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Mais
do que nunca, a abordagem clínica com os jovens pacientes tem
levado o psicanalista a considerar este sintoma de uma época que
são as diversas práticas concernentes às marcas corporais. Também
o antropólogo (Le Breton, 2002), diante da atualidade e da
propagação dessas práticas, explicita que elas estão a serviço
de uma busca desenfreada de identidade. Se a indústria do design corporal se difunde tão rapidamente é porque estas marcas são
concebidas como verdadeiros “signos
de identidade”.
Segundo
ele, o corpo tornou-se uma espécie de prótese da imagem de si e
sobre ela o sujeito ambiciona obter uma encarnação para dar
sentido à sua presença no mundo. Não se tem notícia, em outra
época, de uma tal generalização destas práticas que visam
imprimir sobre o corpo marcas que conferem significação à existência.
As tatuagens, os piercings, os stretching
ou as transformações corporais por meio de cicatrizes,
queimaduras e, mesmo, as distorções imputadas ao corpo na busca
de uma bestialização da imagem, são marcas visíveis, que
adquiriram, na cultura, um valor positivo[2].
Mesmo
que seja uma prática que se socializa de modo galopante, cada
jovem utiliza-se destas marcas de uma maneira bastante singular,
realizando – segundo expressão do referido antropólogo –,
uma verdadeira “bricolage inventiva”[3]
da imagem do corpo, com o intuito de inscrever com os
significantes disponíveis na sociedade, um traço em que se
reconhece como exceção. A função dessa bricolage
para cada sujeito, é o que tem orientado os analistas na delimitação
diagnóstica de cada caso, do ponto de vista estrutural.
É
possível, inclusive, propor que essa variedade fornece elementos
suficientes para se postular um enfoque clínico diferencial
dessas práticas de marcação corporal. Sem desconhecer a
complexidade presente nesse ponto de vista diferencial[4],
indaga-se, por exemplo, se a tatuagem não estaria do lado das
neuroses, enquanto a automutilação se situaria, de preferência,
do lado das psicoses[5].
Outra distinção importante a respeito dessas marcas, que
constituem verdadeiras práticas, é a de saber se elas estão do
lado do sujeito ou do Outro. Numa primeira abordagem, as
tatuagens, os piercings
e stretching são recorrentemente práticas definidas e estabelecidas
pelo próprio sujeito. No que concerne às outras marcas, o corpo
mais parece uma tela em que o Outro, o saber do Outro, deixa suas
impressões, define desenhos, formas e transformações. A meu
ver, a procura de um tatuador e a busca de um cirurgião plástico
não são coisas análogas, visto ser evidente, nesse segundo
caso, a interferência de um saber que se aloja no real, ou seja,
a presença do saber da ciência como discurso.
Alguns
jovens em análise recorrem a esse saber durante o transcorrer do
tratamento ou em momentos de interrupção do mesmo, na busca de
transformações estéticas da forma do corpo. Muitas vezes, a
procura de uma nova imagem está a serviço da diferença sexual.
Para os rapazes, a ingestão de hormônios ou o uso de cosméticos
para acentuar determinados traços é vislumbrado como uma solução
rápida e eficaz para responder à questão da difícil identificação
viril. Paras as moças, as lipoaspirações ou a introdução de
silicone visando extrair ou ressaltar outros traços,
apresentam-se como respostas ao desgosto e a decepção com a vida
sexual e amorosa, fato que sanciona a difícil assunção da
feminilidade nessa fase de reativação do Penisneid.
Vê-se
que o saber científico pode ser convocado pelo sujeito para
definir-lhe traços, imputar-lhe marcas visíveis na superfície
do corpo, mas, observa-se também no âmbito da clínica na infância
e adolescência, a imputação pelo Outro do saber, de marcas
invisíveis. Nos tempos atuais, a hiperatividade constitui um dos
maiores exemplos destas marcas invisíveis. Não se trata de um
traço propriamente dito, mas de um signo da ciência, um nome, um
significante mestre produzido pelo saber científico, que, à
revelia do sujeito, marca seu corpo, não sem acarretar conseqüências
para sua existência, pela própria associação dessa marca com o
fracasso em seu acesso à vida civilizada.
Não
é raro, na infância e adolescência, o sujeito manifestar seu
mal-estar por meio de atuações no ambiente escolar e social.
Estas atuações – que, na verdade, são encenações
insistentes do sintoma endereçado ao Outro –, são tomadas de
maneira geral como distúrbios do comportamento. Em cada época,
estes distúrbios recebem uma especificação distinta a partir
dos avanços das pesquisas médico-psicológicas. Assim, o que,
antes, era índice de uma disfunção cerebral mínima, agora,
aponta para uma disfunção de ordem cognitiva[7].
É segundo essa metodologia diagnóstica que o chamado
“Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade” (TDAH)
foi introduzido para caracterizar os indivíduos desorganizados,
agitados, impulsivos e desatentos, e ganhou consistência como um
problema médico-social e psicopedagógico de suma importância na
atualidade do mundo “psi”.
Apresentamos
a seguinte vinheta clínica com o intuito de exemplificar e
aprofundar o diagnóstico destas marcas invisíveis do Outro, que
produzem sintomas, isto é desencadeiam formações do
inconsciente, cujo sentido, para o sujeito, permanece ocultado sob
o discurso objetificante da ciência contemporânea.
A
agitação, o desinteresse pela aprendizagem e as dificuldades de
relacionamento com os colegas, levam a orientadora pedagógica a
suspeitar para Rafael esse diagnóstico de hiperatividade. Ao
ingressar no colégio entrosou-se rapidamente com os alunos mais
difíceis, mas logo foi rejeitado por esse grupo, ficando marcado
como “o que não faz nada,
apenas atrapalha”. Para os professores, ele é um “aluno
indesejado, desrespeitoso, alguém que faz brincadeiras obscenas e
nunca espera sua vez para falar”. A escola em que ele estuda
atualmente pretende ser inclusiva, aceita alunos repetentes e
rejeitados por outras escolas, mas considera que isso não é
suficiente. Rafael é um dos casos que demonstra este limite do
projeto inclusivo, pois caso ele não consiga reverter sua situação
de baixíssimo desempenho escolar, provavelmente vai tomar bomba e
sair do colégio, repetindo, a história de exclusão que conheceu
na escola precedente.
Uma
sondagem realizada pela orientadora no momento do ingresso deste
aluno na escola, recolheu dados sobre sua vida familiar e escolar,
que confirmaram a hipótese diagnóstica de hiperatividade. Rafael
fora acompanhado durante dois anos por uma psicóloga, que o
encaminhou a um psiquiatra para dar seqüência ao tratamento.
Estava fazendo uso de medicação específica para o TDAH e freqüentando
semanalmente sessões psicoterápicas de orientação
cognitivo-comportamental, nas quais jogava xadrez para aprender a
se concentrar e melhorar na escola, segundo seu próprio
depoimento. Não faltava às sessões, como também não faltava
às aulas, mas parecia pouco implicado tanto no processo de
aprendizagem, quanto no terapêutico.
Diante
da evidência de mais uma reprovação, a orientadora – que,
durante um longo período do ano letivo, desenvolveu junto a
Rafael um trabalho pedagógico extraclasse, sem obter os efeitos
esperados –, recomendou um tratamento psicanalítico. O diagnóstico
de hiperatividade não estava em questão e havia, até mesmo,
servido de base para a introdução de uma outra hipótese
relativa à associação deste transtorno a um distúrbio psiquiátrico.
O novo encaminhamento sustentou-se na idéia de que Rafael era um “rapaz
do bem”. Sua aparência não permitia nenhuma associação
à imagem de rebeldia, agressividade ou protesto. Ao contrário,
mostrava ser um adolescente vaidoso, andava sempre arrumado e
costumava checar seu visual junto à esta orientadora, cada vez
que cortava os cabelos.
No
primeiro contato com o analista, Rafael mostra-se muito
interessado em saber o que teriam dito a seu respeito na escola.
Aliás, durante toda a fase preliminar das entrevistas, questiona:“O
que falam de mim?” Em relação às suas inquietações,
Rafael teme tomar mais uma bomba, queixa-se de não conseguir
tirar notas razoáveis e de não conseguir prestar atenção na
aula. Ao tentar situar o início de seus sintomas na vida escolar,
acaba circunscrevendo um acontecimento familiar que não foi sem
importância: sua avó – responsável legal por ele e por sua
irmã –, separou-se de seu segundo marido. Este último, tal
como o primeiro parceiro da avó, era marcado por um extremo
nervosismo. As brigas freqüentes do casal não constituíam um
estorvo tão significativo para Rafael, como o foi a separação.
Ele sentiu-se sozinho no mundo e tudo passou a incomodá-lo.
Angustiou-se. Com seu mal-humor contagia e passa a importunar os
colegas. Os desentendimentos e querelas que se sucediam foram
interpretados como distúrbios do comportamento. Tudo isso
contribuiu para a já esperada exclusão de Rafael.
A nomeação do mal-estar de Rafael com o significante da
hiperatividade produziu um efeito sobre seu corpo: ele deprime-se.
Torna-se sonolento, dorme durante as aulas sem deixar de
participar, esporadicamente, daquela maneira considerada pelos
professores como impulsiva e inadequada. As limitações
cognitivas ressaltam-se e intensificam-se. Não presta atenção,
não realiza os deveres escolares, perde as poucas folhas nas
quais copiara um pouco da matéria, não se lembra de levar os
livros e o material solicitado. Os professores e os colegas o
preferem dormindo, pois, quando está desperto, distrai a turma,
faz gozações para atingir a todos. Fala em demasia, não aguarda
a sua vez, interrompe ou se mete nos assuntos dos outros. Não
consegue participar das atividades e brincadeiras coletivas.
Durante a recreação, vaga de um lado para o outro ou se aproxima
dos pequenos grupos, ora para lançar uma provocação verbal, ora
causar o espanto dos colegas. Uma vez levou pó de rapé para a
escola e disse que era maconha. Outra vez, para responder a uma
“aprontação” da qual fora alvo, enrolou bicarbonato em um
papelote e colocou na mochila de um colega. Nem é preciso
assinalar que atuações desse tipo, sempre acarretavam graves
prejuízos e transtornos para ele. Em suma, essas manifestações
satisfazem um número considerável de critérios estipulados pelo
DSM-IV para o diagnóstico de TDAH.
“Fiquei
deprimido.” “Fiquei todo desligado.” “Antes, eu não era
assim.”
Agora, que o fracasso escolar concretizou-se na esfera das
aprendizagens escolares, Rafael se pergunta se vai conseguir ser
alguém na vida, se vai ser pobre, rico ou miserável, se vai
ganhar dinheiro suficiente para viver. Essas indagações, a meu
ver, exprimem uma certa suspensão das identificações fálicas
do sujeito, uma queda dos referenciais identificatórios do
sujeito, que são substituídos pela avaliação de suas
capacidades. A ação do sujeito torna-se submetida à
hiperatividade, que se apresenta como uma significação produzida
pelo discurso da modernidade, um S1 que afeta o
sujeito, por lhe conferir um signo de fracasso, por lhe premunir
de uma certa limitação futura no plano do ser.
É
sob esse estatuto de significante do Outro, que a hiperatividade
inscreve-se no corpo de Rafael, não propriamente como um traço
significante, mas como uma marca invisível, portadora de sentido.
O sujeito reage, questionando-a. Divulga seu interesse por tudo o
que é máquina e afirma sua concentração no tocante às
atividades de computação. Aos olhos dos educadores, isso apenas
confirma o diagnóstico de hiperatividade, na medida em que não
é incompatível com esse transtorno o aluno ser desatento e ter a
cabeça à mil. Em casa, Rafael fica conectado on-line
o tempo todo: baixa música, bate papo no ICQ ou messenger, entra na Internet, tudo ao mesmo tempo. Tenta valorizar
esse aspecto positivo da chamada hiperatividade e parece informado
a respeito ao citar a afirmação de um filósofo, segundo a qual “A maior parte das pessoas bem-sucedidas faz múltiplas tarefas ao
mesmo tempo e, assim, não deixam partes importantes do cérebro
ociosas”. Debatendo-se contra o veredicto do fracasso
vinculado à desatenção interroga seu diagnóstico dizendo: “Pode
perguntar para qualquer um, para você ver se, na frente do
computador eu tô desligado. É…
ligadão!”
No
primeiro momento do tratamento sobressai no enunciado do sujeito o
tema da morte. Por meio de pequenas ficções ou de fatos da vida
real, Rafael relata situações em que algum indivíduo
marginalizado pela sociedade – por ter se tornado um usuário de
droga, por exemplo – é vítima mortal de uma situação de violência
social – assaltos, brigas, roubos, etc. Ao ser assinalada sua
identificação com a vítima, Rafael passa a relatar situações
no grupo de amigos em que “acabou
pagando o pato”. Analisa estas situações chegando à
conclusão de que sua atitude perante os colegas fornece os
motivos para que pensem mal dele ou o dedurem junto aos
professores, mesmo quando é inocente. As inquietações sobre o
que é dito a seu respeito, reaparecem. Quando passa diante de um
grupo de colegas é tomado por uma angústia que o inquieta, pois
sente-se ameaçado pelo outro: “Será
que estão falado de mim?” “Será que é coisa boa ou ruim?”
“Será que vão aprontar comigo?” Chega a interromper a
conversa dos colegas para perguntar: “Que
vocês estão falando aí, em?”
Nos
contatos virtuais essa angústia se abranda. Rafael conversa com
pessoas do mundo todo. Sente-se menos solitário quando entra em
um game, pois há sempre
mais alguém jogando. Vê-se permanentemente ameaçado, mas à
diferença da vida real, no jogo ele pode matar, atacar,
ressuscitar. As incertezas quanto à seu futuro e sobrevivência são
dissipadas pela somatória dos pontos, sobretudo quando ultrapassa
um level.
O analista se interessa pelo jogo no qual se detém por
mais tempo, ou seja, naquele em que sua capacidade de concentração
contraria a imputação de um déficit orgânico. Trata-se do “Tíbia”,
um jogo que permite a Rafael inventar uma nova ficção familiar.
Na família virtual, Rafael tem um pai e um filho, tios, primos e
amigos. Ele conversa com homens. Explica-me que as mães e as
mulheres estão fora de circuito. Possui uma amiga, mas esta fala
pouco e joga de igual para igual: “Se me atacar, eu mato ela.” Rafael faz testes para verificar se
essas pessoas falam mal dele. Nunca se decepcionou. Em suma, sua
família virtual é amiga e ideal, agitada e competitiva. A idéia
que eles têm de Rafael, é da mesma ordem.
O
refúgio no mundo virtual não tardou a ser invadido,
interrompendo toda a sua incursão fantasmática. “Fui
hackeado”, anuncia, complementando sua frase com a
afirmativa: “Estou
deprimido.” “Todos estão contra mim, todos brigaram
comigo”. “Eles não querem falar comigo. Não acreditam em
mim.” “Que estarão pensando de mim, agora? Todos me rejeitam.
O Hacker entrou na casa e jogou tudo fora, equipamentos, espadas
escudos, comida… Ele esta me matando.” Rafael continua seu
relato nas sessões seguintes, em que repete a afirmação: “Estou deprimido!”. Isso deu-me a oportunidade de assinalar-lhe
que, na sua vida, não era a primeira vez que aquilo estava
acontecendo. Na escola, também foi marcado, considerado mal-caráter
por atos que não cometeu, as pessoas ficaram com raiva e reagiram
excluindo-o. Além disso, nas duas situações, sua resposta foi a
depressão. Perguntei-lhe em seguida se conhecia alguém do seu
convívio próximo que era considerado deprimido, ao que responde:
“Conheço: a minha mãe.
Ela só fala bobagem; diz que não quer tomar os remédios.”
Essa resposta fornece, pela primeira vez, um sentido para o
comportamento de Rafael, diferente do que lhe tinha sido dado pelo
significante da hiperatividade. Rafael compara-se com a mãe;
percebe que, como ela, diz bobagens e não é levado a sério. As
lembranças familiares a respeito da juventude dela estavam mais
presentes na vida de Rafael do que ele podia imaginar. Sua mãe,
quando adolescente, saía e aprontava, cometia atos inconseqüentes,
entrava em confusões. Por muito tempo, os familiares acharam que
todo aquele transtorno era devido ao uso de drogas, mas, na
verdade, como se revelou mais tarde, tratava-se da manifestação
do quadro psicótico, desencadeado com o advento da puberdade. Em
última instância, marca da hiperatividade em Rafael denota o
encontro do sujeito com a figura nefasta e sem limite do gozo do
Outro, presente na mãe.
[1]
LE BRETON, David. Signes
d’identité: tatouages, piercings et outres marques.
Paris: Métailié,
2002.
[2]
Segundo Le Breton, os novos usos das marcas sobre o corpo
inverteram os antigos valores negativos que lhes estavam
associados. A tatuagem, por exemplo, que, antes, veiculava a
idéia de dissidência social ou o estereótipo de uma
virilidade agressiva, passa a encarnar, depois dos anos 80,
uma nova forma de sedução e se transforma em fenômeno
cultural. Ibid. p. 23-62.
[3]
Expressão utilizada pelo antropólogo David Le Breton, na
obra citada.
[4]
SANTIAGO, Ana Lydia. Os casos raros, inclassificáveis da clínica
psicanalítica. in:
Correio: Revista da
Escola Brasileira de Psicanálise, n.23/24, junho 1999, p.
112-123.
[5]
Essa distinção foi explorada por Sérgio Campos em seu relatório
sobre o tema “as marcas no corpo”, que foi apresentado em
um encontro preparatório para a X Jornada da EBP-MG, de 2004.
[6]
A respeito dos fatores psíquicos complicadores, no momento da
puberdade, ver, também:
SANTIAGO, Ana Lydia. Psicose e surto na adolescência:
por que os adolescents surtam tanto? In: Guerra e Lima (orgs).
A clínica de crianças
com transtornos no
desenvolvimento.
Belo Horizonte: Autêntica; FUMEC, 2003. P. 75-89.
[7]
A respeito dos diagnósticos médico e psicológico da crianças
consideradas “criança-problema” no ambiente escolar e das
conseqüências destes diagnósticos para o sujeito que
manifesta um sintoma, ver: SANTIAGO, Ana Lydia. Debilidade,
sujeito e segregação: uma questão para a contemporaneidade
do discurso educacional. In: A
inibição intelectual
da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 25-43.
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