parte do grande Outro, mas das ações dos indivíduos e das ações individuais multicoloridades que ela considera, ao contrário, que as normas e as instituições resultam desta multitude de ações individuais, e procura então, pelo cálculo estatístico, isolar as regularidades e parte com efeito do quantitativo.

A primeira abordagem parte do conteúdo significativo, enquanto que a segunda parte do quantitativo. Quételet avança como astrônomo em direção à sociedade – os planetas não falam – e armado da estatística e do princípio de distribuição de erros de observações na astronomia. Ele diz: “Eu não tenho teoria, eu não tenho sistema, eu observo, eu anoto.” Este segundo ponto de vista é este do “Outro que não existe”, na nossa linguagem. É o ponto de vista: o grande Outro resulta dos trilhamentos continuados do sujeito. É o segundo ponto de vista de Lacan, conforme ao segundo Wittgenstein, que vemos emergir no Seminário Encore[19].

Aliás, a sociologia durkheimiana , que sempre tomou como ponto de vista o todo, funcionalista, um macro ponto de vista, sempre resistiu ao pensamento distributivo e probabilista. O ponto de vista “ o Outro não existe” é um ponto de vista micro, quer dizer que recolhe os dados quantitativos e que estuda as distribuições, as médias, e as dispersões e desvios com relação à média. Ela estuda as distribuições e, estudando as distribuições, ela pode definir os meios, um espectro de dispersões, e de desvios com relação à média, e isto, sem referência a nenhum conteúdo significativo, nem a nenhum absoluto. Não dizemos : “O homem deve ter 1,72m”. Não o impomos. Levantamos a altura dos homens de tal idade e dizemos: “A média é de 1,72m. Aqueles que não têm 1,72 são pequenos e aqueles têm mais são grandes.” É um dos grandes exemplos de Quételet, o de ter  estudado a altura. É muito bem fundamentado. Vocês não imaginam o entusiasmo que cercava os estudos de Quételet. A epidemiologia em saúde mental faz exatamente a mesma coisa hoje, salvo que isto recai sobre a saúde mental.

Constatamos, ao longo da primeira metade do século XIX que acumulamos os dados quantitativos. Há uma paixão por isso, justamente por que houve esta ruptura e esta recomposição do laço social que se traduziram  por um perigo para a estabilidade social, um perigo para a segurança – e toda a primeira metade do século XIX ficou ocupada em como garantir a segurança – e também um perigo sanitário.

A literatura porta todas as marcas disso, “Le bonheur dans le crime” de Barbey d’Aurevilly foi escrito nesse contexto . De que fala Stendhal em “Le Rouge et le Noir”, crônica de 1830? Ele fala de uma história, lida nos jornais, de um valete de fazenda que se tornou amante da patroa e a matou. Em seguida, nasce o detetive, Edgar Poe... Vocês não têm nada de comparável na literatura do século XVIII onde, quando há crimes são pequenos delitos divertidos, ou pequenos envenenamentos distraídos e estéticos. Tudo fica negro depois do século XIX, porque nós estamos nesse contexto da criminalidade.

Eu não encontrei também nos meus livros a maior referência histórica sobre isso, o livro de Louis Chevalier, lançado em 1955, “Classes laborieuses et Classes dangereuses,” [20] que nos dá um panorama da época.  Falarei à partir de minhas notas do meu concurso para professor adjunto. Ele explica que o começo do século XIX é marcado por uma vontade quantificar, tudo medir, tudo saber, sob o pretexto do perigo. Nós estamos nesse ponto. Nós revivemos o começo do século XIX com os meios do século XX.  Eu fazia leituras engraçadas na época, tendo mais tempo para ler. Eu fazia referência ao Doutor Parent-Duchâtelet, um médico francês que, em particular,  consagrou em 1836 uma obra muito culta, “De la prostitution dans la ville de Paris ...”[21], onde ele faz estatísticas sobre prostitutas parisienses. É uma obra de referência para a estatística.

Na Inglaterra, passemos sobre o papel eminente que desempenharam os utilitaristas, alunos de Bentham, e a criação, em 1857, por Lord Brougham um benthamiano eminente, da Associação de Ciências Sociais. É a época onde se criam as sociedades estatísticas – Quételet é ainda pesquisador individual -, e se fazem equipes para reunir os dados e tratá-lo. Na França, se começa a publicar todos os anos as coletas de números estatísticos. Todos os anos, à partir de 1827, vão sair os dados quantitativos sobre os crimes cometidos, aqueles que são elucidados, as punições que recaíram sobre os criminosos. Isto ascende a esperança. Esse modo atingiu seu ápice na primeira metade do século XIX e isto decresceu um pouco na segunda metade, mas permaneceu presente.

Antes de Quételet, os estudos tinham já observado regularidades estatísticas nas variáveis demográficas, em particular no que concerne a mortalidade e o sex ratio[22] no nascimento, que Lacan evoca em “L’étourdit.”[23] Estudamos o número comparado de meninas e meninos ao nascerem. Passamos a tratar todos os domínios da vida social deste modo: o crime, o suicídio, os nascimentos adulterinos, a freqüência às igrejas, a freqüência às escolas, a pobreza, mesmo as doações filantrópicas. Passamos a anotar tudo isso e a fazer comparações. Houve uma obra de 1833 sobre a criminalidade que se intitula “Essai sur la statistique morale en France”.[24]

 

L’homme moyen

Quételet , ele próprio, que escreveu uma obra que se chama “Le système social”,  achou que ia fundar uma ciência nova de física social. Ele promoveu o que do nosso ponto de vista, continua sendo o princípio de uma epidemiologia em saúde mental: a teoria do homem médio. Ele se deu conta, estudando as medidas de altura dos recrutas militares, que a altura dos recrutas obedecia a uma curva de Gauss e que os erros de observação obedeciam à distribuição normal dos erros de medida em astronomia. Com seus dados sensacionais, verdadeiramente inteligentes, ele colocou os princípios de uma espécie de astronomia social.

Do mesmo modo que chegamos a reconhecer a existência, entre aspas, “de uma força de gravitação”! – para o deslocamento dos corpos celestes  quer dizer, de uma fórmula matemática à qual obedece sua órbita, devemos ao mesmo tempo reservar o lugar de uma multiplicidade de pequenas forças de perturbação que fazem com que não reencontremos jamais exatamente em seu lugar matemático o corpo celeste. Existe sempre uma ligeira perturbação, as observações astronômicas têm sempre alguma coisa casual. Procura-se numa zona do céu, à partir de cálculos, e depois há algo sempre um pouco fora do lugar.

“Meu” Quételet colocou que, no universo social e moral de representações do indivíduo, há o equivalente da gravitação, e é o que ele chamava “a tendência”. As tendências que obrigam a uma distribuição normal em curva de Gauss. Ele distingue a tendência ao crime, a tendência ao suicídio, ou a tendência ao casamento. Ele delimita que a taxa de criminalidade é maior entre os machos entre vinte e vinte e nove anos. Eles estão no auge para o crime! Também há as idades em que se dão os casamentos. Ele conclui que se pode encontrar no universo moral do comportamento do indivíduo as mesmas leis que as da mecânica celeste, e que é preciso ter em conta nesse momento as pequenas forças de perturbação que fazem com que o cálculo não seja jamais exato, e que haja sempre uma decalagem.

Essas tendências são para ele formas do instinto e, com relação a isso, a vontade humana lhe parece, na ordem normal, de intensidade zero. É uma força pouco utilizada e ela não intervém senão como uma das mínimas forças de perturbação com relação à regularidade orbital das tendências. O que lhe parece, a base da estabilidade da ordem social, é o homem médio, são as propriedades estatísticas que são estáveis nas principais ações humanas, no casamento e no crime.

Isto foi amplamente criticado. Um pré-sociólogo alemão, Drobisch, na “La statistique morale”[25], criticou o homem médio como uma ficção matemática abstrata. Max Weber também, refere-se à Quételet e critica certa vontade de fornecer uma análise astronômica dos eventos da vida, mas é sobretudo Durkheim que, por sua vez, se refere à Quételet e, ao mesmo tempo lhe opõe um outro ponto de vista que é o  da exterioridade da ordem social aos indivíduos, enquanto que Quételet a encontra nas regularidades da ações humanas.

O célebre estudo e Durkheim sobre o suicídio se inscreve nessa polêmica[26]. Ele faz uma análise bem mais fina que a abordagem global quantitativa de Quételet , uma vez que ele distingue as taxas de suicídio segundo qualidades muito finas: segundo os grupos religiosos, o sexo, a profissão, a idade, e segundo o estado matrimonial. Mas a ponta e a motivação do famoso estudo de Durkheim sobre o suicídio se inscreve nesse contexto de Quételet. É uma polêmica com Quételet, com este ponto de vista astronômico. Durkheim e Quételet estão de acordo em várias coisas. São deterministas e, logo, eles colocam que no universo social, nada se produz por acaso e que a sociedade é regida por leis. E, ainda, Durkheim admite que podemos definir o normal e o patológico sem o ideal, o normal é a média,  o patológico o desvio com relação à média. Este ponto de vista é leigo, pois isto conduz à dizer que o crime é normal. Há uma regularidade no crime, o que é anormal, ocorre um pouco demais ou, um pouco de menos. Quando não ocorre o suficiente, falta energia. É o que dizia Stendhal. Quando os italianos estavam sob o regime dos principados, eles se esfaqueavam galhardamente, em seguida chegou a democracia, e eles perderam todo o ardor. É um ponto de vista extremamente leigo, mas que é a ditadura da média.

Antes de chegar aqui, para agir sobre a média do senador UMP, eu chamei meu amigo François Ewald para lhe assinalar o estado desastroso de nossa campanha parlamentar. Ele me prometeu fazer o impossível. Em seguida eu lhe disse: “Apressemo-nos em terminar, pois eu vou falar um pouquinho de Quételet.” Nós chegamos a um acordo sobre a grandeza de Quételet. E ele me disse: “A idéia de Quételet implica em instalar um julgamento perpétuo da sociedade por ela mesma”. Isto me pareceu muito justo. Com efeito, a média é um ideal secretado pela própria estatística quantitativa. Isto não surge de nenhuma prescrição, de nenhum comando, são números que lhes dão um ideal por si mesmos, o ideal da norma, distinto do da lei. A lei guarda sempre sua ancoragem no grande Outro. É a lei divina, a lei do estado, que num dado momento se impôs do alto, do exterior. Enquanto que a norma – é muito mais doce – é invisível – vem de vós, da combinação de suas decisões individuais, e depois isso se desenvolve imperceptivelmente e não podemos mais nos opor. Nessa pequena discussão, François Ewald me dizia: “O reino da norma metia medo em Michel Foucault, porque não tinha exterior”. É congruente com o que eu evocava na vez passada:[27] Podemos nos rebelar contra a lei - é o que nós fazemos – não podemos fazê-lo contra  a norma, contra a ditadura da norma.

Isolar essa referência à norma nos permite ver que, mesmo se ela se desenvolve a partir da estatística, decidir conformar-se à norma, fazer da norma lei, é uma escolha política. Aí podemos opor alguma coisa aos nossos estatísticos em saúde mental, que pode ser o vetor de uma intervenção propriamente política: fazer da norma, a lei, e perseguir todos os desviantes com respeito à norma é um fator de estagnação. Isto se opõe precisamente àquilo que seria a ambição de alguns, a inovação. Para preservar a inovação de uma sociedade, é essencial que a norma não seja a lei. Depois de tudo, é lógico que isto seja formulado à partir do discurso analítico.

 

II- O objeto-máquina

1. Acontecimento

 

Hold up[28]

Este curso incide sobre a questão: como chegamos até esse ponto? Há uma espécie de “então, era mais verdadeiro ainda do que nós poderíamos supor”. De um lado, não há nada no que está acontecendo que nos surpreenda uma vez que foi anunciado de todas as maneiras possíveis e, ao mesmo tempo, quando isso ocorre, o acontecimento traz consigo, sempre, um elemento que desconcerta, que nos deixa perplexos. A leitura que eu fiz de imediato daquilo que estava acontecendo, é que se tentava encontrar os meios de reduzir, asfixiar e de fazer desaparecer a psicanálise, projeto que mostra ao menos, que não se pensou que a evolução pura e simples das coisas levaria a isso, que seria preciso no mínimo dar um empurrãozinho.

O que é a psicanálise para merecer este empreendimento? O que é a psicanálise para ensejar este empreendimento, e para assemelhar-se, ao menos hoje, no momento, a um núcleo de resistência a este empreendimento?

Uma personagem de Balzac que se chama Vautrin, formulou esse belo princípio: “Não há princípios, somente acontecimentos”. É o princípio do oportunismo, do qual, o príncipe de Bénèvent, Talleyrand, foi quem inspirou Balzac. Nós que temos princípios, constatamos que não é fácil fazer com que eles dominem os eventos. O evento, qualquer que seja sua força, qualquer que seja a surpresa que ele pode despertar, uma vez que recuamos um pouco, aparece situado na estrutura e inscrito no processo.

Pronunciando o nome de Quételet[29], eu quis colocar um nome próprio – eu escolhi esse aí – supondo que ele não era familiar a vocês – a origem de um processo que fez nascer, se expandir e dominar um novo tipo de homens, aqueles que Robert Musil chamava de “os homens sem qualidades”. Tomaram parte disso que Quételet percebeu sua reflexão sobre a estatística, o cálculo das médias e a importância que ele deu à emergência de uma psicologia quantitativa. O que produz o homem sem qualidades é a quantificação, a entrada de sua pessoa no cálculo. A palavra “pessoa” vai até aquilo que chamamos correntemente de psiquismo e sobre o qual a palavra psicanálise guarda, infelizmente para ela, uma relação. Apenas por respeito aos semblantes Lacan conservou este nome, que lhe pareceu herança da história , e que está tão pouco de acordo com o que Lacan estruturou sobre a prática freudiana. Um dia, será preciso prescindir desse nome.

Nós assistimos a um verdadeiro hold-up[30] sob o nome de “psicoterapeuta”, que não é o nosso, sem dúvida. Mas nós vemos como isso se passa quando, num dado momento, a potência do Estado, sua mão, pode se abater sobre um significante e decidir lhe dar um novo sentido, um novo uso e novos agentes. Quaisquer que seja as diferenças finas que possamos ver entre psicoterapia e psicanálise[31], essas duas palavras portam o estigma do psiquismo. Essa zona foi tocada, uma zona que durante um certo tempo,  desde os psicólogos e psiquiatras, era senão protegida, talvez não protegida, quer dizer protegida do excesso de interesse que depositamos nela.  É preciso uma obtusidade especial para que alguns colegas tenham formulado, se levarmos à sério um despacho da AFP desta manhã, que eles se sentiam seguros.[32] Bem ao contrário, é preciso se perguntar em quanto tempo o nome de “psicanálise” não será mais protegido, por quanto tempo esses protetores do futuro permitirão que ele seja usado livremente, donde podemos constatar a que ponto ele foi, no conjunto, na média, garantido por agentes que, ainda que indignos dos ideais freudianos, asseguraram – valha o que valer a função. Nós entramos num tempo onde nós temos que nos colocar a questão de como nós deveremos ser chamados, talvez, para continuar a fazer aquilo que queremos.

 

A morte do absoluto

A entrada da pessoa na quantificação se traduz por isso que Musil chamava um “desencantamento”. Foi durante um episódio de seu grande romance, quando seu herói Ulrich – que acredita na ciência, que meditou sobre a estatística, é conduzido ao posto de polícia. Como diz Musil de modo agradável: “Ele continuava capaz de apreciar, mesmo nesse instante, o desencantamento ao qual a estatística fazia a pessoa submeter-se, e o método de fichar e medir que o policial lhe aplicava o entusiasmava como um poema de amor inventado por Satã.” Ulrich está feliz em constatar que o “operador disseca a pessoa em elementos insignificantes, derrisórios”, e depois, à partir desses elementos pode recompô-lo e “lhe devolver-lhe novamente os traços que distinguem dos outros, reconhecendo-o por seus traços”. Esta operação que aqui é policial, é a operação científica decomposta em elementos insignificantes. Foi igualmente assim que a lingüística procedeu quanto a linguagem, e fomos conduzidos a distinguir os significantes e o significado conforme à orientação estóica. Esta decomposição elementar, quando ela se efetua sobre os grandes conjuntos[33], tem por efeito a evaporação daquilo que durante séculos, chamamos de liberdade.

Aí se inscreve, impõe, o que poderíamos chamar de a lei de Quételet, à sombra de quem Musil escrever seu próprio poema romanesco. “Quanto maior é o número dos indivíduos, diz Quételet, mais a vontade individual se apaga e deixa predominar a série de fatos genéricos que dependem de causas, por meio das quais a sociedade crê, existe e se conserva. “É uma a constatação corrente, que vocês tomam individualmente a decisão que vos convém sobre onde passar suas férias, e que a SNCF se encontra em condições de calcular grosso modo o número de viajantes que subirão nos trens, e de acrescentar vagões suplementares se for o caso. O fato de que estes cálculos nos envolvem torna ínfimo o indivíduo e lhe prescreve um novo tipo de destino, desconhecido dos gregos, o destino estatístico, que pesa sobre a escrita de Musil, com o efeito de evaporar o único e substituí-lo pelo típico. Há em Musil, tal como sentimos crescer ao longo do século XX, “o espanto, a devastação, a deploração de afiliação romântica dos intelectuais, dos escritores, dos artistas, diante disso que emerge como homem das massas”, dizia Ortega y Gasset.

Musil escreve que a influência crescente das massas, do grande número, torna a humanidade sempre mais média. Há um aumento específico na civilização, daquilo que é médio. Emprego a palavra civilização em eco a título de Freud, e sem que seja aqui questão de recalque. Um crescimento em potência dos valores médios dos valores medianos cumpre-se irresistivelmente, e nós vamos viver o triunfo dos valores medianos. É uma versão da morte do absoluto, a substituição do absoluto pela média, quer dizer, pelo cálculo estatístico, de tal sorte que Musil pode falar do verdadeiro suplantado pelo provável.

 

O incomparável

Eis o quadro, o contexto que nós isolamos e no qual surgiu a psicanálise. Lacan dizia que a condição do acontecimento-Freud foi a Rainha Vitória. É uma forma/imagem, emblemática de assinalar que foi preciso haver um recrudescimento social do recalcamento para que se produzisse aquilo que, nesse contexto, devemos chamar de  uma liberação da fala. Observa-se isso nas pacientes de Freud. Elas encontram em Freud um interlocutor, elas o formam para sê-lo, um ouvinte daquilo que elas não podem dizer em outro lugar. Dócil ao  desejo delas de dizer, Freud conformou-se pouco à pouco àquilo que para nós, de modo mais desencantado, é a posição do analista. Posição na qual, aquilo que é recalcado pode vir a se dizer de outro modo, que não pelo puro e simples retorno do recalcado, pode vir a se dizer de modo a se desenlaçar. Freud previa que as sociedades vitorianas se desagregariam e que a psicanálise viria a seria útil. Ele antecipava em seu famoso texto de 1910[34] que eu já comentei, uma Aufklärung social, o triunfo das luzes na sociedade que faria com que aquilo que não se pode dizer, exibir-se, massificar-se, nos regimes vitorianos, poderá trilhar seu caminho.

Muito disso se cumpriu nas sociedades em que vivemos. Eis porque, eu sugiro que não foi somente graças à Rainha Vitória que a psicanálise foi possível ou que se tornou necessária, mas que foi também por causa de Quételet, causa menos espetacular sem dúvida, que a Rainha Vitória. A psicanálise apareceu na época do homem sem qualidades e nós não saímos dessa época. Nós temos entrado nela, mais do que nunca, decididamente. Nenhuma Aufklärung nos protege, uma vez que o reino do cálculo, que avança com números e medidas no domínio do psiquismo, pode se fundamentar, igualmente bem, no espírito das luzes. Sem preconceitos!

É, sem dúvida, porque a pressão dos grandes números, a emergência do homem sem qualidades, tornou-se insuportável, que a psicanálise encarregou-se da clínica, da arte do um por um. Ela encarregou-se, não do um por um da enumeração, mas da restituição do único, na sua singularidade, no incomparável. É o valor profético, poético, da recomendação técnica de Freud, de escutar cada paciente como se fosse a primeira vez, esquecendo a experiência adquirida, sem compará-la e sem pensar que nenhuma palavra que saia de sua boca tem o mesmo uso que para um outro, e mesmo para si próprio, e de instalar-se na experiência analítica na estranheza do único.

Isso me parece convincente. Há um efeito em jogo, uma correlação, uma compensação entre a dominação crescente da estatística e esta arte singular que conheceu uma expansão universal durante um certo tempo nas sociedades que praticam o cálculo dos grandes números. Um Bion levou as coisas até dizer que: “Esqueçam tudo do mesmo paciente. Que cada sessão seja como a primeira vez, seja uma emergência.” Ao mesmo tempo, trata-se da mesma época, a de Freud e a de Quételet, a do homem sem qualidades, pois a psicanálise só funciona sob o fundamento do mais desordenado determinismo. Foi que Lacan cristalizou no significante do sujeito suposto saber.

A associação livre, método que consiste em partir de um enunciado qualquer, ao acaso, só é possível porque há no horizonte a noção de que se trata de uma associação determinada. Portanto, cumpre-se na operação analítica a mesma volatização da liberdade individual que no cálculo estatístico. A associação livre aparece estritamente condicionada. Do lado do analista -, é aí que Lacan via o fundamento mesmo da certeza do analista - , trata-se de referir, demonstrar as regularidades no enunciado ocasional. Lacan dizia “como espontâneamente” do analisando. Não são somente as leis da fala que estarão aí em questão, as leis do significante, mas também as leis internas ao discurso do paciente, e que permitem destacar as constantes e as leis próprias de seu discurso.

 

2. A prática do questionário

Múltipla escolha[35]

 

Para continuar a mapear os elementos que tem relação com a época, podemos colocar esta prática do questionário em correlação com o método da associação livre,  que apenas começou,  mas que deverá expandir-se até atingir as vizinhanças de nosso ato. É um pouco distante para nós, porém a geração que vem aí será formada desse jeito. Eu tomei, estupefato, conhecimento dela, nos últimos dias do ano de 2003, em 29 de dezembro, lendo o Boletim oficial da Educação nacional de 11 de dezembro. Quem me trouxe foi Gabriel, como o Anjo Gabriel, Gabriel Chantelauze. Os ministérios da Educação nacional e da Saúde tomaram a decisão de obrigar as crianças da oitava série, no início do próximo ano, a preencher questionários de saúde mental. Isso não é obra de alguém impulsivo, foi refletido, e fundamentado no pensamento da administração.

Escutando e observando o debate que se deu no senado na segunda feira, eu fiquei feliz em ouvir ressoar no hemiciclo, na entranha da democracia, uma voz, a do M. Jean-Pierre Sueur, senador e adjunto de gramática, que interpelou à quem ele pode, sobre essa exorbitante decisão.[36] Se, se coloca isso em prática, as gerações futuras serão formadas desde a mais tenra idade para pensar, e para se pensar em termos de questionário. Eu não posso pré julgar se o questionário será: “você se sente triste?”. E marcamos uma opção: um pouco, jamais, raramente, freqüentemente, muito, o tempo todo.

A prática do questionário tem fundamentos sem dúvida muito complexos. Em meio ao burburinho atual, não tive tempo de remontar ao nascimento do questionário, ao modo como ele foi formatado. Essa prática requer interrogar o sujeito, dar-lhe a palavra, solicitá-lo, um movimento que é contrário ao da medicina, que a cada vez mais prescinde do testemunho do sujeito. Ao menos formalmente, isso tem alguma coisa a ver com a psicanálise. Dizemos, “Fale”, ou então, “Escreva”. Convidamos a responder, mas ele já está aprisionado num aparelho de escrita, num dispositivo que faz com que sua resposta seja necessariamente comparável a de um outro, quer ela seja a mesma, diferente, média ... Saberemos que 40% dos alunos ficam tristes de tempos em tempos. O resultado, ou a inexatidão do resultado não interfere em nada no procedimento. Pelo simples fato de que colocamos um sujeito num dispositivo de escrita, ele já destituído do que é único. Se ele rasga a folha, não responde, ele será colocado na percentagem dos refratários. Trata-se de alguma coisa que não tem exterior.

Chegará o momento em que os questionários serão queimados, e a escola também, e onde nos recusaremos a imprimir questionários com seus pequenos retângulos, pois elas terão nos colocado no bolso, esses pequenos retângulos que marcamos. Não o nosso, mas o dos que estão por vir. Eis o instrumento que nós vimos chegar ao uso. Não marcávamos retângulos antigamente. Constatamos que era um meio muito cômodo de obter respostas calibradas, sem retórica. Este instrumento comporta que tudo, na existência, é questão de mais ou menos, e  este mais ou menos não surge num continuum, mas em unidades discretas. Compomos uma cadeia significante de zeros e de um, uma cadeia significante binária, propriamente digital. Vocês entraram agora no cálculo estatístico, um cálculo de médias. Não há nada que explique melhor a prevalência da média do que o pequeno retângulo vazio onde você vão marcar sua impressão digital sob as espécies da marca, esta marca que Lacan repertoriou como sendo a do animal abatido. O animal abatidos são vocês!

 

O behaviorismo

É preciso colocar Watson, o criador do behaviorismo, comportamentalismo em francês,  num bom lugar entre os encrenqueiros desta era. Durante muito tempo, não dizíamos a palavra em inglês para acentuar que “é muito pouco para nós!” mas eu retomei os textos originais de Watson, a introdução da segunda edição de sua obra Behaviorism[37] . Ele diz com todas as letras: “Se, enquanto psicólogo, vocês pretendem continuar científicos, vocês deve descrever o comportamento do homem em termos que não são diferentes dos que vocês utilizariam para descrever” – o que foi que ele escolheu dizer? –“ o comportamento de um boi que vocês degolam”.

Vejam vocês, mesmo quando eu me empolgo, tenho referências. O questionário que é prenhe de uma cadeia significante, que lhes faz cadeia significante, é também a encarnação, a materialização, de uma linguagem que quer ser unívoca. Donde o cuidado depositado no estabelecimento do questionário, para que ele seja totalmente sem ambigüidade. A padronização opera sobre a própria linguagem, e vemos que de modo binário, a prática do questionário se opõe termo à termo à prática analítica que, ao contrário, intensifica a ambigüidade. A arte da análise é que, no contexto da sessão analítica, cada palavra seja cheia de significações múltiplas, que a analista tem por disciplina saber que não sabe o que você diz, que ele tem que aprender a sua língua, o seu uso único da língua. Isso não é possível a menos que vocês mesmos estejam, com respeito aos seus ditos, na mesma posição de estranheza. A elaboração do questionário visa, ao contrário, constituir por meio da língua corrente uma metalinguagem unívoca. Todas as questões lá são infinitas, razão pela qual há edições de questionários. Monsieur X critica o questionário de Monsieur Y, porque uma questão é sempre tendenciosa, ela não é jamais suficientemente unívoca. Se a prática do questionário se expande desde o berço isso terminará tendo um efeito de padronização sobre a língua. Para poder servir-se dela como bem lhes aprouver, será preciso falar a língua dela[38]. Trata-se disso no questionário: o operador lhes obriga a falar língua dele.

Na análise, é o não saber o que isso quer dizer que produz o efeito de sujeito suposto saber, enquanto que no outro caso a palavra de vocês endereçada a si mesma. Se há determinismo, é um determinismo do único. Uma vez que aqui o sujeito não é suposto, é o saber em pessoa que está presente. Podemos falar de preenchimento de retângulos, como um ritual que impõe o saber sagrado, a quem vocês entregam aquilo que ele demanda. Vocês aceitam se reduzir a uma combinatória de pequenos retângulos, e então você se tornam o “homem sem qualidades”. Todas as suas qualidades passam nos pequenos retângulos e você podem ser recompostos a partir disso. Não há melhor representação do sujeito barrado de Lacan do que o pequeno retângulo que marcamos e que não é senão uma variável. Quando vocês preenchem o questionário, vocês confessam que não são mais do que uma variável do questionário. Podemos discutir a referência etológica que foi a primeira referência do comportamentalismo e do qual você vêm o exemplo no: ”boi que degolamos”. Vai ser preciso, um dia que eu ilustre o emblema do comportamentalismo: The ox that you slaughter.[39] Eu não conheço da obra de Watson senão esse livro, mas talvez possamos encontrar a relação que ele tinha com o açougue.

Ele previu a resistência, a indignação. Ele retorquia, de um modo que não era antipático, e onde vemos o parentesco de época com Freud, pois o behaviorism, como a psicanálise estão entre as disciplinas que trouxeram a desidealização à época do homem sem qualidades. A imagem é sanguinolenta, mas isso participa deste grande movimento de desidealização do qual a psicanálise faz parte e, do qual, nós a repreendemos por se afastar sublimando a  linguagem. Mas, nas terapias, o comportamentalismo, o cognitivismo e as terapias que quisemos delas deduzir, não é o animal que é o modelo e sim a máquina, o objeto-máquina.l

 

3. O ideal de saúde mental

Obstrução

Chamamos, um certo número de objetos, porque os considerávamos fúteis, os gadgets. Trata-se de objetos nascidos da indústria, que incorporam o cálculo. A relação, que eu quero colocar em evidência é a relação do sujeito a objetos que comportam uma incorporação simbólica. É dizer muito pouco. São objetos nascidos do simbólico. Os objetos nascidos do simbólico, que são objetos construídos, deduzidos, calculados, produzidos maciçamente, em numerosos exemplares,  são um novo tipo de real que surgiu na revolução industrial, um real que é o produto da medida e do número – não de uma habilidade -, e eles são os subprodutos do discurso científico, e operam por meio do cálculo. Foi isso que Lacan visava, num tempo do seu trabalho, quando ele evocava a invasão da vida pelo real, e este real, tornou-se para nós extremamente incômodo.

Foi circunscrever o mal-estar na civilização de uma outra maneira, diferente de Freud, pois não passa pelo recalque, ou pela desacomodação das pulsões à civilização. Foi delimitar esse mal-estar na civilização partindo de que ele é dominado pelo discurso científico, que tem a propriedade de fundir esse real de um modo muito especial. Lacan disse numa conferência na Itália, tomando como exemplo a mesa do conferencista: ”Esta mesa é alguma coisa que tem um outro acento, que não poderia jamais ter tido na vida anterior dos homens.” Não é grande coisa, mas já não é um objeto manufaturado, ele não depende mais de uma habilidade. Por meio de um certo número de mediações, ele é filho do número e da medida. É um aparelho, e o aparelho substitui a coisa. Não se trata do recalcamento que incomoda, trata-se da máquina enquanto ela reconfigura o mundo e que tem um efeito de invasão e obstrução. A psicanálise compensa. Lacan evocava a psicanálise, ela própria, como uma resposta a este obstrução do real, como um meio de sobreviver a isso. Eis o que lhe parecia justificar a necessidade de que houvesse analistas. A necessidade não implica a probabilidade, mas ela indica uma maneira de levar em conta o mal-estar na civilização: é preciso começar por permanecer analista, por se furtar a devir esse objeto que se apreende entre o número e a medida.

Eles não nos pedem grande coisa: “Apresentem-nos a lista”. Apenas isso! Mas o que se aponta nessa demanda é o convite e, ao mesmo tempo a promessa: “Sejam como as máquinas. Vocês serão como as máquinas.” É uma promessa, por exemplo, de que vocês poderão ser reparados, ser reprogramados, quase tanto quanto a um computador. A grande promessa prossegue! Estamos no banco de órgãos. Isto estará no mostruário dos magazines. Eu vi isso representado, não nas utopias, mas nas projeções. Quanto falta para que cheguemos ao ponto de passear entre os mostruários e perguntar: “Quanto custa esse fígado?”  Trata-se do seu fígado. Você vai levá-lo consigo e mandar instalá-lo. Tudo que gira em torno da clonagem, gira em torno do ideal da máquina. Para que isso se realize, é preciso que tenhamos sido reduzidos, primeiro, ao estado do homem sem qualidades, é preciso começar a marcar os pequenos retângulos.  Quando Lacan assinala que esse real é incômodo, insuportável, é a própria definição do real como impossível de suportar. É a própria definição que Lacan dava da clínica: “O real como impossível de suportar”. De um certo modo, a clínica está por toda parte, e é bem por que o real está cada vez mais difícil de suportar, que assistimos a promoção da saúde mental.

 

Adaptação

Há também uma história, uma arqueologia à fazer, que deverá esperar dias mais serenos. Antes de procurar a arqueologia, vamos apreender como opera a lógica em questão. A saúde mental é o ideal de um sujeito para quem o real deixaria de ser insuportável. Quando partimos disso, só encontramos perturbações mentais, disfunções. É preciso que a nossa língua não se deixe enganar pelo  sintagma da perturbação mental. O conceito de perturbação mental veicula com ele a noção de saúde mental, e foi este conceito de perturbação mental que desfez as soberbas entidades nosológicas herdadas da clínica clássica. A perturbação mental é uma unidade,  é o que em seguida pode ser circunscrito, repertoriado pelo método dos pequenos retângulos.

Não é absurdo. Tive a ocasião de assinalar de passagem que o conceito lacaniano de sinthoma respondia à mesma exigência de prescindir das construções nosológicas para isolar as unidades discretas de funcionamento. O sinthoma é a perturbação mental considerada como um modo de extrair gozo. É o que lhes faz encontrar o real insuportável e o que os faz gozar do real. Porque não tínhamos antes esse ideal de saúde mental? Não tínhamos também a OMS. É preciso interessar-se pela OMS, Organização Mundial de Saúde. Dado o que eu ví da organização mundial da saúde na França, estou persuadido de que é terrível. Procura-se por meio da organização mundial da saúde a resposta universal ao mal-estar na civilização. Por que antes não havia essa promoção da saúde mental? Como nós imaginávamos que o mundo era feito pelo homem, logo, naturalmente, era uma relação harmônica. A harmonia hoje nos faria rir. Há alguns ersatz, refúgios. Algumas pessoas escapam para procurar uma pequena zona de harmonia, respirar ar puro, não ver os congêneres, a natureza, o que ainda resta dela, mas o conceito que suplantou o de harmonia e que dominou o imaginário ao longo dos séculos, é o de adaptação.

Isso diz tudo. É aliás, o único critério de saúde mental e aquele que pretendeu introduzi-lo imediatamente na psicanálise, porque era muito esperto, foi Heinz Hartmann. Ele fez uma monografia sobre adaptação, que é um dos seus primeiros escritos.[40] O termo  adaptação traduz precisamente o fato de que precisaremos viver num mundo que não é mais feito pelo homem, na medida em que ele é mais e mais feito pelo homem. Lacan poderia dizer: “As pessoas são comidas pelo real” Podemos ver esse pequeno retângulo à marcar, como uma boca que vai nos comer.

 

Um real de semblante

O real de que se trata aqui é o real? É um real, na medida em que é impossível de suportar. Lacan disse: “É o real ao qual as pessoas são capazes de alcançar”. Elas são capazes de alcançar o real que eles produziram a partir do cálculo e do número, e elas fizeram para si mesmas uma vida infernal. É um real “materializado” – Lacan emprega este adjetivo. É preciso entender de que materialismo se trata. Este materialismo é também um artificialismo. É exatamente o que animava a polêmica discreta de Lacan com Lévi-Strauss, que pensava que a combinatória da estrutura tal como ele se servia dela, por exemplo, no pensamento selvagem, que esta combinatória feita de uma complexificação das relações binárias, refletia a estrutura do cérebro – ele provocou escândalo na época quando concluiu, nesse sentido, que ela refletia a estrutura da matéria como seu duplo. Esse não é uma materialismo-artificialista, como aquele do século XVIII, mas um materialismo primário.

Lacan opunha a isto os argumentos que ele retirava também de Lévi-Strauss: não há somente o mundo e a matéria enquanto tais, há também o lugar onde as coisas se dizem, e que ele chamava de “o palco”. É preciso pois que o mundo suba ao palco, onde é apanhado numa outra estrutura. É o que Lacan chamava de o grande Outro. O lugar do Outro é o lugar onde se fala, qualquer que seja a estrutura da matéria, as leis da física e mesmo da estatística social. Aliás, é sem dúvida por essa razão que há tantas referências ao teatro em Lacan. O teatro é como a reduplicação do palco onde o mundo tem que subir. A linguagem impede de reduzir o mundo à imanência. Por causa da linguagem, a imanência é afetada por uma transcendência, que é um efeito da linguagem. É o que o grafo de Lacan traduz em dois estágios, que existe um mais além atrelado ao próprio funcionamento da linguagem, um efeito de transcendência.[41] Se destacamos o efeito de transcendência, obteremos a instância de Deus Pai, e o imaginamos anterior e criador, ao passo que para Freud e Lacan, Deus não é criador e sim criado pela linguagem. E, se ele existe, é muito mais como uma ex-sistência, uma substância à partir da linguagem.

O mundo é reconfigurado pelo palco segundo as leis do significante. São leis próprias, aquelas do significante, distintas das leis físicas ou estatísticas. Lacan pode utilizar os próprios exemplos de Lévi-Strauss.  Há o calendário cronológico, e quando dizemos certas datas, elas são carregadas de significação. Se dizemos 2 de dezembro, ou dezoito de junho, ao menos no contexto cultural, são datas que marcam e que respondem à outras funções, que têm uma outra presença, uma outra exigência diferente de uma data puramente cronológica.

Apreendemos ao menos a imaginarização que se apossa da coisa tal e qual, porém, um passo mais à frente, a ciência, quando opera sobre uma realidade, faz com que ela desapareça.  Lacan retomava o exemplo dos elefantes, no Seminário I[42], a partir da linguagem. A explicação do que quer que seja, não deixa como resíduo senão uma combinatória de elementos significantes daquilo de que se trata. Ela volatiza tudo que, anteriormente, lhes atava à substância da própria coisa. Quando a explicação científica se conclui, ela apaga a coisa e a substitui pela lei. A ciência substituiu a coisa pelo significante e termina criando semblantes. O que prova sua eficácia é poder se repetir. Há um efeito de reprodução interna à operação científica. Este real que invade e que não é o real, pode ser, podemos dizer que ele é ainda mais opressivo e insuportável uma vez que é um real de semblante.

 

Afirmação de si

Fracassamos diante do objeto a, que não funciona no mesmo regime que o significante, pois se este é universalizável, reprodutível, desmontável, que em última análise é semblante. O objeto a não é universalizável mas, ao contrário, é marcado pela singularidade do encontro. Donde a impossibilidade de que se escreva S2 (o saber) dominando o objeto a (o gozo), e que está na linha superior do discurso da universidade, como dizia Lacan, a impossibilidade de dominar o gozo pelo saber. Há um mestre escondido que é a própria decisão de instaurar o significante como mestre. O resultado da operação, e o resultado que é esperado deste sujeição do gozo pelo saber, é encarnado em todos os nossos questionários de saúde mental. Não se trata senão disso: dominar os excesso, as emoções, a singularidade da experiência por meio de um pequenos aparelho de saber ultra-reduzido, e cujo produto é transformá-los em homens sem qualidades, um homem quantitativo, na esperança de reduzi-los, o que é impossível, ao significante mestre. Qual é a chave de todas as terapias comportamentais? É qualquer coisa que se chama afirmação de si. Qualquer que seja a perspectiva que adotemos de todas as teorias cognitivo-comportamentais, o núcleo central é a afirmação de si. Uma vez que vocês sejam reduzidos a um homem sem qualidades, farão de você mestres de si mesmos. A promessa vai longe. Vocês terão um poder ilimitado sobre si mesmos.

Há técnicas para isso. Eu me refiro a um manual que está na terceira edição.[43] Ele visa principalmente às pessoas que sofrem de perturbação das competências sociais. Existirão pessoas que não tenham perturbações das suas competências sociais? Isso pode estender-se aos grandes tímidos. O problema é que é muito difícil tratá-los por meio de terapia em grupo. Eu vou lhes explicar os princípios que só valem se você suporta a vida em grupo: “Freqüentemente, os grupos de afirmação de si, devem ser precedidos de uma fase de terapia cognitiva individual, pois a maior parte dos pacientes são muito frágeis para abordar um grupo. Cingi (1966) desenvolveu um programa de terapia por meio de um livro que propõe um seqüência de exercícios práticos. Este método está sendo avaliado”.

Eis o coração das técnicas de afirmação de si: “As técnicas de afirmação de si preparam o sujeito para afrontar as situações difíceis, elas se enraízam numa concepção democrática das relações humanas e podem se resumir a sete mensagens principais.” É preciso repeti-las insistentemente, freqüentemente, para que vocês se recondicionem e se reassegurem. A autoterapia é uma parte importante do que temos que aprender. “primeiramente, seja respeitado pelos outros. Em segundo lugar, afirme seus direitos.” Nós fazemos isso, Senhor! “ Em terceiro lugar, não tente ser amado por todos.“  Eu tentei e não consegui. “Em quarto lugar, tenha uma imagem positiva de você mesmo. Em quanto lugar, lute contra a depressão, agindo”. Vocês não pensaram nisso! “Em sexto lugar, enfrente os outros. Em sétimo lugar, pouco importa o fracasso, o importante é se afirmar.”

Eis um esforço sensacional para preencher o abismo entre o sujeito barrado ($) e o significante mestre (S1).

 

III – Uma consciência de si

 

A auto-avaliação

Eu me dei ao trabalho de verificar o Boletim número 38 de novembro passado, do Comitê de Avaliação das universidades (CNE)[44], fundado e presidido primeiramente por Laurent Schwartz , e que é confrontado à constituição do espaço europeu no ensino superior. Trata-se de fazer coletividades de ensino superior – e é generalizável a todas as coletividades que trabalham, nos estabelecimentos, nos centros de atenção – de sujeitos autônomos definidos como sujeitos responsáveis, na medida em que eles se propõem a cumprir uma tarefa e que são capazes de responder pelos seus compromissos. Há um esforço, através da avaliação de transformar em sujeito, um coletivo. Ser responsável, é ser capaz de responder diante de um Outro. O paradoxo, é que o fato de fazer destes coletivos, sujeitos, e de lhes conferir uma autonomia responsável, faz surgir um Outro ainda mais exigente que seu parceiro. Eu cito uma frase dessa literatura um pouco ingrata: “Na perspectiva de uma autonomia crescente, o número de parceiros aos quais será conveniente fornecer informações confiáveis e pertinentes aumenta.”

Eis um Outro. Um Outro ao qual é preciso informar, ao qual é preciso transmitir uma saber que constantemente se inflaciona. É um Outro que não apenas exige que façamos, que operemos, ajamos, mas que demonstremos. Precisamos demonstrar que assumimos nossas responsabilidades, que respeitamos nossos engajamentos, e isto ao menor custo. É um espaço onde os coletivos são sujeitos que devem continuamente demonstrar, sob o olhar do Outro, que somos confiáveis, exatamente demonstrar para dar confiança. Eles chamam isso de “a lógica da demonstração”. Isso me parece estar no coração daquilo que nos apercebemos na avaliação no passo seguinte do que eu havia evocado precedentemente. Os dois pólos são estes: demonstração e confiança. Isso não quer dizer senão uma só coisa: estes coletivos sujeitos têm a ver com uma coisa que é de estrutura desconfiada, e frente à qual é preciso exonerar-se permanentemente, se justificar permanentemente de existir e funcionar.

O discurso de Laurent Schwartz de maio 1985 para a instalação do Comitê nacional de Avaliação não fala senão de confiança, liberdade, coragem, objetividade e de transparência. Ele assegura que o Comitê de Avaliação[45] não exerce um controle policial. Isso dá confiança! Isso coloca em relevo que - para que esse coletivo seja o sujeito - a etapa mais importante de subjetivação desse coletivo é a auto-avalição. Lemos a recomendação que é sempre a mesma, num coletivo é preciso sempre confiar numa instância específica que assegura permanentemente a da pilotagem do coletivo.

Isso não quer dizer senão uma só coisa: trata-se de dotar um coletivo de uma consciência de si. A auto-avaliação, confiar numa instância que permanentemente pilota o coletivo, eu não consegui conceituá-la senão como uma consciência de si objetivável, sob a forma de um saber transparente e comunicável ao Outro. Com o efeito de que toda a atividade do coletivo – e isso desce, evidentemente aos elementos individuais – deve ser duplicada permanentemente pelo saber sobre a atividade. Vocês têm uma tarefa à cumprir, de cuidados à distribuir, sua atividade específica enquanto coletiva deve ser duplicada pela atividade de elaboração de saber sobre essa atividade. É aristotélico. Trata-se de criar uma alma coletiva, de dotar o coletivo de um alma. Poderíamos mesmo dizer – talvez seja por isso que existe tamanho entusiasmo religioso pela avaliação – porque isso faz parte do processo de conscientização da humanidade no sentido de Teilhard de Chardin. O coletivo acede à consciência através dos processos de avaliação. Em termos aristotélicos, dotamos o coletivo de uma alma. No horizonte, a auto-avaliação dota o coletivo de uma alma que o pilota.

 

... e seu impasse

Vamos dar mais um passo, o de nos apercebermos que é um modo, de fato, inédito de formação da unidade dos coletivos. Nós conhecemos o modo isolado por Freud na sua Massenpsychologie, o da formação da unidade do coletivo pela identificação, e, nos termos de Lacan, queremos saber se é graças ao significante-mestre ou ao objeto a. Trata-se de outra coisa: tentem dar ao coletivo sua unidade através do saber, S2.  Não se tentou isso nunca, uma vez que todas essas formações coletivas, inclusive a que Lacan estudou na “Psiquiatrie anglaise et la guerre”, à partir de Rickman e Bion, passam pela função do líder, do um a mais[46]. Esta função é absolutamente ausente de todos esses tratados de avaliação, pois tentamos obter a subjetivação do coletivo únicamente por meio de saber, e de um saber homogêneo. A função do mais-um, ou do menos-um, é estritamente impensável nesse caso.

Esta avaliação, a elaboração do saber de si da atividade, tem ele própria um custo. Ela custa, e ao mesmo tempo distribuiu recursos ao coletivo onde ela se implanta, e deve ela própria, justificar sua existência em termos de custo-benefício. Eles são obrigados a notar que o primeiro efeito da implantação da avaliação num coletivo é desorganizá-lo e empobrecê-lo, e devem acrescentar: “a avaliação deve difundir uma cultura econômica, para que suas vantagens sejam identificadas e superiores ao custo financeiro que ela engendra”. Se, nessa passagem de ruína e pesadelo, deve luzir uma esperança, isso vem do impasse intrínseco dessa operação de avaliação. Primeiramente, não é possível obter a subjetivação de coletivos, unicamente pelo saber. É um sonho burocrático. Em segundo lugar, esse sonho é devorado pelos efeitos do paradoxo da avaliação, quer dizer, o empobrecimento imediato e o caos que introduz a avaliação sob o pretexto de organizar.

É muito mais lúcido constatar, como fazia Lacan, um pouco depois sua “Psyquiatrie Anglaise et la guerre”, que as regras de autonomia da consciência de si, mesmo transpostas ao coletivo são condenadas ao advento do discurso sobre o saber[47]. O império do saber é contraditório com este sonho remanescente da autonomia e da consciência de si. A avaliação não faz senão traduzir esse sonho da autonomia, ele próprio já desfeito pela época em que vivemos, de um saber que ao contrário, é anônimo e impessoal. É um esforço desesperado, o de restituir uma consciência de si ao coletivo, uma vez que é impossível que o sujeito emerja no reino do saber.



[1]Traduzido por Tania Coelho dos Santos e Jésus Santiago. Nossos agradecimentos ao autor, Jacques Alain Miller, que gentilmente nos autorizou a traduzi-lo e publicá-lo.

[2] Texto e notas estabelecido por Catherine Bonningue a partir das aulas de 14 e 21 de janeiro e 4 de fevereiro de 2004, de Orientação Lacaniana III, 6, curso ministrado no quadro do Departamento de Psicanálise de Paris VIII e da Seção Clínica de Paris Saint Denis, publicado na revista La Cause Freudienne, n. 37, Paris: Difusión Navarrin Seuil, p. 73-97. O começo da aula de 4 de fevereiro (exposição de Éric Laurent assim como o comentário de J.-A. Miller) foi publicado na Revista da Escola da Causa Freudiana da Bélgica, Quarto, n.82.

[3] Petrarque, Invectives, Paris: Jérôme Millon, 2003, p. 45.

[4] Ibid. p. 7

[5] Ibid, pp. 7-8

[6] Miller quer se referir ao Deputado M. Mattei, autor de um projeto de regulamentação das práticas psicoterapêuticas apresentado durante o ano de 2004 , que pretendia exigir que todos os praticantes fossem obrigatoriamente registrados nas prefeituras.

[7] Musil, R. L’Homme sans qualités, Paris, Seuil, Poche 1956 Cf. Bouveresse, J., La voix de l’âme et le chemin de l’esprit. Dix études sur Robert Musil, Paris, Seuil, 2001.

[8] N.T.: o original, L’âne-à-liste, (asno-à-lista) é uma referência jocosa aos anuários, às listas de analistas certificados por uma determinada instituição psicanalítica.

[9] Cf. Rey, A. Dictionnaire historique de la langue française, Paris, le Robert, 2000.

[10] Artigo publicado no Le Monde, datado de domingo Segunda 11-12 de janeiro e citado por Philipe Sollers no Grande Meeting da Mutualité de 10 de janeiro de 2004.

[11] Alphonse Bertillon nasceu em 1853 no seio de uma família da qual muitos membros foram demógrafos. Em torno de 1880, ele inventou a atnropometria judiciária, um método de identificação dos criminosos fundado sobre uma vintena de medidas antropométricas que permitia fornecer uma descrição única e infalsificável de uma pessoa. O método que ele desenvolveu foi chamado de bertillonage. Alphonse Bertillon foi empregado em 1879 na prefeitura de Polícia para estabelecer fichas signaléticas dos malfeitores. Ele imagina um “assinalamento antropométrico”  próprio à cada detento. Esta técnica consiste em uma enumeração metódica e sistemática das características físicas, invariáveis de um indívíduo: altura, envergadura, largura e cumprimento da cabeça, cor da íris, cumprimento do médius, do auricular e do pé esquerdo. Em primeiro de julho de 1887 foi oficialmente criado o “serviço de identificação de detentos” naturalmente confiado a Bertillon. Este método se impôs muito rapidamente pelo mundo: nos Estados Unidos o adotam desde 1888 alastrando-se por mais de uma cinquentena de países durante a década seguinte. Este método vai, muito rapidamente,  ser completado pela “fotografia antropométrica” constituída de clichês da face e do perfil dos detentos tomados sob certas condições rigorosas (aparelho e assento fixo, luminosidade constante). Esse método eficaz será entretanto substituído, no começo do século XX, pela impressão digital, de manejo mais simples e de um custo menos oneroso.  Em torno de 1914, um pouco antes de sua morte, Alphonse Bertillon vai sugerir aos artistas de colocar suas impressões digitais sobre seus trabalhos para impedir a fraude. Um artigo sobre esse assunto foi lançado no le Matin sob o título “Bertillonage, on ne truquera plus les oeuvres d’art”, no qual um certo número de artistas célebres, inclusive Rodin, se decalararam favoráveis a esse sistema. http://www.prefecture-police-interieur.gouv.fr/documentation/reportages/liaisons76/p20.pdf

[12] Cf. aula do dia 10 de dezembro 2003, publicada em Miller J. A e Milner, J. C. Voulez-vous être évalués? Paris: Grasset, 2004.

[13] Cf. O relatório do INSERM sobre Le despistage de troubles mentaux chez les enfants et les adolescents, lançado em dezembro de 2002, uma síntese deste relatório está disponível no site do INSERM desde o começo de 2003

[14] Cf. Beck U. La societé du risque Sur la voie d’une autre modernité, Paris, Aubier, 2001.

[15] Cf. Bauby P. L’état stratége, Paris, Les éditons ouvrières, coll. Portes ouvertes, 1991.

[16] Cf Miller, J.–A. “L’ironie des lumières”, Thêatre Hébertot 10/11/2003: La question des Lumières. La règle du jeu, n. 24, 2004.

[17] Cf. Malthus, T.R. Essai sur le principe de population (1798), Paris: Garnier-Flammarion, 1992

[18] Cf. Lacan, J. “Les complexes familiaux dans la formation de l’individu” (1938), Autres Écrits, Paris: Seuil, 2001, pp.23-84: texto publicado pela primeira vez no volume VIII da Encyclopédie française.

[19] Cf. Lacan, J. Le Seminaire Livre XX, Encore, Paris: Seuil, 1973.

[20] Cf. Chevalier, L. Classes laborieuses et Classes dangereuses, à Paris pendant la première moitié du XIX éme siécle, Collection civilisation d’hier et aujourd’hui, 1958.

[21] Cf. Parent- Duchâtelet A. La prostituton à Paris au XIX éme siècle, Paris: Seuil, 1981.

[22] Freqüência relativa de nascimentos de meninos ou meninas

[23] Lacan, J. “L’étourdit (1973), Autres écrits, op. cit. p. 460

[24] Cf. Guerry A. M. Essai sur la statistique morale de la France, Crochard, 1833

[25] Cf. drobish M. W. Die Mondische Statistik und die menschlich Willenfreiheit, Leipzig, L. Voss, 1867

[26] Durkheim, É. Le suicide, Paris: PUF, Quadrige, 2002

[27] Cf. Aula do dia 10 de dezembro de 2003, publicada em Voulez-vous être évalués?, op. cit.

[28] N.T.: Ataque de surpresa. A expressão refere-se aos movimentos pela regulamentação procedente do Estado, que tomaram, como um ataque feito de surpresa,aos psicanalistas e psicoterapeutas desavisados.

[29] Lambert Adolphe Quételet (Gand, 1796 –Bruxelles 1874) estudou astronomia no Observatório de Paris e a teoria das probabilidades de Lapplace. Ele foi doutor em Ciências da Universidade de Gand e depois professor nos Atheneus reais de Gand e Bruxelas. Em Sur l’homme et le dévelloppement de ses facultés, ou Essai d’une physique sociale (1835), Quételet apresentou sua concepção do homem médio como valor central em torno do qual as medidas de uma característica humana estariam agrupadas segundo uma curva normal.  Influenciado por Pierre Laplace e Joseph Fourrier, Quételet foi o primeiro a utilizar a curva normal de outro modo, não apenas para reparar erros. Seus estudos sobre a consistência numérica de crimes suscitaram uma larga discussão entre liberdade de determinismo social. Para seu governo, ele reunia e analisava as estatísticas sobre o crime, a mortalidade e ele aportava as melhorias na atribuição de sanções. Seu trabalho suscitou uma grande controvérsia entre os sociólogos do século XIX. No Observatório de Bruxelas, que ele estabeleceu em 1833 à pedido do governo belga, ele trabalhou sobre dados estatísticos, geográficos e metereológicos, estudou as chuvas, meteoros, e estabeleceu os métodos de comparação e de avaliação de dados. Quételet organizou a primeira conferência internacional de estatística em 1853. A medida de obesidade, utilizada internacionalmente, é o índice de Quételet. É QI (peso em quilogramas) (altura em metros). Se QI >30, então uma pessoa é oficialmente obesa.

[30] Cf. O boletim da Agencia Lacaniana de Imprensa, A guerra dos palotinos, notadamente o número 10, de 20 de janeiro de 2004 (site: www.forumpsy.org )

[31] Podemos nos referir notadamente ao texto de J. A . Miller “Psychanalyse pure et psychanalyse appliquée à thérapeutique e psychothérapi” La Cause Freudienne número 48 Paris, diffusion Seuil, 2001, pp. 7-35.

[32] Cf. nota de Pontalis.

[33] No sentido de grupos de pessoas que passam a ser tomado como populações anônimas.

[34] Cf. Freud Les chances d’avenir de la thérapie psychanalytique (1910) Oeuvres complètes, Paris, PUF 1993, pag 63-73 este texto foi comentado por J. A . Miller em L’orientation lacanienne III, 4 “Reflexions sur le moment présent”, aula do dia 6 de fevereiro de 2002.

[35] N.T. Por uma questão de respeito ao uso lingüístico, preferimos traduzir a expressão cases à cocher, que significa, literalmente, marcar os retângulos, por múltipla escolha. Esse termo em nossa língua designa o gesto de escolher uma opção (entre parênteses,  colchetes, ou em retângulos)  e assinalá-la por meio de um traço entre outras tantas pré-determinadas.

[36] Debate no senado de segunda feira 19 de janeiro de 2004 sobre a emenda Accoyer-Giraud-Mattei, de que se pode ler a transcrição no site do Senado.

[37] Watson, J. B. Behaviorism trad. Francesa Le behaviorisme, Paris Ed. Du centre d’ètudes et de promotion de lecture, 1972

[38] N.T. A língua da prática do questionário, do operador do questionário.

[39] N.T. O boi que se degola.

[40] Cf. Hartmann H., La psychologie du moi et le problème de l’adaptation, Paris, PUF, 1968

[41] Cf. Miller J.–A., L’orientation Lacanienne II (1997/98) aula do dia 28 de janeiro de 1998

[42] Lacan J. Le Seminare Livre I, Les écrits techiques de Freud, Paris: Les Éditions du Seuil, 1975

[43] Cottraux J. Les thérapies coomportamentales et cognitives, Paris, Masson, 1998

[45] Este discurso é acessível no site do CNE.

[46] cf. Lacan, J. “La psychiatrie Anglaise et la guerre” (1947), Autres Écrits, op. cit. p.107

[47] Não encontramos a referência precisa. Talvez J.–A. Miller faça referência ao “Discours de Rome” (1953), Autres Écrits, op. cit. pp 138 e seguintes.