SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO (1914)
O conceito de narcisismo
Andréa Martello
Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud propõe a sexualidade infantil como sendo
aquilo que caracteriza a condição essencial da sexualidade humana. A pulsão é, então, caracterizada
por uma multiplicidade quanto aos objetos de satisfação (as zonas erógenas), podendo subverter e
erotizar as partes do corpo sem nenhuma indicação prévia. Esse é o estatuto perverso e polimorfo da
sexualidade infantil e o que qualifica primeiramente as pulsões como pulsões parciais.
O valor da sexualidade infantil não se restringe ao fato de se inferir ao infantil uma sexualidade,
mas sim de que esta forma de apresentação das pulsões parciais - como componentes elementares da
sexualidade - interfere e torna problemática a concepção de uma normalidade sexual organizada em
torno de um objeto. Em última instância coloca o processo de recalque como responsável por submeter
a sexualidade infantil a uma organizaçào sexual voltada para a finalidade de reprodução.
Dois problemas podemos evocar no que diz respeito à estrutura perversa e polimoforma das pulsões
parciais que nos é apresentada com a sexualidade infantil: por um lado pensar o modo de unificação
desta parcialidade, ou seja, elucidar o processo de recalque, e por outro conceber a natureza de um
objeto que venha confluir as pulsões parciais.
A teoria do ego vem em resposta a essas questões.
Temos no período de 1910-1911 (n.1) duas linhas importantes desenvolvidas por Freud no que se refere
à teoria do ego: uma que dá ao ego um estatuto pulsional, baseado nas pulsões de autoconservação,
constituindo-o como pólo oposto à sexualidade no , e outra que coloca o ego como objeto da libido,
ou como primeiro objeto organizador das pulsões sexuais. Duas concepções antagônicas que, no
entanto, não se excluem na medida em que a estrutura do ego sempre comparece como recalcante para a
fragmentação e pluralidade das pulsões na sexualidade infantil.
Esteiando-se nas pulsões de autoconservação, o estatuto pulsional do ego vem legitimá-lo como pólo
recalcante da sexualidade a partir de uma vinculação estreita da autoconservação com o Princípio de
Realidade. Esta idéia é desenvolvida de forma explícita em Formulações sobre os dois princípios de
funcionamento mental (Freud, 1911) onde as vicissitudes do objeto das pulsões de autoconservação, a
necessidade premente do objeto externo, acarretam a subordinação do ego, ou das pulsões do ego, ao
Princípio de Realidade. As pulsões sexuais por sua vez são regidas pelo Princípio do Prazer - cuja
satisfação se efetua secundarizando os objetos reais, como no sonho, por exemplo - onde o desprazer
está ligado a um aumento de tensão e o prazer a uma diminuição da tensão.
O Princípio de Realidade não afeta a satisfação que é buscada pelo Princípio do Prazer. Sua
imposição só se configura na medida em que esta satisfação é, em última instância, a finalidade da
pulsão. Este princípio vem responder a uma exigência de satisfação, fornecendo com seus adiamentos
uma maior eficácia no que se refere à presença do objeto em detrimento da satisfação alucinatória.
Deste modo, ele é uma sofisticação do aparelho psíquico na execução do princípio régio que é o
Princípio do Prazer (Freud, 1911a, p. 283).
Como dissemos anteriormente, este período de 1910-1911 é marcado por desenvolvimentos paralelos no
que se refere à concepção do ego. Se por um lado temos as atividades de auto-conservação e a
dimensão de realidade que ela comporta caracterizando um esteio pulsional para o ego no processo de
recalque da satisfação autoerótica, veremos surgir nesta mesma época as idéias que darão estofo ao
desenvolvimento do conceito de narcisismo com o texto Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua
infância (1910) e a análise empreendida por Freud do caso Schreber em Notas psicanalíticas sobre um
relato autobiográfico de um caso de paranóia (demencia paranoides) (1911).
Esses dois desenvolvimentos teóricos - do ego pulsional vinculado à autoconservação e do ego como
objeto das pulsões sexuais - vêm abordar a problemática que gira em torno da transposição da etapa
primordial de auto-erotismo (parcialidade das pulsões) e sua posterior organização, seja pela
imposição das exigências da realidade, seja pela sua unificação em um objeto narcísico.
No primeiro texto de 1910, o narcisismo é pensado como forma de esclarecer o tipo de escolha
homossexual, uma vez que ela traria as consequências do fato de que o próprio ego é tomado como
parâmetro para a escolha do objeto.
No texto sobre Schreber (Freud, 1911b) encontramos a definição propriamente dita de narcisismo como
sendo uma etapa no desenvolvimento da constituição de um objeto único, o ego, que confluiria as
pulsões sexuais, parciais e autoeróticas.
Se a parcialidade das pulsões permite apreender o leque de comportamentos sexuais possíveis para o
humano, a elasticidade de suas escolhas, e até permitir uma terapêutica para a neurose (visto que ao
sofrimento do sintoma está acoplado uma parcela de atividade sexual), por outro lado o
desenvolvimento pleno da sexualidade, cujo parâmetro é a função reprodutiva, ainda fica referido a
um modo de organização que inclui uma escolha pelo sexo oposto, e que vai se tornando cada vez mais
problemática com a inserção do conceito de narcisismo.
O que é importante ressaltar é que a concepção de narcisismo vai progredindo dentro dessa
problemática que, em última instância, diz respeito à constituição do objeto sexual e, portanto, das
formas de organização da pulsão. O conceito de narcisismo é uma etapa importante na subversão que a
psicanálise introduz para a concepção de "sexual". Com o narcisismo, essa questão se aprofunda e
rompe com qualquer idéia naturalista da união entre os sexos, ou seja, com a idéia da existência de
sexos distintos e complementares, ao mesmo tempo que aprofunda a questão do acesso à realidade.
Em Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914), Freud aborda pela primeira vez de maneira precisa a
questão da gênese do ego. Partindo dos componentes auto-eróticos, da parcialidade da pulsão, a
gênese do ego fica submetida ao que é da ordem da pulsão sexual, ou seja, de um investimento da
libido.
O conceito de narcisismo tornará problemática a primeira divisão das pulsões que fornecia o estofo
para o conflito psíquico, pois tornará convergente a pulsão sexual e a pulsão de auto-conservação.
Mais precisamente:
O narcisismo nesse sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo do
instinto de autopreservação, que, em certa medida pode justificadamente ser atribuído a toda
criatura viva (Freud, 1914, p.90).
A libido, energia por excelência da pulsão sexual, será o componente essencial do processo de
constituição do ego, denominada a partir de então, libido do ego. Com isso fica suspenso, em sua
fundação, o que se poderia pensar como uma pulsão de autoconservação, que em sua concepção indica
uma noção de ego vinculada ao organismo. O Narcisismo é o conceito por meio do qual, para a
psicanálise, se justifica que a relação entre o ego e o organismo não seja unívoca: (.) estamos
destinados a supor que uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o
ego tem de ser desenvolvido (Freud, 1914, p. 93).
O que determina a passagem da libido do ego aos objetos será a transferência de um acúmulo de tensão
quando a catexia do ego com a libido excede certa quantidade (Freud, 1914, p101). Retira-se desta
argumentação a idéia de um limite para o narcisismo na medida em que o investimento de uma força
pulsional constante o invade para além de sua possibilidade de "absorção". A organização atingida
pelo narcisismo se mostra instável frente a um investimento constante da pulsão.
A importância de se diferenciar uma libido do ego e uma libido objetal se coloca a partir do momento
que a partir disto se pode pensar um modelo explicativo para as patologias, sejam elas da ordem da
neurose ou da psicose, ou seja, será através desta diferença que se poderá examinar o meio pelo qual
o ego sai de sua clausura narcísica. Os argumentos de Freud (1914, p. 101-102) se baseiam numa idéia
de aparelho psíquico regido pelo Princípio de Prazer que funciona sob a prerrogativa de um
escoamento de excitação.
A ligação que Freud havia estabelecido entre o ego e a pulsão de auto-conservação não explica as
parafrenias (ou psicoses), e é diante dos problemas que esta estrutura clínica apresenta que será
atribuída uma gênese sexual para o ego. A psicose é abordada por Freud através de uma estase da
libido em forma de libido do ego. Isso justifica a forma silenciosa com que a libido é retirada do
mundo externo, bem como a produção da megalomania. A doença só se torna ruidosa quando a megalomania
fracassa e a composição sintomática (sob a forma de delírios de perseguição) significará a tentativa
de escoar a libido para os objetos. O delírio na psicose deve ser encarado, portanto, como um
princípio do cura. (cf. Freud, 1914, p. 101-103)
Nas neuroses de transferência encontramos a atividade fantasmática como sendo a forma de lidar com a
frustração do objeto externo, investindo desse modo num objeto imaginário (introversão da libido),
onde se manteria o que Freud denomina de "um investimento da ordem da libido de objeto". No entanto,
mesmo nessas neuroses, a introversão da libido objetal também se mostra patológica caso a
transferência da libido para objetos irreais tenha ocasionado seu represamento (Freud, 1914, p.
102). Se o represamento em forma de libido do ego acarreta tamanho estrago, como no caso das
psicoses, seu represamento como libido objetal não é, por sua vez, menos patológico.
Dentro deste contexto da transferência da libido para os objetos surge outra questão, aparentemente
secundária, que no entanto não se mostra menos importante: a partir do narcisismo, como estabelecer
a escolha de objeto heterossexual?
Como Freud mantém, mesmo que a título provisório, as pulsões de auto-conservação, ainda serão elas
que, em 1914, indicarão o caminho da escolha sexual em sua forma desvinculada do narcisismo, ou como
denominado por Freud, o tipo de escolha anaclítico: a mulher que alimenta e o homem que protégé
(Freud, 1914, p. 107).
O problema que aqui encontramos é o fato de que a garantia da escolha heterossexual depende das
pulsões de autoconservação (n.2). Se sua interferência é necessária, por conseguinte podemos
concluir que para Freud as pulsões sexuais se apresentam de forma a não incluir qualquer coisa que
diferencie o objeto heterossexual dos outros objetos, e o conceito de narcisismo se, por um lado,
unifica a parcialidade das pulsões, por outro tornará cada vez mais problemática essa escolha
heterossexual.
Essa questão se coloca uma vez que a gênese libidinal, sexual do ego que Freud estabelece em 1914
marcará todas as relações do ego com os objetos.
Sendo a conceituação do narcisismo anterior ao esclarecimento do papel da identificação na
constituição do ego, o problema de maior relevância neste texto de 1914 será a questão da
transferência da libido do ego para os objetos. Veremos como que com o conceito de identificação as
questões quanto a transferência da libido para os objetos bem como a constituição da escolha
heterossexual de algum modo se elucidam.
Concernente à questão da transferência da libido do ego para os objetos, iremos encontrar o
desenvolvimento da esfera de um narcisismo secundário, diferenciado do narcisismo primário
(generalizado na fundação do ego), onde o estabelecimento da libido em direção aos objetos traz
consigo as consequências da primeira fase narcísica.
No narcisismo secundário, ou ideal do ego, o circuito da libido pode ser desviado do caminho dos
objetos, em sua dimensão anaclítica, em consequência das marcas impressas pelo narcisismo primário.
O ideal do ego nada mais é do que a projeção na esfera do ideal daquilo que não pode mais ser
sustentado pelo ego.
O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa
tentativa de recuperação desse estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em
direção a um ideal do ego imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal
(Freud, 1914, p. 117, grifo nosso).
A postulação do narcisismo em Freud se faz na estrita vinculação com o seu avesso: a ferida
narcísica. A suposta completude engendrada pelo narcisismo, que em Freud aparece nos termos de uma
"onipotência narcísica", só mostra seu verdadeiro alcance ao alterar a dinâmica das respostas dadas
diante do limite desta onipotência. Ou seja, o verdadeiro alcance do conceito de narcisismo se
efetua como auxílio ao exame das respostas dadas diante da ferida narcísica.
A projeção na esfera do ideal, trará como consequência a criação de uma instância, o ideal do eu,
que será a instância responsável pelo gerenciamento do investimento objetal. A base principal da
constituição do ideal do ego se estabelece a fim de atingir, na dimensão de investimento objetal, o
que foi perdido na dimensão do investimento narcisíco, trazendo, no entanto, o cunho dessa
satisfação. Este desvio implicará numa nova leitura para os mecanismos produtores de patologia, uma
vez que essa tentativa de recuperação da onipotência narcísica se transforma em um dos motores para
o recalque.
As sutilezas e nuances trazidas pela concepção do ideal do ego permitirá a abordagem de questões há
muito expostas e acentuadas por Freud (n.3). Assim, teremos resgatada toda a discussão acerca do
agente crítico, ou como Freud nos diz, aquilo que conhecemos laicamente como "a nossa consciência".
O ideal do ego, com a concomitante instauração desse agente crítico, será responsável pelas
manifestações do sentimento de "estar sendo observado", a auto-observação, a autocrítica e também a
censura dos sonhos. Todas essas considerações indicam uma assertativa de que uma parte do ego
resiste a ele mesmo e que esta parte tem um papel importante na execução do recalque.
O exame da melancolia acrescenta à teoria do ego a elucidação da relação íntima que é estabelecida
primitivamente entre o ego e os objetos, e faz salientar que o mecanismo próprio de constituição do
ego é a identificação e não apenas um investimento pulsional tal como se concebia em Sobre o
narcisismo: uma introdução (1914). O ego não está dado desde o início (n.4), e a identificação será
o processo que tanto decorre da relação com os objetos como também vem a propiciar o meio pelo qual
a unidade do ego será investida.
Em Luto e Melancolia (1917) o estado patológico da melancolia, tal como no luto, encontramos uma
suspensão dos investimentos objetais reais e ambos se referem à perda de um objeto amado. No
entanto, na melancolia não se trata de uma perda real do objeto; o desligamento da libido é imposto
por uma frustração na esfera ideal que altera toda a dinâmica do processo de luto. Esta alteração
tornará explícita tanto a presença do agente crítico, quanto o mimetismo possível do ego com o
objeto.
Na melancolia, a necessidade de um desinvestimento do objeto coloca em cena o mecanismo da
identificação que será cada vez mais importante na obra de Freud. A identificação com o objeto
perdido permite, por um lado, que a relação de investimento ainda permaneça, e por outro, faz com
que o ego fique submetido às críticas que seriam destinadas ao objeto. As críticas que o melancólico
dirige a si mesmo, são na verdade dirigidas ao objeto (Freud, 1917, p. 280).
Em Luto e melancolia (1917) a condição melancólica exposta por Freud se coloca como uma total
desconsideração do ego por parte do investimento pulsional. O narcisismo que então ressurge pela
regressão à fase oral, o faz desmanchando as linhas de demarcação do ego, onde como nos diz Freud:
"na regressão desde a escolha objetal narcisista, é verdade que nos livramos do objeto; ele, não
obstante, se revelou mais poderoso do que o próprio ego" (Freud, 1917, p. 285). Com o texto Luto e
Melancolia (1917) temos esclarecido a relação estreita que o ego estabelece com os objetos, sendo
paradigmático o caso da melancolia uma vez que nela vê-se a relevância do papel do objeto na
constituição do ego.
O processo de identificação será aprofundado em "Psicologia das Massas e Análise do ego" (Freud,
1921), onde a identificação começa por dar subsídios para se pensar a lógica da escolha amorosa tão
problemática no texto sobre o narcisismo de 1914.
Há neste texto a reafirmação de uma identificação primordial estruturante que antecede todo o jogo
objetal do complexo de Édipo:
A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com
outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo (Freud, 1921,
p133).
Ao desenvolvimento da teoria da identificação se faz concomitante a relevância que o complexo de
Édipo alcançará na teoria freudiana. O complexo de Édipo passa a representar para a teoria freudiana
o modo de constituição do desejo e da escolha sexual pela via da identificaçã (n.5). Através deste
complexo se encena o drama do narcisismo e se constituem as leis da escolha de objeto.
Para além da garantia de um narcisismo secundário cujas consequências, como vimos, pode ser a
instauração de agente crítico, o ideal do ego em 1921 será pensado diante da dificuldade, claramente
exposta pela condição melancólica, de desvincular o investimento objetal da identificação narcísica.
No presente texto o ideal do ego é elevado à categoria de "uma gradação diferenciadora no ego"
(n.6), que impõe sua presença na estrutura do psiquismo.
A consideração das patologias já havia dado subsídios a Freud para se aproximar da condição real da
relação do ego com os objetos. A abordagem da melancolia tomava a identificação como necessariamente
remetida à fase oral primitiva. A situação identificatória era, portanto, examinada fundamentalmente
em seu aspecto regressivo. O que temos em Psicologia das Massas e Análise do ego (Freud, 1921) é uma
ampliação do processo identificatório e a tentativa de esclarecer seu mecanismo para além do caráter
regressivo e das configurações patológicas.
Da melancolia, onde a identificação advinha em resposta à perda de um objeto, a questão se coloca
nos seguintes termos:
Será inteiramente certo que a identificação pressupõe que a catexia do objeto tenha sido abandonada?
Não pode haver identificação enquanto o objeto é mantido? (Freud, 1921, p.144).
O intuito de Freud é demonstrar que a identificação e o ideal do ego não são apenas nuances da
estrutura psíquica, mas que essas noções permitem, acima de tudo, lançar uma luz sobre o modo de
constituição do laço social. O contexto da identificação - que deixa de estar ligada apenas à
patologias narcísicas - dá subsídios para se pensar a organização dos grupos. Ou seja, ajuda a
desvendar a natureza do laço social, tomando-o fundamentalmente a partir da libido na sofisticação
de investimento que esta alcança com a esfera do ideal do ego. Assim, as relações amorosas
constituem a essência da mente grupal (Freud, 1921, p.117). Com isso, Freud desfaz as teses cuja
abordagem das características dos grupos se fazia a partir do pressuposto da sugestão, subjugando
este conceito ao de libido.
Temos então que os grupos se caracterizam por colocarem um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal
do ego e, consequentemente, se identificaram(em) uns com os outros em seu ego (Freud, 1921, p147).
Deste modo, temos configurados dois tipos de laço emocional: o investimento no objeto e a
identificação entre os pares que compartilham este investimento. Com isso pode-se abordar outro
nível de determinação para o investimento, o ideal do eu, que evita as configurações dramáticas que
encontramos na melancolia com a regressão à fase oral e o consequente acoplamento do ego com o
objeto.
O aspecto positivo do ideal do ego se dá na medida em que o investimento objetal, ocorrendo
vinculado a este nível, permite uma parcialidade na identificação do ego, condição esta que lhe
"protege" de muitos danos pois difere da identificação maciça do ego com o objeto que encontramos na
melancolia e nos sintomas neuróticos. Esta situação se resume numa certa distância que sustenta a
tensão entre o que ocorre de um lado como identificação (ego) e de outro o investimento (ideal do
ego).
O ideal do ego se funda como uma possibilidade de prorrogação narcísica, característica do ego, que
se realiza a partir de um investimento de ideais externos, ideais de uma cultura, de uma moral, cuja
marca de exterioridade permitirá a inversão de seu papel tornando-o recalcante através de exigências
impostas ao ego. Deste modo, o exercício da função judicativa do ideal do ego é garantida pela
promessa de continuação narcísica que representa.
Assim, aquilo que em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) nos é apresentado apenas como um
derivado do narcisismo, um narcisismo relançado na via objetal, adquire agora uma autonomia que lhe
confere a autoridade de representante do mundo externo (n.7).
A elucidação de uma função crítica exercida pelo ideal do ego que se forma nos descaminhos da
perpetuação narcísica vai oferecendo elementos para se pensar um novo estatuto para as exigências
recalcantes do mundo externo, cujo aspecto moral sempre fora apontado por Freud. A autonomia do
agente crítico que se mostra configurada na melancolia e nos delírios de perseguição, se apresenta
como uma formação relevante para o psiquismo, onde, mesmo não sendo ruidosa como nas patologias
mencionadas, ocupa um lugar de destaque na organização do ego.
A concepção do ideal do ego permite um primeiro exame da estrutura social, de onde se retira que o
ideal moral da civilização é constituído com base no narcisismo. Ele provém da incapacidade de se
renunciar ao modo de satisfação narcísica já obtida, e a transferência que então se efetua constitui
a libido como o fundamento do laço social. Como consequência dessa primeira abordagem freudiana da
constituição social encontramos a matriz da crítica que será lançada ao projeto civilizatório. Tal
como na teoria do ego, a base libidinal do laço social confere um estatuto precário quanto à
presença da realidade. Desse modo, não se sustenta uma idéia que conceba a moral como a conquista
máxima do homem no discernimento do que é certo ou errado. A pulsão (tomada aqui como libido) é
deste modo inserida no fundamento não apenas do psiquismo, mas, como não poderia deixar de ser,
também no fundamento da organização social.
O esclarecimento dos mecanismos identificatórios a partir da perspectiva do ideal do ego, tanto
elucida o modo de constituição, organização e funcionamento do investimento objetal da instância
egóica quanto amplia o alcance da libido tornando-a um instrumento que permite pensar as bases da
organização social.
NOTAS
1. Os textos em questão referem-se a “A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão”
(1910) e “Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância” (1910) ambos in ESB: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1980, vol XI;
“Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides)”
(1911) e “Formulação sobre os dois princípios de funcionamento mental” (1911) ambos in ESB, vol.
XII;
2. Antes da introdução do conceito de narcisismo Freud já havia analisado as consequências desta
interferencia das pulsões de autoconservação na escolha do objeto amoroso ou sexual sob o prisma da
cisão psíquicas que estas pulsões impõem na esfera do desejo. Cf. FREUD, S., “Moral sexual
‘civilizada’ e doença nervosa moderna” (1908) ESB, vol. IX; e “Sobre a tendência universal à
depreciação na esfera do amor” (1912) ESB, vol. XI;
3. Por exemplo a questão da censura que exerce a função de barreira contra a qual o sonho, para
cumprir seu papel de realização dos desejos, precisa passar pela distorção onírica;
4. Com esta afirmação foi que Freud começou por desenvolver o conceito de narcisismo em “Sobre o
narcisismo: uma introdução” (1914), op. cit., p. 93;
5. O processo de identificação no complexo de Édipo será mais acentuado a partir da postulação da
fase fálica que caracteriza para ambos os sexos o reconhecimento de um único orgão sexual, o
falo;
6. Título do cap. XI de “Psicologia de Grupo e Análise do ego” (Freud, 1921);
7. Freud em “Psicologia das massas e análise do ego” chega a atribuir a função de teste de realidade
ao ideal do ego (Freud, 1921, p. 145) revendo esta afirmativa em seu texto “O ego e o id” de 1923,
onde novamente o teste de realidade é definido como uma das funções do ego.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de
Janeiro, Imago, 1980:
- Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna (1908), vol. IX.
- A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão (1910), vol. XI.
- Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910) vol XI.
- Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental (1911a), vol. XI.
- Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides)
(1911), vol. XII.
- Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (1912), vol. XI.
- Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), vol. XIV.
- Luto e melancolia (1917 [1915] ), vol. XVI.
- Psicologia de Grupo e Análise do ego (1921), vol. XVIII.