Isepol - Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana

A CARTA ROUBADA

DE UMA CARTA QUE ALÉM DE ROUBADA É LIDA AO PÉ DA LETRA

Andréa Martello (Pós-doutoranda no PPGTP/UFRJ/Faperj)
Arthur Chimenti (Graduação de Psicologia/UFRJ)
Christine Saturnino (Graduação de Psicologia/Bolsista PIBIC/UFRJ)

Consideramos a complexidade e o vulto do pensamento lacaniano e entendemos que através de um exame detido do texto O seminário sobre “A carta roubada” podemos dar uma boa medida de importantes aspectos do campo psicanalítico, das ciências humanas de forma geral e da psicologia de forma específica para aqueles que estão começando a formação em psicologia. Seguimos a proposta de Lacan que coloca este texto na abertura de seus Escritos (1966/1998)para abrir sua sequencia, a despeito de sua diacronia (1998, p. 10). Percebemos que a estrutura narrativa do conto A Carta Roubada nos fornece cenas de um conto policial onde vemos o jogo significante sustentar o trajeto e o destino dos personagens. Aconselhamos a leitura. Nele podemos tomar a medida de como se constitui o campo do inconsciente ancorado na unidade minima indivisível do significante/letra, que funciona e determina, de fora do Eu, efeitos nesse campo regido pelas leis da relação dual e intersubjetiva por onde a maioria das psicologias se pautam.
Tomamos a direção de considerar os Escritos não apenas como uma coleção de artigos reunidos, mas adotar sua sequencia como um livro. Um livro que tem por função transmitir as bases do primeiro ensino. Acreditamos que toma-lo assim é ser fiel à proposta de Lacan expressa desde a Abertura.
O primeiro ensino se define pela estrutura significante ancorada na letra que produz efeitos de verdade que concernem ao sujeito, deste modo, definido como dividido entre o saber e a verdade (1998, p. 11). Sujeito do inconsciente, formalizado como dividido entre os significantes e o objeto a no matema S/◊a, sendo esta a verdadeira dimensão da fantasia em psicanálise, aquela em que o objeto apresenta uma vertente real, e não apenas imaginária e simbólica. O sujeito, mais do que nunca, diferenciado do objeto, é também diferente da dimensão imaginária do eu (eu ideal) que é regida pelas leis da boa forma, do equilibrio, da harmonia, do domínio que tem por função sustentar prazeirosamente o organismo e seu meio ambiente. O sujeito do inconsciente traz a questão de que o compromisso libidinal do eu tem por consequência suturar a clivagem do inconsciente, não deixando outra alternativa para a pulsão que não a formação de sintoma. A clivagem do inconsciente reaparece na dimensão sintomática mostrando o contrario do júbilo narcísico: o mal-entendido, a má-fé, o equívoco, a vergonha. Temos portanto nos Escritos a estrutura do primeiro pensamento lacaniano que vai da teoria do símbolo ou significante até o objeto a, que segundo o autor, já encontra seu terreno preparado.
Na Abertura dos Escritos é possível abordar a crítica à idéia de homem através de Buffon (1707-1789), naturalista francês que ao dizer que o estilo é o próprio homem evidencia, sem querer, o artificialismo da linguagem em detrimento de qualquer essência da natureza humana. Assim se coloca a questão do grande Outro como um lugar da linguagem onde recebemos nossa mensagem de forma invertida. Nesse lugar, o do estilo que Buffon vê o homem, a psicanálise vê a queda do objeto a que se mostra primeiramente como causa de desejo e contemporaneamente ressurgindo para análise em termos de mais-de-gozar. Assim se mostra que o objeto a tem a ver com a verdade que se impõe na era científica e é por isso que ele surge em relação ao desmoronamento do homem ou do estilo que o homem supõe ser, ou obter do grande Outro. É preciso evidenciar o artificialismo da linguagem. Com este intuito, tomar a instancia da letra no inconsciente e a autonomia do significante que ela propicia articular como estrutura é uma estratégia teórico-clínica decisiva para a psicanálise. Estratégia que não foi ultrapassada mas aprofundada cada vez mais no ensino lacaniano.
O conto de Poe é uma chance para nos familiarizarmos com os elementos da estrutura. La lettre, a carta, tem a vantagem em francês de ser homófona à letra, cuja importância para a teoria do significante se coloca no texto A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud (1956/1966). Não devemos portanto perder de vista essa equivoção não reproduzível em portugues e tão cara ao uso do conto por Lacan entre carta e letra. Nos diz Lacan: deciframos na ficção de Poe (...) a divisão onde se verifica o sujeito pelo fato do objeto o atravessar sem que eles em nada se penetrem isso mostra a divisão do que se encontra no principio do que se destaca como objeto a. (LACAN, J. Abertura, 1966, p. 10)
Há, portanto, primeiramente um esforço de Lacan de nos mostrar a dimensão do significante puro que o drama permite articular, ou seja, o modo como o significante produz efeitos a revelia de seu significado, dependendo apenas do lugar em que está ou não está. Mas essa dimensão do significante puro, tem como efeito principal além do destacamento dos sujeitos, a feminização dos portadores da carta. Desde o princípio Lacan dá atenção a isso. Veremos como que o que está no princípio do que se destaca como objeto a é o significante e o modo como ele estrutura não só o sujeito e a linguagem mas também as posições discursivas que se apoiam na dimensão do gozo. Tal dimensão atualmente se associa ao imperativo significante nos moldes de uma mais-valia. A abordagem posterior só ratifica e aprofunda a localização do gozo na estrutura do discurso.
De saída já podemos tomar alguma medida de como o significante/letra articula o gozo na teoria de Lacan. Primeiramente o autor do conto através da figura do narrador dá uma ênfase à condição de castrados em relação à carta que todos os personagens apresentam. É através do enigma da castração produzida pelo deslocamento da letra/carta significante que os sujeitos se apresentam na condição de desejantes. Se há sucesso de comunicação no trajeto da carta, se houve de fato a relação sexual do qual a carta é prova, neste momento, para Lacan isso é secundário frente a estrutura inconsciente de mal-entendido que ela faz mover e que a história do conto traz à tona. Pois a carta como veremos, mais do que prova das relações sexuais da Rainha, é, ao contrário, prova da não-relação sexual desta com o Rei.
A relevância deste texto é retomada em 1971 no seminário De um discurso que não fosse semblante (1971/2009) onde dando ênfase à escrita, retoma o escrito inicial sobre a carta roubada para localizar o gozo através da instancia da letra e introduzir o paradigma da impossibilidade da relação sexual, base de seu último ensino. Nos diz então que a abordagem do conto era feita para falar do falo (2009, p. 88). Encontramos nesta abordagem uma forma de mostrar a coerência da obra e do ensino de Lacan. Nos interessou retomar o drama de modo a entender os comentários posteriores de Lacan
O conto.
Primeiramente é necessário trazer algumas referencias que dizem respeito propriamente ao conto de Edgar Allan Poe, que data do ano de 1844 e se intitula A carta roubada. Certamente ele não teria tido toda a importância que teve para a psicanálise se Lacan não tivesse se valido dele como parábola de um conjunto de suas próprias teses.
O conto de Poe traz um narrador que nos conta como o detetive Dupin é informado pelo inspetor de polícia que uma carta da maior importância fora roubada da alcova real. No caso, o inspetor sabe que quem a roubou foi o Ministro. Porém, apesar de minuciosas buscas feitas no domicílio do ladrão, o inspetor e a polícia não encontram a carta, cuja recuperação é importantíssima, pois pode ser bastante comprometedora para a Rainha e, por esta razão, ser usada como instrumento de poder e chantagem pelo Ministro. O inspetor se mostra indignado com o enigma da carta roubada. Algumas semanas mais tarde, Dupin restitui a carta ao Inspetor. Dupin, por sua vez, teria motivos mais particulares para roubar a carta do Ministro e numa segunda narrativa nos dá os pormenores do desvendamento do caso.
Uma das coisas que chama a atenção de Lacan é que o conto se estrutura de modo muito discursivo, é a narração da narração da história. Primeiro atenta para o fato de que os diversos “filtros subjetivos” pelos quais passa o conto torna o drama um fato de linguagem (1998, p. 20). E posteriormente nos convoca a sair da esfera da mais perfeita castração (2009, p. 98) em que se encontra o narrador, o Rei e a política de modo geral para que mostremos que o que se articula nessa ordem é passível de interpretação (2009, p. 115).
O primeiro diálogo (narrado) se desenrola entre o Inspetor de Polícia e Dupin, segundo Lacan, um diálogo de um surdo e alguém que ouve. Diz que isso representa a verdadeira complexidade da noção de comunicação (1998, p.20). E completa dizendo que a comunicação pode dar a impressão de só comportar em sua transmissão um único sentido, como se o comentário pleno de significação que lhe confere aquele que ouve pudesse ser neutralizado por passar despercebido àquele que não ouve (idem).
O circuito da fala e da compreensão intersubjetiva.
Assim é possível entender de forma simples por onde a psicanálise se diferencia da abordagem do circuito da fala feita por Saussure uma vez que nesse circuito não existe lugar para um comentário pleno de significação por parte do ouvinte. Essas nuances são do campo da psicologia (Saussure, 1999, p. 24). No circuito da fala que atualiza a língua, o ouvinte é passivo. Essa passividade do ouvinte é necessária para que a lingua se imponha como código a uma comunidade de seres falantes, um objeto exterior aos seus individuos. Para Saussure, das faculdades receptivas e coordenativas do ouvinte passivo é que depende a instauração de marcas que permite a cristalização social de uma língua. Lembremos que para o linguísta a língua não constitui, pois, uma função do falante: é o produto que o individuo registra passivamente (p. 22), ele não pode nem cria-la nem modifica-la (idem), e tem a necessidade de uma aprendizagem para conhecer-lhe o funcionamento (idem) já que ela é um contrato estabelecido entre os membros da comunidade. Anterior portanto a qualquer individuo. Só nessas condições a língua pode servir de instrumento de comunicação.
Onde Saussure simplifica para nos dar a dimensão da língua, e construí-la como um objeto externo, um Outro que agrega os individuos em uma comunidade e permite a comunicação, Lacan complexifica para trazer a dimensão do inconsciente, que tal como a língua, é estruturado como uma linguagem. A questão é que o inconsciente apresenta seus efeitos como aquilo que funciona fora do esperado, fora do contratado, fora do sentido, fora da comunicação e do prícipio do prazer. Como diz Lacan essa é a questão que a carta levanta (1971, p. 124), algo escapa ao pacto do casal Real. A carta é a prova de que nem sempre (não-toda) a Rainha está em função do Rei que recebe dele sua própria mensagem invertida, por isso nem sequer questiona o lugar da Rainha e desse modo ignora o perigo da carta. O lugar da Rainha é feito à imagem do Rei.
Há portanto um forte aspecto imaginário, especular, na linguagem. O eu que fala supõe um outro que escuta em consonância de sentido, eu e outro devem compartilhar os mesmos signos na linguagem para que haja comunicação no sentido de Saussure. Mas o que vemos é que há a prevalência da autonomia do significante e esse sentido desliza, nem sempre confere entre as partes. É a suposição de surdez do outro que faz com que o eu receba sua própria mensagem de forma invertida.
O circuito do desejo inconsciente e a natureza da repetição freudiana.
Para ilustrar os registros imaginário e simbólico que constituem as relações intersubjetivas no conto, Lacan marca dois momentos ou duas cenas: a primeira designada de primitiva e a segunda considerada como sua repetição. Elas se estruturam da mesma forma, o que muda são os personagens que entram na rota discursiva da carta e intercalam as posições, sugerindo uma analogia com o funcionamento dos quatro discursos de 1969.
A cena primitiva acontece na alcova real no momento em que a Rainha recebe a carta comprometedora que coloca sua honra e segurança em jogo com a chegada do Rei. Logo, se segue a entrada do Ministro. O Ministro olha a Rainha, que olha o Rei, que não olha nada. Percebendo o embaraço da Rainha diante do Rei, “seu desarvoramento”, desvenda-lhe o segredo. O Ministro, então, se apodera da carta e despede-se da Rainha que, percebendo a manobra do Ministro, nada pode fazer por não querer despertar a atenção do Rei.
Aqui, o Rei e a Rainha operam em um registro imaginário especular em relação à carta. O Rei não vê a carta e a Rainha vê que o Rei não a vê e joga com isso. O Ministro, por sua vez, opera dentro de um registro simbólico, pois, ao perceber a relação de engodo em que a Rainha mantém o Rei não vendo a carta, e com esse deslocamento em relação à composição imaginária da cena, desvenda a sua importância e a rouba. O Ministro, então, desloca a significação da carta – de amor? – para uma insígnia de poder e traição. Em relação à Rainha, Lacan fala de seu papel de legítima soberana, de sua subordinação ao Rei e do quanto a carta comprometedora a situa em uma cadeia simbólica outra que põe em questão seu poder e sua legitimidade.
A segunda cena passa-se na mansão do Ministro, onde o Inspetor de polícia havia vasculhado meticulosamente, por toda a parte, à procura da carta. Dupin faz uma visita ao Ministro e encontra a carta roubada justamente através de detalhes que parecem forjados para contrariar a descrição que ele tem desta. Dupin não cai no disfarce imaginário da carta que engana a polícia e, neste momento, também o Ministro.
Observa-se, portanto, que todas as ações ocorrem através do olhar e da cegueira próprias do registro do imaginário. Lacan se utiliza destas duas cenas do conto de Poe para ilustrar a intersubjetividade especular (que congela o sujeito no engodo da relação dual) em que as duas ações se motivam e os três termos com que ela se estrutura. Ele destaca o seguinte:
1º Um olhar que nada vê: o Rei, a polícia. Trata-se aqui de uma cegueira realistica, própria do simbolo. Alienação primitiva ao significante. É ao Rei que a carta diz mais respeito, que no entanto não a enxerga. Na segunda cena a polícia vasculha por toda a parte e não encontra nada semelhante ao que ela tem em mente.
2º Um olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta (a carta): a Rainha, o Ministro. Caem sob o efeito da captura imaginária da relação dual que os cega em relação a um terceiro. Engodo da Rainha com o Rei, exposta ao Ministro, na primeira cena, e o caso do Ministro com a Polícia, que o expõe a Dupin, na segunda.
3º “O terceiro é o que vê, desses dois olhares, que eles deixam a descoberto o que é para esconder, para que disso se apodere quem quiser: é o ministro e, por fim, Dupin.” (Citar). É interessante notar que, em ambas as cenas, é o usurpador da carta que opera no registro simbólico deste terceiro lugar. É deste lugar que se toma a carta do ponto de vista do significante e não como um simples objeto, imagem, ou significado. São eles que a deslocam de seu lugar, marcando com isso a principal característica do significante: o de poder mudar e faltar ao seu lugar.
A partir destas cenas, Lacan fala sobre três tempos que revelam os registros do simbólico e do imaginário e que perpassam a intersubjetividade dos personagens. Ao contrário de Poe, que através da história de um menino invencível no jogo do par ou impar, embasa a decifração do enigma por Dupin na identificação imaginária dos personagens (intersubjetividade dual), Lacan procura indicar o limite desta estratégia e justificar as ações do conto pela incidência da ordem simbólica ancorada na carta/letra que ultrapassa a relação dual e as determina. Lacan aprofunda essa análise, trazendo o lugar do autor, trazendo Poe, para além do lugar de narrador que inicia a história.
O que interessa a Lacan em 1966 é destacar que na relação significante se pode justificar o automatismo de repetição tal como Freud propôs num segundo momento de sua teoria a partir de 1920. É com base neste fenômeno que o conto da carta roubada é interpretado e vice-versa, através do conto é possível entender o automatismo de repetição em função do significante. O interesse disso reside no fato de que entender o que o discurso repete prepara a questão do que o sintoma repete (1998, p. 21). O que Freud descobriu foi que seguirá o rumo do significante, com armas e bagagens, tudo que é da ordem do dado psicológico. (p. 34). Esse é um dos aspectos centrais da leitura de Lacan sobre o conto: a questão de como os personagens do Rei, da Rainha, do Ministro e de Dupin se revezam em seus papéis e em seu deslocamento, regidos a partir da carta/letra e seu desvio. Através da detenção/não detenção da carta, os personagens ocupam determinadas posições que se alternam e se repetem, marcando assim o estatuto de significante da carta/letra e o registro simbólico das relações intersubjetivas. Lacan diz que ao entrarem de posse da carta, é o sentido desta que possui os personagens. Em 1971 Lacan faz uma indicação em seu seminário de que é possível articular logicamente esses lugares em função do discurso do mestre nos quatro discursos. Mas haveria um salto que deveria ser feito. Na interpretação devemos tomar não apenas a perspectiva dos sujeitos que inapelavelmente se alienam na carta mas também o gozo por ela produzido. Veremos como essa interpretação de Lacan se marca em dois tempos.
O significante puro
Em 1966, através de sua interpretação do conto, Lacan mostra o quanto os aspectos materiais e imaginários da carta estão sobredeterminados pelo seu registro simbólico. Quase nada se sabe sobre o remetente da carta e sobre seu conteúdo, o que mostra que a carta excede seu valor de comunicação. No que concerne ao Ministro, por exemplo, Lacan ressalta que o que interessa não é a carta em si, sua materialidade e sua instância imaginária. O que está em jogo é o efeito simbólico do não uso da carta que se inscreve como significante puro, a partir do momento que o Ministro a subtrai da Rainha. A detenção da carta/letra pelo Ministro lhe atribui um poder e seu uso dissiparia este poder tal como significante. Sobre isto Lacan diz que (...) seu uso para fins de poder só pode ser potencial, uma vez que ele não pode passar ao ato sem desvanecer-se imediatamente e que portanto a carta só existe como meio de poder pelas atribuições últimas do significante puro, quais sejam, prolongar seu desvio, para fazê-la chegar a quem de direito por uma passagem suplementar, isto é, por uma outra traição. (LACAN, 1998, p. 36)
Vemos o ministro capturado na relação dual (desta vez com a polícia) com todos os traços do engodo mimético ou do animal que se faz de morto: por ver que não é visto, desconhece a situação real em que ele é visto não vendo. E o que é que ele não vê? Lacan pergunta. Justamente a situação simbólica que ele mesmo soubera ver tão bem, e onde eis que agora é visto vendo-se não ser visto. A carta é, assim, uma metáfora do significante e seu não-uso pelo Ministro, tal como os atos de traição, metáfora do funcionamento do significante puro cujo imperativo gera um efeito de feminização. Trata-se de afirmar a abertura radical de sentido proposta pela teoria do significante no primeiro ensino e que tem no Falo sua definição maior. A esta abertura radical do significante está relacionado a dimensão do desejo.
Lacan conclui seu texto interrogando a atitude de Dupin. Ao contrário do analista, que tem como função na transferência guardar em suspenso as cartas/letras de seus analisantes, trata-se de sair do circuito da carta. Lacan pergunta, o que fará Dupin? Se mostrará superior a isso? Entregará a carta ao Rei repondo-a no caminho certo para entrar na ordem da Lei? (1998, p. 42). A conclusão é de que isto é impossível. Dadas as transformações da carta ela já não seria convincente, nada da carta resta.
Facilmente podemos aplicar a fórmula da metáfora paterna para a leitura de Lacan:

Como Falo, a carta é símbolo de uma ausência, como tal, positivada, que se coordena ao Nome do Pai. O interessante é que é como rasura, como apagamento do valor de comunicação original que a carta exerce o seu efeito sobre os personagens na côrte. Característico do Falo como significante do deslocamento significante.
Dupin sai do circuito entregando a carta ao Inspetor de Polícia e recebendo uma boa recompensa. O dinheiro, significante mais aniquilador possível de toda significação (1998, p. 41) permite essa neutralização no drama. Mas Lacan ainda analisa o que chama de uma explosão passional (p. 42) o fato dele haver deixado uma carta no lugar com uma mensagem aniquiladora para o Ministro. Lacan ressalta que isto acontece no momento em que Dupin já detém a carta, como se dela se houvesse apoderado mas sem ainda estar em condições de se desfazer dela. Dupin estava portanto sob a égide do imperativo significante que feminiza seu portador.
Lacan com isso denuncia que Dupin, por um momento faz parte integrante da tríade intersubjetiva, e agora acha-se na posição intermediária antes ocupada pela Rainha e depois pelo Ministro - segundo tempo, vê que o outro não vê. Mas quem então será convocado para ocupar o terceiro lugar em relação a Dupin e ao Ministro e roubar-lhe a carta?
Obviamente vemos que é Lacan, como leitor (e analista), que toma a carta pela perspectiva da instância da letra. Ele interpreta Poe e Dupin e ao invés de reconhecer a mestria castrada de Dupin, enuncia o verdadeiro efeito da carta: a feminização do qual nem mesmo este escapa. Isso se faz justamente as avessas de Poe, autor e verdadeiro dono da carta, do qual Dupin é um alter-ego. Lacan chama a atenção para o fato de que Poe faz de tudo para fazer parecer que Dupin é aquele que sabe tudo e aquele que leva todas as vantagens no fim da história, o espertalhão dos espertalhões (2009, p. 97).
Lacan equivoca essa certeza com base na esperteza do Ministro que como bom jogador, “matemático e poeta”, não deporá suas cartas sem antes lhe verificar o valor, de modo que ainda tenha tempo de evitar a vergonha (1998, p. 45). Com isso a gracinha de Dupin não vai até o fim, ele também é um ludibriado, um iludido pelo poder fálico da carta.
Desta primeira abordagem com enfase no mal-entendido próprio da dimensão significante com que Lacan destaca a carta no texto Seminário sobre a carta roubada, teremos outros aspectos sendo ressaltados nos comentários de 1971.
De um resto que não é uma bolinha de papel.
Encontramos uma diferença marcante nas concepções de resto que temos no intervalo dos dois comentários de Lacan (1966 e 1971) que nos interessa acentuar para explicitar o tipo de virada se opera em termos de interpretação analítica em seu ensino.
Em 1966, ao nos relatar a primeira cena do conto, entre o Rei, a Rainha e o Ministro, Lacan sugere que seu resto é a carta que o Ministro deixa em cima da mesa em lugar da carta que roubou. Puro semblante esvaziado de verdade. Esta carta não é significante. Com ela a Rainha pode fazer uma bolinha de papel (1966, p. 15). Sabemos que isto reflete a incidência teórica deste momento que recai sobre a autonomia do significante. É pelo mesmo motivo que acentua o fato de que nada sabemos sobre a carta: carta de amor ou carta de conspiração, carta de delação ou carta de instrução, carta de intimação ou carta de desolação, só podemos reter uma coisa: a carta não pode chegar ao Rei (1966, p. 30). O que mais interessa do ponto de vista do significante e da cadeia que ele estrutura é que a carta não deixa de ser um símbolo de um pacto que situa sua destinatária em uma cadeia simbólica distinta da que constitui seu juramento. (p. 30). Isso basta para caracterizar a carta como significante, ela é prova de um deslocamento da Rainha em relação a cadeia causal que a legitima.
Veremos que num segundo momento, Lacan irá se interessar pelo gozo da Rainha que a carta oculta e que lhe dá o poder do Falo. É assim que teremos as coisas melhor pontuadas neste momento. Afinal de contas, para além de seu valor de comunicação, a carta é prova do quê exatamente? O mais provável é que ela desse testemunho de uma relação sexual (2009, p. 121). Em 1971 na sessão de seu seminário em que introduz a lógica para pensar as relações entre o homem e a mulher, Lacan diz que trata-se de tornar sensível como a transmissão de uma carta/letra se relaciona com algo essencial na organização do discurso: o gozo (2009, p. 121).
Aqui o ciclo se fecha. Devemos compreender não só o significante mas também o gozo que estrutura o drama da carta roubada. Neste sentido, Lacan destaca a carta de Poe como muito exemplar pelo fato de que somente numa côrte pensada como uma ordem fundamentada no artifício máximo das representações (2009, p. 121) que podemos ver comparecer a função da necessidade como tal, como irredutível no real. De modo bastante freudiano, nos lembra que a necessidade é a parcela mínima da pulsão que não pode ser sublimada. Nesse sentido a necessidade é necessidade sexual (2009, 122) como parcela mínima da pulsão que exige satisfação. É disso que a carta é prova: de uma necessidade sexual da Rainha. Neste momento, a carta da Rainha é prova de que seu ser se funda fora do campo da representação que ela encarna.
Não se trata mais de uma outra ordem simbólica a que Rainha pertenceria, mas sim à sua parcela de gozo que não se inscreve na ordem simbólica. A coisa se embaraça pois no artefato da corte, o Rei e a Rainha são supostos encarnarem de forma simbólica, a relação sexual natural, biológica como tal, necessária inclusive na medida em que é de sua alçada gerar herdeiros legítimos para a sucessão. No caso, o artefato, chamado por Lacan de Estatal, ratifica a natureza da relação sexual entre Rei e Rainha ao preço de poder lhe gerar filhos bastardos. Lacan nos diz que há alguma coisa impropriamente simbolizada em torno dessa relação como sexual. Isso só pode se encarnar em seres fictícios. (p. 123) Aqui encontramos um modo de interceptar a conjunção/disjunção do significante e do gozo. A carta portanto se relaciona com o ocultamento da acentuada deficiência desta relação sexual (2009, p. 124).
Desta forma podemos entender que o artefato é uma estrutura de ficção através do qual a verdade se enuncia. A verdade da carta como necessidade do gozo feminino só vem à tona na medida em que se trata de uma Rainha, geradora de herdeiros, feita mais do que ninguém à imagem do Rei, no contexto de uma côrte que lhe reprovaria todo e qualquer coisa de outra ordem. A carta se destaca ao dizer respeito à relação da mulher com a lei no que ela faz valer seu ser fundando-o fora da lei que continua contendo-a em posição de significante, ou até mesmo de fetiche (Escritos, p. 35 apud p. 123).
Lacan nos diz que isso não pode ser enunciado fora da psicanálise uma vez que ela não se articula em discurso do mesmo modo que um Estado, por exemplo. Defende que não podemos nos contentar com esse nível, a partir do momento em que fazemos surgir a instância da letra (p. 96). E afirma que por causa disso é justificado que a psicanálise seja primeira em relação à política (2009, p. 115). Se nos mantivermos no nível do Estado, nos encontramos em uma posição em que há sempre um lado que está rompido no círculo. Nos diz que se o inconsciente tem um sentido é porque leva em conta o sujeito que aí é irredutível, mas o sujeito aí se distingue por sua imbecilidade especialíssima. É o caso do Rei, ele é o verdadeiro sujeito da carta e Poe com isso se diverte. (p. 96).
A carta portanto é por um lado prova da deficiência da relação sexual entre o Rei e a Rainha mas por outro, prova da necessidade de gozo imposto pela pulsão, e portanto prova da relação sexual. Como conciliar essa questão? É Lacan quem nos dá a resposta ao dizer que a carta indica tudo que Freud desenvolveu, ou seja, que a carta não serve para a relação sexual mas para a relação sexuada (2009, p. 122).
Acentuando ainda mais o aspecto do gozo em seu ensino, nos diz que a relação sexual gira em torno do que está escrito (2009, p. 99) e ainda que o escrito é o gozo (2009, p. 121). Mas o escrito depende do inscritível. Temos portanto que estar atentos ao que é inscritível, é só com base nisso que podemos verificar alguma coisa. Tudo que Lacan traz por exemplo sobre a carta roubada de Poe só é importante por advir de uma rasura, ilegível a primeira vista (2009, p. 99), um ilegível no entanto, que apresenta um sentido. Esse é o valor da interpretação.
No caráter ficticio da linguagem há uma via de verificação que segundo Lacan, faz questão de captar o ponto em que a ficção tropeça e o que a detém (2009, p. 124). É por isso que a lógica vem a ter um papel importante no desenvolvimento das ciências e no pensamento de Lacan. A questão é que isso só é possível ao que é inscritível na linguagem. Isso é necessário para que a psicanálise, tal como a ciência, leve a letra do gozo para o muro da verificação.

Referências: LACAN, J. O seminário sobre “A carta roubada” In___ Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1998. _____________O Seminário. Livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 2009. SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo, Ed. Cultrix, 1997.