"ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER" (1920)
A pulsão é pulsão de morte?
Tania Coelho dos Santos
Na virada dos anos 20, nos habituamos a dizer, Freud repensou sua metapsicologia e apresentou uma
segunda tópica do aparelho psíquico. O eixo desse trabalho é o privilégio que concederemos ao "ponto
de vista econômico" na abordagem desta reformulação da metapsicologia. É isso justamente que nos
anuncia o próprio Freud quando nos apresenta no "Mais Além do Princípio do Prazer" sua perplexidade
face ao paradoxo da compulsão à repetição. A compulsão à repetição evidencia-se na clínica
psicanalítica em conexão com o fracasso terapêutico. A compulsão à repetição será então o fenômeno
que apontará para um aspecto da vida psíquica, desde logo identificado como da ordem do pulsional,
que passa ao largo da referência ao prazer ou ao desprazer, mostrando-se indiferente ao princípio do
prazer. A repetição de eventos desagradáveis coloca-se em nítido contraste com a até então suposta
hegemonia do princípio do prazer sobre a vida psíquica.
O "mais pulsional" (n.1) na pulsão, como será postulado, é a "compulsão à repetição", mecanismo
primitivo que revelaria a eficácia de uma pulsão de morte, cujo livre curso em direção ao seu alvo
encontra a barreira das pulsões sexuais e das pulsões do ego, reunidas e rebatizadas de pulsões de
vida.
No centro dessa reformulação, uma questão se impõe: a do nexo entre o trauma - redefinido em torno
da oposição perigo pulsional x perigo de vida - e a angústia, também retomada a partir da oposição
angústia automática x angústia como sinal . Nosso problema, queremos delimitar, diz respeito à
relação que queremos enfatizar entre o novo dualismo pulsional e a redefinição da angústia. Pois a
angústia não será mais tomada como "libido transformada" e portanto não é mais, na sua fonte,
derivada das pulsões sexuais. Ao contrário, na nova teoria da angústia, tal como Freud a desenvolve
em "Inibição, Sintoma e Angústia" , releva de outra fonte, que supomos ser a mesma fonte pulsional
identificada como as pulsões de morte. Essa é a tese que vamos procurar sustentar nas páginas que se
seguem.
Refletindo sobre as neuroses traumáticas (n.2), Freud distingue os sentimentos de medo - que se
referem a um objeto definido - e da angústia - que releva da preparação para o perigo - do "susto"
vez que este último "é o nome que damos ao estado em que alguém fica, quando entrou em perigo sem
estar preparado para ele, dando-se ênfase ao fator surpresa." (Freud, 1920: pag.24). Os sonhos dos
neuróticos traumáticos mostram a peculiaridade de reconduzi-los à situação traumática da qual eles
acordam tomados por um novo susto. Essas situações revelam a fixação ao trauma. Evidencia-se aqui a
intrigante peculiaridade da compulsão na vida psíquica à repetição de experiências desagradáveis
.
É entretanto a tentativa de compreender o jogo de seu neto que permite a colocação mais precisa das
indagações suscitadas pela "repetição do evento traumático". Freud se pergunta porque o menino
reencena o desaparecimento do carretel/mãe: se se trata aí de uma pulsão de domínio que o compele a
assumir um papel ativo face a experiência passiva de ser deixado, diariamente pela mãe, revelando
assim que a expressão de um impulso hostil poderia ser um evento mais primário na vida psíquica e
independente do princípio do prazer, ou se a repetição do evento desagradável não era mais que uma
mera pré-condição para que se reproduzisse o prazer ligado ao ansiado retorno da mãe. A primeira
hipótese não representa, em absoluto, uma ruptura com as formulações sobre a pulsão encontradas nos
artigos metapsicológicos de 1915. O sadismo é então postulado como anterior ao masoquismo (n.3).
A repetição do evento desagradável -Freud se pergunta - não seria um exemplo de uma "produção de
prazer de outra fonte", mais direta? Essa última hipótese refere-se ao fato enigmático de que o
menino repetia, "como um jogo em si mesmo" o primeiro ato, referido ao desaparecimento da mãe. E é
esse fato que será exaustivamente reexaminado por Freud no contexto da "compulsão à repetição" nas
neuroses, indicando que a repetição, em si mesma, constitui um princípio mais "primitivo, mais
elementar, e mais pulsional (n.4) do que o princípio do prazer que ela domina" (Freud, 1920: pag.
37). Temos aqui a referência a um princípio - "repetição em si mesma" - e a uma produção de prazer
de outra fonte -devemos entender, outra que não a sexualidade ou a pulsão sexual - "mais direta".
Referência tanto mais enigmática de vez que é de um "ato" de separar, dividir, arremessar para longe
que se trata.
Em "Totem e Tabu", a expulsão da horda primitiva associa entre si os filhos expulsos, que juntos
assassinam o pai e devoram ritualmente sua carne, e, pelo remorso e a idealização do pai morto,
fundam a cultura e causam a incessante repetição sacrificial do evento traumático primeiro. Sobre o
estatuto desse evento Freud é axiomático: "no princípio foi o ato"; "o pensar" foi, antes, "o
fazer". A referência à fundação da cultura por meio da suspensão da hostilidade e do retorno da
agressividade sobre si mesmo será doravante retomada em "O Ego e o Id" e no "Mal Estar na
Civilização" em conexão com o incontornável "mal-estar do homem na cultura". Nos bastidores da
guerra renunciada pelo medo de ser morto, a pulsão de morte repete silenciosamente seu trabalho. Do
pecado original, crime de morte contra o pai, padecem todos os homens e é ele a fonte do sentimento
inconsciente de culpa do superego arcaico- cultura pura da pulsão de morte enquistada no id - e
reestabelecida através do complexo edipiano (n.5) . A ontogênese repete a filogênese no desejo de
morte, que reaviva as marcas originais do sentimento universal de culpa. Sobre o sentimento de
culpa, ou melhor, sobre a percepção que o ego tem da ação do super-ego no Id e que se exerce como
crítica, o "O Ego e o Id" nos confronta com o paradoxo da hipótese filogenética, de acordo com a
qual as raízes desse sentimento ultrapassam a história individual e põem em marcha o sadismo. O
modelo geral do édipo individual parece ser algo da mesma ordem pela qual: "Em muitos criminosos,
especialmente nos principiantes, é possível detectar um sentimento de culpa muito poderoso, que
existia antes do crime, e, portanto, não é o resultado, mas sim o seu motivo. É como se fosse um
alívio poder ligar esse sentimento inconsciente de culta a algo imediato" (pag. 69).
A fonte da pulsão de morte é o sentimento de culpa primitivo. Freud refere assim, ao acontecimento
mítico primordial, ao ato da agressão fundador da cultura, a causa da compulsão à repetição, que
como um sentimento inconsciente de culpa impõe a insistência na angústia.
Dessa articulação, entre "Totem e Tabu" e o "Mais além do Princípio do Prazer" entendemos que
resulta a tese de que o masoquismo, na ontogênese é mais primitivo que o sadismo. Este último, de
acordo com o que Freud postula em "O Problema Econômico do Masoquismo" é a deflexão do masoquismo
para o exterior que se realiza com o auxílio da fusão com as pulsões sexuais. A pulsão de morte, é
também desse ponto de vista, - o do masoquismo - mais primitiva que a pulsão sexual.
O que se segue, acompanha o rastro da constituição de um conceito da pulsão, como pulsão de morte,
no "Mais Além do Princípio do Prazer". Freud nos adverte na parte IV, "é especulação, amiúde
especulação forçada, que o leitor tomará em consideração ou porá de lado, de acordo com sua
predileção individual. É mais uma tentativa de acompanhar sistematicamente uma idéia, só por
curiosidade de ver até onde ela levará". (Freud, 1923: pag. 39) Não nos parece que os destinos das
"especulações freudianas" nos facultem reduzi-las a esse estatuto quase filosófico. Vamos tomar como
referência para nossa indagação o exame de algumas questões metapsicológicas, como a origem da
consciência, que conduz à hipótese de que o aparelho psíquico originário comporta-se como uma
vesícula viva que entretanto desenvolve um escudo protetor com relação aos estímulos provenientes do
exterior, de modo que são "traumáticas" quaisquer excitações provindas de fora, desde que sejam
suficientemente poderosas para atravessar esse escudo protetor. O conceito de trauma refere-se a
essa ruptura de uma barreira sobre outros aspectos eficaz contra estímulos. Essa barreira é o
próprio princípio do prazer e nessas condições um trauma externo o coloca fora de ação. "Não há mais
possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de estímulos:
em vez disso, outro problema surge, o problema de dominar as quantidades de estímulos que
irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico a fim de que delas se possa então desvencilhar"
(Freud, 1920: pag. 45). O trauma iguala a excitação externa à interna instaurando uma situação de
fluxo contínuo de excitações. O trauma primordial instala o movimento da pulsão, que, como vamos
insistir em defender, é pulsão de morte.
A ruptura do escudo protetor indica uma falha de hipercatexia dos sistemas que seriam os primeiros a
receber o estímulo. A angústia, cuja omissão constitui a causa das neuroses traumáticas, é o que os
sonhos de angústia parecem querer estabelecer retrospectivamente. A nova teoria freudiana sobre a
ansiedade prenuncia-se nesse texto através de sua ligação essencial com o que está "mais além do
princípio do prazer", a repetição. Para que a dominância do princípio do prazer possa se
estabelecer, uma função do aparelho mental, mais primitiva, independente e paradoxal com seus
propósitos, deve funcionar.
A discussão sobre a ruptura da proteção contra os estímulos externos é, na construção do argumento
freudiano, na verdade um pretexto para trazer ao debate o problema das fontes pulsionais, de vez que
contra elas nenhum escudo protetor pode ser desenvolvido, razão pela qual os distúrbios que
ocasionam são amiúde comparados aos ocasionados pelas neuroses traumáticas. Os impulsos pulsionais
têm no inconsciente o seu ponto de impacto, e obedecem portanto ao processo primário Seria tarefa
dos extratos mais elevados do aparelho mental sujeitar a excitação pulsional no processo primário, e
só assim a dominância do princípio do prazer (e de sua modificação, o princípio da realidade seria
efetuada. Um fracasso em realizar essa sujeição teria efeito análogo à neurose traumática: dar livre
curso à repetição, inútil para os propósitos da vida.
A tarefa de dominar ou sujeitar as excitações teria precedência e independência com relação ao
princípio do prazer, e sua ação não raro o despreza. O caráter altamente pulsional da "compulsão à
repetição" - que se revela pela aparência de uma força demoníaca em ação - bem o testemunha. Freud
então enuncia a mais enigmática de suas teses: "Nesse ponto, não podemos fugir à suspeita de que
deparamos com a trilha de um atributo universal dos instintos (pulsões) e talvez da vida orgânica em
geral que até o presente não foi claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente
acentuado. Parece, então, que um instinto (pulsão) é um impulso inerente à vida orgânica, a
restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a
pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para
dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica" (Freud, 1920: pags. 54-55).
As pulsões, por conseguinte, relacionam-se menos com o que impele no sentido da mudança e do
desenvolvimento e muito mais com a conservação e a repetição de um estado anterior de coisas. As
pulsões estão fadadas a dar uma impressão enganadora de serem forças tendentes ao progresso e à
mudança, quando de fato tendem a restaurar um estado de coisas antigo e inicial pois "o objetivo de
toda a vida é a morte", "as coisas inanimadas existiram antes das vivas".
A pulsão por excelência é, no segundo dualismo pulsional, pulsão de morte. Vemos suceder o dualismo
pulsões do ego e pulsões sexuais, afinal um monismo, pulsões sexuais do ego e pulsões sexuais de
objeto, um novo dualismo que vem revelar-se, não menos, um novo monismo. A pulsão de morte não
contracena originariamente com nenhuma outra espécie de pulsão. As pulsões sexuais são identificadas
como forças perturbadoras "externas". Serão essas "influências perturbadoras externas" algo que diz
respeito à ação do "cuidado materno primário", ação que interpõe a "experiência de satisfação" no
curso automático e repetitivo da vida pulsional? Se admitimos que sim, as pulsões sexuais estão para
as pulsões de morte como o princípio de realidade está para o princípio do prazer, na primeira
tópica. Adiam, inibem, contornam o objetivo mesmo da pulsão. As pulsões sexuais são Zielgehemmt.
No texto em questão, Freud se esforça para dar conta de qual é a força responsável por opor
obstáculos à pulsão de morte. Duas são as explicações sugeridas. A primeira diz à respeito à
oposição subjetividade/des-existência. Aquilo que inibe a pulsão é algo como a individualidade ou o
percurso subjetivo, pulsões de auto-conservação, auto-afirmação e domínio, pulsões do ego. "Trata-se
de instintos (pulsões) componentes cuja função é garantir que o organismo seguirá seu próprio
caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não
sejam imanentes ao próprio organismo. Daí surgir a situação paradoxal de que o organismo vivo luta
com toda energia contra fatos (perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a atingir mais
rapidamente seu objetivo, por uma espécie de curto-circuito. Tal comportamento, entretanto, é
precisamente "o que caracteriza os esforços puramente instintuais (pulsionais) contrastados com os
esforços inteligentes." (Freud, 1920: pags. 56-57). A inteligência é individualização e configura
uma parte das forças que inibem e desviam o curso da pulsão de morte.
A segunda hipótese descreve algo que diz respeito à dupla natureza do organismo vivo, ou seja, que
se imortalize na transmissão do germoplasma que, entretanto, lhe sobrevive. A sexualidade adia,
prolonga o percurso para a morte. A reprodução sexuada guarda relações então com o que, na primeira
hipótese, é sugerido como da ordem da "individualidade e da inteligência", pois imortaliza esse
primeiro esforço. Freud parece ter em mente, quando se refere ao inorgânico/inanimado versus
orgânico/animado, algo como a oposição entre a "massa" e o "eu", a sociedade e o indivíduo.
O caráter Zielgehemmt da pulsão de morte por meio da sexual é o que estaria em discussão aqui. O que
se segue não é menos problemático. O argumento freudiano insistirá no caráter conservador da pulsão,
plenamente exemplificado pela sublimação. Quanto a esta última, Freud sustenta, não é o efeito de
uma pulsão de progresso e desenvolvimento. Ao contrário, a sublimação é evocada no argumento
freudiano como o destino exemplar no que diz respeito à impossibilidade da satisfação completa da
pulsão. O recalque da pulsão, Freud se refere, ao que parece, ao recalque primordial, recalque do
"primeiro ato" -o assassinato do pai - é irremovível, articula-se com o engendramento de "tudo que a
cultura humana tem de mais precioso". O impulso recalcado, impulso hostil -bem entendido -nunca
abandona seu objetivo de perseguir a satisfação completa, mas a diferença de quantidade entre o
prazer da satisfação que é exigida e a que é realmente conseguida é o fator impulsionador que não
permite qualquer parada em nenhuma das posições alcançadas. O sexual é o que recalca o curso
automático e inflexível da pulsão em direção ao seu alvo, a "satisfação completa". Essa satisfação
completa, nós sabemos que se trata da satisfação referida ao "princípio do nirvana", que
contrariamente ao princípio da constância, aspira a descarga absoluta das tensões.
No que diz respeito à cultura, ela viabiliza a transmissão do "plasma germinal" e nesse sentido o
"soma individual" pode morrer. A morte, nos diz Freud, é "uma questão de conveniência, uma
manifestação de adaptação às condições externas da vida, porque, uma vez as células do corpo tenham
sido divididas em soma e plasma germinal, uma duração ilimitada da vida individual é um luxo
inteiramente desnecessário" (Freud, 1920: pag. 66). Reprodução e morte mantém uma relação
genealógica essencial. Que os organismos multicelulares por meio da diferenciação soma/ plasma
germinal tenham acionado a pulsão, como nostalgia da morte, aí está a questão. Nada disso,
entretanto, nos esclarece acerca dos motivos que conduziram a essa divisão. Freud trata tudo isso
como um acidente.
As pulsões do eu são pulsões de morte, quando essa expressão aparece publicada pela primeira vez.
Ora, uma parte da libido do ego, nos diz Freud, é sexual e destina-se aos objetos sexuais. A
coalescência de duas células apenas ligeiramente diferentes pode ocasionar a renovação da vida, pois
aumenta as "tensões" introduzindo "diferenças vitais". A vitalidade resulta da tensão introduzida
pela diferença. Os processos vitais do indivíduo levariam, por si mesmos, por razões internas - que
identificamos como o próprio princípio da repetição ou pulsão de morte - a uma abolição das tensões
químicas. O sexual é a introdução da diferença que barra a repetição e pela qual o princípio do
nirvana "pode encontrar expressão no princípio do prazer". A repetição sexuada reúne o que a divisão
dos sexos separou, é o que conclui Freud do mito de Platão, bem como da teoria dos Upanishads.
Assim, assumimos a conclusão de que na origem o Eu era indiviso, por essa razão o eu, ou como mais
tarde vem a ser ampliado e precisado, o id é o grande reservatório da libido. Sob o impacto
traumático do excesso quantitativo, pela ação da pulsão de morte, há divisão e daí a diferença e o
desejo de reunião. A pulsão, pulsará ainda pelo retorno, pela "necessidade de restaurar um estado
anterior de coisas", mas por caminhos que importam em um aumento temporário de tensão tal como a
diferença exige.
Assim, as pulsões do eu e as pulsões de objeto pertencem à classe mais geral das pulsões sexuais
regidas por Eros ou o princípio da vida, cuja vocação e destino guarda relações apresentadas através
de uma construção mítica - com o que existe de mais primitivo na vida psíquica, que são as pulsões
de morte. O problema da relação da pulsão de morte ou de repetição com a dominância do princípio do
prazer fica em aberto. Distinguindo função e tendência, Freud afirma que o princípio do prazer é uma
tendência que opera a serviço de uma função, que é libertar inteiramente ou conservar tão baixa
quanto possível a quantidade de excitações no aparelho psíquico. O princípio do prazer, operante
desde o início da vida mental, não foi entretanto dominante, pois no começo da vida mental a luta
pelo prazer era muito mais intensa, mas sujeita a constantes interrupções.
É essa afirmação que vai nos colocar no caminho de outro texto metapsicológico, que é a reformulação
propriamente dita do ponto de vista econômico no seio da segunda tópica. Essa reformulação diz
respeito às concepções freudianas com relação a angústia, que testemunham o retorno à questão do
trauma na etiologia das neuroses, governado entretanto por uma nova dimensão, a da relação com a
pulsão de morte.
O nosso ponto de partida será a afirmação de que os estados de angústia são uma reprodução do trauma
do nascimento. A angústia teria surgido originalmente como uma reação a um estado de perigo; e é
reproduzida sempre que um estado dessa espécie se repete. O "acidente" que introduz a divisão parece
que se esclarece aqui, na referência à perda de um estado primitivo indiviso, que o trauma do
nascimento vem romper, ao mesmo tempo que instituir a pulsão, como pulsão pelo retorno à condição
perdida e o "Outro" na função de algo que se pode acrescentar ao ser da criança, como um verdadeiro
"escudo protetor" contra os estímulos. Escudo cuja falha desencadeia a reedição da situação
traumática.
Quando a criança descobre pela experiência que um objeto externo, perceptível, é quem pode pôr termo
à situação perigosa que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo é deslocado para a perda de
objeto. É a ausência da mãe que agora constitui o perigo. A angústia até então desencadeada de modo
automático e involuntário transita em direção a uma reprodução intencional como sinal de perigo. A
reação automática ao perigo da vida se converte em reação ligada ou há transformação do susto em
medo da perda do objeto e do medo em angústia face aos sinais de seu afastamento. Essas
considerações reforçam a idéia de que o "sexual" é a influência "externa" do outro materno que
introduz no mecanismo automático da angústia, um tempo de espera, um adiamento, um sinal. O medo da
separação renova-se na fase fálica em associação com a perda do órgão que dá suporte à ligação
genital. A angústia é aqui angústia de castração. E finalmente, com a despersonalização do agente
parental, o perigo se torna menos definido. A angústia se torna angústia moral. A transformação
final pela qual passa o medo do superego é o medo da morte (ou medo pela vida) que é um medo do
superego projetado nos poderes do destino. O ego é assim a sede real da angústia. Esta não resulta
da libido transformada. De que resulta ela então?
Incidentalmente, Freud é levado a distinguir os estados de angústia tal como se estabelecem nas
psiconeuroses e os estados de angústia que se instalam nas neuroses atuais, equiparadas que são às
neuroses traumáticas. No primeiro caso, "algo ocorre no id que ativa uma das situações de perigo
para o ego e que o induz a emitir o sinal de angústia" (Freud, 1926: pag. 165). No segundo caso, é
estabelecida uma situação no id análoga ao trauma do nascimento, seguindo-se uma reação automática
de angústia. A geração do sintoma, cuja mola propulsora é o sinal de angústia do ego - que desperta
a instância prazer-desprazer - põe termo à situação de perigo. Na primeira infância, entretanto, o
indivíduo não está preparado para dominar psiquicamente as grandes somas de excitação que o alcançam
quer de fora, quer de dentro. O ser adulto não oferece entretanto qualquer proteção absoluta contra
um retorno da situação de ansiedade traumática original. Todo indivíduo tem um limite além do qual o
seu aparelho mental falha em sua função de dominar as quantidades de excitação que precisam ser
eliminadas. Isso não é tudo. O mais importante é que mesmo superados os determinantes da angústia
ligados a cada período do desenvolvimento, as pessoas, precisamente os neuróticos, persistem em suas
reações ao perigo. Porque a repetição de um afeto tão penoso se o perigo cessou? O enigma da
angústia automática é que sendo reação ao perigo da vida, deveria ser à preservação da vida que ela
visaria. Entretanto, a fixação traumática, a repetição automática e inexorável ao evento
desagradável não indicariam, justamente, que a angústia automática é a ação e a eficácia própria à
pulsão de morte? A angústia, afeto pelo qual a pulsão de morte "faz ato" sem referir-se a nenhuma
representação, só se converte em angústia a serviço da vida, angústia como sinal através de um
profundo remanejamento das forças pulsionais. Este se realiza pela ação do Outro que reconhece nela
uma dimensão de apelo e faz do sofrimento, demanda. A evidência clínica é reveladora de que a
insistência e preservação da "compulsão à repetição" pulsional, "resiste" "reage negativamente à
intervenção terapêutica" e permanece indiferente na "inacessibilidade narcísica", que como uma
"neurose de destino" condena ao fracasso o analista e "satisfaz o sentimento inconsciente de culpa"
do paciente. Pois, como Freud esclarece em "Inibição, Sintoma e Angústia" , devemos estar preparados
para enfrentar cinco classes de resistências, das quais três são do ego mas, duas outras advém do
super-ego e do Id. Em "Análise Terminável e Interminável", Freud é cético com relação ao que podemos
esperar da análise. E não é por nenhuma outra razão senão pelo que do "econômico", o "fator
quantitativo" na pulsão, fugirá sempre ao controle e à determinação terapêuticas.
Concluindo, propomos que a angústia é a legítima representante da pulsão de morte na vida psíquica.
Desencadeada automaticamente como efeito do trauma de nascimento, revela-se como uma força cega,
demoníaca, inflexível, insistente e repetitiva. Em nenhum outro aspecto da vida psíquica a pulsão
revela seu caráter plenamente. Enigmática, na sua indiferença pelo prazer ou pelo desprazer, jamais
encontra no Nebensmench, no próximo, no sexual, anteparo suficientemente poderoso para barrar sua
inexorabilidade, sujeitando-a ao princípio do prazer. O problema do homem não é sujeitar o princípio
do prazer ao princípio de realidade e sim sujeitar o princípio da repetição à regulação do
prazer-desprazer.
O desamparo é um destino inexorável da humanidade. No "Mal-estar na Civilização" Freud assinala que
ele nos ameaça em três frentes: o corpo é vulnerável, mundo físico é adverso e a convivência entre
os homens está longe de ser pouco decepcionante. A realidade psíquica, não é menos disposta à
harmonia. Os textos metapsicológicos de 1920 não são apenas o efeito do ceticismo freudiano ou do
desencanto com a cruzada terapêutica, são, no nosso entender, a expressão de um acesso à intimidade
da relação do homem com a morte. O desamparo do homem, sua vulnerabilidade, é também a causa de sua
profunda mávontade. É a fenda, aberta pelo nascimento, que instaura o movimento pulsional, que é
força constante porque incapaz de encontrar um anteparo que possa barrar definitivamente sua busca
de satisfação pois, se puder encontrá-lo, seu destino - que é a morte - se cumpre.
NOTAS
1. Essa expressão, o "mais pulsional" na pulsão é a tradução que preferimos para o "Triebhaft" do
texto freudiano original, termo pelo qual Freud qualifica a relação entre a repetição e a pulsão.
2. Freud, S. (1920) "Mais além do Principio do Prazer", parte II, p. 24, ESB.
3. Freud, S. (1916) "As Pulsões e suas Vicissitudes", ESB.
4. Em Alemão: "Es bleit genugübrig, was die Annahme des Wiederholungszwanges rechtfertigt, und
dieser erscheint uns ursprünglicher, elementarer, triebhafter als das von ihm zur Seite geschobene
Lustprinzip." (Freud, 5.1920, Jenseits der Lustprinzip, in Das Ich und Das Es und andere
metapsychologische Schriften, Ficher Taschenbuch Verlag, Frankfurt am Main). A tradução brasileira,
que toma por referência a tradução inglesa, traduziu Triebhaft por instintual. Aqui preferimos
traduzir Triebhaft por pulsional.
5. Ver Freud, S. (1923) "O Ego e o Id" ESB, pp. 67/68/69.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Freud, S. (1915) "As Pulsões e suas Vicissitudes", ESB, Imago Eds., Rio de Janeiro.
_______. (1920) "Mais Além do Principio do Prazer", ESB, Imago Eds., Rio de Janeiro.
_______. (1920) "Jenseits der Lustprinzips" in: Das Ich und das Es und andere metapsychologische
Schriften, Frankfurt am Main.
_______. (1923) "O Ego e o Id", ESB, Imago Eds., Rio de Janeiro.
_______. (1924) "O Problema Econômico do Masoquismo", ESB, Imago Eds., Rio de Janeiro.
_______. (1926 <1926> "Inibição, Sintoma e Angústia", ESB, Imago Eds., Rio de Janeiro.
_______. (1930 <1929> "Mal-Estar na Civilização", ESB, Imago Eds., Rio de Janeiro.
_______. (1937) "Análise Terminável e interminável", ESB, Imago Eds., Rio de Janeiro.