"O INCONSCIENTE" (1915)
Juliana Lidia Machado Cunha Lunz
Mestra em Teoria Psicanalítica pela UFRJ
O que se pretende esclarecer é o conceito de Inconsciente segundo as formulações de Freud
(1856-1939). Tendo em vista que esta noção passou por várias mudanças, lapidada no decorrer da vida
de Freud, deve-se ressaltar aqui o artigo metapsicológico de 1915 intitulado “O Inconsciente” (1915)
como texto orientador.
Entretanto, a expressão “inconsciente” já era usada antes da fundação da Psicanálise, ainda que
portando outros sentidos diferentes do que Freud pretendera enunciar. Por isso, o texto principal
dedicado ao conceito inicia-se apresentando as idéias que não corresponderiam ao inconsciente
freudiano.
Vários outros conceitos devem ser abordados para esta compreensão como: os elementos deste
inconsciente; os princípios que o regem; a noção de pulsão (tantas vezes confundida com o instinto);
o mecanismo do recalque; sonhos e outras manifestações de seu trabalho. Alguns são conceitos melhor
aprofundados no decorrer de outros cursos, com o uso de outros artigos, especificamente dedicados a
contornar seus espaços e funções no corpo teórico da psicanálise. Entretanto, importam sobretudo no
esclarecimento deste conceito mais “popular”: o inconsciente psicanalítico.
Teorias do Inconsciente anteriores a Freud
Leibniz (1646-1716), filósofo e matemático que desenvolveu a teoria da monadologia, postulava a
existência de mônadas, cada qual sendo uma espécie de átomo, de natureza não extensa, ou seja,
imaterial e psíquica. A soma de algumas mônadas criaria uma extensão, algo material, responsável por
pequenas percepções inconscientes. Por sua vez, a soma destas pequenas percepções inconscientes
comporiam uma apercepção, sendo esta última capaz de superar o “limiar da consciência”.
Como exemplo para a teoria da monadologia teríamos: a) o som do quebrar de uma onda no mar é
composto dos sons de minúsculas gotas de água se chocando ao mesmo tempo; b) o som de cada uma
destas gotas é uma pequena percepção; c) por fim, o som da arrebentação no mar é a apercepção.
Herbart (1776-1841) continuou o estudo de Leibniz e criou a expressão “limiar da consciência”. Na
consciência não é possível haver idéias incoerentes e irrelevantes. Estas idéias são afastadas da
consciência e tornadas inibidas, logo inconscientes na acepção da teoria monadológica.
Fechner (1801-1887), pai da psicofísica, criou a analogia que tanto impressionou Freud: a mente como
um iceberg. A consciência seria a ponta visível de uma enorme montanha de gelo, cuja parte submersa
corresponderia ao inconsciente.
Justificando o Inconsciente: Determinismo Psíquico
Ela [a suposição do inconsciente] é necessária porque os dados da consciência apresentam um número
muito grande de lacunas; tanto nas pessoas sadias como nas doentes ocorrem com freqüência atos
psíquicos que só podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais, não
obstante, a consciência não oferece qualquer prova. (...) esses atos se enquadrarão numa ligação
demonstrável, se interpolarmos entre eles os atos inconscientes sobre os quais estamos conjeturando.
(...) a suposição da existência de um inconsciente nos possibilita a construção de uma norma bem
sucedida, através da qual podemos exercer uma influência efetiva sobre o curso dos processos
conscientes (...). (Freud, 1915a, p.192).
O determinismo psíquico orienta todo o raciocínio freudiano para chegar ao conceito de Inconsciente.
Segundo este princípio, para todo evento há uma causa. Nada ocorre ao acaso. Se um evento parece
ocorrer espontaneamente, isto se deve aos elos entre os eventos e pensamentos anteriores, ocultos no
inconsciente. Sempre há uma conexão entre os pensamentos, e tal conexão pode ser explicada a partir
da hipótese ou “suposição do inconsciente”.
Como indicadores da existência do inconsciente, Freud cita os sonhos, os sintomas, a hipnose, as
parapraxias entre outros. Dizia-nos em 1932, de forma bastante didática:
Denominamos inconsciente um processo psíquico cuja existência somos obrigados a supor — devido a
algum motivo tal que o inferimos a partir de seus efeitos —, mas do qual nada sabemos. Nesse caso,
temos para tal processo a mesma relação que temos com um processo psíquico de uma outra pessoa,
exceto que, de fato, se trata de um processo nosso, mesmo. Se quisermos ser ainda mais corretos,
modificaremos nossa assertiva dizendo que denominamos inconsciente um processo se somos obrigados a
supor que ele está sendo ativado no momento, embora no momento não saibamos nada a seu respeito.
Essa restrição faz-nos raciocinar que a maioria dos processos conscientes são conscientes apenas num
curto espaço de tempo; muito em breve se tornam latentes, podendo, contudo, facilmente tornar-se de
novo conscientes. Também poderíamos dizer que se tornaram inconscientes, se fosse absolutamente
certo que, na condição de latência, ainda constituem algo de psíquico. (1932, p. 90).
Vemos aqui o surgimento das expressões “conteúdos latentes” e “conteúdos manifestos”, o que equivale
a dizer conteúdos inconscientes e conteúdos conscientes a princípio, comportando-se como duas
versões que falam de uma mesma coisa, como duas línguas — o segundo como uma distorção do primeiro.
Num sentido mais estrito, o conteúdo latente designaria, por oposição ao conteúdo manifesto —
lacunar e mentiroso —, a tradução integral e verídica da palavra do sonhante, a expressão adequada
do seu desejo. (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 99).
Vale ainda dizer que o inconsciente não é uma entidade empírica, algum órgão ou região do cérebro
que Freud tenha descoberto. O termo "descoberta" deve aliás ser usado com reservas ao se falar de
inconsciente psicanalítico. Um astrônomo descobre um novo planeta, mas antes deste cientista
identificá-lo, o planeta já existia. Quanto ao inconsciente, esta descoberta, que implica em uma
existência anterior, é discutível. Além disto, uma entidade empírica como o planeta se oferece à
observação ou à inferência por cálculo. Já o inconsciente, antes ou depois da psicanálise,
permaneceu invisível. Confirma-nos esta idéia os comentários de Garcia-Roza:
Ora, a verificação direta do inconsciente jamais será feita, sua impossibilidade empírica não se
deve à falta de instrumentos, mas a sua própria natureza. Uma fenomenologia do inconsciente é uma
tarefa impossível. Ele poderá, quando muito, ser inferido a partir de seus efeitos na consciência
ou, melhor ainda, a partir de seus efeitos no discurso manifesto, mas jamais ser objeto de
observação direta. (1999, p. 211).
O Inconsciente não é caótico
Partindo então de uma definição negativa, digamos o que o Inconsciente não é: ele não é a margem da
consciência nem o profundo desta consciência, tampouco o lugar de algo caótico e misterioso.
A conotação entre inconsciente e caos deve-se a ênfase dada à consciência, coordenada pela lógica e
pela razão. Alguns teóricos — citados anteriormente como Fechner, Herbart e Leibniz — tinham a
consciência como o objeto de estudo principal, e não falavam, afinal, do que se passava com o
inconsciente.
Freud, entretanto, enfatiza o inconsciente em toda sua teoria como algo que pensa, ao contrário do
que se entendia até então. O inconsciente pensa, e tanto o faz que é necessária a incidência de uma
censura para que os sonhos tenham o aspecto incoerente como são lembrados. Ou ainda, nas palavras do
ilustre professor Garcia-Roza: "Se os conteúdos latentes dos sonhos fossem caóticos e
ininteligíveis, não haveria motivo para serem distorcidos pela defesa" (1999, p. 209).
A função da censura é distorcer o conteúdo latente dos sonhos para que o manifesto surja de forma
ininteligível, pelo menos até Freud anunciar algumas leis que regem este inconsciente e assim
permitir sua interpretação. Antes de Freud, o inconsciente era expressão usada como adjetivo daquilo
que não era consciente — o que difere de um sistema psíquico autônomo regido por leis próprias.
O inconsciente psicanalítico marca assim sua diferença maior do que era postulado pela psicologia da
consciência. Para esta última corrente, psíquico e consciência eram equivalentes, apesar de vários
graus de consciência serem possíveis. Mas nem mesmo esta gradação Freud concordava ser atribuível
para seu inconsciente. Não era nem o mais profundo, nem o mais afastado da consciência, como pode
conotar alguns apelidos que tentaram sinalizar a psicanálise como "psicologia profunda" ou
"psicologia das profundezas".
Freud não nos fala de uma consciência que não se mostra, mas de outra coisa inteiramente distinta;
fala-nos de um sistema psíquico, o Ics (Ubw) que se contrapõe a outro sistema psíquico, o Pcs/Cs
(Vbw/Bw), que é em parte inconsciente (unbewusst) mas que não é o inconsciente (das Unbewusste).
(Garcia-Roza, 1999, p. 210)
Ou seja, parte dos processos que compõem o sistema Cs/Pcs podem ser inconscientes, mas nem todo
processo inconsciente faz parte do Cs/Pcs e sim, do sistema Ics.
Inconsciente e a Primeira Tópica
Freud formulou duas teorias para a explicação do aparelho psíquico, o que se costuma denominar
tópicas.
A primeira tópica elenca três sistemas, Inconsciente (abreviado como Ics), Pré-consciente (Pcs), e
Consciente (Cs). Entretanto, Freud logo assimila o Cs como um dispositivo do sistema Pcs, com a
função de atenção, ficando então apenas uma grande divisão, entre Ics e Pcs-Cs:
Percepção______________Ics____:_____Pcs_____________Consciência
Mas além do sentido sistemático existe o sentido descritivo para falar de processos inconscientes,
enquanto não conscientes. Quando anteriormente falávamos daquilo que se explicava como inconsciente
antes de Freud, como simplesmente o que não é consciente, é de fato num sentido descritivo que o
termo está sendo usado.
Definir a natureza inconsciente de um fato psíquico pela sua relação à consciência, isto é, pela sua
não presença na consciência, corresponde ao que Freud chamou de sentido descritivo do termo
“inconsciente. (Garcia-Roza, 1999, p. 218).
Estes processos não conscientes encontram-se no sistema Pré-consciente, podendo este ser
compreendido como uma área de posse das lembranças, necessária para que a consciência exerça sua
função. Para lembrarmos de um dado, todas as lembranças não podem se encontrar conscientes ao mesmo
tempo. Estas lembranças, idéias inconscientes do Pcs, são facilmente tornadas conscientes. São
exemplos para algo inconsciente no sentido descritivo: datas que não estão no momento presentes na
nossa consciência, mas que podem vir a ela por decisão própria; coisas que aconteceram ontem, o que
você comeu no café da manhã.
Mas há também processos inconscientes que não se tornam conscientes por uma mera decisão. É o
recalcado e este sim, pertence ao sistema Inconsciente, sendo a expressão utilizada então no sentido
sistemático do termo.
A diferença entre uma representação inconsciente no sentido descritivo e a representação
inconsciente no sentido sistemático se dá frente a uma resistência que impede a segunda de se tornar
consciente. É a censura de que falamos anteriormente.
Há uma diferença fundamental entre a representação que é inconsciente (no sentido descritivo) e
aquela que é inconsciente porque pertence ao sistema Ics. No primeiro caso, ela em nada difere das
representações conscientes e não há qualquer impedimento a que se torne consciente, enquanto que no
segundo caso ela está submetida a uma outra ordem e há uma resistência, por parte do sistema Pcs/Cs,
a que ela tenha acesso à consciência. Essa resistência é exercida em nome da censura que opera no
limite entre os sistemas Ics e Pcs/Cs. (Garcia-Roza, 1999, p. 219).
Em resumo, os processos inconscientes que facilmente tornam-se conscientes pertencem ao sistema Pcs
enquanto os processos inconscientes, que são difíceis de vencer a censura, pertencem ao sistema Ics,
pois não chegam ao sistema Pcs-Cs pela ação do recalque. Para esclarecer vejamos um exemplo:
A fim de explicar um lapso de língua, por exemplo, achamo-nos na obrigação de supor que a intenção
de fazer um determinado comentário estava presente na pessoa. Concluímo-lo, com segurança, a partir
da interferência dessa intenção no comentário que ocorreu; mas a intenção não foi levada a cabo e
era, portanto, inconsciente. Quando, a seguir, nós a revelamos à pessoa que cometeu o lapso, se ela
reconhece tal intenção como sendo-lhe familiar, era-lhe esta, então, apenas temporariamente
inconsciente; se, contudo, a repele como algo alheio, tal intenção foi, então, permanentemente
inconsciente. (Freud, 1932, p. 90‑91).
Inconsciente e a Segunda Tópica
Na segunda tópica, o termo inconsciente é usado no sentido descritivo novamente para qualificar
processos de vários sistemas, neste caso o Id, parte do Ego e parte do Superego. Se a diferença
entre Ics e Pcs — enquanto sistemas portanto — da primeira tópica era inter-sistêmica, a partir da
segunda tópica, a diferença apontada é intra-sistêmica, ou seja, tanto no Ego quanto no Superego
existem processos inconscientes e processos conscientes (quanto ao Id, de fato não há possibilidade
desta coexistência).
De forma extremamente simplista, podemos considerar que, enquanto o Id não conhece valores morais e
é regido pelo Princípio do Prazer, buscando sempre reduzir a tensão, o Ego se coloca como mediador
entre os impulsos do Id e a realidade exterior, sendo regido pelo Princípio da Realidade. Para
esclarecer a relação entre Id e Ego, Freud usa a analogia do cavalo e do cavaleiro ilustrando suas
funções respectivamente (cf. Freud, 1932, p. 98). Já o Superego desenvolve-se a partir da
assimilação das regras de conduta, sendo sua parte consciente a moral que rege por exemplo o
convívio social.
Conteúdos do sistema Inconsciente
Dentre os processos inconscientes que não superam a resistência com facilidade, ou seja, os
processos inconscientes pertencentes ao sistema Ics, há ainda os de outra classe: os que sempre
foram inconscientes. Isto é o que se deriva da máxima “Tudo que é reprimido deve permanecer
inconsciente; mas (...) o reprimido não abrange tudo o que é inconsciente" (Freud, 1915a, p. 191).
Estes são os representantes das pulsões. Mas o que vem a ser a pulsão?
A pulsão é a suprema causa de toda atividade psíquica além da premissa inicial de toda a postulação
sobre o inconsciente: o determinismo psíquico. Enquanto seu aspecto físico é a necessidade, o
aspecto mental é o desejo. As pulsões não são predisposições herdadas, como pode ser compreendido
pelo sentido usual da palavra instinto. Refere-se em verdade à fontes de estimulação do interior do
corpo, sendo suas principais características sua origem interna e seu aparecimento como força
constante contra a qual a ação de fuga não tem eficácia.
Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, uma 'pulsão' nos
aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como
representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como
uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o
corpo. (Freud, 1915b, p.142).
Os representantes de uma pulsão podem ser dois: o representante-coisa e o representante-palavra. Mas
se a pulsão pode ser considerada quanto à pressão, à finalidade, ao objeto e à fonte, é sob o
primeiro aspecto que se denomina como libido ou energia psíquica.
Esta energia é a que se encontra investida nas representações, de acordo com o sistema Ics ou o
sistema Pcs-Cs. No Ics encontram-se as representantes-coisa somente. Sua energia está livre,
caracterizando assim a mobilidade do processo primário dos conteúdos inconscientes. No Pcs
encontram-se representantes-coisa e representantes-palavra. Para um conteúdo tornar-se consciente é
preciso que os dois tipos de representantes se encontrem, caracterizando então o processo
secundário.
No recalcamento não se trata apenas de evitar que uma representação Ics se torne Cs, mas de impedir
que a representação-coisa, pertencente ao sistema Ics, seja traduzida em palavras, isto é, seja
sobreinvestida a partir do sistema Pcs, fazendo o enlace com a representação-palavra. (Garcia-Roza,
1999, p.229).
Conhecer as conexões dos pensamentos e tornar disponível a libido que antes era usada para manter
uma idéia inconsciente, são alguns dos objetivos da Psicanálise.
As propriedades do sistema Ics e do sistema Pcs
Em resumo, são características dos processos inconscientes: a ausência de negação; o processo
primário (promovido por deslocamento, condensação e a mobilidade da energia); a atemporalidade e a
substituição da realidade externa pela psíquica (regida pelo principio do prazer ).
Já os processos do sistema Pcs inibem a descarga de idéias catexizadas, promovendo deslocamento de
parte desta catexia para outra idéia mais admissível, num papel de censura. Unindo
representante-coisa a representante-palavra o Processo Secundário é caracterizado pela ligação da
energia (sendo regido pelo principio da realidade). Devido à ausência da negação, de dúvida ou de
grau de certeza, desejos opostos podem coexistir sem se anular no Inconsciente. Logo, os
representantes inconscientes somente chegam à consciência depois de deformados pelo recalque ou em
formações de compromisso.
Os representantes pulsionais que formam o núcleo do Ics estão coordenados entre si mas sem se
influenciarem mutuamente e sem se contradizerem, o que significa que, se forem ativados
simultaneamente e se suas metas forem incompatíveis, as moções pulsionais não se cancelam
reciprocamente, mas confluem em direção a uma meta intermediária, numa solução de compromisso.
(Garcia-Roza, 1999, p. 231).
Este princípio que se insinua é o da não-contradição, dois desejos opostos podem coexistir variando
quanto ao investimento pulsional que cada um carrega. Daí se define o conflito psíquico como
inerente ao aparelho freudiano e a formação de compromisso cujas ilustrações principais são os
sonhos e os sintomas.
Considerações finais
Teria então Freud criado o inconsciente tal como uma ficção? Esta pergunta nos remete ao problema do
estatuto ontológico do inconsciente, ao realismo do inconsciente e a diferentes orientações clínicas
dentro da própria psicanálise.
Juan David Nasio nos oferece uma amostra de como este problema pode ser discutido através do que lhe
foi perguntado em uma de suas conferências:
— A propósito do inconsciente, eu gostaria, em primeiro lugar, de conhecer sua reação à réplica
de
um amigo meu que não acredita na psicanálise e que me disse, recentemente: "Quanto a mim, não tenho
inconsciente!". Que acha o senhor disso? É possível não ter inconsciente?
— Se você me permite a ironia, creio que seu amigo tem razão: ele não tem inconsciente.
— Mas como é que ele pode ter razão?!
— Ele tem razão porque, a meu ver, se o inconsciente existe, ele só pode existir no interior do
campo da psicanálise e, mais precisamente, no interior do campo do tratamento analítico. Ora seu
amigo parece situar-se fora desse campo e, por conseguinte, fora do inconsciente. (Nasio, 1993, p.
49).
O que está implicado aqui é uma diferença de concepção entre “inconsciente pessoal” e
“inconsciente
impessoal”. Se consideramos o inconsciente como pessoal, numa sessão de análise encontrar-se-iam o
inconsciente do paciente e o inconsciente do analista. Já se considerarmos o inconsciente como
impessoal, diremos que há apenas um inconsciente e que este é produzido pela “transferência” como um
efeito.
Lacan foi quem mais consolidou este entendimento — formulando o inconsciente como
“transindividual”
(cf. 1953, p. 260) e como “ético” (cf. 1964, p. 37) — em oposição a Laplanche — que defendeu a
individualização do inconsciente em respeito à realidade atribuída às representações, ao recalcado
com intensidade, ao investimento afetivo e sua função de representação da pulsão.
Para finalizar, cabe notar o que ainda nos recomenda Garcia-Roza: "Apesar de expressarem pontos
de
vista opostos, ambas as teses pretendem fidelidade ao texto freudiano, ou, pelo menos, é ao texto
freudiano que recorrem para demonstrar suas hipóteses. Convém, portanto, retornarmos também a ele"
(1999, p. 218).
O que pode se notar então é que dentro da psicanálise não existe uma concepção única do
inconsciente
e seu funcionamento. O texto freudiano permite várias leituras, o que leva à existência de
diferentes orientações clínicas como as de Jacques Lacan, Melanie Klein, Jean Laplanche, e outros.
Neste curso entretanto, procura-se apresentar as primeiras formulações de Freud, ainda que pareçam,
em alguns momentos, objeto de um raciocínio contraditório. Lembremos, porém, que estamos conferindo
o nascimento da psicanálise, e que seus conceitos precisaram ser lapidados durante toda a vida de
Freud. Nem por isso, e mesmo depois de outros estudiosos terem se dedicado exclusivamente à
psicanálise, não se chegou a uma formulação homogênea de toda sua teoria, mas a várias frentes de
pesquisa em busca do aperfeiçoamento da conceituação e decodificação do inconsciente psicanalítico.
Bibliografia
FREUD, S., Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 2ª ed., Rio de Janeiro,
1987, Imago.
____(1915a) “O Inconsciente”, in ESB, vol. XIV, p. 183‑233.
____(1915b) “Os instintos e suas vicissitudes”, in ESB, vol. XIV, p. 129‑162.
____(1932), “A Dissecção da Personalidade Psíquica”, in ESB, vol. XXII, p. 75‑102.
GARCIA-ROZA, L. A., 1999, “Inconsciente”, in Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol. 3, 3ª
ed.,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 207‑287.
LACAN, J., (1953), “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” in Escritos, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
____(1964) Seminário XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 2ª ed., Rio de
Janeiro,
Jorge Zahar, 1998.
LAPLANCHE, J., PONTALIS, J.-B., 1992, Vocabulário de Psicanálise, 2ª ed., São Paulo, Martins
Fontes.
NASIO, J.-D., 1993, Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, Rio de Janeiro, Jorge Zahar.