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(Versión en Español)       

A Psicanálise entre os Protocolos Sanitários e a Rebeldia dos Corpos

 



Marcia Aparecida Zucchi

Psicóloga e Psicanalista, Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise/RJ
Mestre em Saúde Pública/Fundação Fernandes Figueiras
Estagiária com bolsa-sandwich da Capes na Universidade de Barcelona
sob a co-orientação da Professora Dra. Hebe Tízio.
Doutoranda do programa de Pós-Graduação em Teoria psicanalítica/UFRJ
marciazucchi@hotmail.com

 

Resumo:

Gostaria de tratar aqui de algumas das relações entre psicanálise e saúde pública, mais especificamente, entre a psicanálise e os protocolos que emanam da atual epidemiologia, em especial a epidemiologia em saúde mental. Estes protocolos são em geral construídos e orientados baseando-se na busca de evidências, mas sobretudo em evidências estatísticas e não clínicas. O que quero destacar aqui é como o protocolo médico desorientou o analista fazendo com que ele perdesse a boa direção, isto é, a aposta no sintoma como modo de tratamento do real invasor.

 

 


The psychoanalysis between the sanitaries protocols and the corps rebelation

Abstract:

I would like to talk about some relations between psychoanalysis and Public Health. To be more specific, between psychoanalysis and the protocols that come from the current epidemiology, specially the epidemiology on mental health. These protocols are usually made and oriented with basis in search for evidence, not clinical evidence though. What I would like to point out here is how a medical protocol disoriented the analyst making him/her lose direction, that is, betting the symptom as a way of treating the real invasor.

 

 

Gostaria de tratar aqui de algumas relações entre psicanálise e epidemiologia, mais especificamente entre a psicanálise e os protocolos que emanam da atual epidemiologia em saúde mental. Tais protocolos são em geral construídos e orientados através da busca de evidências estatísticas e não clínicas[2]. Meu objetivo é refletir sobre a utilização no campo psicanalítico de conceitos ou concepções como as de vigiar e prevenir.

Começo pela origem desses dois campos de saber. Tanto a psicanálise quanto a epidemiologia são originárias do século XIX. A pesquisa de John Snow, em torno de 1850, sobre a relação entre a epidemia de cólera que ocorria em Londres e a contaminação pela água, é considerada como a origem das investigações epidemiológicas, pelo menos em sua acepção científica atual[3]. Em 1856, nasceu Freud. Transcorridos aproximadamente 30 anos, têm início seus estudos sobre a histeria. Sob certa perspectiva pode-se dizer que Snow e Freud foram contemporâneos. Suas investigações se unem na busca das causas. Estamos no período do florescimento da ciência e neste momento fazer ciência é estabelecer relações causais.

Castiel, em um interessante artigo denominado Freud e Mill, a Histeria e a Empiria[4], faz uma análise das produções freudianas acerca da causalidade da histeria, onde demonstra claramente a presença de uma racionalidade compatível com as postulações de Stuart Mill[5]. Freud inclusive havia traduzido para o alemão a obra desse filósofo, pai do positivismo científico. Não podendo proceder por experimentação, em seu sentido estrito, Freud se serve da “prova terapêutica” como modo de verificação de suas hipóteses. Assim, se os sintomas histéricos desapareciam com o trabalho analítico, então suas hipóteses acerca da causalidade sintomática eram acertadas[6]. Além disso, a forma com que Freud luta para fazer valer sua hipótese da sexualidade infantil traumática como fator etiológico das neuroses revela claramente seu perfeito conhecimento da racionalidade epidemiológica. Considera a multifatorialidade causal, considera a resistência individual como fator interveniente na aquisição de enfermidades, considera ainda a existência de causalidades necessárias e outras suficientes. Todas estas são categorias tipicamente epidemiológicas.

Mais adiante em sua obra, a questão da causalidade torna-se mais complexa. A mudança da teoria do trauma por sedução para a teoria do fantasma de sedução já começa a fazer da causa um fenômeno cada vez mais referido ao próprio aparato anímico. Mas a consideração causal segue vigente nas hipóteses freudianas, sempre. Com a introdução da pulsão de morte, algo bastante radical se produz. Esta última passa a ser a causa por excelência. O organismo vivo quer morrer mas, ao seu próprio modo. Vemos aí a lógica causal adquirindo novos contornos, isto é: a causa se encontra ao final do processo. Mas Freud não quis fazer da psicanálise uma ciência positiva. Uma ciência sim, mas positiva não. Seu método interpretativo o demonstra. As causas inconscientes não são necessariamente apreensíveis no plano do espaço geométrico ou no plano matemático. Mas são cognoscíveis, passíveis de traduzir-se em linguagem[7]. Com Lacan, as encontraremos como produtos mesmos da linguagem.

Mas a causalidade não é aqui o nosso tema. Trata-se de uma pontuação sobre o leito comum em que começam a caminhar ambas disciplinas. E há algo mais em começar esta reflexão falando sobre a “causa”, é também a constatação da mudança desta concepção na razão epidemiológica. Isto se pode notar na Introdução ao DSM IV. A ênfase na quantificação do traço substitui a concepção do sintoma como vinculado à subjetividade[8]. Em psicanálise, ao contrário, a causa se mantém como um dos pilares da concepção do sujeito e seus avatares. Falamos de subjetividade graças à relação do homem com seu desejo. A subjetividade é o efeito de um objeto (objeto a) que causa. Hoje, não só na medicina com seus protocolos, mas também na cultura contemporânea de modo geral, a causa saiu da cena, foi foracluída.

Jacques-Alain Miller[9], em seu curso do ano passado, utilizou outra referência para marcar o início do quantitativismo epidemiológico. Observa que é com Quêtelet que começa a era do “homem quantitativo” ou do “homem mediano”. Também no século XIX, este astrônomo belga passa a aplicar métodos e conceitos da astronomia às sociedades humanas. Miller faz ali uma interessante comparação entre os modos de investigação nos séculos XVIII e XIX. No século XVIII, o conhecimento que se produziu acerca das diferenças sociais tinha um caráter descritivo, comparativo e irônico. Um conhecimento que se apoiava na suposição prévia de grandes representações acerca do homem e sua natureza. Já no século XIX o conhecimento passa a se fazer por acumulação de dados. Face à observação de regularidades nos fatos sociais, se lhes estendeu os procedimentos de análise aplicados mais freqüentemente aos processos físicos. O espírito irônico foi então substituído pela razão científica.

Miller nos recorda no entanto que as chamadas ciências sociais não foram quantitativas desde sempre. Fala-nos de duas tendências. Uma que parte do Outro consistente das instituições e representações coletivas, com seus efeitos sobre os indivíduos e sobre as populações, a de Durkheim, por exemplo. Outra que, partindo da inconsistência do Outro, crê que as instituições e representações sociais são o resultado da soma das ações individuais. Nesta concepção a regularidade é a média e a estatística o instrumento.

Quase[10] toda a epidemiologia contemporânea está baseada nesta concepção. A causalidade contingente se reduziu à distribuição na curva de Gauss. Não existem mais causas. Só fatores de risco. E quando se supõe que o risco está definido, cabe vigiar e prevenir.

Vigiar e prevenir são conceitos que desvelam o homem só, desprovido de suas grandes referências identitárias. Estas o protegiam por marcar claramente o campo onde as singularidades se inscreviam ou não. Já a política da “média” é a política do homem com laços fluidos. Como indica Bauman, a frenética busca por especialistas da orientação (dentre os quais nos encontramos, os psicanalistas, pelo menos ao nível da demanda), nunca foi tão grande quanto na modernidade líquida. Entretanto, o que os especialistas de nossa fluida era moderna fazem é responsabilizar os já confusos e perplexos clientes[11]. Vigiar e prevenir são modos de regulação de gozo exteriores ao sujeito mesmo. Quando muito geram uma culpa vazia de responsabilidade. Uma culpa por ceder ao mandato superegóico que, como esclarece Freud em “Mal Estar na Civilização”[12], não muda a economia de gozo, ao contrário, a empurra mais em direção ao gozo mortificante. O que seria vigiar e prevenir em psicanálise?

Antes cabe recordar que este sintagma está em conexão com o Vigiar e Punir, título da obra de Foucault[13], que investiga as complexas relações de poder entre as diversas formas disciplinarias da sociedade, os sujeitos e seus corpos. É necessário recordar também que a estrutura do hospital, tal como a conhecemos hoje, tem suas origens no hospital do século XVIII que inscreveu o cuidado em um aparato que tem como modelo a instituição militar, onde profissionais e enfermos podiam ser melhor vigiados e controlados. Nesta mesma perspectiva se inscrevem os exames, onde se verifica que as múltiplas tecnologias de investigação têm sua face de controle já que “as técnicas que permitem ver induzem efeitos de poder” [14]. Assim, não é possível falar-se em busca de evidências, ou tecnologias preventivas, sem analisar os jogos de poder subjacentes a estes procedimentos.

Voltando ao campo da psicanálise. Na obra de Freud o vemos muitas vezes abordar o tema da prevenção. Mas, praticamente em todas elas, para demonstrar o impossível desta tarefa. Em “Três Ensaios sobre a sexualidade” subintitula um capítulo como “prevenção da inversão”. Afirma ali que a prevenção efetiva é a “atração recíproca dos caracteres sexuais opostos”[15], mas que de fato não a pode explicar. Agrega em seguida outros possíveis fatores causais da inversão sexual: a inibição promovida pela cultura, os avatares do Édipo e outras situações como morte ou separação dos pais. O que se observa, no entanto, é que se trata de um rol descritivo de possíveis causas, sem qualquer indicação no que se refere à possibilidade de prevenção. Não há ali qualquer indicação de uma prática preventiva.

Em outro artigo, “Neurose e Psicose”, no qual retoma suas reformulações do aparato psíquico, recém apresentadas em “O Ego e o Id”, utiliza o termo “prevenção da psicose” para formular o contexto de suas investigações. Na conclusão deste artigo se verifica, novamente, a impossibilidade de uma prevenção no sentido pragmático do termo. “É indubitável que o desenlace de tais situações [diferentes quadros clínicos] dependerá de constelações econômicas, das magnitudes relativas das aspirações em luta”, e acrescenta ainda que dependerá da plasticidade do eu para deformar-se[16]. Como se pode observar, na perspectiva econômica freudiana, a dimensão pulsional e seus avatares, é incalculável, portanto imprevisível, só verificável a posteriori.

O ceticismo freudiano quanto à possibilidade de prevenção do sofrimento humano pela vitória de Eros sobre Tanatos, no plano social, fica evidente em seu artigo “O Mal Estar na Civilização”[17]. No plano da cura individual, sua desconfiança quanto às práticas preventivas aparece explicitamente no capítulo IV de “Análise Terminável e Interminável”[18], onde analisa em detalhes a impossibilidade de prevenção de um conflito pulsional, uma vez que a intervenção psicanalítica depende do sujeito em presença, em ato, no presente da relação com o analista, ficando assim excluída a possibilidade de qualquer intervenção que vise o futuro.

O tema da prevenção, tal como aparece em Freud, não o encontramos em Lacan. Talvez este tema não se coloque pelo fato das vias que elege para manter a psicanálise no campo da ciência. A antropologia, o estruturalismo lingüístico, a topologia, são métodos de apreensão e descrição do sujeito. A clínica que daí se deduz é a clínica dos efeitos de sujeito. Isto não se previne, mas se constata e se verifica.

Apresentarei um fragmento clínico onde se pode observar que o desvio do curso da análise em direção às indicações protocolares médicas contribuiu para a interrupção do trabalho analítico. Nosso objetivo é mostrar como os instrumentos de avaliação, sustentados no discurso médico, não são aplicáveis à prática clínica da psicanálise, senão que podem ser prejudiciais a ela e ao sujeito. As estatísticas, as tabelas, questionários, são todos formas de tomar o sintoma como o particular de um universal e não como um singular.

Há sintomas que põem em risco a vida. A clínica do vazio[19], clínica que tenta responder aos novos sintomas, se encontra hoje muito freqüentemente com este risco. Os assim chamados “novos sintomas” (anorexias, bulimias, toxicomanias, ataques de pânico, depressão e alcoolismo) são novos, não por sua fenomenologia, senão por seu caráter epidêmico. São sintomas, não porque sejam metafóricos, portadores de sentido, senão porque são eles os que demandam intervenções clínicas hoje. Quanto a estes sintomas não podemos remetê-los ao sentido oculto que adquire o retorno do recalcado, mas a defeitos na constituição narcísica do sujeito, que geram práticas de gozo que parecem desconectadas do laço com o Outro. São práticas de gozo eminentemente autistas. Práticas que excluem o inconsciente. A angustia é o afeto predominante nesta clínica. Não há vínculo entre vazio, falta e desejo. Ao contrário, o objeto, produto a ser extraído da relação entre o sujeito e o Outro, fica estancado no corpo de forma narcísica[20]. Neste sentido, a clínica dos novos sintomas é eminentemente uma clínica do corpo.

 

Um caso clínico

Uma jovem de 14 anos demanda à analista que lhe ajude a voltar a comer tranqüila. Relata haver perdido muito peso em uma dieta iniciada 6 meses antes, dieta da qual havia “perdido o controle”. Havia iniciado a dieta quando pesava 52 Kg. Queria perder apenas 2 Kg. Já havia perdido 12. Media aproximadamente 1.75m e estava pesando 40 Kg. Entretanto sua aparência, ainda que muito magra, não era a de uma enferma. Parecia mais uma manequim.

Sua demanda surge muito claramente na primeira sessão: livrar-se da angústia e dos pensamentos obsessivos que envolviam o ato de comer desde que havia iniciado esta dieta. Queria voltar a sentir-se bem, voltar a ter o corpo que tinha, corpo que, reconhecia agora, não havia sido percebido corretamente.

Quando a analista lhe pergunta se está segura de que quer aumentar seu peso, responde que não. Sabe que isso é necessário, mas tem dúvidas se quer.

Houve dez encontros com esta jovem. O trabalho foi interrompido em favor de outro que incluía uma rede terapêutica formada por um endocrinologista, um psiconeurologista, uma terapeuta condutista, e uma nutricionista. A finalidade desse novo trabalho era um rápido ganho de peso.

O fator desencadeante do quadro anoréxico fora a quebra dos laços com suas colegas de colégio. Estas se haviam vinculado a novos grupos em função de seus interesses pelos rapazes. Lourdes não podia relacionar-se de maneira confortável com nenhum desses novos grupos e, ao mesmo tempo, sentia que perdia suas amigas. Esta situação tinha uma forte semelhança com episódios de sua historia infantil. A presença da irmã menor, portadora de uma deficiência cardíaca grave, havia reorientado os laços familiares ficando Lourdes “isolada”, “fechada”, “separada da família”. Com a enfermidade ocorre uma sensível melhora em suas relações domésticas. Débil, Lourdes havia logrado inserir-se em seu grupo familiar.

Poderia apresentar alguns aspectos que foram elucidados durante este curto trabalho. Por exemplo, sua dificuldade frente ao olhar masculino. Ou ainda, outros aspectos que não foram tocados, mas meu objetivo aqui é destacar o efeito que produziu o contato com os protocolos médicos, na condução da cura.

Prossigamos com o fragmento clínico. Na terceira sessão, Lourdes pergunta se deveria procurar uma nutricionista. A analista lhe devolve sua pergunta e fica evidenciado seu temor em consultar tal profissional pelo medo de ver-se ainda mais pressionada frente ao ato de comer. Decide esperar um pouco mais, uma vez que sente que com o trabalho de análise está se acalmando. Sua mãe, porém, se encontra muito angustiada por que seu peso não subiu. A angústia da mãe gera culpa em Lourdes.

A mãe expressa sua intenção de buscar um médico para avaliar o estado de saúde de sua filha. A analista dá duas indicações de endocrinologistas de sua confiança e, simultaneamente, busca informações sobre os chamados “transtornos alimentares” na literatura médica.

Neste momento a analista se encontra com os universais: “índice de massa corporal menor que 18,5”; “menos de 75% do peso normal com amenorréia, necessidade de internação”; “risco de morte por falência de órgãos vitais”, etc... Lourdes cumpria vários destes requisitos amplamente. A analista passa a temer pela segurança física de Lourdes, mas o trabalho analítico segue.

Passadas três semanas a mãe busca um médico já que Lourdes, ainda que não houvesse perdido mais peso desde que iniciara sua análise, não o havia ganhado também. O médico é indicado por uma amiga: um especialista em transtornos da nutrição. Decide então mudar o tratamento. O que ocorreu?

No momento em que a analista bascula de sua posição em direção aos protocolos médicos, o “peso”, que até então, não era o objeto central da cura, ganha agora a cena. O peso é o elemento nuclear da definição do transtorno anoréxico como se pode verificar no DSM IV. Este não era o sintoma de Lourdes. O foco de suas produções discursivas não era o “peso”, mas sim seu corpo, que surgia em diversas cadeias associativas. Seu desejo era de poder “incorporar-se” sem ser avassalada pela angústia. Incorporar-se à família, aos grupos sociais, ao seu corpo feminino. Incorporar-se mantendo o vazio apaziguador entre o sujeito e o Outro, que até aquele momento, por razões que não ficaram claras, só podia ser conseguido pelo esvaziamento de seu corpo.

Há vários pontos que se poderia discutir. Por exemplo, se a preocupação do analista com o estado físico da analisante lhe teria precipitado em uma posição “psicoterapêutica” e com isso validado o trabalho médico em detrimento da análise. Creio que nestes casos o analista deve encarregar-se, de um modo bastante decidido, dos outros tratamentos que possam ser necessários. Não basta fazer a indicação. Este não me parece, entretanto, o ponto central. O que quero destacar é como o protocolo médico, nesse caso, desorientou a analista. A dúvida quanto à necessidade de um aumento imediato do peso de Lourdes, fez com que a analista perdesse a boa direção, isto é, a aposta no sintoma como modo de tratamento do real invasor.

Retomando o tema da epidemiologia em saúde mental, parece importante destacar a impropriedade de uma prática que reduz o mental ao funcionamento cerebral, ou a condutas e comportamentos. Tal reducionismo não parece compatível com a complexidade do suceder humano, afetado que é pela linguagem, esta característica tão peculiar que distingue o homem dos demais seres vivos. Nesse sentido, os protocolos de intervenção que emanam desta epidemiologia – como o DSM IV, por exemplo - se encontram muito distantes da prática psicanalítica. Toda universalização que promovem vai de encontro à singularização que uma análise evidencia. Não há uma anorexia, uma depressão, ou seja lá qual sintoma for, que seja igual a outro. E mais, não há saída que não pelo próprio sintoma, vez que se trata do modo que o sujeito tem de tratar o impossível da relação sexual. A consideração estrita a estes protocolos leva o trabalho clínico ao pólo oposto da cura analítica. Eliminar o sintoma ao invés de saber fazer com ele.

Não digo que tais protocolos não sejam a se considerar. Ao contrário, quem sabe seja necessário conhecê-los melhor, mas para que manejemos adequadamente nossos pontos de distinção. Frente às pressões cada vez mais intensas em direção a uma prática clínica avaliável pelo êxito, parece necessário que o analista esteja bem esclarecido quanto ao valor clínico, epistêmico e político do discurso dominante no campo da saúde.

Nesse sentido é muito importante o trabalho que vem desenvolvendo a Associação Mundial de Psicanálise através da Agência Lacaniana de Imprensa, onde se acompanha uma extensa análise das produções do discurso hegemônico em saúde e educação, com seu caráter avaliador generalizado. Nessas análises se verifica a estratégia bélica de apagar a subjetividade, o psiquismo e conseqüentemente a própria psicanálise, do panorama social. As práticas clínicas tendem hoje a serem práticas onde os protocolos e a tecnologia estão permanentemente interpostos à relação médico-paciente em nome de um pseudo conhecimento científico.

Durante o Encuentro Internacional del Campo Freudiano, em Buenos Aires (2000), Miller afirmou que o único antídoto que o psicanalista tem em suas mãos para enfrentar a expansão das psicoterapias de massa é a formação do analista.[21] Esta formação passa hoje, sem dúvida, por uma análise aguda do papel político da psicanálise no panorama científico e social.

Talvez o que se possa vigiar e prevenir em psicanálise esteja do lado do analista. Vigiar o desejo do analista e prevenir-se através do desejo do analista.

Como indicou Miller em Comandatuba (2004)[22], a prática lacaniana tem como princípio que a distingue de outras práticas psicoterapêuticas o fato de contar com a falha, com o erro, com o impossível. Saber deles pode inclusive proteger-nos da pressão dos discursos que preconizam que só é válido o que “funciona”.



1 Trabalho realizado no estágio de doutorado realizado sob orientação local da Professora Doutora Hebe Tizio (Espanha), com apoio da CAPES (Brasil).

2 Os ensaios clínicos dos quais se extraem as evidências são, na sua grande maioria, ensaios sobre a clínica de medicamentos e não se referem à clínica da relação médico-paciente.

3 ROUQUAYROL, M.Z. “Epidemiologia, Historia Natural e Prevenção de Doenças”. Disponível em: www.psiquiatriageral.com.br/epidemiologia - acesso em 20/02/2005.

4 CASTIEL, L.D. (1996) Metáforas, moléstias e moléculas. O senso dos humores. São Paulo: Ed. Unimarcos, p. 65-80.

5 Resumo dos Postulados de S. Mill:

concordância – se dois ou mais casos têm apenas uma circunstância em comum, esta é sua causa ou seu efeito;

diferença - dadas duas situações de investigação onde todos os fenômenos variam de modo igual menos um que se vincula a uma delas, este é sua causa ou seu efeito ou participa deles;

variação concomitante - tem relação causal um evento que varia igualmente com outro;

resíduos - a retirada de variáveis causais já conhecidas deixa um resíduo que certamente é devido a outras causas.

6 CASTIEL, id., ibid., p. 68.

7 LEBOVITS, A. “Ce que la philosophie autorise à la science en quelques mots”. In: Agencia lacaniana de prensa n.62 de 01/04/2005. Disponível em: http://www.forumpsy.org/Resource/ALP3_62.html. Acesso em 13/02/2005.

8 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (D.S.M. IV). Porto Alegre: Artes Médicas.1995.

9 MILLER, J.-A. Seminário 2003-2004, 6ª aula. Inédito.

10 Digo “quase” já que existe uma epidemiologia qualitativa que de nenhum modo é a hegemônica.(Sobre o tema da epidemiologia qualitativa conferir MINAYO, M.C. S., (1992) O Desafio do Conhecimento. Pesquisa Qualitativa em Saúde. São Paulo: Hucitec-Abrasco).

11 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 77.

12 FREUD, S. (1931/1974) “O Mal-Estar na cultura”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, p. 81-171.

13 FOUCAULT, M. (1977) Vigilar y castigar: Nacimiento de la prisión. México: Siglo Veintiuno Editores, 1987.

14 Idem, ibidem, p. 175.

15 FREUD, S. (1905/1972) “Três Ensaios sobre a Sexualidade”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v. VII, p. 129-250.

16 FREUD, S. (1923/1972) “Neurose e Psicose”. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v. XIX, p. 189-193.

17 “A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’, o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?” (FREUD, 1931/1974, p. 170-171).

18 FREUD, S. (1937/1975) “Análise terminável e interminável” In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v. XXIII, p. 247-287.

19 RECALCATI, M. (2003) Clínica del Vacío. Anorexias, Dependências, Psicoses. Madrid: Editorial Sínteses p. 10-15.

20 Id.,ibid., p. 13.

21 MILLER, J.-A. apud SANTIAGO, A.L. “O que a psicanálise aplicada ao tratamento da angústia em crianças ensina à psicanálise pura”. Boletim da XI Jornada da EBP-MG, n. 6, 2005.

22 MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. In: Opção Lacaniana n. 42, São Paulo: Eolia, fevereiro, 2005. p. 7-18.