O PROBLEMA ECONÔMICO DO MASOQUISMO (1924)
Andréa Martello, Roberta Guimarães D’Assunção
O conceito de pulsão de morte desenvolvido em “Além do Princípio do Prazer” (1920) e a inauguração
da segunda tópica em “O ego e o id” (1923) vai aos poucos deslocando a condição do ego da
problemática narcísica para a problemática do masoquismo. A partir da pulsão de morte trata-se de
pensar o masoquismo não como um estado patológico e sim como uma estrutura de base do ego, um
problema para o aparelho psíquico em termos de economia, tal como diz o título deste texto.
O superego pode ser uma chave de exame sobre esta questão. Definido como ‘reduto da pulsão de
morte’, o superego vem impor uma nova condição ao ego enquanto objeto da pulsão: o masoquismo. A
desvantagem narcísica frente à pulsão de morte não pode ser enunciada de forma diferente que não
seja através deste inarredável, estrutural e portanto inconsciente sentimento de culpa e a resposta
masoquista que lhe é subsequente.
Freud nos diz que do ponto de vista da economia psíquica, uma tendência masoquista na vida pulsional
de um indivíduo pode ser considerada apropriadamente como algo misterioso se levarmos em conta o
princípio de prazer (n.1). Notemos que a dor e o desprazer não são, no caso do masoquismo, formas de
advertência, mas o objetivo.
Em primeiro lugar, faz-se necessário distinguir o princípio de prazer do princípio de Nirvana.
Enquanto este último foi definido, em Além do princípio de prazer (1920), como uma tendência no
sentido da estabilidade inteiramente a serviço da pulsão de morte, o princípio de prazer é, desde
1900 em sua versão princípio de prazer-desprazer, o regulador das tensões psíquicas provenientes de
estímulos exógenos ou endógenos. Até aqui o desprazer coincide com uma elevação da tensão psíquica e
o prazer com o rebaixamento dessa tensão.
O problema está no fato de que há tensões prazerosas e relaxamentos desprazerosos de tensão. Por
isso, não podemos dar ao aumento ou diminuição dos estímulos um sentido imediato de prazer e
desprazer. Parece que o prazer e o desprazer dependem de outra característica, diferente do fator
quantitativo, e que só podemos descrever como qualitativa.
No entanto, segundo Freud, podemos perceber que o princípio de Nirvana experimentou uma modificação
nos organismos vivos através da qual tornou-se o princípio de prazer (n.2). Modificação cuja origem
é a libido, a qual apoderou-se de uma parte da regulação dos processos da vida. Podemos inclusive
pensar que a libido uniu-se à pulsão de morte, regida pelo princípio do Nirvana, de modo a amansar
seus objetivos destrutivos.
Não há exatidão na explicação dos meios pelos quais ocorre esse amansamento da pulsão de morte pela
libido. Pode-se presumir, considerando que haja uma fusão das pulsões de morte e de vida, que em
certos momentos, sob determinadas influências, possa ocorrer uma desfusão delas. De acordo com isso,
parte das pulsões de morte poderia ser desvinculada da libido, isto é, parte delas recusaria-se a
ser amansada pela libido.
A introdução da pulsão de morte em 1920 passa a implicar a hipótese de uma condição masoquista
originária para o ego que anteriormente era rechaçada. Nos diz Freud:
As observações clínicas nos conduziram à concepção de que o masoquismo, o instinto componente
complementar ao sadismo, deveria ser encarado como um sadismo que se voltou para o próprio ego do
sujeito. Mas, em princípio, não existe diferença entre um instinto voltar-se do objeto para o ego ou
do ego para o objeto, que é o novo ponto que se acha em discussão atualmente. O masoquismo, a volta
do instinto para o próprio ego do sujeito, constituiria, nesse caso um retorno a uma fase anterior
da história do instinto, um regressão (n.3)
Este pensamento do masoquismo como uma regressão esteia a hipótese de um masoquismo primário. Por
masoquismo primário entendamos um estado em que a pulsão de morte, vinculada à libido, é ainda
dirigida para o próprio sujeito. O masoquismo primário estaria relacionado a um tempo em que a
agressividade não estaria voltada para um objeto externo. Diferentemente do conceito de masoquismo
secundário, que seria o retorno de um sadismo, primeiramente dirigido a um objeto externo, sobre a
própria pessoa.
A excitação sexual resultante da tensão proveniente da dor seria um mecanismo infantil deixado de
lado mais tarde (n.4) Esse mecanismo fornece a fundação sobre a qual a estrutura do masoquismo
primário é erigida.
Caberia à libido tornar inofensiva a pulsão de morte (tendência do organismo à desintegração),
missão que é realizada desviando essa pulsão destruidora para fora, no sentido dos objetos do mundo
externo. O sadismo seria a parte dessa pulsão, desviada, que é colocada a serviço da função sexual.
No entanto, uma outra parte dessa pulsão não é desviada para fora e fica libidinalmente presa dentro
do organismo. Nesta parte, podemos identificar o masoquismo primário. A partir do masoquismo
primário, cujo protótipo é o masoquismo erógeno pode se derivar o masoquismo feminino e o masoquismo
moral.
O primeiro não deve ser confundido com um masoquismo próprio da mulher. Freud o entende como uma
espécie de fantasia em relação à posição passiva, que tem representação no feminino. Ou seja, a
partir da fase fálica, o complexo de castração traz como consequência, diante do reconhecimento pelo
psiquismo da existência de apenas um sexo, o masculino, o seu outro lado: a castração. A diferença
sexual é assim colocada em jogo, tanto quanto o masculino, o feminino se apresenta, só que em termos
de perda, de castração. É esta questão que é erotizada no masoquismo feminino e portanto pode ser
encontrada em homens e mulheres. Somente a partir da fase fálica os “revestimentos psíquicos
cambiantes”(n.5) das demais fases da libido tomam seu valor através do desejo de ser devorado,
espancado, castrado ou copulado. É a erotização do que se coloca com o complexo de castração.
Nada mais distante da resolução do complexo de Édipo do que o masoquismo feminino. Ele é a prova
crua da negação em aceitar a castração por ser a própria sexualização daquilo que se apresenta como
ameaça. Por isso Freud nos dizer acerca do masoquismo feminino que a interpretação óbvia, à qual
facilmente se chega, é que o masoquista deseja ser tratado como uma criança pequena e desamparada,
mas, particularmente, como uma criança travessa(n.6).
Num grau menor de sexualização teremos o masoquismo moral. Nele o sofrimento provém de uma fonte
mais impessoal, estando referido portanto ao destino, às circunstâncias, que mesmo sendo fatores
externos remontam estruturalmente ao superego.
Freud postula uma diferença entre uma extensão inconsciente da moralidade adquirida através o
superego e o masoquismo moral ligando a primeira ao sadismo superegóico e o segundo ao masoquismo
egóico sendo, no entanto, apesar de sua diferenciação, duas condições suplementares que se unem para
produzir os mesmo efeitos (n.7). Teríamos então uma relativa “normalidade” ao tratar do sadismo
superegóico, já que inexoravelmente ele é um derivado da dissolução do complexo de Édipo, e uma
“anormalidade” do ego masoquista que, fraco e silencioso, regride e se submete às execrações de seu
tutor.
Notas
1 S. Freud, O problema econômico do masoquismo, 1924, ESB, Vol. XIX, p. 199.
2 S. Freud, op. cit., 1924, p. 200.
3 S. Freud, Além do princípio do prazer, 1920, ESB, Vol. XVIII, p. 75.
4 S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1905, ESB, Vol. VII, p. 211.
5 S. Freud, O problema econômico do masoquismo, 1924, ESB, Vol. XIX, p. 206.
6 S. Freud, O problema econômico do masoquismo, 1924, op. cit., p. 202.
7 S. Freud, O problema econômico do masoquismo,1924, op. cit., p. 212.
Bibliografia:
FREUD, S., Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1976.
_____ Três ensaios sobre a sexualidade (1905), Vol. VII.
_____ Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), Vol. XIV.
_____ Além do princípio do prazer (1920), Vol. XVIII.
_____ O ego e o id (1923), Vol. XIX.
_____ O problema econômico do masoquismo (1924), Vol. XIX.
_____ A dissolução do complexo de Édipo (1924), vol. XIX.
KAUFMANN, P., Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud a Lacan - Rio de
Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1996.
LAPLANCHE E PONTALIS, Vocabulário de Psicanálise, 3a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ROUDINESCO E PLON., Dicionário de Psicanálise. tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão
da
edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.