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A
epidemiologia é o ramo da saúde pública que tem como propósito
descrever e explicar a dinâmica da saúde populacional e
identificar os elementos que a compõe a fim de intervir no curso
de seu desenvolvimento natural.
A
epidemiologia investiga a distribuição, freqüência e
determinantes das condições de saúde, não só das
enfermidades, senão de todos os acontecimentos relacionados
direta ou indiretamente com a saúde das populações humanas.
Também se ocupa das intervenções para a prevenção e o
controle das enfermidades além da avaliação das mesmas em
termos de eficácia, efetividade e eficiência.
Assim,
poderíamos dizer que a epidemiologia investiga, sob uma
perspectiva populacional:
A
distribuição, freqüência e determinantes da doença e suas
conseqüências tanto biológicas, como psicológicas e sociais; a
distribuição, freqüência e determinantes dos riscos para a saúde;
a prevenção e o controle das doenças, de seus riscos e de seus
efeitos, e a avaliação das intervenções (eficácia,
efetividade e eficiência).
A
descrição de pragas, pestes, etc., é quase tão antiga como a
escrita, e as medidas que se tomavam para contê-las também se
refletiram em muitos textos da Antiguidade. Ainda que a primeira
referência ao termo “epidemia” seja de Hipócrates, somente
na Idade Media se o utiliza para descrever a afetação de grandes
populações por uma doença infecciosa, e
foi apenas no Renascimento que se estabeleceu claramente o
conceito de doença contagiosa e suas formas de transmissão.
A
seguinte fase no desenvolvimento da epidemiologia foi a utilização
das matemáticas, e, concretamente, da incipiente estatística,
como sua ferramenta fundamental. Com a criação dos modernos
Estados começa-se a estabelecer registros de nascimento,
mortalidade e outras condições. Paralelamente aumenta o
conhecimento das doenças, sua clínica, etc., e as denominadas
“estatísticas sanitárias” começam a refletir entidades
nosológicas distintas que desembocam nas atuais “classificações
de doenças”.
A
observação de uma serie de acontecimentos ou fenômenos ao longo
do tempo, registradas nas “estatísticas sanitárias”,
permitiu a cientistas como Graunt ou Petty, sem conhecer nem
esclarecer demasiadamente a natureza das doenças, identificar
padrões de mortalidade, morbidade e natalidade, diferenciar entre
sexos, zonas rurais e urbanas, descrever variações sazonais em
algumas doenças, etc., e inclusive desenvolver predições sobre
a probabilidade de adoecer em determinada idade ou de falecer por
determinadas causas.
Durante
essa época se levaram a cabo muitos outros estudos basedos na
observação das ocorrências e sua quantificação, alcançando
seu apogeu graças aos numerosos trabalhos do francês Pierre
Charles Louis (1787-1872), quem mediante a utilização deste método
observacional quantitativo demostrou, dentre outras coisas, que a
tuberculose não se transmitia hereditariamente. Igualmente
demonstrou a necessidade de um grupo de referência ou comparação
na investigação dos determinantes de saúde, posto que até esse
momento se pensava que se poderia descobrir as causas da doença
analisando-se tão somente os sujeitos enfermos. Mas foi Adolphe
Quêtelet (1796-1874), quem, baseando-se nos trabalhos de Simeón
Poisson (1781-1840) e de Pierre Laplace (1749-1827) - que
estabeleceram valores medios de múltiplos fenômenos biológicos
e sociais - introduziu os conceitos de “média” e
“normalidade biológica”, o que supôs o posicionamento da
Epidemiologia, segundo os parâmetros do positivismo, como ciência,
enquanto aquela que “mede”.
Já
em pleno século XIX se destacam no terreno epidemiológico os
ingleses Snow e Farr. John Show (1813-1858)
estabeleceu a cadeia de transmissão do cólera e William
Farr (1807-1883), considerado o
pai da bioestatística, generalizou o uso das taxas de
mortalidade, estabeleceu os conceitos de população baixo risco,
as “pessoas-tempo”, o risco, a letalidade, a imunidade de
grupo, as relações entre a prevalência e a incidência, etc.,
assim como a importância do tamanho da amostra para a robustez
dos resultados e a validade das inferências.
Os
epidemiólogos do século XIX demonstraram, sem que se tivesse
identificado ainda os agentes patógenos causantes, a capacidade
de transmissão e contágio de doenças como o sarampo, o cólera
ou a febre tifóide, comparando a proporção de doentes expostos
a uma circunstância com a proporção de enfermos não expostos a
ela, (método vigente na atualidade). Com o desenvolvimento da
microbiologia e a teoria do germe (década 1870-1880), as ciências
da saúde adotaram o modelo unicausal, no qual um só efeito é
resultado de uma só causa, sendo utilizada a epidemiologia
exclusivamente no estudo das doenças infecciosas. O incremento da
incidência das doenças crônicas em meados do século XX e a
comprovação de que se poderiam estudar doenças não transmissíveis
utilizando-se o método epidemiológico, em especial doenças crônicas,
ampliou seu campo de atuação e favoreceu seu desenvolvimento
conceitual e metodológico, formulando-se na década de 70 do século
XX o “modelo multicausal” e as “redes de causalidade”
(Brian MacMahon).
Uma
premissa fundamental da epidemiologia é que a doença não ocorre
nem se distribui ao acaso, e suas investigações têm como propósito
identificar claramente as condições que podem ser qualificadas
como "causas" das doenças, distinguindo-as daqueles
outros fatores que se associam a elas unicamente ao acaso.
Atualmente se considera que os fatores que intervêm no processo
de adoecer são tantos e tão complexos, que é impossível
conhecer a todos completamente, logo a epidemiologia deve, pelo
menos, orientar-se para identificar aqueles fatores chave sobre os
quais é factível intervir para evitar a doença. A utilidade
deste posicionamento é evidente, mas com as seguintes limitações:
quando se intervêm sem conhecer completamente todo o processo de
adoecer, há uma margem para a geração de hipóteses sobre
fatores de risco pouco plausíveis, e finalmente, em algumas ocasiões
não se pode distinguir entre os determinantes individuais e
populacionais da doença.
A
epidemiologia também vem sendo utilizada como ferramenta no
planejamento dos serviços sanitários, mediante a identificação
dos problemas prioritários de saúde, e o desenho de programas de
intervenção, assim como na avaliação destas intervenções em
termos de efetividade, eficiência (custo-benefício) e qualidade.
Na atualidade a epidemiologia está desenvolvendo um papel
relevante, junto a outras disciplinas, na avaliação de
tecnologias (métodos diagnósticos, modelos organizativos de atenção
sanitária), genética, etc.
Tal
como me propuseram os organizadores desta mesa, aos quais reitero
meu agradecimento, tentei expor-lhes brevemente o desenvolvimento
da epidemiologia como disciplina e suas aplicações. Mas gostaria
de introduzir alguns elementos para o posterior debate, que
considero interessantes, tendo em conta o foro em que estamos.
Algo
que comentei de passagem e que neste aspecto é fundamental é que
os estudos epidemiológicos são de base populacional, portanto
suas conclusões e inferências só são aplicáveis em termos
populacionais, nunca individuais. E isto é um erro de interpretação
que se comete com demasiada freqüência.
Com
respeito a termos como “média” e sobretudo “normalidade”,
devo insistir em que
são conceitos estatísticos que em epidemiologia foram e são
habitualmente aplicados a fatos biológicos. Ou ainda, quando
determinadas características de um indivíduo, ou grupo de indivíduos,
se distanciam da média ou se situam nos extremos de uma distribuição
normal, isso não justifica uma culpabilização ou uma
estigmatização.
Outra
questão é que para a realização destes estudos se requer um
apreciável número de sujeitos, que tenham uma série de características:
determinados sintomas, sinais, níveis de pressão arterial, glóbulos
vermelhos, etc., ou diretamente diagnósticos. Para poder
trabalhar com tanta informação é imprescindível estabelecer
agrupamentos, escalas, níveis, e se falamos de doenças ou causas
de morte se utiliza em geral a Classificação Internacional de
Doenças Modificação Clínica (CID-MC) versões 9 ou 10, ainda
que determinadas especialidades médicas tenham desenvolvido
classificações “ad hoc” como é o caso do DSM em suas
diferentes versões.
À
título de exemplo me permitirei comentar que os
critérios essenciais para realizar um diagnóstico exato são a
etiologia, a localização e as manifestações fisiopatológicas.
Entretanto, na prática clínica nem sempre é possível (ou desejável)
ir além de um diagnóstico sindrômico e a adaptação a esta
realidade clínica resultou no desenvolvimento de classificações
diagnósticas não mutuamente excludentes, o que introduz
importantes possibilidades de variação na determinação diagnóstica.
A CID-9MC apesar de seus mais de 10.300 códigos, carece em muitos
casos de definições clínicas operativas (por exemplo, a
classificação organiza 37 códigos - de 4 e 5 dígitos- para
diferentes tipos de anemia, mas não especifica que nível de
hematócrito que justificaria o diagnóstico de anemia), o que
produz uma determinação de códigos altamente variável.
Se
isto ocorre quando, em muitas ocasiões, estão sendo utilizados
provas diagnósticas “objetivas” tais como a contagem do número
de glóbulos vermelhos, o que não pode acontecer quando se
determinam diagnósticos baseados nas respostas subjetivas de um
indivíduo a questionários, nem sempre validados, acerca de com
que freqüência se sente triste e em que medida. Existe um
“tristômetro”?. A partir disso o indivíduo pode receber um
diagnóstico, ser classificado, contribuir para estabelecer novas
“médias” e “normalidades”, e inclusive ser medicado, as
vezes por toda a vida. Não sei se isto é bom para o indivíduo,
mas seguramente o é para a industria farmacêutica. E o que
ocorre com as causas?
Como
conclusão, creio que a epidemiologia contribuiu muito
positivamente, e continua contribuindo, para aumentar o
conhecimento no campo das Ciências da Saúde, mas deve ser
utilizada adequadamente e seu método ser aplicado corretamente.
Muito obrigado por sua atenção.
Bibliografia
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