INTRODUÇÃO AO NASCIMENTO DA PSICANÁLISE
Tania Coelho dos Santos
Transcrição de Ana Paula Sartori e revisão de Rosa Guedes Lopes.
Lacan fez uma leitura extremamente voltada para a prática da psicanálise, para os princípios dessa
prática, para os modos de agir dessa prática. Além de ter feito isso, de ter dado enormes
contribuições à formação do psicanalista, ele contribuiu também para o ensino da psicanálise na
universidade porque foi o psicanalista que mais se preocupou em destacar os fundamentos
epistemológicos do pensamento psicanalítico. Coisa que, muitas vezes, na tradição, no ensino da
psicanálise, o que se fazia era transmitir uma experiência, um saber derivado da experiência sem o
cuidado e o rigor no tratamento dos conceitos. E, outras vezes, quando se tinha cuidado e rigor com
o tratamento dos conceitos, eles eram pensados como se fossem uma teoria a parte, separados de uma
experiência e de uma prática.
Então, eu acho que o trabalho de Jacques Lacan é um trabalho muito difícil porque é, ao mesmo tempo,
explicitar o rigor epistemológico da construção do pensamento freudiano e não permitir que esse
trabalho teórico seja lido como uma teoria em si, separada da sua dependência em relação a uma
prática, em relação a uma clínica.
Com isso, eu esclareço porque o laboratório de ensino do NÚCLEO SEPHORA se chama “Para ler Freud com
Lacan”. Não se trata de ler Freud lacanianamente. Não se trata de ler Freud esquecendo a diferença
entre o texto freudiano, propriamente dito, e a interpretação que dele faz Lacan. Na universidade, a
interpretação que Lacan fez é muito útil por causa do compromisso que ele tem com a parte
epistemológica, com os fundamentos, com o esclarecimento sobre o modo de construção da teoria. Isso
para nós é muito valioso. Mas, na universidade, nós também precisamos fazer o exercício, muitas
vezes difícil, de saber o que devemos a Freud e o que devemos à interpretação lacaniana da obra
freudiana.
Esse é um esforço de esclarecimento benéfico para a formação de vocês. Penso que, com o passar do
tempo, nós conseguimos evitar alguns problemas bastante repetitivos que se originavam da mistura, na
cabeça dos alunos, de um autor com o outro. Era muito comum que se escutasse coisas do tipo: “O real
em Freud” - o real é um conceito de Lacan! “Freud fala do simbólico” – é Lacan que fala do
simbolico. Quer dizer, uma série de conceitos lacanianos, criados para melhor entender o pensamento
freudiano, já tinham se tornado “parte da obra de Freud”, sem nunca terem estado nela, sem jamais
terem sido mencionados, citados ou trabalhados por Freud. Foram imaginariamente incorporados ao
texto freudiano. Já me aconteceu muitas vezes, examinando uma dissertação de mestrado, encontrar
referências a Freud completamente retiradas da obra de Lacan, o que significa citar uma coisa que é
de um autor como se fosse de outro.
Então, a função do laboratório é estabelecer uma modalidade de entrada, um uso dos conceitos no
trabalho com a teoria que mantenha essa ferramenta de leitura: saber fazer a diferença entre um
autor e outro e, ao mesmo tempo, se esforçar para encontrar a articulação entre eles.
Com isso, eu não estou querendo dizer que o que Lacan fez nada tem a ver com o trabalho de Freud.
Mas há um trabalho a fazer no sentido de mostrar em que a interpretação de Lacan trouxe algo de
novo, renovou o texto freudiano ou esclareceu melhor alguma coisa que nós nunca tínhamos pensado
antes. Um autor não é o outro autor. Eles são distintos. E, no nível de graduação, o que eu espero,
efetivamente, é começar um ensino que não seja prejudicado pela contaminação excessiva do texto
freudiano pela interpretação de Lacan. é preciso servir-se de Lacan sem confundi-lo com Freud. É
preciso poder ler Freud.
O que nós esperamos isso de um aluno de graduação? Que ele seja despertado, que tenha interesse em
ler a obra de Freud. É uma obra que deve ser lida, que deve ser estudada. É preciso que aqueles que
têm interesse em prosseguir no estudo da teoria, da prática e da clínica psicanalítica adquiram o
hábito e o prazer de ler o texto freudiano. Só dessa maneira é possível construir uma base
suficientemente confiável para prosseguir depois. Porque, entre outros motivos, as interpretações
lacanianas do texto freudiano são bastante complexas. São muito difíceis de compreender para quem
não chegou a construir o solo do conhecimento mais básico, mais direto do que Freud realmente disse
por ele mesmo, o estilo freudiano, a letra do texto freudiano, o modo freudiano de tratar as idéias,
os conceitos etc.
No plano do nosso curso, essa atitude vai estar incluída metodologicamente. É o que vai dirigir a
nossa maneira de trabalhar. Nós vamos trabalhar o texto freudiano. Não há na bibliografia textos
lacanianos a serem lidos. As intervenções que serão trazidas, a partir do conhecimento de Lacan,
visam apenas promover um entendimento melhor dos conceitos freudianos. De modo que a nossa
ferramenta é o texto de Freud.
Eu pensei, num primeiro momento, o que seria mais adequado para introduzir alunos que são
majoritariamente do 4o período. Há alguns que não são, mas a imensa maioria é do 4o período. Como
introduzir vocês num assunto diferentemente de outros conteúdos em psicologia? É um assunto que não
se domina lendo um manual. Muitos conteúdos em psicologia possuem um manual: manual de psicologia
experimental, manual de teoria cognitiva, onde, mais ou menos, se tem um resumo das principais
definições, conceitos, idéias, exemplos. Então se pode, de uma forma resumida, adquirir rapidamente
as ferramentas básicas daquela disciplina.
O que acontece em psicanálise é parecido com o que acontece em sociologia, em antropologia. É um
assunto que tem uma penetração mais vasta na cultura. É um assunto que dificilmente se resume num
manual. E, se fazemos isso, é a um preço de contar muita mentira. É ao preço de cometer traições
bastante sérias em relação ao original. De modo que o mais difícil em relação à psicanálise é
justamente despertar o desejo de conhecê-la pela leitura. Só uma leitura suficientemente longa,
suficientemente vasta, pode dar conta da tarefa de familiarizar alguém, como convém, aos principais
aspectos do pensamento freudiano. É um pouco como a filosofia. Às vezes, se pega o manual, se dá uma
lida para ter uma idéia do que se trata, mas realmente, ninguém aprende filosofia no manual. É
preciso ler a obra do filósofo para, de fato, poder compreender do que ele trata. Os manuais não dão
conta de atingir esse objetivo.
Esse é ponto um: nós precisamos começar. E vamos começar por onde? Se o objetivo é, principalmente,
despertar o interesse para a leitura, eu não vou simplificar, por exemplo, a teoria psicanalítica e
ensinar os conceitos mais básicos, já que se trata de uma disciplina de psicanálise. Eu poderia
pegar os conceitos de pulsão, inconsciente, repetição, transferência, e ensiná-los o mais
rapidamente possível. Só que, geralmente, isso se faz ao preço das pessoas não se sentirem
despertadas para ler Freud.
Onde, na obra freudiana, nós sentimos realmente esse gosto, esse prazer? Não é na leitura dos textos
metapsicológicos, dos artigos de 1915, dos textos mais conceituais e mais teóricos. Geralmente, esse
prazer se descobre lendo “A interpretação dos sonhos”, a “Psicopatologia da vida cotidiana” e,
principalmente, os relatos clínicos. Começar por esses aspectos, por essa parte mais literária –
quase - da obra, geralmente tem o mérito de despertar um grande interesse. É apaixonante! É como
literatura, aventura. É alguma coisa que, realmente, quando as pessoas são capturadas, elas costumam
fazer por elas mesmas até se vincularem a um curso ou a um ensino mais didático.
Mas há um outro aspecto que também motivou a minha escolha dos assuntos para essa disciplina. O
outro motivo também tem relação com o nosso programa. Eu vou falar um pouco do Programa da Teoria
Psicanalítica. Nós começamos ensinando muito conceito, na Pós-Graduação e logo descobrimos que isso
tinha um grande problema. O ensino dos conceitos não é formação psicanalítica. O ensino dos
conceitos não garante que o sujeito saiba do que se trata, uma vez que se trata de uma clínica que
tem relação com uma experiência: a experiência de análise. A psicanálise não é uma teoria, não é uma
filosofia separada de uma experiência clínica. Então, introduzir pela via como Luiz Alfredo
Garcia-Roza o fez - que foi como nós começamos -, criava um impasse: quase transformava a
psicanálise numa filosofia sem que nunca as pessoas fossem despertadas para o de quê se trata,
realmente.
Eu não vou entrar no mérito da questão mas, muitas vezes, trabalhos bem escritos e bem elaborados
teoricamente, são completamente falsos em relação ao de quê se trata na experiência. Teses do tipo:
“Poderíamos pensar que a pulsão é isso assim, e a repetição é isso assim, então o inconsciente pode
ser...” É, “poderíamos”, mas não podemos! Porque a psicanálise é uma prática, não é uma situação
filosófica. Esses conceitos são conceitos aprisionados a uma experiência que regula a teoria e não o
contrário. A teoria não tem independência em relação ao que é verdadeiro na experiência.
O nosso interesse, aqui, é fazer uma introdução à clínica psicanalítica. Uma introdução quer dizer
verificar de onde nasceram os conceitos. Esses conceitos, que depois vamos trabalhar em textos, são
textos teóricos, metapsicológicos, nasceram, na verdade, da experiência, do embate de Freud com o
tratamento das neuroses. E eles só fazem sentido se conseguimos contextualizar para o que eles foram
forjados. O que tentaram responder? Os conceitos foram produzidos como tentativa de esclarecimento
de uma experiência e nunca o contrário. A prática freudiana não é uma prática de aplicação de uma
teoria, mas da descoberta de uma série de dificuldades, impasses, limites que vão levando a
elaborações teóricas. Há tentativas de esclarecer teoricamente aquilo que se passa na experiência
prática.
Portanto, o nosso portão de entrada na psicanálise é, de um lado, a experiência do sonho e, de
outro, a atividade clínica do fundador da psicanálise. E é por aí que nós vamos nos introduzir, pela
leitura de um primeiro caso clínico. Dependendo do rendimento do grupo na compreensão e no trabalho
dos conceitos desse caso clínico, nós veremos um segundo e talvez um terceiro caso. Mas o programa
vai ser modulado de acordo com o andamento de vocês, já que de fato nós temos mais alunos de 4o
período que, possivelmente, estão vendo esse assunto pela primeira vez. Por isso, eu não posso supor
uma bagagem anterior, nem posso imaginar exatamente quanto tempo vocês vão precisar para absorver
algumas idéias básicas.
A única coisa em que eu insisto é que a freqüência às aulas é indispensável. Vocês só vão poder
obter os esclarecimentos adicionais à leitura do texto à medida que a gente se encontre aqui para
isso. Há um trabalho ativo que vai ser feito durante a aula: estimular essa leitura e essa reflexão.
A leitura ao texto é indispensável e a freqüência às aulas também, mas o ritmo não. O conteúdo pode
ser modulado de acordo com o funcionamento do grupo.
Por onde nós vamos começar? Eu vou começar hoje por uma introdução ao nascimento da psicanálise.
Quando eu pensei numa introdução ao nascimento da psicanálise, eu comecei a consultar alguns autores
que procuraram fazer uma espécie de cronologia dos eventos históricos mais importantes e eu percebi
que, quando vamos contar a história da psicanálise, começamos, geralmente, pelo nascimento do Freud,
pela família de Freud, pela história, pelos acontecimentos de juventude, enfim, pelo personagem
Freud. E com isso - não é que nada disso não seja verdadeiro ou que não seja importante na história
da psicanálise – tem-se a ilusão de que Freud é uma espécie de herói fora do seu tempo. Um herói que
descobriu e desvendou um continente novo e desconhecido e que nada à sua volta parece ter nenhuma
relação com o nascimento da psicanálise.
Indiscutivelmente, a psicanálise deve a sua invenção ao nome de Freud. Não há como separar o nome de
Freud da invenção desse saber. Entretanto, vasculhar a biografia de Freud esclarece quase nada. O
estudo da pessoa de Freud, da história de Freud, da família, da mulher, dos filhos, dos amigos de
Freud não esclarece grande coisa. É indiscutível que foi no embate de Freud com a clínica
psiquiátrica, no trabalho, no esforço do pesquisador, do investigador, do médico, no sentido de
tratar as afecções nervosas, que se explica o encontro, quase que por acaso, com o inconsciente, com
a transferência, com a verdade sexual das neuroses, com as principais descobertas que ele veio a
fazer.
[Intervenção inaudível].
TCS: Não, justamente não. Nem a pessoa dele, nem os preconceitos da época, nem nada que tenha
relação com os aspectos biográficos, seja essa biografia a do homem ou a da sociedade, explicam a
estrutura de onde esse pensamento freudiano e psicanalítico pôde emergir. Eu acho que há uma tese
mais fecunda sobre a origem da psicanálise que nós devemos a Jacques Lacan. A tese é a seguinte: “o
sujeito sobre o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência” (n.1).
Como contar a história do nascimento da psicanálise? Lacan nos forneceu um instrumento, um axioma:
“o sujeito sobre o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência”. Com isso ele nos legou uma
estrutura:
O que aparece aqui? Que a psicanálise é um saber sobre o sujeito. A invenção da psicanálise é a
invenção de uma saber sobre o sujeito, saber este que retoma, nas palavras do próprio Lacan, alguma
coisa que corre nas profundezas do gosto, com o advento da ciência.
O que é “correr nas profundezas do gosto”? A modernidade e o advento da ciência, depois da Revolução
Francesa, do nascimento dos Direitos do Homem e de uma nova era, a da sociedade moderna,
completamente diferente do mundo antigo, imprimiu ao mundo um modo de funcionar, existir e pensar
inteiramente novo, que nós chamamos de científico ou racional.
O que Lacan diz sobre isso? Que nas profundezas do gosto, à medida que cresce o poder da razão, o
poder da ciência, a força do esclarecimento das Luzes, na modernidade, cresce também o gosto pelo
mal. Que aparece aonde? Na literatura. Nos temas literários que falam do diabo, de feitiçaria, de
forças ocultas, de melancolia, de depressão, do que a alma humana tem de pior. Então, nós temos aí
duas faces da modernidade. A modernidade científica e a civilização avançando no sentido do
aperfeiçoamento industrial, tecnológico, da organização e da administração da sociedade pelo Estado,
do crescimento dos poderes da razão, da educação formal, da democracia, espalhando estruturas mais
racionais e não desumanas. E, na literatura, o crescimento de temas malditos, o crescimento de
assuntos cujo humor se choca com essa visão esperançosa do mundo, visão progressista baseada na
razão. Há um contraponto entre literatura e ciência. Na literatura aparece um aspecto da alma humana
do qual a ciência não quer saber nada. A ciência pensa o progresso. A ciência se ilude na construção
do futuro. Enquanto isso, os escritores exploram as mazelas e as infelicidades da alma humana. É
desse contraponto entre ciência e literatura que Lacan extraiu a idéia de que o sujeito da
psicanálise tem uma afinidade de estrutura com isso de que falam os escritores, de que fala a
literatura, com esses dilemas, com esses sofrimentos, com esses impasses, com o mal-estar da alma
humana. De um lado temos a alma e de outro, a razão.
Na estrutura desse curso eu tomei o partido da alma contra a razão. Se nós começamos pelos
conceitos, nós vamos numa direção que é a de acentuar o que a psicanálise tem de ciência. Se nós
vamos aos casos clínicos, entramos na psicanálise pela porta do que ela tem de literário, do que ela
tem de relação com os aspectos da alma humana. Não é uma escolha qualquer entrar por um lado ou por
outro.
[Intervenção inaudível].
TCS: O sujeito da ciência é o sujeito em sofrimento, afetado pelo discurso da ciência, que nada quer
saber do sujeito. Você tem razão. É uma aparente contradição. O que é próprio ao discurso da ciência
é ser um discurso da razão, um discurso do que é universal, um discurso que visa o progresso. Ele
não quer saber nada do sujeito que sofre, não quer saber nada do que é o singular da alma humana com
seus demônios. De fato, o sujeito da ciência é um paradoxo. Poderia-se dizer que o sujeito da
ciência, então, é a realização da razão. Não! Justamente, o sujeito da ciência é o infeliz, o
massacrado pelo discurso da razão. É aquilo que só aparece na literatura ou no consultório. Aquilo
que nem a ciência, nem a civilização, nem a razão querem tomar o menor conhecimento.
Se começamos dessa maneira, eu não preciso explicar, tintim por tintim, como Freud chegou à
psicanálise. Eu já estou dizendo que a pesquisa sobre a alma humana corre nas profundezas de uma
civilização que parece cada vez mais interessada pela razão e mais desinteressada pelo sentimento,
pela alma, pelo sofrimento, pelos dilemas humanos. Desse modo, o nascimento da psicanálise não caiu
de pára-quedas, nem é obra de um herói. Ele acompanha o caminho indicado pela literatura.
Aliás, sobre conceitos psicanalíticos extremamente difíceis, como o conceito de pulsão, num texto
que chama “As pulsões e seus destinos”, de 1915, Freud diz, nada menos do que o seguinte: se você
quiser entender o que é a pulsão, vá aos poetas, vá à literatura, procure nos romances. É lá que
você vai encontrar as estruturas gramaticais, as estruturas da língua, onde os sentimentos se dizem.
Os sentimentos, os nossos afetos, as emoções, os desejos... É lá que você vai encontrar a fonte de
um esclarecimento sobre o que seja pulsão.
De modo que essa interpretação valoriza a filiação de Freud a uma certa inspiração, que permanece
viva ao longo do percurso em que a modernidade se funda, baseada no advento da ciência. Há um resto
da ciência. O nome desse resto é alma, emoção, afeto, sentimento, poesia, literatura, loucura. É
tudo aquilo que fica fora. Quer dizer, o paradoxo do sujeito da ciência é de ficar fora da ciência.
É aquilo que a ciência não inclui. O discurso da ciência não trata disso, não se interessa por isso,
não quer saber disso.
E a psicanálise, no entanto, é ou não é uma ciência? Se consultarmos os biógrafos de Freud, nós
vamos encontrar uma constante: todos se referem à trajetória brilhante do Freud ao longo dos seus
estudos secundários. Era um aluno culto, com um enorme talento literário. Muito cedo, esse talento
foi observado pelos professores de Freud, que ele tinha estilo, que ele escrevia muito bem na língua
alemão. Ele tinha uma cultura bastante notável e uma inclinação indiscutível para as artes e para a
literatura.
No entanto, esse homem, por razões mais ou menos pragmáticas, se decide a fazer medicina. Ele se
divide entre fazer direito, fazer medicina e, certamente, nunca pensou em seguir uma carreira de
escritor. Parece-me, a deduzir do trabalho dos biógrafos de Freud, que alguma coisa parecia estar
destinada no sentido da literatura e não no da medicina. O que faz com que Freud vá procurar a
medicina? Segundo ele mesmo, foi a leitura de um livro de Goethe, chamado A filosofia da natureza.
Ele se interessa pela natureza a partir da obra em que a natureza é revelada pela pena de um
escritor. Isso é muito interessante. Que natureza ele foi procurar na medicina? A natureza descrita,
lançada, representada por um poeta, um dos maiores poetas da língua alemã.
O curso de medicina, então, só poderia ter sido o que foi: completamente decepcionante. Ao contrário
do que vocês poderiam imaginar, Freud não fez um curso de medicina brilhante, num tempo recorde,
como se deveria esperar de um gênio. Pelo contrário, ele andou devagar, foi se arrastando, conseguiu
concluí-lo com dois anos de atraso e com uma enorme má vontade. Isso é importante, porque explica um
pouco uma certa hesitação de Freud em se encaixar no perfil do médico. Ele concluiu atrasado a
Faculdade de medicina e com bastante dificuldade. E, ao fim do percurso, conseguiu mais ou menos
concluir que, talvez, não estivesse destinado à prática médica alguma, que ele não levava muito
jeito para exercer a medicina, e que, talvez, fosse melhor ser pesquisador. Ele se dedica a ser
pesquisador - que é um outro nome de escritor. Vai escrever. Então, muito cedo, ele se dirige para
as pesquisas neurológicas e se notabiliza pelos seus escritos, pelos seus artigos científicos. Até
que, pressionado pelo desejo de se casar com sua namorada, ele ouve um amigo, quatorze anos mais
velho, Joseph Breuer, que lhe diz que, como pesquisador, ele dificilmente iria conseguir alguma
coisa na vida, e o desencoraja de prosseguir na pesquisa científica, aconselhando-o, então, a
desenvolver uma clínica psiquiátrica.
Freud, então, ganha uma bolsa de estudos e vai para Paris estudar com Charcot. Quando chega lá, mais
uma vez, sente que não tem nada a ver com aquilo. Tudo aquilo é absolutamente estranho aos
interesses dele. Nas primeiras aulas de Charcot, ele não sabe do que se trata. Charcot ensina sobre
a histeria, ensina sobre a hipnose, sobre o tratamento hipnótico das histéricas. Freud assiste
àquilo tudo e não entende literalmente nada. Então ele tem uma brilhante idéia. Propõe a Charcot
fazer a única coisa que ele sabe fazer: traduzir os textos de Charcot para o alemão. Então, ele
apanha os textos do mestre e começa a traduzi-los para o alemão, notabilizando-se pelo escrito, pela
qualidade das suas traduções. E é assim que ele se mantém, mais ou menos, ao longo do que seria sua
pós-graduação.
Quando ele volta, ele já está mais familiarizado com aquilo tudo, encorajado a começar uma clínica
para tratamento de afecções nervosas, com - acreditem vocês - eletroterapia e hipnose. Ele compra
vários aparelhos para fazer eletroterapia, para o tratamento com eletrodos das afecções nervosas.
Sob o nome “afecções nervosas” havia quase tudo: histeria, neurastenia, depressão, tudo o que vocês
puderem imaginar, uma floricultura de afecções psiquiátricas, que ele vai tratar então com os
métodos da eletroterapia. E aí, à medida que ele começa a utilizar aquele método, ele começa a
perder o interesse por isso e começa a notar que era mais interessante falar com as pacientes. Então
ele vai procurar Bernheim e (?), que são dois especialistas em hipnose. Faz um treinamento e diz:
“Bom, agora, eu vou ser um médico que faz hipnose”.
Isso é para vocês terem uma idéia de que ele não tinha a menor idéia do que ia fazer da vida. Ele
vai aos trancos e barrancos. A pesquisa não deu certo, então vai fazer eletroterapia. Esse caminho
não atinge os objetivos, então tenta se especializar em hipnose. E, quando ele sai especializado em
hipnose, e vai começar o tratamento das afecções nervosas com hipnose, descobre que não tem o menor
jeito. Ele não sabe fazer hipnose, não tem carisma, não consegue convencer a paciente, ela não
dorme. O número de fracassos é muito elevado para o pouco sucesso que ele consegue ter.
A essa altura, podemos imaginar um Freud bastante desanimado com seus poderes terapêuticos. Foi
preciso, então, que uma paciente, despertando do estado de hipnose, tenha tentado (?) uma parte
sexual, para que ele começasse a pensar nas relações entre doenças nervosas e sexualidade. É um
encontro ao acaso. Foi uma experiência absolutamente casual: uma paciente enamorada, sai de um
estado hipnótico apaixonada pelo seu médico. Episódio este que ele podia ter desprezado
completamente. Isso podia não ter tido conseqüência nenhuma. Mas, nesse momento, Freud se recorda de
uma experiência que ele havia tido muitos anos antes, por tabela, acompanhando o Dr. Breuer, que era
amigo dele e que era um psiquiatra de bastante renome.
O jovem Breuer havia tratado de uma moça - o caso está publicado como o caso Anna O. - cujo
verdadeiro nome é Bertha Pappenheim. Essa moça propôs a Breuer espontaneamente um método de
tratamento para os seus sintomas. Era um caso bastante grave. Essa moça era atingida por uma série
de sintomas corporais que pareciam doenças anatômicas. Parecia uma paralisia, parecia uma cegueira,
uma aparente doença orgânica, mas que – já se sabia, na época – eram falsas doenças. Pareciam
doenças orgânicas, mas eram psicológicas. Por isso, se tentava tratar esses casos com hipnose. Mas,
essa moça propôs espontaneamente um outro método, que ela mesma chamou de talking cure – cura pela
fala, cura pela palavra. Ela acreditava que, quando falava, era como se ela “limpasse as chaminés”.
Ela descarregava uma série de resíduos de experiências traumáticas à medida que tentava formular
essas experiências em palavras e comunicá-las ao médico.
Freud foi chamado por Breuer para acompanhar essa experiência porque ele estava muito surpreso com o
que estava acontecendo. Esse caso terminou muito mal, porque num desses estados que ela estava entre
a consciência e a hipnose, nos quais ela falava das experiências traumáticas, ela diz para Breuer
que está grávida e vai ter um filho dele. Ele não suporta o que escutou, não suporta a fantasia da
paciente, a fabricação mental dela, e decide abandonar o caso. Mas Freud é despertado para o sentido
desse evento quando ele próprio encontra uma paciente que se enamora dele. Aí, então,
retrospectivamente, aquela outra experiência passou a fazer um sentido. Nessa mesma época, ele se
lembra de alguma coisa que ele escutou de Charcot, durante o período dele de estágio pós-doutoral, e
que também pareceu uma gracinha, uma palhaçada, uma anedota, uma coisa sem sentido. Charcot
perguntava sobre o sentido dos sintomas histéricos, a razão dos sintomas histéricos, e ele disse que
uma histeria se tratava com “pênis normal em doses repetidas”. Com essa anedota, Charcot acusou um
certo conhecimento da natureza sexual dos sintomas histéricos, mas não o apontou de uma forma que
permitisse se transformar em teoria. Aquilo foi comunicado a Freud como um saber sem nenhuma
importância.
Então, como vocês podem notar, os eventos que indicaram a Freud um caminho novo no tratamento das
neuroses, na abordagem da alma humana, do sofrimento humano, dos sintomas, das afecções nervosas,
dos doentes, foi apontado quase por acaso. Justamente ao longo de um percurso profissional, cuja
principal característica é que parecia que ele não sabia bem o que queria. Há um laço entre o
nascimento da psicanálise e um certo desgarramento de Freud em relação aos seus objetivos e à sua
vocação. Podemos ver que, se ele é um herói, ele é um herói bastante perdido, desgarrado. Um herói
que não sabe muito bem aonde vai. Bem diferente das descrições que se costuma ler nas biografias dos
grandes heróis, que parecem ser verdadeiros predestinados ao sucesso. Não é o caso de Freud,
definitivamente. Com ele, as coisas parecem que vão acontecendo, vão se apontando quase por acaso,
quase por acidente, como um somatório de acontecimentos casuais.
Há um fator certamente importante na descoberta da causa sexual das doenças neuróticas que é
geralmente desconsiderado pelos biógrafos, mas que foi muito considerado por Lacan no Seminário 2.
Ali ele faz uma interpretação do desejo do Freud, que é bastante diferente da leitura de uma
biografia dos super-heróis, ou seja, da interpretação do desejo de um desgarrado. Essa interpretação
se baseia nos relatos que Freud faz de um sonho dele próprio, contemporâneo à descoberta da causa
sexual das neuroses. O gérmen da psicanálise, seu nó, seu início está ligado à descoberta da causa
sexual da neurose. Acidentes, acontecimentos fortuitos vão levando a esse encontro com a realidade
sexual da origem das neuroses, e Lacan faz então uma série de considerações sobre um sonho de Freud,
que consta do livro A interpretação dos sonhos como sonho da “injeção em Irma”.
O sonho da “injeção em Irma” é interessante porque mostra justamente qual era a clínica que Freud
praticava àquela altura. Irma é uma paciente de Freud que, no sonho, é afetada por uma difteria. No
sonho, ele pede a ela que mostre a garganta, o que ela faz bastante constrangida, porque a garganta
de uma dama não é exatamente uma parte do corpo que ela mostra com facilidade. O sonho, no início,
já evoca a exibição de uma parte do corpo proibida ou constrangedora. O exame da garganta permite
constatar uma camada branca, que recobre as amígdalas, indicando uma infecção por difteria. Nesse
momento do sonho, Freud sai perguntando a diferentes colegas o que pode ser aquilo, quer dizer,
solicita a opinião da medicina, do colega mais experiente. É o Freud desgarrado. É o Freud que não
sabe o que é aquilo, que não sabe o que dizer, que pergunta ao outro sobre alguma coisa que ele
mesmo não sabe do que se trata. Nessa dispersão, nessa busca - “quem pode me responder o que é
isso?” -, ele termina concluindo que a paciente foi infectada por causa de uma injeção com uma
seringa contaminada que teria sido dada por um colega dele chamado Otto. Freud arranjou um culpado
pela doença de Irma. E o sonho então é uma acusação: “foi a seringa infectada da injeção que meu
colega deu na minha paciente”. Com isso, se desresponsabiliza. O sonho prossegue com uma tentativa
de descrever qual é o preparado que estava dentro da seringa: o que foi que ele tentou injetar na
paciente e que terminou com esse evento desagradável da contaminação? Neste ponto Freud prossegue
como quando a gente balbucia, tentando encontrar a palavra “ácido propiônico, propilônico...” e aí
vê em letras muito claras a palavra “trimetilamina”. Surge uma palavra. Balbuciando sílabas, ele
chega a “trimetilamina”.
O que é a “trimetilamina”, nesse sonho, segundo a interpretação de Lacan? A “trimetilamina” é uma
resposta à causa da neurose. Resposta que ele tenta encontrar, ao longo do sonho, quando pergunta a
cada um dos seus colegas: “O que é isso? Do que se trata? Do que ela sofre? Alguém a infectou, mas o
que tinha na seringa? De que injeção se trata? O que é que se introduz em alguém que tem como
conseqüência a criação de uma doença nervosa, uma falsa doença?” Na interpretação de Lacan a palavra
“trimetilamina” significa a causa sexual da neurose, ou seja, nada menos do que um significante, uma
palavra que resume a substância sexual. Qual é a causa da neurose? É a sexualidade, é o
inconsciente, é a fantasia, é aquilo que aparece claramente descrito no sonho como uma injeção
infectada. A sexualidade é uma causa que parece vir de fora, como uma infecção, um contágio, uma
transmissão de um mal.
Essa colocação é importante, esse sonho é importante, esse trecho da nossa disciplina é importante
pelo seguinte: nós temos três elementos, a paciente de Breuer, Anna O., que a uma certa altura
desenvolve a fantasia histérica de que está grávida do seu médico; ele próprio, Freud, que se
encontra com a experiência da paciente enamorada; e a frase do Charcot. Nós temos, nesse sonho,
Freud atormentado, se perguntando qual é a causa da histeria e da neurose. Temos, então, o Freud que
vai entrar na clínica psiquiátrica por um novo caminho. No lugar da hipnose, dos tratamentos
eletroterápicos, ele se serve do caminho da palavra, tal como a paciente de Breuer havia
inicialmente instalado.
Esses encontros fortuitos indicaram a Freud a necessidade de abrir à clínica psiquiátrica a escuta
das fantasias sexuais das pacientes. Aqui foi a hipnose, ali foi Charcot, adiante foi Breuer, mas
essas experiências vão tampando um cenário que não tem causa e efeito, não tem antecedente e
conseqüente, não é propriamente um caminho lógico de uma descoberta científica. É muito mais um
encontro, quase por acaso, em que se vê que aquilo que mais participa da solução do enigma é um
sonho do próprio pesquisador, do próprio Freud. Um sonho onde ele se representa como completamente
perdido e onde chega a uma solução do problema: a “trimetilamina”. Esta solução é inteiramente
enigmática, cifrada. Não é nada clara, nem evidente, nem demonstrável, nem científica. São muito
mais peças de um quebra- cabeça aonde alguma coisa vai se mostrando ao mesmo tempo em que se
esconde.
A solução sexual se apresenta de uma maneira que não é evidente. Os dados do problema não aparecem
de uma demonstração científica. Eles surgem e, ao mesmo tempo, parecem se esconder. É preciso um
trabalho de interpretação do sonho da injeção em Irma para evidenciar que, nesse sonho, se trata da
resposta à seguinte pergunta: qual é a causa da neurose? Qual é a solução para o problema? A
solução: “trimetilamina”, a substância sexual, é uma resposta, mas é uma resposta incógnita. É quase
a resposta de um oráculo. Não é a resposta que a gente espera de um cientista. Não é a resposta
objetiva, da qual não se pode duvidar, cientificamente demonstrável. É uma resposta que lhe vem em
sonho e de uma forma oracular, forma como fala o sonho. É um esforço de poesia, um grande esforço de
poesia, da parte de Freud, a partir do que ele produz uma resposta a essa questão.
De modo que o nascimento da psicanálise, sua raiz, o gérmen desse conhecimento vai estar ligado à
intuição, ao rastreamento da causa sexual das neuroses, que Freud encontrará, primeiramente, nos
relatos das pacientes histéricas, sob a forma de uma acusação. Assim como no sonho ele diz: “Foi
Otto quem deu uma injeção contaminada na minha paciente”, também suas pacientes lhe dirão que a
origem dos seus sofrimento e sintomas é o traumatismo causado por uma sedução sexual. Sedução sexual
esta, geralmente ocorrida na infância e de responsabilidade do pai, do irmão, do tio, enfim, de uma
figura masculina, como convém a uma sociedade patriarcal. O primeiro encontro que ele faz com essa
causa sexual da neurose é através dessa acusação feita a figuras, cujo traço essencial é serem
figuras paternas.
Muitas vezes, a acusação de sedução sexual era feita ao próprio pai. Outras vezes, apontavam para
figuras laterais: o tio, o avô, o irmão. Mas, essencialmente, o “mordomo” da história, o acusado, o
suspeito número um dessa história era sempre o pai, ou figuras cuja autoridade se assemelhava à
autoridade do pai. No centro da causa das neuroses o que a gente encontra é a figura paterna. Foi
preciso um certo tempo de clínica psicanalítica para que Freud dissesse a um amigo: “Não acredito
mais nas minhas neuróticas. Elas mentem”. Sobre o que elas mentem? Sobre a realidade desses
acontecimentos. Eles não se davam, de fato, enquanto acontecimentos reais. E como é que ele chega a
essa conclusão? Por encontrar isso de forma muito maciça na clínica, seria preciso que a sociedade
de Viena inteira fosse quase toda constituída de pervertidos, para que tantas pessoas se queixassem
de pais ou seus substitutos!
É aí que entra a história de que Freud era vitoriano. Muitas feministas, depois, disseram que as
mulheres tinham sido, sim, vítimas de abuso sexual. Mas que, como Freud era um vitoriano, um
machista, um anti-feminista, ele não quis admitir que se tratava disso.
Então ele inventou essa teoria, que é a teoria propriamente psicanalítica, de que o trauma da
sedução sexual não tem relação com um acontecimento que necessariamente tenha se dado na realidade,
mas sim com um acontecimento imaginário, com a fantasia. Isso representa uma mudança radical de
posição da teoria. Ao invés do agente do trauma vir de fora, de um ataque que o sujeito sofre de um
outro externo a ele mesmo, na nova teoria, na teoria da sedução sexual na fantasia, o agente vem de
dentro. O ataque é pulsional. O ataque nasce da sexualidade, dos desejos sexuais da própria vítima.
Não é um ataque necessariamente sexual. O “necessariamente”, aí, é para marcar que, eventualmente,
há ataques sexuais reais. Eventualmente, há abuso sexual. Mas não é disso que se trata na neurose.
Inclusive, não é certo que uma pessoa que tenha sofrido abuso sexual venha a desenvolver uma
neurose. Mas é certo que o ataque sexual imaginário está ligado ao desenvolvimento da neurose.
Vocês compreendem? Um ataque sexual pode ou não ocasionar uma neurose, dependendo das fantasias do
indivíduo. Um ataque sexual pode até privar alguém de desenvolver uma neurose, por mais paradoxal
que seja. No entanto, é certo que, quando se trata de um ataque interno, de uma fantasia produzida a
partir dos desejos sexuais daquele que fantasiou, é certo que isso leva à neurose.
Vocês poderiam me perguntar: “Por que um ataque verdadeiro é menos danoso do que um ataque
imaginário?” Porque quem se imagina sexualmente atacado, quem se imagina sexualmente seduzido, quem
sonha com isso, quem deseja isso não quer reconhecer a sua própria sexualidade e a atribui ao outro.
“É o outro quem me seduz. Foi o outro quem disse”. Esse é o raciocínio freudiano. A fantasia de
ataque sexual é uma maneira de se defender do reconhecimento de próprios desejos sexuais.
Então, o que eu estou dizendo é que essa fantasia serve ao recalque da sexualidade. Ela serve para
esconder do próprio sujeito que ele é sexuado, que ele deseja. A partir disso, o máximo que podemos
perguntar é: por que a sexualidade é tão traumática? Por que as pessoas não querem saber nada sobre
seus desejos sexuais? Uma explicação seria essa: por causa do vitorianismo, do machismo...
[Intervenção inaudível].
TCS: Olha, eu continuo pensando as questões de gênero como Freud o fez. Porque, até hoje, o que a
clínica psicanalítica nos mostra é que há diferença de gêneros, que homem não é igual à mulher.
Intervenção: Mas tinha uma época em que mulher não votava, era submissa ao homem.
TCS: Uma hora, teremos que discutir quem está submetido a quem. Certamente, sempre houve formas de
submissão da mulher ao homem, e essas formas mudam historicamente. Mas, por que você não me fala
nada da evidente submissão dos homens às mulheres? Então, machismo ou não machismo, isso não dá
conta de que a diferença sexual produz sujeição sexual de um sexo a outro. É bem verdade que as
mulheres usam mil maquinações para se fazerem dependentes e submissas aos homens. Mas não se
considera o quanto os homens obedecem às mulheres! Então, devagar com o andor! A relação entre
gêneros é desigual, mas há dependência sexual das duas partes, senão, não é psicanálise, senão é
feminismo, puro e simples.
Bom, continuaremos discutindo as novas histerias, as histerias contemporâneas, que são bem
diferentes, talvez, das do tempo do Freud.
Introduzido, então, o traumatismo, a fantasia, a causa sexual das neuroses, eu queria agora chamar a
atenção de vocês para a centralidade do agente real ou imaginário da fantasia de sedução sexual: o
pai. Estou marcando real ou imaginário porque, a essa altura, não importa. Há uma eficácia do
agente, mesmo que se trate de coisas distintas: um ataque real ou um ataque imaginário que,
coincidentemente, têm o mesmo agente.
[Intervenção inaudível].
TCS: Veja, isso tudo aqui escreve uma mesma coisa. Eu estou evitando usar a palavra inconsciente, a
palavra recalque e uma série de outros termos para que vocês, antes, compreendam a lógica. A questão
da sexualidade como causa aparece numa fantasia de sedução, aparece como traumatismo, aparece nos
sonhos da trimetilamina, aparece naqueles eventos fortuitos que eu apontei para vocês, da paciente
que se enamora do médico. Isso está passeando por aí. Há algo que, na neurose, relaciona a
sexualidade a um agente maléfico, um transmissor, um agente do contágio sexual que, geralmente, é o
pai ou figuras substitutivas, figuras cuja importância é relativa ou semelhante a da figura paterna.
Entendido isso, nós temos que nos deter nesta questão: por que o pai? O que é o pai como o agente do
traumatismo sexual na psicanálise? Temos que partir do nível mais corriqueiro, que é pensar: “Ah,
têm pais que seduzem as filhas”. É, tem. Tem muito caso de incesto. De vez em quando ainda aparece
por aí menina que fica grávida do pai. Mas o que Freud descobriu com a realidade sexual da neurose
vai muito além disso. Não é possível que todos os pais sejam pervertidos. Não é possível encontrar
uma estatística de perversão e abuso sexual na infância dessa magnitude. Sabe-se, pela própria
experiência, que há inúmeros pais que não podem ser acusados de abuso sexual. Então, de que falam as
fantasias, afinal? Elas apontam o pai como agente traumático, como aquele que introduz o desejo
sexual.
Notemos que, dizendo assim, eu não estou dizendo que ele é aquele que abusou sexualmente da criança.
Estou dizendo que ele é acusado de ser quem aponta para a criança a sexualidade. Resta saber como
isso vai desde o abuso até “n” outras maneiras - que nós teremos de pensar - de como o pai exerce
essa função de designar a sexualidade, a causa da sexualidade, de introduzir a sexualidade, de
causar o desejo sexual.
Eu vou fazer um salto imenso no tempo que eu não sei se ajudará vocês a entenderem melhor ou pior.
Mas eu vou me arriscar.
Num dos seus últimos seminários, Lacan (n.2) nos deixou de herança uma frase muito interessante. Com
essa frase, ele tenta responder a uma pergunta: “o que é um pai?” Trata-se de uma pergunta que
aparece inúmeras vezes e de várias maneiras ao longo da obra freudiana. Lacan disse o seguinte: um
pai só tem o direito de ser reconhecido como tal se ele for capaz de orientar o seu desejo
perversamente - pére-versement, em francês. Pére-version (ou seja, pai-versão) e perversion
(perversão) são termos homófonos na língua francesa.
Se, em português, perversão se escrevesse “paiversão”, vocês entenderiam o jogo de palavras que ele
fez entre perversão e pai-versão.
Para Lacan, é preciso que o desejo de um indivíduo esteja perversamente orientado para uma mulher,
para que então ele tenha o direito de ser reconhecido e chamado pai. Ou seja, é o pai que introduz o
desejo. É o pai quem ensina sobre a causa sexual na vida, na medida em que ele é o primeiro a dar
provas do seu desejo pela relação de um homem a uma mulher - da qual as feministas não gostam de
falar. Elas gostam de falar da submissão das mulheres aos homens.
Ou seja, se é verdade que as mulheres estão submetidas aos homens, é verdade que o desejo do homem é
perversamente orientado para o objeto que é a mulher. Isso implica uma sujeição. É na medida em que
o pai pode sujeitar-se ao objeto que ele escolheu, como objeto do seu desejo, que ele ensina a um
filho o que é o desejo, o que é desejar. Por isso, ele é o agente da sedução sexual: é ele quem
ensina o que é desejar. Ele dá provas do seu desejo. Ele dá testemunho do seu desejo quando escolhe
uma mulher para amar. Amar é se sujeitar, é o contrário de ser livre. O pai, poderíamos dizer, é
aquele que dá provas de que não é livre. É aquele que dá provas de que o que o engata na vida é a
sua relação com uma mulher. É isso que é ser pai.
Mas essa é a última resposta de Lacan a uma pergunta que atormenta Freud e a todos os psicanalistas.
Uma pergunta extremamente difícil, extremamente enigmática: Como é que isso se dá? Como é que isso
se faz? Como é que isso se transmite? Uma coisa é certa, o pai é, com todo direito, o agente do
traumatismo. Ele introduz a verdade do desejo sexual. O pai não é aquele, ao contrário do que se
costuma pensar, que provê, que mantém, que bota comida em casa, que paga as contas. Tudo isso só
vale, enquanto prova de paternidade, se ele faz tudo isso por uma mulher. É isso que faz dele pai, o
resto é conseqüência. O resto é o desdobramento da sujeição sexual.
Olhem que coisa interessante! O agente da castração, o sedutor universal, aquele que, no começo da
obra de Freud, no começo do seu percurso como pesquisador, como analista, como estudioso da questão
da origem das neuroses, aparece como grande enigma, como poder, como personagem principal de
inúmeras cenas de sedução (reais ou imaginárias) é aquele que dá provas da sua sujeição ao objeto
causa do seu desejo. Ou seja, um pai é pai porque não é livre. Um pai é pai porque ele é poderoso
até certo ponto, até o ponto em que ele não tem poder algum: o ponto em que se submete ao objeto que
o causa. Nesse ponto ele não tem poder. Nesse ponto ele está fora do jogo.
Então, por caminhos muito delicados e lentamente construídos, eu penso que Freud encontrou,
desdobrou e desenvolveu o enigma da origem da sexualidade na sua relação com alguma coisa que é
transmitida pelo pai. De modo que a fantasia de sedução sexual na infância é uma maneira de, ao
mesmo tempo, confessar que o pai é a causa, a origem, que é ele quem primeiro no mundo introduz para
que criança que a sexualidade existe, ao mesmo tempo em que é também uma maneira de não aceitar a
realidade sexual. Aquele que diz: “eu sou seduzido”, admite que a sexualidade existe, e, ao mesmo
tempo, nega que ele tem alguma coisa a ver com isso, pois atribui a sedução ao outro.
[Intervenção inaudível].
TCS: O que é castração? Estou evitando usar termos muito teóricos. A castração é a castração dele
próprio. O pai apresenta a castração em ato quando se mostra sujeitado ao objeto sexual. Geralmente,
imagina-se que o pai é uma espécie de grande ditador. Mas o grande ditador, o grande legislador, o
grande moralista é aquele que não está preso a laço algum. E, imagina-se que esse seja pai.
Imagina-se que o pai seja uma figura independente de qualquer dependência amorosa, sexual, ou
afetiva. Mas a verdade analítica, tal como ela já apareceu nos primeiros momentos de instauração do
discurso psicanalítico, é essencialmente outra. Ela revela que não é digno de ser chamado pai, que
um pai não é digno de ser amado, senão quando se mostra castrado, ou seja, privado desse poder
absoluto de fazer a lei, a norma ou a moral para toda a humanidade. Quem é prisioneiro de um objeto
sexual, dependente de um objeto sexual não está em posição de fazer a lei, uma lei universal que
valha para todos. A lei do desejo dele já é uma lei particular, singular. É a lei da sua própria
escolha amorosa, a lei da sua predileção, do seu coração. Não é o discurso universal da ciência.
Por caminhos tortos, voltamos ao início. Se o discurso da ciência não quer saber nada sobre o
sujeito dos afetos, da angústia, do mal-estar, do amor, da sexualidade, do desejo, a psicanálise
nasce apontando que não há esse pai impoluto, ditador, acima de tudo e de todas as coisas. Muito
pelo contrário, os pais reais não são sujeitos da ciência, se a gente entender sujeito da ciência
como sujeito do discurso racional. O pai não é a razão. O pai é aquele que primeiro introduz no
mundo, para uma criança, a causa. E a causa não é a razão porque a causa é particular, é singular, é
de cada um. É uma mulher para aquele homem.
A psicanálise mostra que o objeto do desejo é o objeto daquele desejante, não é o objeto universal,
não é o objeto racional, não é o objeto que convém a todo mundo, pelo contrário. De modo que o pai é
o primeiro que “sexua e castra”. Ele mostra que uma coisa não vai sem a outra, que a sexuação não
vai sem a castração. O sujeito da razão pode ser universal, pode ser para todos. Para todos pode
haver uma única verdade, uma única conclusão, uma única racionalidade ou uma única explicação, mas
para o sujeito do desejo o objeto do desejo é sempre particular. É um por um. Os desejantes não
desejam todos a mesma coisa. O que seria do verde se todos gostassem do amarelo? E assim por diante.
O pai é quem introduz uma questão traumática: o que é que você quer?
Na medida em que ele dá testemunho da sua própria castração, da sua dependência em relação ao objeto
que ele escolhe, que ele quer, ele coloca para cada um a pergunta: “e você, o que você quer?”
Pergunta dificílima, pergunta traumática, da qual o sujeito não quer saber nada. Razão pela qual ele
diz: “Foi o outro que me seduziu”, real ou imaginariamente, tanto faz. Há uma verdade no enunciado
“foi o outro que me seduziu”. Realmente foi o outro quem introduziu a pergunta: “o que é que você
quer?” Mas isso não quer dizer que somente o outro deseje. Também o sujeito que recebe essa pergunta
é convidado a se pronunciar sobre o que ele quer por meio dessa pergunta que, geralmente, não é
muito fácil de responder.
Hoje eu vou tentar fechar por aí, sobre o pai. Se vocês compreenderam porque ele é o agente
traumático, porque é ele quem introduz uma pergunta sobre o desejo, vocês vão entender agora porque
a coisa mais difícil na clínica psicanalítica é responder a uma pergunta crucial. Diante de cada
caso nós temos a mesma pergunta que aponta a necessidade clínica de se fazer um diagnóstico: como
foi que cada sujeito particular acusou recebimento da inevitável pergunta paterna “o que é que você
quer”? Dessa pergunta ninguém escapa. Mas a questão clínica é outra: é verificar como cada um
respondeu a ela. Como é que cada sujeito respondeu a essa pergunta? Cada sujeito - na sua
estruturação, na maneira como se constrói, se constitui, isso que se chama a sua personalidade, o
seu temperamento, a sua maneira de ser ou de viver - é uma resposta a essa pergunta. Dizendo isso,
estou dizendo que, de alguma forma, essa resposta comporta alguma coisa de singular, caso a caso,
resposta a resposta. Se é uma resposta, um por um responde. E se um por um responde, deve haver
nessa resposta sempre alguma coisa que é única, absolutamente particular para cada sujeito.
Mas isso não pode ser tudo, porque, se cada um desse uma resposta, a clínica seria impossível. Não
teríamos como fazer teoria de coisa nenhuma, nem classificação alguma. Não se teria como antecipar
ou dizer alguma coisa sobre o que se devo esperar da análise de um sujeito. Nem poderíamos responder
se é possível aceitá-lo em análise ou não, se ele vai ou não suportar uma psicanálise, se o caso
dele comporta ou não o tratamento analítico. E, de fato, sem a singularidade dessa resposta, a
clínica não teria sentido algum, não seria possível.
De modo que, partindo da descoberta freudiana, nós vamos trabalhar com uma idéia inicial, uma idéia
genérica, uma idéia bem ampla de que, apesar da singularidade de cada um, há três modos genéricos de
responder ao traumatismo da questão paterna: o neurótico, o psicótico e o perverso (n.3). Há três
maneiras de responder à questão do desejo. Todas elas têm uma coisa em comum.
Eu vou mostrar para vocês o que elas têm em comum. Freud nomeou cada uma dessas respostas, formas
gerais de resposta, com os seguintes termos: Verdrängung, Verwerfung e Verleugnung. A Verdrängung se
traduziu por recalque; a Verwerfung, Lacan traduziu por foraclusão – e eu vou explicar porque eu
estou privilegiando a tradução de Lacan; e a Verleugnung foi traduzida por renegação, desmentido.
Algumas dessas palavras vocês conhecem, outras vocês não conhecem. São as respostas, o nome das
respostas de cada um, as respostas gerais, digamos, dos tipos de personalidade – do manual de
psicologia.
Temos aqui três maneiras de responder que têm uma coisa em comum que é o radical VER. O radical Ver,
em alemão, é uma negativa. Isso significa que todas as respostas são uma modalidade de dizer não.
Dizer “não” já é dizer alguma coisa sobre como o sujeito responde ao traumático, à pergunta o que é
que você quer? Ele já começa dizendo: não! Há maneiras diferentes de dizer não. Vocês vão encontrar
isso, na obra de Freud, como mecanismos de defesa, ou defesas. A resposta é uma defesa. Elas têm uma
característica em comum, ninguém diz: sim! À pergunta “você quer o que você deseja?” todo mundo diz:
“não!” Não tem essa história de encontrarmos alguém que diga “eu quero o que eu desejo”. É sempre
“eu não quero o que eu desejo enquanto eu não conseguir me conciliar com aquilo tudo”. E é preciso
um certo trabalho para isso. Em princípio, o sujeito diz: “Não!” Resposta ao real traumático da
sexualidade. O pai não é o vilão à toa. É o vilão porque aquilo que ele traz é traumático,
traumatizante.
A idéia que se gostaria de ter é a de uma comunidade igualitária, sem referências, sem desejos
contraditórios. Como a humanidade seria mais feliz se nós fôssemos todos iguais, se não houvesse
essa questão “o que você deseja?” Quando eu coloco essa pergunta, já estou colocando uma coisa,
essencialmente, contra a outra. O desejo pode ser contrário, oposto, pode estar em concorrência, em
competição com o que se deseja. Está instalado o inferno sobre a terra. O nome do inferno sobre a
terra é pai. E, por isso, com justa razão, todo mundo diz: “Não! Não, eu não quero!”.
Na neurose, o mecanismo se chama Verdrängung, porque aquilo em particular ao que o neurótico vai
dizer não, é à força, nele mesmo, da excitação sexual. Cada não é uma modalidade de negativa. Como é
que o neurótico combate o que ele quer? Não querendo saber nada do que vem de dentro. Drang, em
alemão, significa força. Então, o neurótico é o que faz um movimento, o que tem uma ação contra a
força do desejo nele mesmo. É por isso que ele faz a fantasia de que é o outro quem quer e não ele.
A força do desejo dele, nele, sufoca, abafa, re-calca. É uma modalidade de resposta que tem uma
incidência claramente associada, para Freud, com o corpo. É a força, é a excitação, é o desejo. É
contra isso que o neurótico se coloca. Ele toma o partido das convenções sociais, do que é bom para
todo mundo, do que é certo para não importa quem, para não ter que se confrontar com o que ele quer.
E, muitas vezes, o que ele quer não é nem convencional, nem agradável a todo mundo, nem vai trazer o
acordo universal. Muitas vezes, o que ele quer justamente vai colocar tudo em desordem. Vai
desorganizar os laços sociais. Ele luta contra o desejo nele mesmo.
A grande oposição que se pode fazer é entre a neurose e a psicose. Como se daria a negativa na
neurose e na psicose? Vejam, o neurótico luta contra o desejo nele mesmo, dizendo: “É o outro quem
deseja”. Quando se diz que é o outro quem deseja, pode-se estar negando a existência do desejo em si
mesmo. Mas está se afirmando que há desejo presente, no outro. Então, a fantasia de sedução sexual
no outro, me contaminou. O outro deseja, logo, há desejo. Há uma admissão do desejo e também uma
recusa da excitação provocada pelo desejo, da força do desejo. O seu próprio corpo está condenando o
desejo a só existir no outro. É o outro quem quer. Há alguns neuróticos radicais que nunca querem
nada. Eles só querem se você quiser alguma coisa. Se você perguntar: “Vamos nos encontrar amanhã?”,
ele responde: “Se você quiser”. “Você prefere vermelho ou azul?”, “Depende, se você gosta de
vermelho, para mim está bem”. São modos de se tratar com o desejo. Ele não recusa o desejo, ele
empurra o desejo para o território do outro.
Na psicose nós teríamos que lidar com uma abolição. Não há fantasia de sedução sexual. Não há um
modo de admissão, mesmo que esse modo de admissão seja sob a forma de uma recusa, do tipo: “Não sou
eu”. Não há isso. Na psicose, há aparentemente uma inexistência de desejo. É como se o discurso do
psicótico aspirasse ser um discurso sem sujeito.
Uma coisa é o neurótico que diz: “Eu quero o que você quiser. Eu faço o que você quiser”. Outra
coisa é o que o psicótico faz: um discurso onde não há desejo em lugar nenhum, nem nele, nem no
outro. No limite, o discurso que seria verdadeiramente psicótico, é um discurso onde não há sinal de
particularidade alguma. Toda particularidade, toda a causa do desejo, todo “eu quero isso e não
aquilo” foi abolido. Um discurso que pretendesse ser puramente universal. É claro, que esse discurso
é impossível.
Por isso que eu adotei a tradução de foraclusão, que não é uma tradução literal de Verwerfung e, na
verdade, não tem nada a ver com a Verwerfung usada por Freud. A palavra foraclusão Lacan a retirou
do campo do Direito e diz respeito a um direito não exercido em tempo. Quando isso acontece ele fica
prescrito. Se o pai não produz no sujeito o efeito de introduzir a causa do desejo numa certa época
- a época do complexo de Édipo -, depois isso não é mais retificado, não muda mais e configura-se
como uma estrutura.
Eu escolhi a foraclusão também por um outro motivo. É que a palavra Verwerfung não indica para nós o
que é próprio da psicose. Para o psicótico, aquilo que é abolido do discurso, pode lhe reaparecer
como vindo da estratosfera, o que pode levar a uma crise, a um surto, a um desencadeamento. O que é
abolido em função da prescrição, reaparece como uma coisa, como um “E.T.”.
No neurótico, o desejo do traumatismo está simbolizado sob a forma do “não fui eu, foi ele”; no
psicótico, o encontro com o desejo traumático pode se dar como se fosse a primeira vez. E é “como se
fosse a primeira vez”. Claro que não pode ser a primeira vez, tendo em vista a maneira como se
processa a constituição do sujeito, a sexualidade infantil, o nascimento, o primeiro encontro do pai
e da mãe. É claro que o “como se fosse a primeira vez” é aí muito importante, porque é sinal de que
a este acontecimento chamado pai, o sujeito não passou recibo algum acusando o seu recebimento. A
resposta psicótica foi: “deleta, não deixa registro”. Quando isso aparece, novamente, é sempre um
caos. É sempre alguma coisa da qual ele não tem lembrança, que não lhe diz respeito.
Com o perverso é diferente. Seu mecanismo é o da denegação. Ele não quer saber do desejo, mas se
arranja com a sexualidade. É justamente para desejar mas não desejar, para não ser afetado pela
sexualidade, que seu desejo fica amarrado com o objeto fetiche. Então, o fetiche, o fetichismo é a
resposta perversa, é um aprisionamento do objeto que também visa sufocar a questão sobre o desejo.
Para não ser perguntado: “o que você deseja?”, ele carrega o objeto do desejo prêt-à-porter. Já vai
dizendo “é isso que eu quero” para não ter que enfrentar a cada vez a pergunta: “o que você quer? Do
que se trata? Será que você interpretou corretamente o seu desejo? Hoje você ainda quer o que você
queria ontem?” Perguntas que chateiam bastante a humanidade, há bastante tempo, e que o fetichista
resolve carregando uma resposta prêt-à- porter.
Para finalizar, entre as neuroses, aquelas que nós podemos abordar: a histeria, a fobia e a neurose
obsessiva, já existiriam então estilos de resposta neurótica, que é o que mais nos interessaria,
nesse momento de introdução à clínica. Nós vamos começar pela histeria. Vamos explorar o máximo
possível o que é a histeria, a partir de um caso clínico: o caso Dora.
NOTAS
1. Lacan, J. Escritos. RJ:JZE, 1998, p.873.
2. Lacan, J. (1974-75). O seminário. Livro 22: RSI. Lição do dia 21/01/1975. Inédito.
3. Este perverso aqui não é o perverso da pére-version ao qual me referi anteriormente. Naquele
momento, usei o termo perverso como uma alusão, uma metáfora para falar do pai. Aqui eu o estou
usando para falar de uma estrutura clínica.