Introdução
Como
é sabido e compartilhado pelos praticantes da psicanálise, a
transferência constitui um fator imprescindível da experiência
psicanalítica. Estritamente falando, não há psicanálise sem a
instalação da transferência.
Caracterizada
inicialmente por Freud como o maior obstáculo ao tratamento, logo
se revelou para ele como sua mola mais poderosa.
Por
sua vez, Lacan fez dela um dos conceitos fundamentais da psicanálise
sublinhando assim seu caráter de condição ineludível: "Ao
começo da psicanálise está a transferência",
afirmou sem rodeios.
Mas
também, enquanto nó paradoxal e opaco, a transferência é fonte
de numerosas "tentações" para o psicanalista.
Ora,
antes de qualquer coisa: O que quer dizer a palavra “tentação”?
Indaguemos ao Sujeito suposto Saber de nossa língua, isto é, ao
dicionário.
Em
primeiro lugar ela pode ser definida como a instigação que induz
a fazer algo mal ou o impulso repentino que excita a fazer alguma
coisa. "Sugestão", "fascinação", "sedução",
são alguns de seus sinônimos.
No
entanto, o mais interessante surge de seu sentido religioso. Por
exemplo, na Bíblia, a tentação é considerada como uma prova
de fé do crente. Seu
causador pode ser o próprio Deus, mas também Satanás ou “o
mundo”. Segundo
Lutero, não há fé que não tenha sua tentação, pois na cruz
de Cristo, junto à fé, está também a tentação. Daí a famosa
frase "cair em tentação", quer dizer, deixar-se vencer
por ela.
Ademais,
há duas referências bíblicas sumamente esclarecedoras quanto ao
que nos ocupa. A primeira, no Gênesis (22, 1), no contexto do
sacrifício de Isaac, onde se diz: “...Deus tentou Abraão”.
A outra, em São Marcos (1,13), onde a referência é ao diabo:
“Estive ali (Jesus) no deserto quarenta dias, e era tentado
por Satanás...”.
Quer
dizer, em ambos os casos, quer se trate de Deus ou do diabo, o que
emerge no momento da tentação é uma figura de gozo do Outro.
Seja a cara obscura de Deus exigindo a Abraão o sacrifício de
seu filho, seja Satanás - desdobramento da figura divina
carregada de gozo libidinal e maldade -, o que se perfila em ambos
os casos é um ponto de gozo que indica uma inconsistência não
Outro do saber.
Por
tanto, no momento da tentação o que se eclipsa é a figura de
Deus pai todo amor e toda bondade. Em termos de Lacan, se eclipsa
a figura do Sujeito suposto Saber.
Podemos
conceber então as “tentações do analista” como diversas
respostas falhas diante deste ponto paradoxal a cada vez que sua
“crença no inconsciente” é posta à prova, a cada vez que o
analista está diante do risco de esquecer que esse fenômeno
epistêmico e libidinal – no qual consiste a transferência - é
um resultado da palavra, um efeito do significante.
O
termo “tentação” - reiterado em várias oportunidades por
Freud em seus trabalhos sobre técnica - permite então localizar
o ponto onde o analista será solicitado a abandonar a posição
que convém na direção da cura.
Trata-se
de momentos que podem levar ao não cumprimento do que ele mesmo
chamou – sem retroceder diante da conotação religiosa do termo
- o “mandamento” do princípio de abstinência, e que Lacan nomeou como desejo
do psicanalista. Quer
dizer, um desejo mais potente que o desejo de governar, de educar,
de amar ou fazer-se amar.
E
quais podem ser essas tentações? Isto é o que nós nos propomos
a explorar na presente comunicação.
As
“vinte tentações do analista”
Revisando
os textos freudianos reunidos sob o título “Trabalhos sobre técnica
psicanalítica”
podem isolar-se mais de… vinte tentações! Mais de vinte tentações
diante das quais - de maneira explícita ou implícita - ou Freud
alerta aos psicanalistas ou elas bem podem ser deduzidas de suas
indicações.
Primeira
tentação: “não achar nunca mais do que já se sabe”.
Imediatamente
após anunciar o preceito da “atenção livremente flutuante”
e fazer uma menção crítica relativa a fixar-se em um fragmento
com peculiar relevo, Freud indica com clareza que nesse caso se
“corre o risco de nunca descobrir nada além do que já se
sabe”.
Podemos
dizer que é um equivalente do “não compreender”, do
imperativo lacaniano que anima a escutar todos os significantes
como si estivessem separados do significado compartilhado e
referencial. Porque o que introduz a regra fundamental da associação
livre – da qual o preceito da atenção livremente flutuante é
a contrapartida- é precisamente uma perda do referente e do
significado compartilhado.
O
fundamento do que Freud formula aqui, tem uma lógica muito precisa. Se o analista escolhe o material segundo
suas expectativas, se identifica ao Sujeito suposto Saber que
saberia de antemão o que é o importante ou o significativo no
discurso do analisante. No entanto, o de que se trata é de dar a
essa formação de semblante - o Sujeito suposto Saber - o lugar
que convém como condição para que o analisante obtenha o que
podemos chamar “seu” saber.
Há
uma frase notável onde resume tudo isto: “Não se deve esquecer
– disse Freud - que na maioria das vezes se tem que escutar
coisas cujo significado só se discernirá posteriormente (nachträglich)”.
Digo que é notável porque parece que Freud tomará aqui o
algoritmo de Saussure - modificado por Lacan – ao pé da letra,
e indicará que não só há arbitrariedade no signo, senão que há
uma separação radical entre significante e significado.
Segunda
tentação: “especular ou meditar [sobre os casos] enquanto estão
em análise”.
Trata-se
de uma exortação de Freud a “deixar-se surpreender”. “O êxito
–afirma- é mais bem assegurado quando se procede como ao acaso,
deixando-se surpreender por suas viradas, abordando-os a cada vez
com ingenuidade e sem premissas (...) e em evitar especulações
ou meditações [sobre o caso] enquanto em análise...”.
Deduz-se
então que Freud tem uma relação ao inconsciente que não é de
domínio, o que se liga ao que vínhamos dizendo. Porque precisamente o Sujeito suposto Saber é a ilusão de que haveria um
sujeito capaz de dominar todos os significantes que existissem no
inconsciente concebido como um conjunto harmônico ou fechado.
Portanto,
podemos dizer que a relação de Freud com o inconsciente não é
de domínio, senão de equívoco, de méprise,
tal como o chama Lacan.
Isto implica estar advertido de que há uma hiância no saber e
que o analista não deve jamais acreditar que ele, com seu saber
adquirido, pode apagar essa hiância. É por isso que
Jacques-Alain Miller propõe traduzir o termo francês méprise
por aquilo que “escapa ao esforço de captura” já que, em
francês,
prise significa
“captura” ou “domínio”.
Terceira
tentação: “analisar a partir dos afetos e da compaixão”.
Esta
“tentação” se deduz da conhecida indicação freudiana de
comparar a posição do analista com a do cirurgião. “Tomem por
modelo o cirurgião –afirma - que deixa de lado todos os seus
afetos e mesmo sua compaixão humana...”.
Esta
indicação nos situa em cheio no que poderíamos chamar – a
partir de Lacan - o impiedoso do desejo do analista.
A
figura da frieza do cirurgião referida por Freud
é, neste sentido,
absolutamente congruente com a função desejo do analista, que
aponta para a obtenção da divisão do sujeito e para a queda de
suas identificações fundamentais.
É
isto o que se escreve no discurso do analista do seguinte modo:
a
à $
S2
// S1
O
analista como objeto a, sustentado no saber suposto (o S2
no lugar da verdade) e induzindo a divisão subjetiva no
analisante a fim de obter, produzir, os significantes mestre, os
S1, localizados embaixo à direita.
Trata-se,
desde outra perspectiva, da “inumanidade” da Coisa que o
analista encarna ao responder ao analisante com seu ato e com um
“continue falando”, distante da compaixão piedosa que se joga
no eixo imaginário de “eu” a “eu”.
Agora
bem, poderíamos localizar aqui outra tentação sob a modalidade
de contrapartida à “tentação da compaixão” ou “da
piedade”. Poderíamos chamá-la a “tentação sádica do
analista”.
Neste
sentido, podemos dizer que a posição do analista é
“sadeana”, mas não sádica. Por que? Porque, de certo modo, a
posição do analista – segundo vimos se escreve no discurso
analítico - tem uma equivalência estrutural com a posição
perversa. Então, dizer que a psicanálise é uma prática
“sadeana” e não sádica, implica sublinhar essa afinidade
discursiva e estabelecer uma diferença crucial. Deduz-se disso
que o analista não deve gozar nessa posição ao instalar a divisão
subjetiva no outro. Por isso Lacan não fala do “gozo do
analista”, mas do “desejo do analista”. Quer dizer, o desejo
de obter, de ajudar o analisante a produzir seus significantes
primordiais, que são os traços de sua máxima diferença como
sujeito.
Mesmo
assim, Lacan não deixa de alertar acerca da importância de
“dosar a angústia”. Porque dividir o sujeito é angustiá-lo.
Sempre há uma dimensão da análise que angustia, há sempre algo
de uma ligeira angústia em jogo quando o outro - que neste caso
é o analista - não consente com a imagem que o analisante lhe
oferece para ser amado e faz emergir a figura do desejo enigmático
do Outro.
Por
outro lado, a indicação freudiana também nos orienta em direção
ao que veremos a seguir e que me atreveria a chamar uma das
grandes tentações surgidas no movimento analítico, a de que o
analista opere a partir de seus afetos contratransferenciais, quer
dizer, a partir de sua própria divisão de sujeito. Voltarei mais
adiante sobre este ponto seguramente polêmico.
Quarta
tentação: “a
ambição de convencer”.
Esta
“tentação” está explicitamente indicada por Freud no
contexto anterior já que a localiza como uma atitude afetiva do
analista. “Há – diz - uma tendência afetiva perigosíssima:
a ambição de obter, com seu novo e tão resoluto instrumento, um
alcance convincente para os demais”.
Poderíamos ler aqui já uma advertência a não inverter a
demanda – querer convencer leva inevitavelmente a isso - e também
a estar precavido dos riscos da sugestão. Porém, para quem esta
atitude é perigosa? Para o analista e para o tratamento. Freud
diz isso claramente: desse modo - querendo convencer - o analista
“se expõe indefeso a certas resistências do paciente”.
Como
entendo isto? De alguma maneira Freud antecipa aqui o que logo
denunciará como “tentação pedagógica” já que nestas
“resistências do paciente” podemos ler a objeção que o
sujeito fará ao analista quando este quiser subsumir tudo no
saber, quando pretender fazer passar tudo ao campo do saber. Isso
é próprio, logo o veremos, do discurso universitário. Porém
também é compatível com os efeitos que a sugestão pode
produzir quando o sujeito, se rebela, resiste a ser sugestionado.
Freud não duvidava em manifestar sua indignação diante de
Bernheim, o hipnotizador, que costumava reprovar o paciente por
sua resistência em ser sugestionado.
Desde esta perspectiva, a “tentação a convencer” poderia
também ser lida como uma “tentação a sugestionar”.
Quinta
tentação: “operar com o próprio inconsciente”.
Neste
caso não se trata de uma advertência freudiana mas de uma
“tentação” na qual por momentos – se posso dizê-lo assim
– o próprio Freud tende a cair. Efetivamente, nestas páginas
introduz a conhecida fórmula segundo a qual o analista “...deve
voltar em direção ao inconsciente emissor do enfermo seu próprio
inconsciente como órgão receptor, acomodar-se ao analisado
como o auricular do telefone se acomoda al microfone”.
Mesmo
que a alegoria com a qual conclui a citação – o inconsciente
do analista como um tipo de receptor vazio - possa atenuar a idéia
de que deveria escutar a partir de suas próprias representações
inconscientes, penso que esta indicação freudiana constitui um
forte ponto de apoio para os defensores de um certo uso da associação
livre contratransferencial.
Para
dizê-lo com toda clareza: não é essa a posição de Lacan.
Para ele, o analista não deve estar aberto a suas próprias
associações e sonhos contratransferenciais enquanto analisa,
isso seria localizar-se em posição de sujeito... do
inconsciente. E, mesmo que num momento de seu ensino tenha
proposto a posição socrática
como
“paradigma” da posição do analista, finalmente não duvidou
em afirmar de maneira taxativa que há um só sujeito no
tratamento: o sujeito desprendido do analisante.
Sexta
tentação: “projetar sobre a ciência uma percepção de si
mesmo”.
Neste
caso se trata de uma “tentação” que poderíamos chamar
“epistemológica”, já que perturba a capacidade de invenção
e investigação do analista. O interessante é que Freud o
menciona como um risco certo nos casos em que o praticante não
experimentou em si mesmo a exploração analítica. “Com
facilidade – diz - cairá na tentação de projetar sobre
a ciência, como uma teoria de validade universal, o que em uma
surda percepção de si mesmo percebe sobre as propriedades de sua
própria pessoa...”.
De
certo modo, esta “tentação” é equivalente à primeira, a de
encontrar o que já sabemos. No entanto, o que aqui se vê além
disso é como, para a investigação e para a invenção, também
resulta necessária uma relação diferente com a hiância no
saber, coisa que só se pode chegar a alcançar mediante a própria
análise do analista.
Sétima
tentação: “da
reciprocidade ou simetria”.
A
indicação de Freud neste ponto é inequívoca, lapidária e irônica.
“É por certo tentador – reitera o termo- para o
psicanalista jovem e entusiasta por em jogo muito de sua própria
individualidade (...). Acreditar-se-ia admissível, e até
adequado para superar as resistências subsistentes no enfermo,
que o médico lhe deixe ver seus próprios defeitos e conflitos anímicos,
lhe possibilite colocar-se em um pé de igualdade mediante
algumas comunicações sobre sua vida feitas em confidência. Uma
confidência vale por outra, e quem pede intimidade de alguém tem
que testemunhar com a sua”.
Mais
adiante, em seguida à objeção dessa “técnica afetiva” e de
remeter seu influxo à sugestão, não duvida em concluir que a
dita técnica “...fracassa como regra geral diante da avidez
despertada no enfermo, que gostaria de inverter a relação porque
acha a análise do médico mais interessante que a sua própria”.
Se
com esta advertência Freud por um lado se antecipa à modificação
técnica que Ferenczi logo haveria de propor sob o nome de “análise
mútua”, por outro, indiretamente “adverte” algo que no meu
entender guarda toda sua atualidade: uma “tentação” fundada
em uma lógica implacável. É o que ocorre quando o analista
responde com sua própria falta de sujeito ao que percebe como
impostura inerente à ficção do Sujeito suposto Saber.
Por
exemplo, refiro-me às elaborações surgidas em certo sector da
psicanálise norte-americana da IPA, quer dizer, ao que hoje em
dia se conhece com o nome de “intersubjetivismo californiano”.
Um de seus principais expoentes é Owen Renik, psicanalista de
Califórnia, que – no meu entender - coloca uma concepção da
cura próxima à da “análise mútua”, de Ferenczi. Voltarei
mais adiante sobre este ponto.
Disse
antes que esta “tentação” se funda em uma lógica implacável.
Qual é? Que há uma tendência, no analista, a deslizar para a
posição de sujeito e apagar assim a dimensão essencialmente
“assimétrica” da transferência. Assim Freud a caracteriza.
Por sua parte, Lacan aprofunda esta perspectiva e fala – em seu
Seminário A transferência- não somente da
“assimetria” senão de sua radical “disparidade”.
Oitava
tentação: “a
tentação pedagógica”.
“Outra
tentação – diz Freud - surge da atividade pedagógica...”.
Esta
tentação sobre a qual ele advertiu tantas vezes, é o que Lacan
remeteu mais tarde ao discurso universitário, que se escreve
assim:
S2
à
a
S1
// $
O
analista, que deste modo ambiciona “educar” o paciente, se
localiza acima e à esquerda confundindo sua posição com o saber
(não é saber tudo mas encarnar um “todo saber”). Porém se
vislumbra que está suportado pelo mestre, o S1 que está no lugar
da verdade (embaixo à esquerda), e que dá a verdade desse
discurso. Por isso Lacan fala do “princípio autoritário dos
educadores de sempre”.
O suposto acerca do que funda esta tentação é o analista como
um Outro consistente que se propõe a educar a pulsão – é o
que indica o objeto a, como mais-de-gozo - que,
nesta lógica, é o lugar onde o analisante vai ficar situado.
Esta “tentação” também formou parte do que Lacan concebeu
como um dos maiores desvios da psicanálise pós-freudiana e que
foi conhecida com o nome de reeducação emocional do paciente.
Nona
tentação: “a tentação terapêutica”.
É
notável a prudência de Freud com relação ao respeito. “Como
médico – assinala - é preciso ser sobretudo tolerante com as
debilidades do enfermo, dar-se por contente se [ele] (...)
recuperou um pouco da capacidade de produzir e de gozar. A ambição
pedagógica é tão inadequada como a terapêutica”.
Vemos
assim como esta tentação, ou furor sanandis, corresponde
também ao discurso universitário: empenhar-se excessivamente na
sublimação das pulsões segundo um suposto modo de normalidade.
O interessante é que Freud disse ali, de passagem, que finalmente
não é conveniente que tudo possa ser sublimado, que há um resto
de satisfação pulsional - de gozo - que é preciso respeitar.
Décima
tentação: “buscar
a colaboração intelectual do analisado”.
Consiste
em querer convencer o paciente mediante a leitura de textos
psicanalíticos.
Para
Freud só se deve apostar e empenhar o paciente na aplicação da
regra fundamental.
De certo modo, se subsume na “quarta tentação”, a tentação
de querer convencer.
Décima
primeira tentação:
“convencer os parentes”
“Quero
advertir com a maior insistência – disse Freud - que não se
deve buscar a aquiescência ou o apoio de pais e parentes
dando-lhes alguma obra de nossa bibliografia para que a leiam”.
É uma variação da anterior e também se subsume na “quarta
tentação”.
Décima
segunda tentação: a de “ser eternamente amado(a) pelo
paciente”.
Penso
que se pode deduzir da seguinte afirmação de Freud: “Em meus
primeiros anos de atividade psicanalítica minha maior dificuldade
era persuadir os enfermos a perseverar; esta dificuldade foi
substituída há muito tempo: agora tenho que me empenhar,
angustiadamente, para que a deixem”.
É
a tentação que propicia a infinitização das análises com o
gozo que isso implica. Quer dizer, o dispositivo transformado em
um modo mútuo de gozar.
No
entanto, quando chamo isto de “tentação de ser eternamente
amado ou amada” é à
posição do analista que especialmente me refiro.
Poderíamos
localizá-la, por exemplo, nas mulheres analistas quando se fazem
de Damas do amor cortês.
Como obviamente está proibido o contacto físico, a analista pode
deslizar-se em direção ao lugar da grande Dama a quem o
enamorado, o analisante, dirige continuamente suas cartas de amor.
De certo modo, a análise tem algo disso: o analisante se dirige a
um objeto impossível e nisso, com suas associações, com suas
formações do inconsciente postas em transferência, escreve –
a seu modo – “cartas de amor”. O problema surge se o
analista fica identificado, se acredita efetivamente ser a Dama do
amor cortês, que não é senão uma forma de identificação
imaginária, uma identificação que dificilmente permite que o
analista se torne resíduo da operação analítica.
E
o que seria equivalente nos analistas homens? A tentação de ser
o falo maravilhoso e eternamente amado por sua mãe. Como o falo
imaginário é também um objeto – ainda que não um objeto
resto -, isso propicia uma certa relação entre a posição do
analista como objeto e o falo. Porém, ficar na posição de falo
do analisante e ser eternamente amado por ele seria algo assim
como tornar-se o filho falo que viria a completar a divisão
subjetiva do analisante “mãe”. Disso se deduz que é
fundamental - para quem decida praticar a psicanálise - perturbar
a posição de crer-se o falo ou a Dama e poder converter-se assim
no resíduo da operação analítica.
No
entanto, desta tentação, que pode levar à eternização das análises,
também poderíamos deduzir uma tentação inversa...
Décima
terceira tentação: “precipitar a abreviação da cura”.
Pode
corresponder ao analista que tende a autodestituir-se precipitadamente
do investimento do Sujeito suposto Saber.
É
algo que deve manifestar-se no início da prática quando se torna
mais problemático para o analista suportar o fazer semblante de
saber. Porque o analista faz semblante de saber. O que não deve
ocorrer é que se identifique a ele, quer dizer, que esqueça que
se trata somente de um semblante e “caia na tentação” de
recobrir com saber esse ponto opaco e paradoxal donde deverá
produzir-se o despontar da vertente pulsional da transferência.
Dito de outro modo, o ponto onde – más além da vertente epistêmica
do Sujeito suposto Saber - a transferência haverá de
manifestar-se como “colocação em ato da realidade sexual do
inconsciente”.
Podemos
então entender a tentação à autodestituicão de fazer
semblante de saber, como a contrapartida da enfatuação
que consiste – precisamente - em identificar-se al Sujeito
suposto Saber. Podemos entendê-la como uma conseqüência de
perceber – como assinalei antes - que nesta dimensão
transferencial há algo de uma “impostura”. Porque, como vou
saber da singularidade deste sujeito se por minha posição como
analista estou reduzido a um significante qualquer que não pode
saber nada dos significantes particulares do inconsciente do
analisante?
É
uma tentação que tem afinidade com o sujeito histérico que
percebe o que há de semblante na atribuição de saber que o
analisante efetua. Neste sentido, há um parentesco com a corrente
“intersubjetivista” antes mencionada e com as ferozes críticas
de Ferenczi ao que ele chamava “a superioridade infundada do
psicanalista”.
Décima
quarta tentação: “fazer-se de filantropo desinteressado”.
Depreende-se
da indicação de Freud sobre a cobrança de honorários pelo
analista. “Em minha opinião – diz - é mais digno e está
sujeito a menos reparos éticos reconhecer suas próprias pretensões
e necessidades reais, e não, (...) fazer o papel de filantropo
desinteressado...”.
Parece-me
que – mais além das múltiplas considerações que poderiam
fazer-se com relação ao tema do dinheiro e os tratamentos
gratuitos nas instituições - podemos conjeturar no que se
sustenta esta posição de “filantropo desinteressado”: na
identificação a uma suposta mãe ou pai bondoso desprovido de
desejo e de gozo, e que fundamentalmente teria o que falta ao
outro. Trata-se, no fundo, de sustentar a figura de um Outro
consistente que não necessita nada. Porque o filantropo é o que
“tem”; portanto, o que está em posição de falta –
“necessitado de amor”, como disse Freud, “castrado”, como
disse Lacan - é o analisante quem, enquanto sujeito barrado ($),
precisamente, “não tem”.
Décima
quinta tentação: “abandonar-se aos pensamentos
inconscientes”.
É
a diferença que já situamos entre Freud e Lacan. “Enquanto
escuto –afirma Freud-, eu mesmo me abandono à sucessão de meus
pensamentos inconscientes...”.
Como
dissemos, a propósito da “quinta tentação”, esta atitude
leva o analista a uma posição de sujeito. É a classicamente
chamada “associação livre contratransferencial”. O que
acontece é que Freud tem aqui a idéia de que há uma comunicação
de inconsciente a inconsciente, mas contando com um inconsciente
“purificado” do lado do analista. Enquanto que desde a
perspectiva de Lacan se trataria - mais além do inconsciente - de
um analista que já elaborou e está advertido do gozo em jogo em
seu próprio fantasma.
Porém
em Freud, não obstante, existe esta idéia de uma comunicação
de inconsciente a inconsciente, que é o que abonou a teoria da
contratransferência. Mas não a teoria da comunicação
contratransferencial que sustenta que se sinto algo, se
experimento um afeto, é devido ao paciente e então posso
comunicar isso a ele; não só a teoria pela qual me abandono ao
decurso de meus próprios pensamentos, como o que vai me ocorrer
terá a ver com o analisante e a partir daí poderei interpretar.
Lacan
proscreve isto. Para Lacan isso é o analista como sujeito e não
o que conduz à cura. Se o analista está como sujeito se trata de
um lapso do ato analítico.
Por isso, em seus Seminários sobre “A lógica do fantasma” e
sobre “O ato analítico”, Lacan afirma que o analista está
– no ato analítico - em posição de “eu não penso”, de
“eu não penso os pensamentos inconscientes”, o qual o leva a
estabelecer uma oposição entre inconsciente e ato analítico.
Décima
sexta tentação:
“a tentação exibicionista-voyeurista”.
É
a que se deduz das considerações de Freud sobre o uso do divã.
Poderíamos pensar aqui como pode perturbar a indicação, por
parte do analista, do uso do divã quando “a pulsão de ver (o
voyeurismo) desempenha um papel significativo em sua neurose”.
Décima
sétima tentação: a tentação de “responder à demanda do
analisante acerca de sobre o que tem que falar”.
Refere-se
à aplicação da regra fundamental. Freud é inflexível neste
ponto. “Não se deve ceder – diz-, nem na primeira vez nem nas
ulteriores, ao rogo [do paciente] de que se lhe indique aquilo
sobre o qual deve falar”.
O
que está em jogo nesta forte indicação freudiana é como gerar
as condições para a instalação do Sujeito suposto Saber –
“diga o que disser isso terá sentido” - e não ceder à tentação
de crer que se pode saber de antemão o que é significativo no
discurso do analisante. Por isso se vincula com a “primeira
tentação”.
Décima
oitava tentação: a tentação de “atirar o saber na cara”.
É
preciso “condenar o procedimento – disse Freud - que quer
comunicar ao paciente as traduções de seus sintomas tão
prontamente como elas foram recolhidas, ou ainda veria um triunfo
particular em lançar-lhe na cara essas “soluções” na
primeira entrevista”.
Mostra-se
novamente aqui a tentação da identificação do analista com o
saber, quer dizer, o risco do deslizamento para o discurso
universitário.
É
muito interessante que neste contexto Freud comente um exemplo clínico
no qual “... a enferma exteriorizava uma violentíssima resistência
a um saber que lhe era imposto”.Mostra muito bem como, a resistência
do sujeito responde ao poder do saber no discurso universitário,
que é o que esse discurso escreve embaixo à direita como
produto.
S2
à
a
S1
// $
Décima
nona tentação: a tentação “contratransferencial”.
Freud
percebeu com clareza a dificuldade técnica que o manejo da
transferência supõe, neste sentido sua posição crítica com
respeito à contratransferência foi inamovível. Não é senão a
transferência recíproca do analista sobre seu paciente. Trata-se
sempre de que o médico esteja prevenido “... de uma
contratransferência acaso presente nele. Tem que discernir que o
enamoramento da paciente lhe foi imposto pela situação analítica
e não pode ser atribuído, digamos, às excelências de sua
pessoa...”.
Neste
contexto, também qualifica de “técnica disparatada” a de
certos médicos que exortam seus pacientes a enamorar-se deles
para favorecer a aparição da transferência amorosa.
O
que ocorre é que a preocupação de Freud se funda em que o
enamoramento erótico transferencial implica – enquanto uma das
“paixões do ser”, como disse Lacan - um rechaço ao saber.
“É bem sabido – conclui -: contra as paixões alguns sublimes
discursos valem pouco”.
E é precisamente desta afirmação que podemos deduzir a vigésima
tentação.
Vigésima
tentação: obrigar à “sufocação da transferência”.
Para
Freud semelhante atitude repousa na moral universal do mestre.
Para
ele a resposta analítica é outra. “Instigar a paciente, tão
prontamente como ela confessou sua transferência de amor, a
sufocar o pulsional, à renúncia e à sublimação, não seria
para mim um trabalho analítico, mas um trabalho sem sentido.
Seria o mesmo que fazer subir um espírito do mundo subterrâneo,
com engenhosos encantamentos, para enviá-lo de volta para baixo
sem lhe perguntar nada. Teríamos chamado o reprimido à consciência
somente para reprimi-lo de novo, preso de terror”.
No
entanto, Freud tampouco aceita uma resposta intermediária que é
o que nos daria uma nova tentação...
Vigésima
primeira tentação:
“afirmar corresponder os sentimentos evitando os afazeres
corporais”.
Logo
depois de criticar este procedimento que “põe em jogo a
autoridade” do analista e que está cheio de perigos já que
“nós não nos governamos tão bem que de pronto não possamos
chegar a ir mais longe do que nos havíamos proposto”,
Freud introduz a resposta que, sim, é analítica: enuncia o princípio
de abstinência. E a seguir esclarece que não se refere
somente à privação corporal ou a tudo o que pode apetecer ao
paciente já que isto seria impraticável. Ao que se refere e
eleva à dignidade de um princípio da prática é o fato de que
“deve-se deixar subsistir no enfermo a necessidade e o anseio
como forças pulsionais do trabalho e da mudança, e guardar-se de
apaziguá-las mediante substitutos”.
Quer
dizer, que é preciso sempre manter um estado de insatisfação
evitando trazer satisfações substitutivas. Qual é o fundamento
desta indicação? Que o objeto, o que teria sido o objeto
adequado, está perdido desde sempre ou, melhor dizendo, que nunca
houve esse bom objeto complemento do sujeito. Portanto, tudo o que
existe são substituições. Dizendo de outro modo, sempre há
“falsas conexões”.
E
de que se trata então? De que o sujeito por meio da análise
possa chegar a saber que tipo de substituições fundamentais ele
escolheu para remediar essa carência constitutiva. Para isso é
necessário este estado de privação no tratamento.
Sob
meu ponto de vista, deste modo Freud introduz um tipo de impossível,
de colocação em ato da não relação sexual, da não
correspondência amorosa sexual, e é por isso que podemos dizer
que o princípio de abstinência é o antecedente freudiano
do “desejo do analista” em Lacan.
Por
que digo isso? Porque ao ser um desejo mais forte que o desejo de
amar ou ser amado, de governar ou de educar, o desejo do analista
precisamente é o que objeta as satisfações substitutivas. Por
isso entendo que Freud seja tão lapidário com respeito à
contratransferência quando neste contexto afirma que “...não
é lícito desmentir a indiferença
que se adquiriu mediante o refreamento da contratransferência”.
O
que de algum modo se desliza como pano de fundo é a questão da
neutralidade analítica. Neutralidade que pode confundir-se com a
identificação do analista com o Pai morto e que Lacan irá
questionar quando falar, por exemplo, da “vacilação calculada
da neutralidade” como uma manobra possível e eficaz com a
histeria.
Não
obstante, não se deve esquecer que Lacan disse “calculada”,
quer dizer, sugere uma manobra que não constitui nenhum conselho
técnico e que deve inscrever-se sobre o fundo do princípio de
abstinência que segue sendo um princípio de nossa prática. Quer
dizer, se trata de uma manobra táctica subordinada a uma política
do tratamento que se espera que esteja orientada pelo desejo do
analista.
Do
dito anteriormente se deduz claramente a...
Vigésima
segunda tentação: “a correspondência amorosa”.
“Se
seu cortejo de amor – disse Freud - fosse correspondido, seria
um grande triunfo para a paciente e uma total derrota para a
cura”,
já que
“...a relação de amor põe termo à possibilidade de
influenciar mediante o tratamento analítico; uma combinação de
ambos é uma quimera”. E finalmente conclui: “É preciso tomar
cuidado para não se afastar da transferência amorosa, afugentá-la
ou torná-la desagradável para a paciente; e com igual firmeza abster-se
de corresponder a ela. (...)
Quanto
mais o analista mostre que está a salvo de toda tentação, mais
extrairá da situação sua substância analítica”.
Em
termos lacanianos, quando analisa o Banquete de Platão,
podemos traduzir estes parágrafos dizendo que cair na tentação
da correspondência amorosa seria aceitar que se produza a metáfora
do amor. Quer dizer, que o eromenós, o amado, se torne erastés,
o amante. O que Lacan resgata da posição de Sócrates para
pensar a posição do analista é que Sócrates rechaça produzir
essa metáfora diante do cortejo ao qual Alcebíades o submete,
rechaça corresponder-lhe amorosamente já que ele sabe que há
uma disparidade fundamental no amor.
Poderíamos
aqui localizar uma última tentação que não é senão uma
variedade da anterior e que eu proporia que se chamasse assim…
Vigésima
terceira tentação: “cair nas redes do agalma
histérico”.
Deduz-se
de uma sutil indicação de Freud quando diz que “Não são os
grosseiros apetites sexuais da paciente que criam a tentação;
eles provocam muito mais certo rechaço... São quiçá as moções
de desejo mais finas da mulher, e de meta inibida, as que
acarretam o perigo de fazer esquecer a técnica e a missão médica
em troca de uma bela vivência”.
De
alguma maneira Freud adverte assim da armadilha histérica: fazer
com o vazio, com seu vazio de sujeito, um objeto precioso, seu agalma.
Isto de algum modo se liga à dificuldade que representa para a
entrada no dispositivo analítico: conseguir que a histérica ceda
esse objeto precioso que deve conservar com uma fineza e uma
tenacidade muitas vezes assombrosa.
Refutação
da intersubjetividade
Como
antecipamos existe a tentação de velar o ponto de
inconsistência do Outro que a transferência revela, cobrindo-o
com a própria falta do analista como sujeito.
Isto
tem um nome na historia da psicanálise, o uso da
contratransferência, e uma data precisa de aparição: os
anos cinqüenta, a partir dos desenvolvimentos de Paula Heymann e
Heinrich Racker. Seus antecedentes foram as teorizações de Sándor
Ferenczi, especialmente sua proposta da “análise mútua”, à
qual Freud se opôs firmemente. Freud jamais se afastou de
conceber a contratransferência ou, melhor, a “transferência
recíproca”, como índice de uma vacilação da posição do
analista. Tampouco duvidou em relação a reconduzir o analista à
supervisão ou à sua própria análise para resolver seus pontos
cegos.
É
amplamente sabido que abordou o tema em seu discurso inaugural no
Segundo Congresso Internacional de Psicanálise, em 30 de março
de 1910, onde fez uma resenha geral da situação da psicanálise
naqueles tempos. Sua alocução, conhecida mais tarde com o título
de "As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica",
descrevia - com otimismo - três fontes desde onde poderia chegar
um incremento das possibilidades terapêuticas da psicanálise.
Entre as ditas fontes situava o "progresso interno"
devido a "inovações no campo da técnica" e dedicava
uma especial atenção ao que então chamou a “contratransferência".
Sua
posição a respeito era inequívoca: "Fomos levados a
prestar atenção à ‘contratransferência’ que se instala no
médico pela influência que o paciente exerce sobre seu sentir
inconsciente, e não estamos distantes de exigir-lhe
que a distinga dentro de si e a domine. Desde que um número
maior de pessoas exerce a psicanálise e intercambia suas experiências,
notamos que cada
psicanalista somente chega até onde o permitem seus próprios
complexos e resistências interiores, e por isso exigimos que
inicie sua atividade com uma auto-análise e a aprofunde de
maneira ininterrupta à
medida que faz suas experiências com os enfermos. Quem não
conseguir nada com essa auto-análise – conclui - pode
considerar que carece da aptidão para analisar enfermos".
Ora,
como já antecipei, a reivindicação da subjetividade do analista
para orientar a cura, presente na promoção do uso da
contratransferência, é algo atualmente revalorizado pela chamada
corrente “intersubjetiva”.
Mas
por que, desde nossa perspectiva, isto comporta uma “tentação”?
Porque implica rebaixar a disparidade subjetiva da estrutura
transferencial (que é quadripartita) a uma dualidade de indivíduos,
fazendo da contratransferência a bússola da cura.
É
precisamente isto o que fez com que Lacan finalmente se opusesse
à noção de intersubjetividade: a decisão de não escamotear a
dimensão do desejo do Outro - como índice do real - na experiência
analítica.
Assim,
este esforço por sustentar a dimensão do desejo do Outro é o
que o levou a indagar (desde uma perspectiva diferente da de
Ferenczi ou Margaret Little) os limites da neutralidade analítica,
pero também a objetar a noção de “intersubjetividade” por
ele mesmo promovida durante os primeiros anos de seu ensino.
Efetivamente,
as primeiras intervenções de Lacan questionaram não só as
doutrinas da Egopsychology que
imperavam na época senão também as agrupadas sob a fórmula
da “relação de objeto” que tendiam a elaborar uma concepção
da experiência analítica como “relação inter-humana”.
Para
ele, estas vias conduziam a becos sem saída ao reduzir a experiência
a uma dualidade, a uma interação imaginária entre analisando e
analista.
Como
é sabido, a operação de Lacan consistiu primeiro – via
retorno aos fundamentos freudianos da experiência – em
privilegiar o lugar terceiro do simbólico como condição do
advento de uma verdadeira experiência “intersubjetiva” mais
além do eixo imaginário do eu e de seus objetos.
Nesse
momento, a lógica de sua argumentação o levava a situar a
transferência e a contratransferência como obstáculos inerentes
ao estancamento da dialética da cura na inércia do eixo imaginário.
Nenhuma virtude instrumental podia então ser deduzida dela. Ainda
mais, a contratransferência ficava localizada deste modo em oposição
à intersubjetividade simbólica, eixo da ação analítica.
Não
obstante, nos seminários daquela época e nos escritos
correspondentes, pode-se situar já certa dificuldade no uso do
termo “intersubjetividade”. Pode-se ler com clareza como se
via obrigado a diferenciar uma “intersubjetividade verdadeira”
(simbólica) de uma “intersubjetividade puramente dual”
(imaginária) à qual a reduziam os partidários da “relação
de objeto”.
Esta
ambigüidade se resolve quando Lacan começa a desenvolver uma
caracterização do Outro como lugar não só da palavra mas do
significante, e a afinar a concepção do sujeito como um puro
efeito - como pura variável - da articulação significante. A
delimitação clara com respeito a toda idéia “vivencial” de
subjetividade introduz assim um questionamento profundo da noção
mesma de intersubjetividade.
Finalmente,
ao incluir a dimensão de alteridade radical que implica o desejo
do Outro na dialética do desejo e na estruturação subjetiva,
Lacan não duvidou em autoquestionar-se e refutar o uso da noção
de “intersubjetividade” para pensar a transferência e seus
fenômenos.
Como
já o antecipei, ele disse isso claramente no início de seu Seminário
sobre a Transferência. Fala ali da “disparidade
subjetiva”, termo com o qual destaca que a transferência “vai
más além da simples noção de dissimetria entre os sujeitos”.
Questiona assim “a idéia de que a intersubjetividade possa
proporcionar por si só o marco onde se inscreve o fenômeno”.
Mais
adiante, em 1967, na “Proposição de 9 de outubro...” –
reconhecendo que ele mesmo havia promovido o uso de esse termo –
reitera, agora de maneira decidida, que “... a transferência
por si sola é uma objeção à intersubjetividade”. Más ainda,
“... refuta-a, é seu escolho”.
O
que Lacan quer dizer com isto? Que a transferência não pode ser
concebida como suportada no reconhecimento mútuo entre dois
sujeitos senão que implica uma estrutura mais complexa
(cuadripartita) onde há pelo menos dois significantes, um só
sujeito (o sujeito efeito do significante desprendido do
analisante) e um objeto (o resto libidinal não reabsorvido pelo
significante), causa do desejo. Deste modo, o único sujeito na
experiência analítica será o analisante, enquanto que o
analista ocupará o lugar desse objeto agalmático do desejo e sua
missão será operar na transferência de maneira que seja
revelado ao analisante seu laço original com o desejo do Outro e
a pulsão. Aqui se torna decisiva a função “desejo do
psicanalista” que constitui a resposta de Lacan à noção de
contratransferência. Este se esclarece se considerarmos que o
desejo do analista se opõe às identificações que servem de
fundamento a toda concepção de contratransferência ou empatia.
Assim,
a função “desejo do analista” é o que abre uma via que
objeta todo tipo de identificação do analista com as imagos ou
significantes do analisante e torna possível que o analista
encarne a enigmática presença do objeto a em
sua heterogeneidade mais radical.
Portanto,
uma vez situada a disparidade subjetiva que funda a transferência,
donde a posição dos dois sujeitos presentes não é de nenhum
modo equivalente, pode-se afirmar que para a orientação
lacaniana não só não há um uso possível da contratransferência
senão que a verdadeira questão a ser colocada é a da participação
do analista na própria transferência.
Resumindo,
se bem cedo Lacan objetou a idéia do uso da contratransferência
referindo-a ao eixo imaginário, mais tarde, a consideração do
lugar do desejo do Outro na experiência transferencial, da pulsão
e seu laço com o real, o conduziu a refutar a noção de
intersubjetividade. Pode-se inclusive afirmar que os conceitos de
pulsão e gozo são em si mesmos uma objeção à dita noção.
Deste
modo, contratransferência e intersubjetividade se revelam muito
mais obstáculos que meios para a posição de um analista que se
queira orientado pelo real.Ié o que alguns recentes desenvolvimentos na psicanálise
norteamericana parecem indicar.
A
tentação de evaporar o real
Em
um texto relativamente recente, Robert Michels, psicanalista da American
Psychoanalytical Association, traça um panorama atual da
psicanálise nos EUA.
Ali
caracteriza a época como marcada por uma tomada de consciência
cada vez maior dos limites da neutralidade, do perigo que pode ser
para as relações um rigor excessivo da abstinência e do
anonimato do analista. Também sublinha que isto conduziu a
uma evolução do método analítico que se bem contempla, como
sempre, o estudo da vida mental do analisante, põe agora o acento
nas “relações” favorecendo um estudo do analista e das relações
analíticas. Fala-se assim do “papel ativo do analista”, da
“co-construção da transferência” e do “valor clínico do
fenômeno de contratransferência”.
Na
mesma publicação, outros autores norte-americanos parecem
confirmar este diagnóstico.
Em
um texto intitulado “Trabalhar nas fronteiras do sonho”,
Thomas Ogden, psicanalista da Califórnia, desenvolve uma concepção
do processo analítico baseada na idéia de que além do analista
e do analisante, há um “sujeito terceiro da análise” que
chama “o terceiro analítico intersubjetivo ou
simplesmente o terceiro analítico”. Afirma: “O sujeito
terceiro (intersubjetivo) da análise se situa em uma tensão dialética
com o analista e o analisante enquanto indivíduos separados tendo
suas subjetividades próprias. Analista e analisante participam
cada um na construção intersubjetiva inconsciente (o terceiro
analítico) mas de maneira assimétrica”.
Ora,
esta concepção – que seguramente, ainda que não seja citada,
deve muito às primeiras formulações de Lacan – desemboca em
três indicações de alcance técnico: 1) que tanto o analisante
como o analista devem deixar-se levar pela deriva de suas ideações
(“sonhos”); 2) que o terceiro analítico emerge pelo sesgo de
uma compreensão e interpretação precisas e empáticas da
transferência/contratransferência; 3) que a identificação
projetiva é um mecanismo central na construção do terceiro analítico
intersubjetivo.
Por
sua parte, Owen Renik, também californiano, retoma considerações
realizadas com anterioridade. Em seu texto “Finalidades clínicas
e terreno comum em psicanálise” reitera sua proposta de centrar
o objetivo da análise em função do benefício terapêutico tal
como o paciente o vive e para isso estabelece desde o início do
tratamento uma relação analítica sob o modo da “colaboração”.
Uma indicação técnica central surge do exame crítico do que
chama o “anonimato clínico” do analista, quer dizer, sua
neutralidade: trata-se do valor do “autodesvelamento” (self-discosure)
do analista.
É
em um texto anterior, de 1995, onde Renik explicita o fundamento
deste “auto-desvelamento”.
Para Renik, a neutralidade analítica não só é impossível senão
que tende a gerar no paciente uma idealização do analista “anônimo”.
Exercendo uma forte crítica das que chama “correntes dominantes
da Egopsychology”, recomenda então uma atitude mais
“humana” de parte do analista e advoga pela introdução da
“subjetividade do analista” desde o inicio do tratamento.
“Esse
semblante de anonimato – diz - é um manto com o qual o analista
se reviste enquanto é descrito como um observador objetivo e
autorizado, capaz de ir mais além de sua subjetividade na situação
do tratamento. Sua convicção de ser capaz de objetividade (...)
constitui uma potente auto-idealização à qual o paciente é
convidado”.
Efetivamente,
Renik objeta a enfatuação do analista quando este se identifica
al Sujeito suposto Saber – fórmula explicitamente citada no
texto –, mas longe de seguir Lacan na lógica que levaria à
destituição subjetiva, desliza imaginariamente em direção ao
que chama uma “ética sincera”.
É
em relação com esta suposta ética que o “autodesvelamento”
do analista tem um lugar central. Em que consiste? Em que o
analista deve ser explícito, o mais claro possível, deve evitar
todo tipo de ambigüidade e deve cuidar para não suscitar enigmas
no paciente já que isso o consolida no lugar de uma esfinge.
Numa palavra, deve lutar contra toda idealização sua por
parte do paciente.
Esta
orientação que, como assinala Éric Laurent, concorda com o espírito
da época (é democrática, conversacional e pragmática),
determina uma situação que Renik define como “simetria
epistemológica completa” onde “o analista e o analisante são
igualmente subjetivos, e ambos responsáveis do autodesvelamento
completo de seus pensamentos”.
Não
resulta estranho então, que o autor deva antecipar-se ao fantasma
de Ferenczi esclarecendo que “simetria não é identidade” e
que os pensamentos do analista e do analisante estão diversamente
organizados já que cumprem funções diferentes no tratamento: o
autodesvelamento para o paciente resulta de um esforço de livre
associação enquanto que no analista é deliberadamente seletivo.
Contudo,
logo não duvida em afirmar que “... a experiência da análise
mútua de Ferenczi, freqüentemente criticada (...), terminou mal
não porque o autodesvelamento de Ferenczi fosse excessivo (sic),
mas porque estava orientado em direção a uma finalidade errônea.
Ele tratou de fazer a análise simultânea de dois indivíduos em
um só tratamento – um esforço demasiado ambicioso destinado ao
fracasso”.
O
que é que se produz mediante esta promoção da
intersubjetividade analítica concebida sobre a base de uma
sincera “colaboração e negociação (sic)
recíproca entre pares?”
É o que se deduz do
percurso que fizemos e que Jacques-Alain Miller formula
simplesmente assim: um “neolacanismo” imaginarizado que aponta
para barrar o Outro mas que ao fazer do analista um sujeito do
inconsciente não só vela senão que realiza uma sistemática
“ablação” do desejo do Outro. Trata-se da redução da
psicanálise à prática de uma ficção intersubjetiva sem
real
.
Em
uma época como a que vivemos, onde tudo parece tornar-se negociável
e onde “todo o sólido se desvanece no ar”,
não é surpreendente que no seio da psicanálise surjam rebentos
de acordo com o discurso capitalista. E digo discurso capitalista
no sentido estrito do termo, tal como Lacan propôs em uma
oportunidade - em 1972 - sua escritura.
Porém o que convém reter é que esse discurso opera um rechaço
do real analítico, desse real traumático constitutivo da espécie
humana, desse vazio estrutural que indicamos dizendo “não há
relação (proporção) sexual”, quer dizer, um rechaço do
ponto de impossibilidade na estrutura.
No
me parece então aventurado sustentar que se pode demonstrar uma
mesma lógica discursiva operando em diversas manifestações,
tanto dentro como fora do âmbito psicanalítico. Mencionaré
-a modo de ejemplo- al menos cuatro propuestas que pueden
reconducirse a dicha lógica.
Por
exemplo, podemos localizar entre elas a ocasionalmente chamada
“terapia do esquecimento”. Refiro-me a uma notícia publicada
no ano passado com o título “Querem criar uma pílula para
apagar as lembranças dolorosas”. Ali, depois de mencionar que
um filme havia tratado do tema recentemente – “Eterno brilho
de uma mente sem lembranças” - se informa que nos EUA e na
Francia se iniciaram uma série de investigações com voluntários
com a finalidade de modificar ou apagar as lembranças de situações
traumáticas mediante a administração de uma droga, o
propranolol. Este tratamento tem como nome “esquecimento terapêutico”,
e é exatamente o reverso da operação freudiana que aponta
recordar para poder “esquecer”. Se bem que pareça remota e débil
a eficácia e a implementação deste projeto, o que me interessa
destacar é a operação que está em jogo. Trata-se de uma
tentativa de apagar as marcas do real e eliminar,
portanto, as respostas subjetivas que emergem diante do
encontro com esse real. Dito de outro modo, há uma lógica que
aponta a eliminação do campo próprio da intervenção analítica,
já que um dos nomes do real em Freud é, precisamente, o trauma
(o encontro com o que não tem nome) e ali é fundamental calibrar
a resposta subjetiva ao dito encontro. Dito com mais precisão, o
próprio sujeito que se constitui como resposta do real, é o âmbito
ético da intervenção analítica e, por sua vez, o fundamento da
transferência.
Em
segundo lugar, poderíamos localizar nesta serie a ocasional agitação
nos meios de comunicação do fantasma do abuso de transferência
e a promoção de uma relação mais igualitária, menos assimétrica,
entre paciente e analista. Dizendo de outro modo, defender os
direitos de consumidor do paciente – supostamente vulnerável -
mediante uma vigilância médico-jurídica.
Em
terceiro lugar, a promoção de um ideal de “transparência” -
do qual daria conta o “contrato explícito” ao inicio do
tratamento - que anima a proposta “igualitária” do
intersubjetivismo californiano.
Por
último, as diversas propostas das Terapias
Cognitivo-Comportamentais, que explicitamente advogam por evitar e
impedir o desenvolvimento da transferência.
Inumanidade
do real que se situa não no “pré-verbal”, no “não
verbal” ou no “extra verbal”, senão numa relação de
impossibilidade no interior
do sistema significante que determina o sujeito, ao qual jamais
nenhuma “vivência de encontro ou sentimentos compartilhados”,
poderia dar-lhe acesso.
Entendo
então que as atuais propostas da “psicanálise
intersubjetiva”, que são uma imitação tardia do autêntico
gesto inaugural de Ferenczi, assim como as terapias
cognitivo-comportamentais, convidam hoje - desde diversos ângulos
- a um apagamento do real.
Diante
disto, a garantia que a psicanálise pode e deve oferecer não é
a de que seremos sinceros e democráticos, nem que negociaremos os
termos do contrato de maneira aberta e recíproca, nem que
respeitaremos os direitos do consumidor.
A
única garantia, a qual podemos e devemos oferecer, é que não evaporaremos
o real.
Tradução:
Rosa Guedes Lopes.
Revisão:
Mirta Zbrun
A Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA),
componente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA),
realiza mensalmente Ateneos Científicos para os quais são
convidados psicanalistas de diversas instituições. Em 15 de
novembro de 2005 fomos convidados a participar de um deles,
realizado sob a forma de conversação. Este é o texto que
oferecemos antecipadamente naquela oportunidade para o debate.
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