Resenha
do livro:
Miller,
Jacques-Alain O sobrinho
de Lacan. RJ: Ed. Forense Universitária, 2005, 304p.
Este
livro ordena um certo número de teses sobre o sagrado na
modernidade, suas relações com a religião, com as autocríticas
da esquerda e com a prática lacaniana. Foram originalmente
apresentadas no Département de Psychanalyse,
ao longo do Seminário de Orientação Lacaniana de 2002/2003,
intitulado: “Um Esforço de Poesia”. Nesse período, Miller
expôs o que viria a ser um livro dentro do livro: Le
neveu de Lacan. Chama-se
Notice sur la vie et les
travaux de Lindenberg Daniel: fameux pamphlétaire français
– por Clément Delassol-Lunaquet. Parece-me que Clément
é um pseudônimo que faz referência ao Papa Clemente IV,
responsável pelo expurgo dos jesuítas. Lunaquet talvez seja um
anagrama de canuler. O
canular é um exercício espiritual, um exercício de Witz,
onde é de bom tom mostrar uma cultura mirabolante para fins de
repouso (délassement,
como sugere o termo Delassol) e diversão. É a diversão do sábio
e do erudito. Isso se pratica, desde a alta antiguidade, sob
outros nomes (sotie:
farsa satírica e alegórica, desempenhada por atores em trajes
de palhaço, ou facétie:
diversão burlesca, deboche), nós o encontramos em Rabelais e
é a alma do L’Éloge
de la folie d’Érasme,
do qual Lacan faz uso em sua prosopopéia sobre a verdade. Esse
canular foi escrito durante um momento de profunda indignação
com um livreto chamado Rappel à l’ordre (Coleção:La
République des idées), de um certo Daniel Lindenberg,
autor também de Le
marxisme introuvable e que, conforme ao estilo caro às esquerdas radicais,
denuncia os novos reacionários. Entre eles, o referido autor
elenca o “sobrinho” de Lacan, Jacques-Alain Milller,
antigo colega dos tempos de militância estudantil. A condição
de ex-aluno da segunda turma de normalistas de Althusser, cuja
participação nos acontecimentos de maio de 1968, reduziu-se à
publicação dos famosos Cahiers
pour l’analyse, já justificaria a inclusão de Miller
nesse rol.
Em
resposta a essas denúncias, Miller nos apresenta, na linguagem
do canular, uma espécie de sociedade secreta integrada por
conhecidos filósofos e cientistas políticos franceses da
melhor estirpe, que se reúnem na assim chamada Academia de Ciências
Imorais e Políticas. A existência dessa Academia imaginária,
com seu Brunch des
non dupes todo 7 de janeiro, se deve aos dois Ramon (Aron e
Queneau), bem como a todos os antigos freqüentadores do Seminário
de Kojève na École des Hautes Études.
Como
se origina essa Academia imaginária? O grupo de ideólogos de
1795 (herdeiros das Luzes: Cabanis, Destutt de Tracy, Garat,
Volney) está na origem da segunda classe do Institut de France,
posteriormente dissolvida por Bonaparte em 1803 e, enfim,
reconstituída em 1832 por Louis Philippe (o “Rei cidadão”)
como Academia de Ciências Morais e Políticas. São autores de
uma literatura sentimental destinada às classes populares para
convencê-las da boa vontade das elites. Pregavam a união
inevitável da felicidade com a moralidade, a recompensa dos
justos, além de outros postulados da mesma farinha. Contra
essas ilusões pacifistas, contra a crença no desarmamento
moral, foi criada a Academia de Kojève, por meio de decreto
assinado por Henri Queille. A este grande iniciado deve-se o
princípio maior que orienta esse grupo: “não
há problema que uma falta de solução não possa resolver”.
O
autor menciona que Jacques-Marie-Émile Lacan também fez,
discretamente como convém, parte desta Companhia. O uso de
Companhia no lugar de Academia faz ecoar a Companhia de Jesus e
refere-se, ironicamente, à crítica acerba aos jesuítas que se
travará ao longo dessas páginas. Lacan foi aluno de Kojève e
os efeitos do ensino desse mestre explicam a tese lacaniana de
que “o inconsciente é a
política”, cujo sentido, na seqüência dos eventos de
maio de 1968, produziu a seguinte fórmula: “Que
apenas a estrutura seja propícia à emergência do real, a
partir da Revolução, qualquer que tenha sido algum R maiúsculo
com que a Francesa a proveu” (p.23) A revolução mostrou
reduzir-se àquilo que ela foi para Bonaparte e Chateaubriand:
retorno do mestre, daquele que tem a arte de tornar as revoluções
úteis.
Sua
tese é a seguinte: Kojève era um sábio stalinista. No lugar
da denúncia, apostou no equilíbrio das potências. Essa tese
é inimiga da idéia de progresso que inspira o denuncismo próprio
aos católicos marxistas, e é inspirada na posição ativista
dos jesuítas. Durante todo o século dezenove, eles combateram
a modernidade, a liberdade de pensamento, os direitos do homem,
a democracia. Da França, foram banidos quatro vezes, mas
terminaram compreendendo a lição: a força da modernidade é
irresistível, razão pela qual, dado seu espírito decidido,
saltaram para o lado dela... ad
majorem Dei gloriam. Dispersados pelo mundo, são os maiores
combatentes pelos direitos do homem, pela democracia, pela
sociedade miscigenada, pelo pensamento híbrido, lutando com
fervor ao lado do povo contra os governantes que os oprimem. Em
torno de 1953, eles povoavam a EFP. Lacan, antigo alunos do
Stanislas, dos maristas, gozava do quase-monopólio sobre os
jesuítas na psicanálise. Ele era realmente um Imoral dessa
Academia invisível, sabia atraí-los, merecê-los. Não era
como seu genro, um aluno da Escola Pública, que promoveu a
exclusão dos jesuítas da École de La Cause!
Essa
Academia imaginária lhe serve, finalmente, de recurso literário
para assestar suas baterias contra a ingenuidade presunçosa,
inseparável do ardor religioso, que inspira as constantes revisões
e autocríticas praticadas pela esquerda. Esforço incontido no
sentido da depuração
do que o significante possa ter de crença. Tentação
iluminista, parente do desejo de esclarecimento que aspira uma
liberdade em gozar, livre do arbitrário, do infundado do
significante-mestre, do axioma, da causa. Sobre essa tentação,
Miller recupera um aforismo de Balzac, que permite fazer uma crítica
da ilusão do progresso própria à hipocrisia jesuíta: “O
jesuíta, o mais jesuíta dos jesuítas ainda é mil vezes menos
jesuíta do que a mulher menos jesuíta, imaginem
como as mulheres são jesuítas!” (p.33).
Acredito
que a tese maior deste escrito de Miller sobre a modernidade é
que ela conspira contra a poesia, contra
a personalidade excepcional do escritor, contra a
imoralidade do significante, isto é, contra o infundado do seu
poder oracular. Ela luta pela homeostase, pela democracia, pelo
nivelamento, pela eficiência burocrática, pela equivalência
problema-solução e pela avaliação de cada um segundo critérios
de produtividade. É a lei da segurança contra a aventura.
Contra essa mentalidade, o autor nos recorda que os
psicanalistas lacanianos apostam nos efeitos criadores da repetição.
Advoga a tese de que a psicanálise se estabeleceu sob o
fundamento de uma enunciação carismática. Ela resulta
de uma conspiração. O que se cristaliza em torno dela faz
barreira ao funcionamento social. Ela mesma é um sintoma como
real. Aliás, como se publicou na imprensa: “A democracia não transmite nada, nenhuma identidade, nenhuma tradição,
nenhuma transcendência, nenhum enraizamento” (p.119).
Falar
da democracia como lugar vazio é uma ficção reguladora que
tenta ordenar essa história. É designar o sujeito da
democracia moderna como sujeito barrado, vazio, sem qualidade,
pura variável lógica. Isto supõe uma extirpação dos dados
às determinações e às particularidades. Cada um é um. Cada
homem, uma voz. O democratismo prolonga o cristianismo. Dizer
que o sujeito é barrado, é deixar de lado o objeto a,
ou seja, tudo que tem relação com a particularidade do gozo. O
sujeito barrado e vazio não se conecta com o que se enoda,
palpita, como a.
Quanto mais a democracia é vazia, mais ela é um deserto de
gozo e, correlativamente, há condensação de gozo sob a forma
dos NIPPES, novas identidades e identificações particulares.
Logo, haverá mais segregação. Quanto mais o significante é
desafetado, mais ele se purifica e avança sob a forma pura do
direito, da democracia igualitária, da mundialização do
mercado, onde cada um conta como Um. O mundo conta como Um e
mais aumenta a paixão, a raiva, os integrismos, a destruição,
os massacres e as catástrofes inéditas. Quanto mais avança o
significante puro, mais o gozo se condensa. O significante vence
a Coisa.
A
memória, com efeito, não é mais o que ela era pois não tem
mais autoridade, não confere mais legitimidade e concorre muito
pouco para a formação das identidades. Foi superada pelas
inovações aceleradas e pela obsolescência programada. O
passado esvaziado da mais-valia não é mais um fator
determinante, a palavra mestra é o futuro. Um psicanalista pode
testemunhar que os Ideais cessaram de ser causa de desejo, que o
ganho de gozo – Lustgewinn
de Freud, objeto pequeno
a de Lacan - está no posto de comando, e que os modos de aceder a
isso se diversificam. A derrota da esquerda mostra que seu
eleitor virou um consumidor. O homem excepcional, o homem de
esquerda já não é mais uma reserva do sagrado na modernidade.
Miller
conclui que os Laboratórios de biotecnologia política, se
esforçam para bricolar um Homem-de-esquerda. Entretanto, em
tempo de hibridismo, é pura perda de tempo tentar recriar uma
categoria política fechada. Por essa razão, ele aposta que o
espaço social, hoje, estrutura-se segundo uma outra lógica. Os
híbridos crescerão, anuncia, e se multiplicarão em:
homossexuais autoritários, feministas católicas, judeus
belicistas, muçulmanos voltairianos, racistas libertários... A
esquerda tornou-se, ela também, um conjunto pas-tout.
Ela precisará reconciliar-se com essa sociedade pas-tout
e aprender a manejar com delicadeza os paradoxos da inconsistência
lógica. Finaliza essa seqüência de raciocínios, que longe
estamos de esgotar, afirmando que chegou a hora de dar uma
sepultura decente ao Homem-de-esquerda. Escutei muitos comentários
em Paris que se referiam a esse livro como uma pequena jóia.