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 A Clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo

 



Ondina Maria Rodrigues Machado

Mestre em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ
Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ
Psicanalista Aderente à seção Rio da Escola Brasileira de Psicanálise
ondinamrm@uol.com.br

Resumo:

Esse artigo busca trabalhar a concepção de sinthoma, tal como proposta pelo último Lacan, e tirar dela as conseqüências para uma clínica psicanalítica do sujeito contemporâneo. Até os anos 1970, Lacan situava o analista-intérprete do laço entre sintoma e gozo, como lugar da  causa do desejo. As mudanças nos discursos, sintomas e laços sociais exigiram uma redefinição dessa função. O analista como condição do sinthoma, se faz parceiro do sujeito, para sustentar a crença no sintoma e na particularidade do gozo.

 

 



The clinic of the symptoms and the contemporaneous being

Abstract:

This article is about working the conception of symptom as proposed by the last Lacan and taking out the consequences for a psychoanalytical clinic for the contemporaneous being. Until the seventies Lacan situated the analyst as interpreter of the bond in symptom and pleasure, instead of the cause of desire. The changes in speeches, symptoms and social bonds demanded a new definition of this function. The analyst as condition of the symptom is a partner of the being sustaining the belief in symptom and pleasure.

 

  

 

Este artigo baseia-se numa tese[2] de doutorado que busca trabalhar a concepção de sinthoma, tal como proposta pelo último Lacan, e tirar dela as conseqüências para uma clínica psicanalítica do sujeito contemporâneo.

Estabeleço a diferença do mundo moderno em relação ao mundo contemporâneo. Situo o primeiro como aquele que foi marcado pelo advento da ciência que instala o poder da razão e questiona a autoridade simbólica do pai. Com isso a ciência promove a desautorização das figuras sustentadas na tradição. O declínio do poder de Deus atinge seu representante terreno: o pai de família. Isto tem conseqüências na organização social, política e familiar; a moral perde força como bem maior de um indivíduo. A psicanálise surge nesse momento em que a contestação ao pai e à moral criam conflitos e fazem sintomas. A psicanálise entra no mundo para autorizar o desejo e sua difusão corrobora o declínio, já em marcha, da função paterna.[3]

O mundo contemporâneo radicaliza as conseqüências da modernidade fazendo com que os valores morais e a hierarquia sejam substituídos pela liberdade individual como bem supremo. Esta modificação faz com que o ideal perca valor em relação ao objeto que, inserido na lógica capitalista, ascende ao zênite social. Como conseqüência os conflitos em relação aos ideais paternos são substituídos na contemporaneidade pela compulsão ao gozo. Assim podemos situar a clínica atual como diferente da clínica freudiana, necessitando de remanejamentos conceituais que orientem uma prática que alcance as novas subjetividades.

 

1. A carne do sintoma

Para chegar à clínica do sujeito contemporâneo examinei a concepção de sintoma em Freud e no primeiro Lacan. Em Freud destaquei a implicação da pulsão no sintoma e para isso fiz uso dos casos paradigmáticos das duas grandes neuroses – histeria e obsessão: o caso Dora e o Homem dos ratos. Na histeria o sintoma se apresenta como defesa contra o desejo recalcado, que para se manter recalcado precisa encontrar uma forma de descarga. O sintoma se faz por um mecanismo de substituição, onde o desejo se satisfaz no sintoma. Já na neurose obsessiva o sintoma é uma resposta a uma satisfação insuportável, ele expressa a luta entre a satisfação e a defesa combinando as duas de forma a obter satisfação na própria defesa. Assim, o que se satisfaz no sintoma é a pulsão e esta sempre se satisfaz. Para o modelo da histeria a interpretação do desejo recalcado dava conta do sintoma, porém o mesmo não acontecia na neurose obsessiva. É nela que se articula de forma mais evidente o caráter intransigente da pulsão.

Em Lacan, privilegio as suas primeiras concepções do sintoma, dividindo-as em sintoma como mensagem e sintoma como sentido e gozo. Como mensagem o sintoma pode ser dissolvido pela interpretação porque ele é estruturado como linguagem. Esta maneira de entender o sintoma é de grande importância histórica, pois tenta combater uma série de ilações dos pós-freudianos que levavam a psicanálise para um campo muito próximo da adivinhação, desconsiderando as postulações freudianas sobre a expressividade do sintoma. É neste sentido que Lacan retoma a diferença entre o latente e o manifesto através da concepção da fala como plena e vazia, considerando a primeira como expressão do inconsciente e a segunda como expressão do eu. Esta forma de entendimento possibilita lidar com o sintoma como um sentido aprisionado que a interpretação irá libertar. Ela marca um momento do ensino de Lacan onde o gozo era concebido como imaginário fazendo barreira à ordem simbólica e desarticulado do significante. Posteriormente, o gozo passa a ser significantizado e a pulsão passa a sofrer os efeitos da linguagem. Isto restringe a satisfação pulsional a termos simbólicos e a reduz ao desejo.

Já o sintoma como sentido e gozo coloca-o num sistema de escrita, portanto, aponta para algo no sintoma que transcende à significação. O sintoma, agora, não se esgota na significação produzida no lugar do Outro, há nele uma vertente que se liga ao significante na forma de letra, ou seja, há uma coordenação do gozo do corpo com o significante. É desta concepção do sintoma que surgirá, nos anos 70, o sinthoma como identificação ao próprio gozo.  

 

2. Identificação

Partimos da definição freudiana de que “a identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa”[4]. Com ela acompanhamos os desdobramentos feitos por Lacan, pois entendemos que ela é o fio condutor que o fará, ao longo de seu ensino e a cada vez, ressaltar um aspecto ou outro.

Destacamos três momentos da identificação em Lacan. O primeiro entenderá essa outra pessoa, à qual Freud se refere, como o pequeno outro semelhante, na forma de uma imagem refletida; é o tempo do estádio do espelho de 1949. Num segundo momento, temos a identificação ao significante do grande Outro, período da predominância do simbólico. No terceiro Lacan entenderá que nessa relação há um resto que situa o sujeito como objeto, é o tempo da alienação-separação do Seminário 11.

No segundo momento destacamos a identificação ao significante a partir de diferentes aspectos: como identificação ao traço do Outro, este traço como unário e a relação do traço unário com o ideal. Nelas a identificação é tratada por um vetor que orienta o sujeito em relação ao Outro, porém, há um outro aspecto que tenta dar conta da identificação como uma forma de inclusão do sujeito no campo do Outro. Trabalho este aspecto levando em conta um exemplo fornecido por Miller em Los signos del goce[5] em que um paciente diz: “queria ser um alho-poró para ser colocado em fila como as cebolas”. Esta frase nos serve para explicar o paradoxo que é a inclusão do sujeito no Outro: ser incluído na condição de não sê-lo. Ele quer ser o que não é para ser incluído no Outro, porém, não quer abrir mão de uma particularidade suposta: quer estar na réstia de cebolas sem ter as raízes que as cebolas têm. Isto mostra o paradoxo do sujeito que se supõe alho-poró, mas é cebola, e que, aprisionado nesta ‘identificação desafortunada’, pensa ser o que não é, não se percebe incluído no Outro porque faz dessa distinção radical o seu bem maior. O traço unário representa justamente isto: a conjunção do sujeito com o Outro, que é negada por uma miragem de distinção, colocando-o sob o comando do Outro tanto mais quanto ele o negue. Nas novas subjetividades essa miragem de distinção chega ao paroxismo, porquanto todos querem ser exceções, o que acaba promovendo mais e mais a segregação.

O paradoxo está no fato de a existência do sujeito se dar pelo significante, sendo exatamente o significante que o marca como inexistente: ao se representar para outro significante, o sujeito desaparece sob esse outro significante, e precisa de um outro ao qual sucederá o mesmo. Esse movimento marca o sujeito como um eterno vir a ser, razão pela qual tem sempre de retomar o caminho. 

A identificação ao traço unário depende diretamente do significante. Este significante é aquele tomado do Outro para suprir a falta estrutural de uma significação que dê conta do sujeito. Esse significante é o Ideal do eu freudiano que localiza o sujeito numa série, numa descendência. Porém, a identificação como representação impõe ao sujeito tomar o Outro como referência e, assim, buscar nele a sua significação. Por essa via, o sujeito é lançado em especulações em torno do desejo do Outro e a fazer desse desejo o seu próprio. A fantasia incidirá nessas especulações como resposta ao que o Outro quer do sujeito. Assim, pela via da representação significante, o sujeito se articula ao Outro tendo a fantasia como seu mediador.

A terceira concepção diz respeito ao processo alienação-separação. Nele Lacan distingue e articula dois tipos de identificação: uma identificação por representação e outra com o objeto. 

A alienação trata da reunião do conjunto sujeito com o conjunto Outro, mostrando que o sujeito é originalmente conjunto vazio e que no campo da reunião ele se constitui pelo significante tomado do Outro. O decisivo na alienação é que se opera uma exclusão: ou do ser do sujeito ou do sentido.

Já a separação situa o sujeito como duplamente faltoso: falta de um significante no Outro que dê conta do sujeito e falta de gozo devido as pulsões serem sempre parciais.

É neste contexto que Miller vai situar o sujeito definido como significante e gozo. Para ele o $ barrado escreve estas duas vertentes do sujeito: como conjunto vazio apela ao Outro em busca de um complemento significante e como sujeito de gozo aponta para um esvaziamento de gozo produzido pelo significante. Assim, Miller vai deduzir que há uma relação do sujeito com o gozo pela via da fantasia e outra pela via da pulsão. É isto que lhe permitirá propor que a orientação para o real vá além da fantasia, já que existem dois complementos para o sujeito: o significante e o gozo. Este esclarecimento possibilita a Miller trabalhar com o conceito de insígnia. Nele S1 está em coalescência com 'a', ou seja, a insígnia é equivalente ao sinthoma, pois grafa o sujeito do significante articulado ao gozo.

Este é o ponto sobre a identificação que nos dará a base para pensar a prática clínica com o sujeito contemporâneo.

 

3. O gozo

Trabalhando com o texto de Miller Os seis paradigmas do gozo[6], propomos reduzi-los a dois: a mortificação do gozo pelo significante e a vivificação do gozo pelo significante. A tese da mortificação se estende do Lacan que tomava o simbólico pela via do imaginário, até o período mais longo de seu ensino onde privilegia o simbólico. Nela o significante mortifica o gozo, porque lhe imprime uma perda: ao entrar na cadeia significante o gozo perderia sua força pulsional.

A tese da vivificação se caracteriza por uma inversão de perspectiva onde o significante que antes mortificava o gozo agora o vivifica. Esta perspectiva começa a ser esboçada no Seminário 17, quando Lacan mostra que a satisfação pulsional se estende aos objetos da cultura, e se apresenta mais claramente no Seminário 20 quando Lacan formula que o significante “é causa de gozo”[7], tese que terá repercussão na teoria do sinthoma.

Essa virada só foi possível porque Lacan passou a conceber a língua como uma estrutura secundária ao que ele denominou a alíngua. A alíngua visa o gozo, em contraste com a língua que visa a comunicação.

Considero também que a vivificação do gozo tem por base o axioma “a relação sexual não existe”. Entendo isso por duas vertentes: uma que mostra a defasagem entre o gozo esperado e o gozo obtido e outra que diz respeito às diferenças entre o modo de gozo do masculino e do feminino. Aponto as considerações sobre o modo de gozo do feminino como facilitadoras para a postulação de que o significante é gozo. Brevemente podemos apontar o modo de gozo masculino como fetichista, pois ele está fixado a um único objeto, donde podemos concluir que na fantasia todo homem é fiel pois goza sempre com a mesma mulher. Em contraste temos o gozo do feminino que se situa na perspectiva da resposta a uma demanda de amor, ou seja, o gozo feminino vincula o gozo ao significante - “ falar de amor é, em si mesmo, um gozo”[8] diz Lacan, e Miller completa “ para amar é preciso falar; o amor é inconcebível sem a palavra”[9].

Destas postulações sobre o gozo derivam importantes questionamentos sobre a prática analítica, em especial a prática com os sujeitos contemporâneos justamente devido à particularização do gozo, tal como se apresentam nestes sujeitos.

 

4. O osso do sinthoma

O eixo dessa discussão é o Seminário XXIII onde Lacan toma o escritor irlandês James Joyce como paradigma para pensar uma forma de amarração dos três registros que não pelo universal do Nome-do-pai.  Destaca-se no Seminário 23 algumas noções que considero importantes para a argumentação que apresento ao final. Considero a foraclusão do Nome-do-pai como separada da foraclusão de sentido no real para enfatizar a postulação de Lacan de que o real é sem lei, que nele está foracluído o sentido. A foraclusão do sentido está para todos o que faz com que ela se configure mais como uma falha do que como falta. É a esta falha no real que o sinthoma vem responder como defesa. Mas em Joyce, Lacan diz que o que operou foi uma foraclusão de fato do Nome-do-pai. A solução dada por Joyce a esta foraclusão é usada por Lacan como paradigma para pensar como se proteger do real quando não há o Nome-do-pai como recurso. Esta tese é fundamental para pensar as novas subjetividades na medida em que reconhecemos que nelas este recurso também está ausente. Advogo que não é tanto a loucura de Joyce que importa e sim o modo como ele conseguiu se manter estável. Este modo, segundo Lacan, foi fazer de seu nome uma arte. Este é o recurso que Lacan privilegia nesse seminário e que faz com que ele seja fundamental para pensar o sujeito contemporâneo. Há um saber-fazer com isso que falha, um saber fazer com os pedaços de real, com o sinthoma. O sinthoma é o quarto elemento do nó de quatro que possibilita ao nó uma certa estabilidade. No neurótico freudiano esta função é exercida pelo pai, e na falta dele algo tem que ser inventado para cumprir essa função. O saber-fazer é um artifício diante do sem sentido do real, é um saber que nos escapa sob a forma do saber, é um saber que só se sabe ao fazer, portanto, não é fruto do pensamento, é fruto da ação responsável.

No nosso entendimento há foraclusão para todos, não a do Nome-do-pai, mas a do sentido no real. A foraclusão do Nome-do-pai desabona o sujeito do inconsciente, enquanto a foraclusão do sentido funda o inconsciente. Assim, entendemos que o sinthoma, propriamente dito, faz suplência a essa foraclusão, não a do Nome-do-pai, o que não nos impede de tomar o sinthoma como modelo para pensar os artifícios que podem ser utilizados para a foraclusão do Nome-do-pai.

Se o sinthoma é o que dá estabilidade ao nó podemos nos perguntar se só há sinthoma no final da análise. Para tentar responder apresento a idéia do sinthoma já incluído no sintoma, porém, só em potência, faltando uma causa eficiente, o trabalho de análise, para atualizá-lo. Deste modo é só no final de análise que podemos reconhecer no sinthoma a sua potência.

Para demonstrar o final de análise e o que fazer com o que resta da operação analítica faço uso do depoimento de passe de Veronique Mariage[10]. Nele fica demonstrado que é o desejo do analista que dá a orientação para o real. Tal como avançou Coelho dos Santos (2002)[11], o gesto do analista marca uma forma de saber-fazer que toca o real. É isso que se espera de um analista: que ele saiba fazer com o real no tratamento. É o saber-fazer, que exclui qualquer standard, que nos possibilitará renovar a psicanálise e assim aplicá-la às novas subjetividades.   

 

5. O sujeito contemporâneo e sua clínica

Parto da formulação de Miller[12] sobre o discurso da civilização contemporânea onde o objeto está no lugar de agente (aà $). Quanto ao que orienta os sujeitos desbussolados pelo discurso da ciência na atualidade, Miller deduz que é o objeto a, o que se contrapõe aos ideais do sujeito moderno, a partir de onde podemos entender a proliferação, hoje, das compulsões. Esse discurso se configura tal qual o discurso do analista, o que coloca imediatamente em dúvida o lugar do analista como causa de desejo.

 

6. O mundo não-todo

O Outro da atualidade não é o Outro todo da modernidade, pois não temos mais a garantia de que a função de exceção do pai confirma a regra para todos. Sem essa função operando como barreira ao discurso da ciência, não há sujeito sujeitado ao ideal[13]. O que temos hoje é um mundo não-todo, um mundo onde não há um universal para orientar o sujeito, o que estimula as soluções particulares. O não-todo não é o mundo onde falta alguma coisa, pelo contrário, é o mundo onde tudo está disponível para ser comprado. Ele é não-todo porque não articula a identificação a um S1. Na verdade existe um enxame de S1, uma multiplicidade que impele o sujeito a identificações ad hoc, identificações que negam a herança paterna, portanto, a via do ideal. A multiplicidade identificatória dificulta a estabilidade da identificação fazendo com o gozo do sujeito seja lastreado pelo mercado de consumo[14]. O limite ao gozo era dado pelo ideal da renúncia, o que fazia com que a pulsão pudesse derivar. O que observamos hoje é uma busca compulsiva, onde não há limites ao gozo. Isso não quer dizer que goza-se mais hoje que antes, porque na verdade o sujeito está totalmente submetido a um supereu que o obriga a gozar.

O mestre da modernidade, em quem se podiam apontar os furos, se contrapõe, nos dias atuais, a um Outro sem falta, sem furos. O capitalismo selvagem, como o mestre contemporâneo, fabricou um supereu que não limita, mas sim impele o sujeito ao gozo: é o “não posso abster-me”[15] de gozar. O gozo é tóxico e a angústia serve de defesa contra esta toxidade. Segundo Laurent[16] esta angústia tenta refazer o todo, tenta refazer a identificação ao S1, porém, fracassa porque o sujeito está descrente do Outro.

 

7. O sujeito contemporâneo

Costumamos dizer que o sujeito contemporâneo é um desinibido, porém a desinibição não quer dizer não inibição, quer dizer que há um franqueamento no supereu que derruba as barreiras do gozo como privado, fazendo com que ele seja experimentado e exibido na esfera pública: todas as formas de gozo podem ser compartilhadas e exibidas pela Internet, não há nada que não se encontre nela.

A angústia é prevalente no dias atuais porque entre sujeito e Outro não há um distanciamento. Lacan coloca a angústia entre desejo e gozo, justamente neste espaço que vemos hoje apagado. Como conseqüência temos o sujeito identificado ao objeto, ele se holofrasea com o objeto.

Os novos sintomas se caracterizam por essa emergência da angústia, pois o Outro dos nossos dias não faz barreira ao gozo pela exigência da renúncia. No Outro de hoje não há a opacidade necessária à produção de um enigma e, conseqüentemente, fica vetada qualquer tentativa de interpretação do desejo. O que se torna deficitário é o laço simbólico do sujeito com o Outro, dele restando apenas a face violenta do supereu como imperativo de gozo. No regime do pai, o significante Nome-do-pai funciona como uma interpretação do desejo da mãe. Se o pai não funciona o sujeito fica diante de um desejo sem possibilidade de significação, como sublinha Maurício Tarrab, parafraseando Lacan (Seminário XVII),  “a grande boca do desejo materno é a grande boca consumidora correlativa ao declínio do pai”[17], o que impulsiona o sujeito a consumir e consumir-se.

Apresento na última parte um ensaio para uma prática clínica com o sujeito contemporâneo. Se antes ao analista cabia o lugar de causa do desejo, visando pôr em ação a rede simbólica para extrair os significantes de comando e deles desvincular o sujeito. A análise visava tirar do sujeito o peso dos ideais paternos, as limitações que o supereu impunha sob a forma do recalque, enfim, demonstrar a inconsistência do Outro.

A prática de hoje nos exige criar um laço do sujeito com o Outro a partir de seu próprio gozo, ou seja, instalar ou reciclar, como propõe Vieira[18], o objeto ‘a’ entre o sujeito e o Outro. A inconsistência do Outro os aproximou perigosamente, não restando entre eles um espaço onde o desejo se conecte a uma causa, ele se conecta tão somente ao próprio objeto. Como fazer o sujeito suportar essa inconsistência, já que não dá para voltar a fita? Como fazer para que o sujeito não se deixe dominar pelo imperativo de gozo?

Segundo Miller[19] os elementos do discurso da civilização atual estão dispersos e só na psicanálise pura eles se ordenam em discurso. O que deduzo daí é que a dispersão é a experiência do real suscitada pelo discurso que tem apenas o objeto em posição fixa. O sinthoma como modo de amarração subjetiva é o que a psicanálise tem a oferecer, buscando para cada um uma fixação, uma ordenação. Parece-nos que essa operação responde ao desbussolamento do sujeito, pois, ao dar lugar aos elementos dispersos, dá um norte, um norte singular, porém um norte. Essa argumentação está na filiação do sinthoma como elemento articulador, enodando os registros do real, simbólico e imaginário. Articulando os elementos dispersos, o sinthoma daria corpo ao sujeito desbussolado ao conectá-lo com seu próprio gozo.

Se o sujeito não está mais comandado pelo S1, a interpretação que vise localizar este S1 anda a esmo, pois seu alvo não comparece na fala do sujeito. Por outro lado, temos a idéia da localização do gozo, da extração do objeto que permite ao sujeito uma separação e uma constituição, aí sim, subjetiva. Temos a palavra oracular como um modo de fala, portanto, de simbólico, que demonstra potência em relação aos pedaços de real. Temos também, na vertente do ato analítico, o gesto e a entonação sustentando uma fala que não vise o sentido, mas sim o gozo[20]. E temos o equívoco como um modo de perturbar a defesa contra o real. Mas qual posição o analista deve ocupar para que essas táticas surtam efeito? Qual a estratégia possível?

Nesses casos, o analista no lugar de causa de desejo poderá se declinar para um analista como causa de sintoma. O analista, nessa posição, estará mais próximo de complementar o sintoma fazendo-se de parceiro do sujeito. Baseado na estratégia da parceria, o analista poderá sustentar a crença no sintoma e na particularidade do gozo. Para Laurent[21], “passar da crença no pai à crença no sintoma é uma ambição da psicanálise do nosso tempo”.

À guisa de conclusão defendo a idéia de que a clínica do sinthoma possibilita que a psicanálise responda aos desafios da atualidade não só em relação ao sujeito contemporâneo, mas também quanto a sua inclusão na pólis.

 

REFERÊNCIAS:

SANTOS, Tania Coelho dos -  Quem precisa de análise hoje? O discurso analítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001

_________ O analista como parceiro dos sintomas inclassificáveis. Latusa: A fuga nas doenças impossíveis, Rio de Janeiro, EBP-RJ, n.7, p.153-168, 2002

_________  O que não tem remédio remediado está! Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo:  Escuta, 2004, p. 63-75.

FREUD, Sigmund-  Psicologia de grupo e a análise do ego, 1921: Edição Standard Brasileira das Obras Completas, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: Mais, ainda: (1972-73). Rio de Janeiro: Zahar, 1985

_________ Le Seminaire, livre XXIII: Le Sinthome : (1975-76) Paris: Éditions du Seuil, 2005.

LAURENT, Dominique -  Inibição, sintoma, e angústia: limites do múltiplo. Opção Lacaniana, São Paulo, n.42, p.23-26, fevereiro, 2005

LAURENT, Eric- A sociedade do sintoma. Latusa: A política do medo e o dizer do psicanalista, Rio de Janeiro, EBP-RJ, n. 9, p.9-25, 2004

_________  O efeito “falsa ciência” do cognitivismo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 42, p.44-48, fevereiro, 2005

MARIAGE, Veronica- Quando está escrito... Opção Lacaniana, São Paulo, n.33, p.27-30, junho, 2002

_________ A voz (via/vozes/voto) do tédio. Opção Lacaniana, n. 35, p. 25-27, janeiro, 2003

MILLER, Jacques-Alain-  Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós., 1998 _________ O osso de uma análise. Salvador: EBP, 1998

_________  Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo, n.26/27, p.87-105, abril, 2000.

_________ Uma fantasia. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 42, p. 7-18, fevereiro, 2005.

TARRAB, Maurice.  Mais-além do consumo. Curinga: Clínica do contemporâneo, Belo Horizonte, EBP-MG, n. 20, p. 55-78, 2004

VIEIRA, Marcus André- Notas do Seminário Estilhaços do Núcleo de pesquisa O objeto 'a' na clínica de nossos tempos. Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Rio, (2005A)

_________ Objeto e sintoma: arranjando-se com o lixo. In: XVI JORNADA CLÍNICA da EBP-Rio, julho, (2005B).



[1] Psicanalista, membro aderente da EBP-Rio, mestre em Psicanálise IPUB/UFRJ e doutora em Teoria psicanalítica IP/UFRJ.

[2] O que apresentamos a seguir é um resumo da tese de doutorado A Clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo, defendida em 30 de setembro de 2005, orientada pela Profa. Tania Coelho dos Santos e desenvolvida no Núcleo Séphora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo, do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ.

[3] Esse tema foi desenvolvido por SANTOS, Tania Coelho dos - Quem precisa de análise hoje?   São Paulo: Bertrand ,  2001, capítulos IV, VIII e XIX

[4] FREUD, Sigmund- Psicologia de grupo e análise do eu  (1921),  p. 133.

[5] MILLER, Jacques-Alain- Los signos del goce.   Buenos Aires: Paidós, 1998.   capítulo I.

[6] MILLER, Jaques-Alain- Os seis paradigmas do gozo. Opção lacaniana,  São Paulo, n.26/27, p.87-105, abril, 2000

[7] LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda: (1972-73)    Rio de Janeiro: Zahar, 1985.   p.36.

[8] Ibid., p. 112.

[9] MILLER, Jacques-Alain. O osso de uma análise.    Salvador:  EBP, 1998.  p.112.

[10] MARIAGE, Veronica- Quando está escrito. Opção Lacaniana, São Paulo, n.33, p.26-30, junho, 2002 e A voz (via/vozes/voto). Opção Lacaniana, São Paulo, n.35, p.25-27, janeiro, 2003

[11] SANTOS, Tania Coelho dos- O analista como parceiro dos sintomas inclassificáveis.  Latusa: A fuga nas doenças impossíveis, Rio de Janeiro: EBP, 2002

[12] MILLER, Jacques-Alain. Uma fantasia (2004).

[13] SANTOS, Tania Coelho dos. op cit, 2001 capítulo  IX

[14] LAURENT, Dominique. Inibição, sintoma e angústia (2005)

[15] TARRAB, M. Mais além do consumo (2004), p.58.

[16] LAURENT, E. A sociedade do sintoma (2004), p.16.

[17] TARRAB, M. Op.cit., p. 60.

[18] VIEIRA, M.A. Notas do Seminário Estilhaços (2005a) e Objeto e sintoma: arranjando-se com o lixo (2005b).

[19] Agradeço à Profa. Tania Coelho dos Santos por ter chamado minha atenção para a importância desse ponto. Cf. Miller, J-A. Ibid.

[20] SANTOS, Tania Coelho dos- O que não tem remédio remediado está, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, Ed. Escuta, março,2004

[21] LAURENT, E. O efeito “falsa ciência” do cognitivismo (2005), p. 24.