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Bom dia. Trabalharemos em torno das paixões
femininas, que comporta fundamentalmente as questões relativas
à feminilidade. Agradeço o convite de minhas colegas, Tania
Coelho dos Santos e Márcia Mello, para participar deste espaço
de trabalho na universidade.
Comecemos sem demora. Vou fazer primeiro um pequeno
percurso em torno de conceitos e noções de psicanálise que
vocês seguramente já conhecem. No entanto, penso que elas são
necessárias para dar os argumentos teóricos e conceituais do
que quero sustentar hoje.
Primeiro
ponto: da sexualidade à sexuação
Para os seres falantes, a sexualidade não tem nada
de natural. Esta é a verdade evidenciada pelo discurso analítico.
Freud estabeleceu as premissas da sexualidade amarrando-as ao
complexo de castração que, segundo ele, constituía o complexo
nodal das neuroses. Na expressão freudiana “complexo nodal”
encontramos a idéia do que faz nó entre sexualidade e castração.
O complexo de castração introduz, para cada sujeito, a
necessidade de determinar-se no nível de uma escolha subjetiva
com respeito à diferença sexual. Em conseqüência, o sujeito
deve responder com uma posição sexuada, enquanto homem ou
mulher.
A posição masculina ou a posição feminina
seriam, segundo Freud, o resultado de um processo eminentemente
lógico que comporta uma série de pontuações fundamentais.
Neste sentido, para Freud, a escolha da posição sexuada não
responde nem a um percurso evolutivo, no sentido psicológico,
nem a um processo correspondente a algo de uma maturação biológica.
Pelo contrário, cada pontuação lógica determina para cada
sujeito infantil um tempo de ver, um tempo de compreender e um
tempo de concluir.[2]
Estas diferentes pontuações são levadas a cabo no curso da
infância e comportam, cada uma, uma modalidade diferente de
subjetivação da perda. Para cada criança, o momento de
realizar, de conceber que se trata de algo que se perde,
dependerá das contingências que serão enfrentadas no curso de
sua vida. No entanto, a subjetivação da perda se realiza em
uma temporalidade retroativa, disse Freud, uma temporalidade de après-coup.
O ponto de amarração, o ponto de almofadado desta
temporalidade seria aquele no qual se conclui um processo lógico
de assunção da identidade sexual, o qual se cumpre, se realiza
no momento da puberdade, quer dizer, no momento da adolescência.
A tese freudiana é a de que a posição sexuada de cada sujeito
testemunha a relação do sujeito com a castração.
Segundo
ponto: o que faz objeção ao primado do falo
A castração é uma operação que se deduz do que
Freud chama de a primazia do falo. Isto quer dizer que, para as
crianças freudianas, o falo é um atributo universal. O que
Freud chama de primazia do falo seria, num primeiro tempo, o que
caracteriza um processo lógico de universalização do traço fálico.
Num segundo tempo lógico, as crianças freudianas devem passar
pelo desengano com respeito à ilusão da universalidade do
falo. Segundo Freud, o que contradiz a primazia universal do
falo seria a percepção feita pela criança da ausência do
falo, quer dizer, a percepção do que falta. Esta percepção
da falta se dá em um registro imaginário. No entanto, não se
pode assumir uma falta como tal se esta falta não tiver sido
simbolizada. Segundo Freud, a percepção da falta põe em jogo
a sua simbolização e tem uma incidência sobre o sujeito na
medida em que esta simbolização da falta é auto-referida, ou
seja, é vivida como auto-referencial. É uma percepção
exterior, cuja experiência tem uma incidência sobre o corpo próprio.
Quer dizer que isto faz valer, segundo Freud, em um terceiro
tempo lógico, a ameaça da perda ou a subjetivação da perda.
Neste sentido, a percepção da ausência do falo é traumática,
posto que ela introduz no sujeito a possibilidade de uma perda
que lhe concerne.
Desse trauma o sujeito infantil se defende através
de uma posição de juízo que comporta três vertentes: a
repressão, o desmentido e a foraclusão da falta. Isso
determina a posição do sujeito como neurótico, como perverso
ou como psicótico.
A
subjetivação da perda
Voltemos ao ponto no qual Freud se vê confrontado
com o que está em jogo na sexualidade feminina. Ele considerava
que os meninos se encontram em uma posição de equivalência
com respeito às meninas no que concerne ao primado do falo,
etapa lógica que vale tanto para os meninos quanto para as
meninas. Contudo, a deflexão do complexo de Édipo que Freud
procura consiste em colocar o menino e a menina em uma posição
que não é equivalente. Isso quer dizer que, para o menino, o
processo lógico do complexo de Édipo termina quando ele assume
as conseqüências da ameaça de castração, ou seja, quando
assume as conseqüências da ameaça da perda do órgão. Já
para a menina, é através do descobrimento dessa falta e,
fundamentalmente, do descobrimento da falta na mãe que se abre
para ela a porta do complexo de Édipo. Assim, a menina
freudiana deve separar-se de sua mãe e orientar-se em direção
ao pai.
Porque ela deixaria sua mãe que é, depois de tudo,
seu primeiro objeto de amor? Segundo Freud, a menina se separa
de sua mãe por causa da decepção em função da qual ela
experimentaria, subjetivaria sua relação à falta através da
descoberta da falta da mãe. Isso lhe permitiria orientar sua
demanda em direção ao outro lado na medida em que ela chegaria
a compreender que sua mãe não pode lhe dar o que ela espera.
Que ela não pode ou que ela não quer. Estas seriam as raízes
do ódio da menina em direção à mãe.
Assim, a menina deve encaminhar-se, na relação com
a mãe, do amor ao ódio. E é, sobretudo, o ódio o que a
descola da mãe e o que a empurra em direção ao pai. Neste
movimento, Freud faz com que a menina gire ao redor de um
objeto, o objeto fálico. Ela supõe que seu pai, que o tem,
pode dá-lo. É aí que Freud introduz uma metáfora. Ele nos
indica que esse falo que a menina espera do pai é substituído
na sua subjetividade, a partir de um certo momento. No lugar do
falo esperado surge o desejo de um filho. Nestas condições, o
filho já estaria inscrito no momento edípico da menina como
sendo um objeto fundamental para ela, um objeto que ela espera
do pai. Segundo Freud, a menina tem que sofrer uma decepção a
mais com relação ao que espera do pai para que, por sua vez,
sua demanda se desprenda do pai e possa orientá-la em direção
aos seus substitutos, quer dizer, em direção aos homens por
vir.
Neste percurso, Freud nos diz que podem acontecer
muitos acidentes. Seja que a menina não se descole da mãe para
dirigir-se ao pai, seja que, uma vez orientada na direção do
pai, ela não possa se separar da demanda dirigida a ele e,
conseqüentemente, orientar-se em direção aos homens. Neste
caso, ela fica fixada em um lugar, esperando do pai um dom ou
imaginando que somente seu pai pode satisfazê-la.
Pode acontecer também que a menina rechace o descobrimento da
diferença sexual e que não aceite estar afetada pela falta.
Nesse caso, Freud diz que ela desenvolverá um complexo de
masculinidade. Tudo dependerá da força de fixação deste
rechaço. Se for um rechaço definitivo, isto dará lugar a uma
psicose, podendo comportar uma reivindicação delirante de
falo, que também pode tomar a forma de uma reivindicação
delirante de um corpo masculino, de ter um corpo de homem. Se,
pelo contrário, este rechaço se dialetizar, ele seria somente
um momento de passagem por uma reivindicação masculina na
menina, que poderia soldar-se posteriormente numa aceitação da
feminilidade. Neste sentido, podemos declinar as paixões
femininas em Freud, centradas ao redor da reivindicação fálica
e dando lugar a uma reivindicação permanente dirigida à mãe
sob a forma do ódio, uma reivindicação dirigida ao pai, ou
bem uma reivindicação dirigida aos homens. Neste caso, a paixão
fundamental da mulher freudiana estaria organizada em torna de
sua reivindicação do falo.
Passemos agora a um outro ponto, onde consideraremos
a lógica freudiana da castração feminina.
A
lógica freudiana da castração feminina
Nos anos trinta, Freud[2]
faz um grande descobrimento que o leva a considerar, no que
concerne à menina, que antes do complexo de Édipo propriamente
dito há um período fundamental, de uma grande riqueza, e que
comporta também conseqüências fundamentais para a menina.
Trata-se do período da relação que une a menina à mãe.
Freud concebe, então, que já na relação pré-edípica da
menina com a mãe a menina introduz o falo de maneira fantasmática:
como o bebê que ela quer dar à mãe ou que ela quer receber da
mãe. Este bebê fálico é um objeto metonímico derivado dos
objetos pulsionais. Encontramos aqui, em Freud, uma antecedência
conceitual do que Lacan desenvolverá posteriormente: o bebê
ocupa o lugar de objeto pequeno a
para uma mulher.
Freud descobre uma seqüência metonímica que nos
permite perceber a existência de um antecedente lógico da metáfora
fálica no momento propriamente edípico da menina com a demanda
dirigida ao pai. Esta precedência lógica permite a Freud
descobrir que o bebê ocupa um lugar importantíssimo na relação
da menina com sua mãe e que ele vem como deslocamento da
significação do objeto anal, das fezes. Isto implica dizer que
haveria um deslizamento metonímico do objeto no sentido de um
objeto pulsional dependente da demanda do Outro, ou seja, da
demanda que caracteriza fundamentalmente uma etapa em que, para
adquirir o controle dos esfíncteres, a criança tem que se
separar de seu objeto anal satisfazendo a demanda do Outro e
entrar em um período em que o objeto é socializado. Neste
caso, vemos que o bebê é um substituto desse objeto
correlacionado logicamente à demanda do Outro, o qual comporta
também que a relação de uma mulher com seu filho ou filha põe
em jogo a relação desta mulher com a demanda do Outro materno.
Por isso, muitas vezes, muitas das paixões que ficam em jogo
para uma mulher no nascimento de um filho ativam essa relação
à demanda do Outro sob diferentes modalidades que podem
comportar desde oferecer o filho à mãe, deixando-o sob seus
cuidados, como também preservar-se precisamente da intrusão da
mãe na sua relação com o filho. Pode, ainda, desembocar em
uma paixão delirante de conceber que a mãe quer roubar-lhe o
filho.
Em todos os casos, a lógica freudiana é uma lógica
centrada fundamentalmente em torno da questão do falo para os
dois sexos. Ter ou não ter o falo é, digamos, o ponto de
orientação freudiano no que concerne à categoria de homens e
mulheres.
A conseqüência desta lógica fálica conduz Freud
a constatar que o fim da análise naufraga frente a um obstáculo
maior, que ele chama de rochedo da castração, segundo o que
desenvolve no texto "Análise terminável e interminável".[3]
Ele constata que é muito difícil levar as análises mais além
do rochedo da castração.
O rochedo da castração apresenta duas características,
que Freud declina em termos de rechaço da feminilidade. Este
tema, segundo meu entendimento dos textos apresentados nas
Jornadas,[4]
foi muito trabalhado por Tania Coelho dos Santos. Do rechaço da
feminilidade participam os dois sexos, tanto os homens como as
mulheres. Este rechaço consiste em não querer aceitar a
feminilidade.
Nas mulheres, o rechaço da feminilidade, que seria
uma paixão freudiana por excelência, toma a forma do que Freud
chama de Penisneid
(inveja do pênis), ponto de obstáculo maior na direção da
cura de uma mulher para Freud.
Para os homens, o rechaço da feminilidade
caracteriza todas as dificuldades masculinas com a autoridade,
na medida em que reconhecer a autoridade de outro homem suporia,
para um homem, no nível fantasmático, submeter-se em uma posição
feminina a outro homem.
Como, então, levar os sujeitos mais além de seus
impasses? Como levar uma mulher mais além da paixão do Penisneid? Esta é a questão de Freud.
Vemos bem que a lógica freudiana submete a
sexualidade feminina ao regime da impotência fálica, a qual
conduz, ao mesmo tempo, a teoria psicanalítica a um impasse que
consiste em confundir feminilidade e histeria, e que erige o
mistério do desejo feminino.
Elaborando a lógica deste impasse freudiano, Lacan
pôde empurrar mais além os limites conceituais que encerravam
a posição feminina dentro do impasse da mulher histérica.
Para poder levar mais além e superar este impasse, seria
preciso levar em conta o que dizem as mulheres em análise. No Seminário
17, Lacan[5]
tem uma frase muito bonita. Ele diz que Emma, Dora, Anna O. e
outras eram bocas de ouro que presenteavam Freud com pérolas.
Porque Freud as encerrou, todas, no mito do Édipo? Poderia ter
feito algo melhor com o que elas diziam. Porque? Porque as
mulheres em análise seguramente testemunham sua paixão fálica.
Nós não podemos negar isso. No entanto, elas também
testemunham que a relação com o falo não é a única coisa
que lhes interessa. Quando falam, elas testemunham a importância
fundamental do amor para elas.
O amor ocupa um lugar privilegiado para as mulheres.
É uma paixão fundamental feminina. Isto porque, para uma
mulher, o amor é a condição de seu gozo sexual. É neste
ponto que a posição masculina e a feminina divergem
essencialmente. Um homem pode gozar fora das coordenadas do
discurso amoroso. Para um homem, o discurso amoroso pode ser, na
maioria das vezes, um obstáculo para o gozo sexual. Freud[6]
já havia assinalado que nos homens havia uma disjunção entre
o amor e o desejo. Segundo Lacan, na maioria das vezes amor e
desejo não podem coincidir sobre o mesmo objeto porque, nos
homens, a mãe contamina a mulher. Isso quer dizer que, para os
homens, a mãe é o objeto de amor, o objeto de ternura. Nessas
condições se, enquanto objeto de desejo, a mãe é um objeto
proibido, então o objeto de desejo deverá estar encarnado em
uma outra mulher que não a mãe, o avesso da mãe, o avesso do
amor, ou seja, uma mulher depreciada, uma mulher desvalorizada,
uma mulher que porte em si um traço de desvalorização. O
avesso da mãe é a puta.
A disjunção entre o amor e o desejo nos homens
torna muito difícil para eles fazer coincidir em um mesmo
objeto a corrente amorosa e a corrente do desejo. O gozo
masculino, como afirmou Lacan,[7]
é um gozo que prescinde da palavra de amor. É um gozo que tem
lugar em um espaço de silêncio, em uma zona sem palavras. Por
outro lado, nas mulheres, Lacan faz valer a fundamental relação
delas com o amor e com o que isso implica para elas:
oferecerem-se como objeto do fantasma do homem é o que elas dão
para obter em troca uma resposta de amor.
Lacan nos indica que o que domina no nível do gozo
nos homens é a relação com objeto pequeno a
do fantasma. Do lado masculino, o objeto pequeno a, causa de desejo, é condição de gozo. Isso faz com que a fórmula
do fantasma predomine do lado masculino - $àa. Em conseqüência, Lacan nos
indica que, para um homem, uma mulher ocupa uma posição de
objeto fetiche. Por outro lado, não encontramos nas mulheres
esse traço dominante do objeto fetiche. Encontramos, sim, a
paixão amorosa. Essa relação das mulheres com o amor faz com
que o gozo feminino, mais além do falo, tenha a ver com esse
lugar que Lacan escreve como S(). Com esse matema, Lacan caracteriza o lugar do
significante que falta no Outro. A paixão feminina com o
parceiro amoroso é uma paixão que a põe em relação com o
significante do Outro faltoso. E é nessa relação que a
vertente feminina no amor tem muito mais o caráter erotomaníaco.
De fato, Freud já havia notado que, para as
mulheres, o temor de perder o amor tinha o mesmo valor que o
temor da castração do lado masculino. No entanto, era necessário
circunscrever que o amor ocupa um lugar central no gozo feminino
e poder formular, a partir daí, a paixão fundamental das
mulheres com relação à mãe. Lacan desloca a problemática
feminina posto que Freud a havia centrado na relação das
mulheres com respeito à demanda dirigida ao pai. Lacan
caracteriza fundamentalmente a posição feminina a partir da
relação com a mãe. É desse modo que ele nos fala da devastação,
que não é um termo freudiano.
A devastação caracteriza a relação de uma mulher
com sua mãe, tal com Lacan o nota em um texto que se chama “O
aturdito”. Lacan afirma que a menina, ou a mulher, parece
esperar da mãe mais subsistência[8]
que do pai. A menina espera da mãe, e não do pai, um “a
mais” de substância.
Esta frase
é pequena. Não possui qualquer desenvolvimento. Mas, ao mesmo tempo, é
muito enigmática. Eu fui buscar o valor semântico desse termo,
subsistência.[9]
O que o saber que se acumula no cristal da língua nos indica
sobre esse termo?
No Dicionário histórico da língua francesa,
Robert[10],
encontrei coisas muito interessantes. O termo subsistência
deriva do latim clássico subsistere, o qual significa
habitar um lugar e, ao mesmo tempo, resistir, não ceder. No
tempo da Idade Média, no latim medieval, esse termo tomou a
significação de ficar/permanecer vivo (quedar vivo/en vida)
no que se refere à significação relativa aos sujeitos
humanos. Entretanto, com respeito aos objetos, tomou o sentido
de duração, de algo que dura, algo que tem a ver com a duração,
algo que subsiste. O verbo subsistir inclui o prefixo sub,
que marca a posição de inferioridade de algo em relação a
algo. Ou seja, por um lado, encontramos o prefixo sub e,
por outro, o verbo sistere. O verbo sistere deriva
do verbo stare, que também é um verbo proveniente do
latim. Em francês, é um verbo desaparecido. Ele é encontrado
em espanhol e em italiano. Não sei se o encontramos também em
português. Sim? Vocês me dizem que eu também o encontro em
português sob a forma do verbo estar.
Em francês, perdurou o verbo esere, do qual
provém o verbo ser (être). No entanto, o verbo stare
desapareceu. Stare não é da mesma ordem que esere.
Estar não é da mesma ordem que ser. Stare comporta, faz
referência a uma posição – como nas frases “estar cansado
de estar acordado”, “estar adormecido” – e é algo
transitório. É um modo de ser transitório. Por exemplo, em
francês, se diz “eu sou enfermo”. Je suis malade
implica, em francês, estar ou ser doente, de acordo com a
frase. Porém, nas línguas latinas, onde se dispõe do verbo stare,
podemos diferenciar um modo de ser, permanente ou transitório.
Quero assinalar que temos o recurso ao uso do verbo stare
para qualificar algo da ordem do que não é essencial, mas que
concorda com a temporalidade enquanto contingência.
O que é interessante é que stare se
encontra presente também na etimologia de existere ou exsistere,
existir. Como vocês sabem, Lacan deu grande importância ao ex-sistir.
Ex-sistir quer dizer ocupar um lugar fora de, estar fora, estar
de outro lado. E, para marcar a importância etimológica desta
palavra, Lacan transforma sua escritura. No lugar de um x,
escreve a letra k, ek-sistir.
Ex/ek-sistir
é ter um lugar que não é o lugar do ser. Há uma diferença
entre o que é da ordem do ser e o que é da ordem da existência.
Segundo Lacan, o ser não pode ser mais do que aquilo que é
atribuído pelas palavras. O ser não existe fora do que está
dito, do que se diz. No entanto, a existência, ao contrário,
é algo que não se pode qualificar a partir do que se diz de
alguém. Vocês não podem qualificar a existência de uma
mulher através das categorias que declinariam seu ser e essa é
a problemática fundamental da feminilidade.
A problemática da feminilidade repousa sobre a
problemática da ex-sistência/existência. Podemos dizer que
uma mulher é bela, doce, má, feia, tudo o que quisermos. No
entanto, esses atributos se dirigem ao ser e nunca irão nos
assegurar de que elas existem. É nesta disjunção entre o ser
e a existência que se instala, a meu ver, a paixão fundamental
da dor da feminilidade para as mulheres.
Eu parti do termo latino subsistere, onde
encontramos etimologicamente stare e existere. No
que concerne à subsistência, que deriva de subsistere,
podemos reter a significação atestada desde 1774, que é a que
diz que subsistência é o que permite viver. Em particular, é
o que se refere aos víveres. Porém, no nível da antiga
ortografia de subsistence, com “e”, que provém do
baixo latim subsistência, esta etimologia testemunha
fundamentalmente a significação tomada por esta palavra na
teologia, a qual reenvia àquilo que nos interessa: à existência
e à subsistência (subsistancia).
A partir destas contribuições encontradas na
etimologia podemos decifrar um pouco melhor o que Lacan afirma
quando diz que uma mulher espera de sua mãe a subsistência.
Esclarecidos pelo saber acumulado na língua, podemos conceber a
força, a imensidão, a enormidade do que uma mulher espera de
sua mãe. Trata-se de algo que ela, seguramente, não lhe pode
dar, uma vez que a mãe não lhe pode dar nem a existência
enquanto mulher, nem o ser de mulher e, tampouco, a substância
feminina. Não lhe dá e não é porque não quer, mas porque é
algo da ordem do impossível.
Retornemos a Freud, à sua conferência sobre a
feminilidade[11]. Ali ele acentua o fato de
que o laço da menina com sua mãe termina em ódio e de que
este ódio encontra sua raiz na desmedida reivindicação de
amor da menina. Em seguida, Freud declina e articula a fonte
pulsional da demanda oral dirigida à mãe. Uma demanda
ilimitada de satisfação oral. É interessante assinalar que
Freud põe o acento no desmedido dessa demanda da menina à mãe.
E é nesta articulação entre amor e pulsão que encontramos,
precisamente, a significação do termo subsistência, no
sentido do seu primeiro valor semântico, quer dizer daquilo que
permite viver, daquilo que assegura os víveres. Esta
perspectiva nos abre uma via de exploração interessante, da
qual podemos sacar uma série de conseqüências clínicas muito
impressionantes onde se confirma, efetivamente, que a demanda
oral da menina em direção à mãe, nas análises de mulheres,
está sempre muito ativa.
Pelo contrário, em “L’Étourdit”, Lacan
apresenta as raízes lógicas do desmedido que uma mulher espera
com relação à sua mãe. Este desmedido, este sem limite se
encontra correlacionado ao real da posição feminina, quer
dizer, ao impossível da posição feminina. Impossível no
sentido do que não cessa de não se escrever para uma mulher. A
demanda desmedida das mulheres provém daquilo que não cessa de
não se escrever para elas. Para desenrolar isso, é preciso dar
conta do que Lacan desenvolveu sob o nome de fórmulas quânticas
da sexuação[12].
Primeiro ponto: não existe uma exceção do lado
feminino que ponha um limite à função fálica. Na lógica da
sexuação, o falo não é um objeto nem uma falta de objeto. Não
é tampouco uma imagem e, seguramente, não é um órgão. O
falo, que se escreve com a letra grega phi maiúscula (F), é um símbolo, um significante que pode ser inscrito no
inconsciente como uma função lógica. Então, a função fálica
Fx escreve uma função lógica tal como Frege concebe a função.
A inscrição da função fálica comporta que o sujeito venha a
inscrever-se no lugar do argumento da função. É no lugar do x
que o sujeito se inscreve como argumento da função. Segundo
esta lógica da sexuação, haveria duas formas de inscrever-se
como argumento da função.
Um dos modos de inscrição possível
responde à lógica que se articula no complexo de Édipo
freudiano, como lógica do Um da exceção, que Lacan escreve do
seguinte modo:
Isto quer dizer que se trata de uma existência lógica
que se inscreve contra, que se inscreve fora. A posição
“fora” é uma posição lógica que permite construir o
conjunto de todos aqueles que respondem à função fálica: "x
. Fx
Esta lógica do Um e do Todo caracteriza, segundo Lacan, a
lógica edípica. É a esta lógica que a sexuação masculina
responde. Isso quer dizer que todo o gozo masculino responde à
articulação da função fálica porque existe Um que se
inscreve como exceção. Este Um que existe enquanto x é o Um
da exceção. É a forma lógica sob a qual Lacan escreve o
impossível do pai de "Totem e tabu"[13]
que goza de todas as mulheres, ou seja, é o impossível puro.
Todo sujeito que se inscreve do lado masculino está
subordinado, no nível do seu gozo, à função fálica. Para
que essa universalização seja válida é necessário
logicamente que uma exceção se inscreva fora do conjunto de
todos. E essa exceção dá a razão da função lógica da exceção
freudiana de "Totem e tabu".
Contrariamente, há outra lógica articulada à lógica
da função fálica, que não reponde à lógica do Um e do
Todo. É aquela que Lacan construiu como correspondendo ao mais
além do Édipo freudiano, no qual Freud havia encerrado as
mulheres e desde onde provinham seus impasses no que diz
respeito à feminilidade. No lado feminino não há exceção à
função fálica:
Conseqüentemente, do lado
feminino não se pode construir o conjunto de todas as mulheres.
Isto quer dizer que não se pode construir o conjunto do gozo
feminino todo articulado à função fálica. Com respeito ao
falo, do lado feminino temos o não-todo. Portanto, temos um
conjunto aberto, onde o gozo do sujeito não está todo no
regime fálico.
Do lado de feminino, a ausência
de exceção constitui a mulher do lado do não-todo, portanto,
fora do universal, fazendo valer para cada mulher o uma por uma.
Para o sujeito que se inscreve na função fálica do lado
feminino, como não há universalização da função, é impossível
que a universalização fálica de seu gozo esteja assegurada.
A conseqüência lógica
disto é que A mulher não existe. Não há universal da mulher.
Do lado feminino nós encontramos uma lógica que é da ordem do
transfinito, que marca o princípio da inacessibilidade. Não é
possível construir o conjunto de todas as mulheres posto que
todas as mulheres não podem se classificar dentro de uma
equivalência lógica com respeito ao falo. As mulheres são
inclassificáveis porque cada uma é excepcional, como indica
Jacques-Alain Miller.[14]
Portanto, do lado feminino, nós nos encontramos frente a uma
constelação de exceções, onde cada uma é excepcional e, em
conseqüência, nenhuma pode realizar em seu ser, salvo na
psicose, ser A mulher que não existe.
As mulheres são raramente
crédulas no que concerne às versões de homens disfarçados ou
transformados em mulheres. As mulheres são aquelas que sabem
distinguir imediatamente quando se trata de uma verdadeira ou de
uma falsa, coisa que não ocorre aos homens. Nesse nível, os
homens se deixam enganar mais facilmente do que as mulheres.
Entretanto, as mulheres se deixam enganar, são crédulas com
relação à Outra mulher e pensam que ela possui o delicioso
mistério da verdadeira feminilidade. Eis outra paixão
feminina: a paixão pela Outra mulher, paixão histérica por
excelência.
Ora, se do lado feminino
existe este princípio de inacessibilidade é porque a demanda
de amor feminina padece dele. É por padecer desse princípio
que a demanda de amor feminina, como Lacan a demonstrou, é uma
demanda que não cessa e que pede ainda, ainda, ainda mais, encore
et encore. Este “ainda” caracteriza a demanda de amor
das mulheres e é sempre ainda, ainda e ainda porque do lado
feminino não há um limite.
Mas o que é este
“ainda”, que é a fonte de todos os mal entendidos, quer
seja o mal entendido da relação da menina com a mãe, quer
seja o mal entendido da relação dela com o pai, quer seja o
mal entendido que reina entre as mulheres e os homens? Ao que
aponta este “ainda”? Não devemos crer que se trate de um
objeto, mesmo que, às vezes, elas peçam objetos. O que o
“ainda” aponta é muito mais o signo proveniente do Outro, o
signo de uma presença que dê. Mas que dê o que? Que dê nada.
Em todo o caso, que dê nada mais do que o signo.
Não devemos confundir os
signos com os significantes. Um signo é algo que aparece como
indexando uma presença. Lacan dizia que não há fumaça sem
fumante ou não há fumaça sem fogo. Então, a fumaça é signo
de que há fogo e não pode haver fogo sem que tenha havido alguém
que o acendesse. A fumaça é, então, o signo da presença
daquele que acendeu o fogo, de alguém que fez o fogo arder.
Quando há signo sempre há alguém atrás dele. Se não há
signo não há ninguém.
Contrariamente ao signo, o
significante se articula com outro significante para representar
um sujeito. No entanto, quando há sujeito isso não quer dizer
que haja alguém. Um sujeito é um efeito de significação que
não assegura nenhuma presença. Quando vocês lêem um livro
antes de dormir, vocês estão sob os efeitos dos significantes
do texto, estão sob os efeitos do sujeito do texto, mas este
sujeito não realiza uma presença. No entanto, por mais
apaixonados que vocês estejam pela trama da novela que lêem,
se neste momento vocês escutarem um golpe na janela, vocês irão
se sobressaltar. Acreditavam-se a sós em casa e, de repente, um
golpe na janela faz com que vocês pensem que há alguém lá
fora. Um signo é signo de uma presença que pode ser muito
angustiante, inquietante ou que pode dar segurança. Os filmes
de ficção científica ou de terror jogam muito com os signos
da presença para fazer existir, a partir de pequenos signos,
presenças enigmáticas, presenças do mais além. O signo faz
existir um mais além. É por isso que a questão do amor está
articulada à presença dos signos do amor.
Se amar é dar o que não
se tem[15],
esse é o mais difícil dos dons. Esse dom faz intervir o que
falta e também se encontra articulado no coração do amor.
Mas, como podemos saber se a resposta do outro é uma resposta
de amor ou não? Nunca temos essa certeza, salvo nas psicoses.
Somente a mulher psicótica tem a certeza do amor ou do ódio do
outro. Porém, para as que não são psicóticas, o amor é
sempre incerto, tão incerto como o signo.
Com respeito ao signo,
tudo depende da interpretação que lhe é dada. O mesmo signo
pode ser recebido em momentos diferentes com interpretações
diferentes. O signo depende da dinâmica temporal e da lógica
na qual se inscreve. Por exemplo, no início de uma análise uma
mulher pode referir-se a algo que sua mãe lhe disse ou fez e
interpretar isso como “minha mãe nunca me quis” e, ao
final, este dito ou gesto da mãe, pode adquirir outra
interpretação. Ali onde a menina acreditava que a mãe nunca
lhe quis pode, ao final, advir uma outra interpretação, aquela
que consiste em dizer “era eu que atribuía um desamor à
minha mãe”.
No curso de uma análise há
uma transformação do valor do signo em função do
deciframento que se produz na análise, o qual transforma os
efeitos de sentido dos fatos acontecidos. E se os efeitos de
sentido mudam, a posição do sujeito também muda na medida em
que o sujeito é um efeito de sentido.
Algumas vezes o amor pode
se contentar com o silêncio, no entanto, o amor é muito mais
voraz de palavras. O amor necessita do discurso amoroso, das
palavras de amor e da carta de amor. O discurso amoroso - e a
carta de amor - é também uma das paixões fundamentais da
mulher. A demanda de amor feminina é uma demanda de signos e de
palavras que possam distinguir para a mulher um ser feminino.
Ela espera do Outro o seu ser feminino e daí provém o mal
entendido da feminilidade e também o seu mal estar. Ela se
sente mal porque, contrariamente aos homens, não dispõe de um
aparato significante para poder universalizar, eu diria, seu
acento ontológico. Ela é outra para si mesma. E é em relação
a esta alteridade com respeito a si mesma que às vezes ela
gostaria de poder se acalmar por meio dos signos de amor dos
quais ela espera uma certa consistência de seu ser.
Portanto, poderíamos
supor que a devastação em uma mulher caracteriza o enredo
específico do real do qual ela é um efeito enquanto mulher. As
mulheres padecem do real. Em conseqüência, o que ela espera de
sua mãe, enquanto existência, ser e subsistência, sua mãe,
que é uma mulher, não lhe pode dar. O melhor que uma mãe pode
dar é um signo de amor. Ela pode lhe dar o exemplo da forma
singular que ela, mãe, encontrou para ser mulher, quer dizer, o
seu modo singular de fazer com o impossível da feminilidade. Ou
seja, a mãe não pode transmitir à filha um saber articulado
sobre a feminilidade. Não há conceito de feminilidade
transmissível de mãe para filha. Ela não pode lhe transmitir
porque não há um saber sobre o gozo feminino que se articule
em termos de saber. O que a mãe pode fazer é somente mostrar
à sua filha, com seu exemplo, com sua forma de fazer, de dizer,
sua forma única, sua maneira absolutamente singular, o modo
através da qual ela encontrou sua solução, tal como cada
mulher deve encontrar.
A experiência da mãe
para se tornar mulher nunca poderá ser transmitida à sua filha
porque a mãe não pode transmitir o Um da exceção que
fundaria, para a filha, o todo da feminilidade. Neste sentido,
se não há saber transmissível da feminilidade com o qual a mãe
possa satisfazer, a filha deve renunciar à sua paixão de
esperar da mãe um princípio de escritura de sua feminilidade.
Sob este impossível se escondem as repreensões da filha em
direção à mãe, posto que a filha supõe ou crê que a mãe
encerra um segredo sobre a feminilidade, o qual ela não quer
transmitir.
É necessário que a análise
faça uma mulher cair desta ilusão, que faça essa ilusão se
desvanecer, que esta crença seja desmentida para que ela possa
assumir por sua vez um modo de fazer com o enredo feminino, um
modo de fazer com o próprio modo como se armou para ela o nó
do feminino. No fundo, este enredo permitiu à mãe, à sua
maneira, encontrar um parceiro, um homem do qual ela se fez
sinthoma para ter filhos. No entanto, a mãe não pode
transmitir à sua filha nada mais do que os signos de sua própria
exclusão. Sua exclusão de que? Sua exclusão das palavras, sua
exclusão da articulação da linguagem em termos de saber,
exclusão que é própria à feminilidade, exclusão da qual a mãe
leva as marcas em seu corpo enquanto corpo de mulher. São esses
signos de exclusão que a mãe leva no corpo, como qualquer
mulher, que a menina terá interpretado e mal interpretado.
Interpretado ao avesso, produzindo nela mesma um efeito de
devastação.
A saída da devastação
para uma mulher, paixão maior feminina, é possível de ser
feita em uma análise. A saída da devastação permite à
mulher poder cingir o nó do enredo com a mãe para poder
conceber que o enredo da mãe não era outra coisa senão o modo
pelo qual a própria mãe pôde responder ao real em jogo na
posição feminina. Assim, uma mulher poderá cingir o ponto em
que ela se enredou, o que lhe permitirá, por conseguinte,
cingir como ela pode desenredar-se para corrigir a versão
materna ou para contrariá-la, mas erigindo sua própria versão.
Constatamos que as meninas
que tentam aceder a uma versão diferente do enredo proposto
pela mãe no lugar de corrigi-lo tem, na maioria dos casos, o
enredo agravado.
Depois deste percurso a mulher
pode aceder, não a um saber sobre o gozo do qual escapa sempre,
mas a um “saber fazer” com a feminilidade. Esse “saber
fazer” não é um saber de livro, não é um saber teórico, não
é um saber articulado porque é um saber que não se articula.
Trata-se muito mais de algo da ordem do que se faz como saber
fora do matema, fora do conceito. É o que responde mais ao
saber fazer do artesão. As mulheres são artesãs de sua
feminilidade.
Freud já havia assinalado
isso. Ele havia dito que o artesanato, o tecido havia sido
inventado pelas mulheres. A interpretação que ele dava e que
sempre me fez rir muito é a de que ele supunha que, para
esconder a falta de pênis, as mulheres haviam começado a tecer
primeiro seus pelos pubianos, daí se derivando a relação das
mulheres com o tecido.
Encontramos aí uma intuição
fecunda no sentido de “saber fazer”, no sentido de que a técnica
artesanal comporta que um fazer responde, como solução, a algo
que é da ordem do real. E seria a impossibilidade própria do
real feminino o que faz com que as mulheres sejam muito dotadas,
que se movam como peixes na água com tudo o que implica saber
fazer com os semblantes. Saber fazer com o que não há e também
saber fazer com os artifícios para cobrir o real. Há algo de
arte nas mulheres. Arte da qual não podem servir-se enquanto se
mantêm enredadas em uma demanda reivindicativa com respeito ao
que elas concebem como uma devastação materna. Para que uma
mulher aceda à possibilidade de saber fazer com o real da
feminilidade é preciso que ela se separe das repreensões
dolorosas e reivindicativas com respeito à sua mãe. Isso quer
dizer que quando sua paixão pela devastação cessa, talvez aí
ela possa usar seu modo singular de saber fazer com o real da
feminilidade. Obrigada.
Tania
Coelho dos Santos: Eu quero agradecer muito a Esthela Solano-Suárez
pela exposição longa, detalhada e extremamente rica acerca da
sexualidade feminina e da feminilidade, assunto que nós
trabalhamos cotidianamente e em relação ao qual sempre nos
surpreendemos ouvindo coisas inteiramente novas, vendo ângulos
ou perspectivas diferentes. Eu quero passar, então, o microfone
aos ouvintes que quiserem endereçar algumas questões a
Esthela.
Márcia
Mello: Eu gostaria de fazer uma pergunta que parte de uma frase
que você falou poucos momentos antes de acabar a conferência:
“as mulheres padecem do real”. Eu gostaria que você falasse
um pouco mais sobre como isso funciona na psicose. Eu me lembrei
do texto de Lacan intitulado “O arrebatamento de Lol V.
Stein”[16]
e do que Lol pôde fazer com essa questão que você desenvolveu
sobre a subsistência do corpo vivo no sentido de habitar o
lugar e esse ser de corpo.
Esthela Solano-Suárez:
A mulher psicótica tem, quiçá, um pouco mais de dificuldade
para saber fazer com os semblantes a fim de fazer existir uma
posição feminina ali onde não há nenhum suporte do lado do
significante. Uma modalidade de fazer com isso do lado da
psicose é, precisamente, o de vir a ocupar o lugar da mulher
que não existe, da mulher de todos os homens. Tive a
oportunidade de receber para consulta mulheres que exercem a
prostituição e que têm uma vida, digamos, muito ordenada em
função desta profissão. É preciso considerar que, para
suportar essa profissão, a posição subjetiva não deve ser
uma posição que esteja afetada pelo pudor, pela vergonha e por
todos esses afetos e paixões típicos de uma relação com a
castração. Ter feito da prostituição uma profissão supõe
uma posição subjetiva onde os efeitos de divisão, de vergonha
ou de pudor não afetam o sujeito. E eu constatei que,
precisamente, através dessa profissão, se realizava para
algumas mulheres A mulher de todos os homens, A mulher para o
serviço do gozo de todos os homens, coisa que as estabilizava
em um semblante de vida normal, digamos.
Ângela Bernardes:
Em primeiro lugar, eu quero lhe agradecer muito pela sua conferência
hoje. Minha intervenção tem a intenção de aproveitar a sua
presença para levantar uma questão sobre as fórmulas da sexuação.
Você as apresentou de uma maneira muito esclarecedora quando
colocou os quantificadores do lado direito como o mais além do
Édipo para a mulher. A minha pergunta é a seguinte: seria possível
pensarmos o lado direito sem o lado esquerdo? Poderíamos pensar
o não-todo feminino sem a exceção? Ou seja, seria possível
pensar o lado feminino dos quantificadores só do lado direito?
Seria possível situar a psicose apenas do lado direito ou seria
mais correto não usarmos esses quantificadores quando pensamos
na psicose?
Esthela Solano-Suárez:
Eu compreendi bem. É uma pergunta muito interessante porque quiçá
encontraríamos aí a resposta à frase de Freud “as mulheres
não têm supereu”, evocada na mesa coordenada por Tania
Coelho dos Santos, na Jornada da EBP-RJ. Não existe essa função
de exceção que, em última instância, inscreva a lógica da
função do supereu. Parece-me que a relativização, o acento
que é preciso introduzir aí é o de que o não-todo do lado
feminino não quer dizer, absolutamente, toda excluída da função
fálica. Ou seja, o não-todo não é sinônimo de foraclusão.
A não inscrição, no lado feminino, da existência que faça
exceção não é equivalente à não inscrição da função fálica
na psicose. Portanto, o Presidente Schreber de Freud não nos dá
uma versão do gozo feminino. Ele nos dá uma versão da construção
de uma exceção, a mulher de Deus, que é característica de
uma posição psicótica. E esse é o paradoxo. Na medida em que
o não todo se refere de todas as maneiras ao falo, isso indica
que na lógica do não todo a inscrição da função fálica
está assegurada.
Fernanda Dias:
Na sua conferência de sexta-feira, “A
formalização do Édipo freudiano”, nas Jornadas
da EBP-RJ a Sra. cita uma metáfora utilizada por Lacan ao se
referir ao sintoma: o sintoma como "um peixinho voraz que
engole sentido". Hoje, ao falar do amor, a Sra. o coloca
como sendo voraz por palavras e cita as cartas de amor como uma
outra forma de paixão. Seria essa voracidade algo que
aproximaria amor e sintoma?
Esthela Solano-Suárez:
Sim, mas não do mesmo modo. Parece-me que a voracidade do
sentido do lado do sintoma é muito mais uma voracidade que se
inscreve enquanto modo do sintoma se nutrir do transbordamento
da função fálica. A função fálica transborda sobre o
corpo, sobre o pensamento. A demanda de amor feminina, ao contrário,
me parece transbordar a função fálica.
Eu trouxe dois exemplos muito bonitos e não os
apresentei porque me pareceu que poderia ser um pouco de abuso
em relação à paciência de vocês. Mas, se vocês quiserem,
eu apresento os dois casos rapidamente e terminamos aí.
Um dos casos, o da princesa Marie Bonaparte. A
alteza Marie Bonaparte tinha fortuna, tinha poder, tinha relações,
tinha encanto, era belíssima, cultíssima, sedutora. Era uma
princesa. Contudo, não era feliz. Não lhe faltava nada no nível
do ter. Porque não era feliz? Porque nunca pôde aceder ao
orgasmo vaginal, dizia ela, ou seja, ao gozo feminino. Seu corpo
se rechaçava a abrir-lhe o acesso a esse gozo. Nenhum parceiro
lhe deu essa satisfação. Começou uma análise com Dr. Laforge e decidiu que se a análise não resolvia o problema de sua
frigidez, ela faria uma cirurgia. O analista lhe disse que ela
divagava. De toda maneira, ela se fez operar para aproximar o
clitóris e a vagina. Segundo os professores, os médicos, essa
operação lhe permitiria aceder ao gozo sexual. Mas não foi
possível.
Parece-me que este caso põe em evidência algo
fundamental: a impossibilidade para a princesa se inscrevia também
do lado do amor. O amor, como sabemos através de Lacan, não
circula no mundo do rico. O amor não está do lado de Poros,
mas de Aporia, da pobreza, do não ter. Isto quer dizer
que a lógica do amor está mais do lado da mulher pobre do que
da princesa rica.
Ela vai ao encontro do Professor Freud e fica
impressionada com sua doçura e potência intelectual e, pela
primeira vez em sua vida, a princesa pôde viver uma história
de amor. Ou seja, o amor com Freud, o amor de transferência, um
verdadeiro amor. Graças ao amor de transferência, ela pôde
reviver o verdadeiro drama de amor de sua vida. O casamento de
seus pais havia sido ordenado por sua avó, a princesa Pierre. Ela decidiu esse casamento em função da grande fortuna da
mãe de Marie Bonaparte. Precisamente, a fortuna de sua própria
mãe é o que se comentou ter sido a causa de sua morte. Uma
morte que muitos suspeitaram ter sido causada por um crime. A mãe
de Marie Bonaparte havia sido vítima do crime organizado que
queria roubar-lhe a fortuna.
Encontramos, então, um fio invisível que vai da
busca desse gozo outro, da normalidade orgástica, como ela
dizia, e que nos conduz à infância, ao momento em que ela
perde o Outro do amor, um mês depois de haver nascido. Em sua
infância, ela tinha pesadelos e um monstro horrível a ameaçava.
O monstro era o Serquintué.
Esse termo é um nó de equívocos. Provém do equívoco de duas
línguas: Sarg,
proveniente do alemão, que quer dizer caixão (de morto), féretro,
e tuer, proveniente do francês e significa matar. Entre Sarg
e tué (ser morto) se intercala o quin, extraído
da palavra requin, que quer dizer tubarões (tiburones).
Esse era o monstro de sua infância, o monstro que, com seus
dentes, rompia os caixões dos mortos e poderia vir comê-la.
Este monstro enoda a versão do sexual à morte, desamarrado do
amor. O desejo criminal atribuído à avó é encarnado para a
menina por este monstro. Por outro lado, o pai, associado a uma
mulher morta, não pôde transmitir-lhe uma versão viva do
desejo. A isto se acrescenta um pai que vive apagado à sua própria
mãe, a princesa Pierre, e que não tem nenhuma inclinação em relação às
mulheres. Dizem que, em sua mesa de cabeceira, ele tinha o crânio
de Charlotte Colbert. A isto se acrescenta uma cena primitiva,
na qual a menina vê Pascal[17]
e sua babá em uma cena sexual onde a voluptuosidade e o gozo
aparecem completamente desencaixados do amor.
A análise permitiu-lhe reconstruir o porquê de seu
impossível gozo feminino. No entanto, o que ela perdeu ao
perder sua mãe, a análise não lhe pôde restituir. Porém,
graças ao amor de transferência, ela pôde encontrar não o
gozo sexual, mas outra satisfação. O que ela procurou a partir
de ali foi o trabalho intelectual e uma participação ativíssima
não somente em salvar a vida de Freud como também em
transmitir a psicanálise.
Este é um caso que nos demonstra precisamente uma
impossibilidade do lado do gozo feminino determinada por uma
gravíssima relação com o amor. Agora, temos um outro caso, o
de uma mulher que gozava. Tudo o que Marie Bonaparte não podia
gozar, esta outra gozava. E o mais extraordinário era que não
gozava com um homem, gozava com Deus. Uma grande gozadora,
Tereza de Ávila.
Tereza de Ávila nos transmite uma versão do gozo
feminino mais além do falo, um gozo vivido no corpo porque o êxtase,
tal qual ela o descreve, é um gozo do corpo. Ela diz: “Não
somos anjos, temos corpo e é preciso assumir este corpo e
deixar de querer mortificá-lo. É uma loucura querer ser um
anjo quando estamos vivendo sobre a Terra”.
Ela nos descreve de que maneira isso acontece. No
momento em que ela é raptada por Deus, o corpo perde seus
limites. Então, o corpo perde a animação de sua forma. O
rapto amoroso por Deus faz desaparecer os limites imaginários
do corpo. Por outro lado, o corpo é vivido como inanimado.
Parece-lhe que a alma não anima mais o corpo. Aparece primeiro
uma sensação de calor. Logo em seguida, o corpo se esfria. O
pulso se paralisa. O corpo fica fixado na posição em que se
encontrava no momento em que Deus o tomou. Os braços podem
ficar abertos por horas. As mãos podem permanecer rígidas. Às
vezes, não consegue tornar a juntá-las. Os olhos se fecham,
sem que se queira fechá-los, ou permanecem abertos, mas não se
vê nada. Podemos entender o que se diz ao nosso redor, mas não
compreendemos nada. Não podemos tampouco falar. O corpo, quando
em estado de rapto, perdeu o poder sobre si mesmo.
No dia seguinte do rapto amoroso o corpo sofre
dores. Isto é interessante porque se trata de uma paixão na
carne, no corpo. No dia seguinte, sofre dores nos punhos e no
corpo inteiro, uma dor muito viva. O corpo se encontra
completamente deslocado e fora de seus limites. Porém, ao mesmo
tempo, não se pode perder de vista que ela nos diz que o
sofrimento do rapto amoroso é um gozo delicioso. É um martírio
de dor e de delícias. No curso do êxtase, ela perde sua
possibilidade de representação. É uma pura ausência. Não
tem mais memória nem entendimento. Contudo, a sensação de doçura
e de gozo é fora dos limites do corpo e também fora do tempo.
Pode durar horas.
Desta maneira, temos aqui o exemplo claro do que
Lacan nos indica quando afirma que somente os místicos podem
testemunhar isto que vivem como experiência de gozo mais além
do falo, sem que saibam nada sobre isso. Efetivamente, Santa
Tereza nos diz que, com respeito a este gozo, nada se pode
explicar, ninguém pode acreditar nele, é necessário havê-lo
experimentado. Obrigada.
Tania Coelho dos Santos:
Quero agradecer, mais uma vez a Esthela Solano-Suárez, à
participação de todos vocês e também à participação do
Programa de Pós-graduação da UERJ, que dividiu este evento
conosco. Até quarta-feira, dia 30/08, às 9h, quando daremos
continuidade ao III Simpósio do Núcleo Sephora de pesquisa
sobre o moderno e o contemporâneo.
Transcrição da
conferência com tradução diretamente para o português,
estabelecimento do
texto, inclusão de notas e referências
bibliográficas:
Rosa Guedes Lopes.
Revisão técnica:
Tania Coelho dos Santos.
Referências bibliográficas
[1] Conferência de abertura do III Simpósio do Núcleo SEPHORA
de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo -
“Modalidades da precariedade do Nome-do-Pai”. Foi
ministrada no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica,
em 28/08/2006, de à convite das professoras Tania Coelho dos
Santos (UFRJ) e Márcia Mello de Lima (UERJ).
[2]
N.T.: No que se refere à temporalidade lógica, a autora faz
referência implicitamente ao texto de Lacan (1945/998) “O
tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 197-213.
[3] Freud,
S. (1931/1977) Sexualidade feminina". Vol. XXI; (1933
[1932]/1977) “Novas conferências introdutórias sobre
psicanálise”: Conferência XXXIII – “Feminilidade”.
In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Ed.
[4]
Freud, S. (1937/1977) “Análise
terminável e interminável”. In: Op.
Cit., vol. XXIII.
[5]
Esthela Solano-Suárez se refere às XVII Jornadas Clínicas
da EBP-RJ – Para que
serve um Pai? A plenária da Oficina Clínica IV,
intitulada “Dos Nomes do pai: crença, descrença e reinvenção”, foi coordenada
por Tania Coelho dos Santos e Márcia Zucchi e contou
com os seguintes trabalhos realizados no âmbito da própria
oficina na EBP-RJ e também em conformidade com a pesquisa
desenvolvida no Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e
o contemporâneo, coordenado por Tania Coelho dos Santos: “Fragmento da análise de uma mulher: o impasse da feminilidade”, por
Maria Cristina da Cunha Antunes; “Final
de análise como identificação ao sinthoma do homem”,
relatado por Rachel Amin Freitas; “Sobre
o tratamento masculino do gozo feminino”, relatado por
Luciana Genial. Os trabalhos são inéditos.
[6]
“Porque foi que Freud se enganou a esse ponto, já que, se
acreditamos em minha análise de hoje, ele só tinha que
comer, literalmente, o que lhe ofereciam na palma da mão? Por
que substitui o saber que recolheu de todas essas bocas
luminosas, Ana, Emmie, Dora, por esse mito, o complexo de Édipo?”
(Lacan, J.
[1969-70/1992]. O seminário.
Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, p. 92).
[7]
Trata-se dos textos freudianos que compõem as “Contribuições
à psicologia do amor I e II” (1910/1977): “Um tipo
especial de escolha de objeto feita pelos homens” e “Sobre
a tendência universal à depreciação na esfera do amor”.
In: Obras completas.
Rio de Janeiro: Imago, vol. XI.
[8]
Lacan, J. (1972-73/1982).
O Seminário, livro 20: mais, ainda Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
[9]
N.T.: O termo usado pela autora na conferência, ministrada em
espanhol, foi subsistencia.
Como se pode observar abaixo, na edição francesa (original)
e em sua versão brasileira o termo usado é, respectivamente substance
e substância. Manteremos no texto o termo subsistência,
tal como usado pela autora, para seguirmos o percurso que ela
propõe a partir de sua pesquisa semântica.
“A ce titre l’élucubration freudiene du
complexe d’Oedipe, qui y fait la femme poisson dans l’eau,
de ce que la castration soit chez elle de départ (Freud
dixit), contraste douloureusement avec le fait du ravage
qu’est chez la femme, pour la plupart, le rapport à sa mère,
d’où elle semble bien attendre comme femme plus de
substance que de son père, - ce qui ne vas pas avec lui étant
second, dans ce ravage” (Lacan,
J. [14/07/1972/2001]. “L’Étourdit”. In: Autres écrits. Paris:
Editions du Seuil, p. 465).
“Por
essa razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo,
que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela
ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação
que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe,
de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo,
nessa devastação” (Lacan,
J. [14/07/1972/2003].
“O aturdito”. In: Outros
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 465).
[10]
N.T.: Subsistir - (sis). [Do lat. subsistere.].
V. int. 1. Ser, existir; 2. Existir na sua substância;
existir;individualmente. 3. Ter ou estar com vida; viver; 4.
Estar em vigor; viger; manter-se: “A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão subsiste ainda, em essência,
em várias legislações”; 5. Conservar a sua força ou ação.
(Novo Aurélio, Século XXI
(s/d). Dicionário eletrônico. Rio de Janeiro: Lexicon
Informática e Ed. Nova Fronteira).
[11]
Rey,
A. (Dir.) (1998). Le
Robert - Dictionaire historique de la langue française.
[12]
Freud,
S. (1933 [1932]/1977). Op.
Cit.
[13]
Lacan,
J. (1972-73/1982). O
Seminário, livro 20: mais, ainda Rio de Janeiro: JZE, p. 105.
[14]
Freud, S. (1912-13/1977)
“Totem e tabu”. Op.
Cit. Vol. XIII.
[15]
Miller, J.-A. (1997-98/2003). “Uma partilha sexual”. In: Clique, n.2. Revista dos Institutos
Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano. MG: Instituto
de Saúde Mental de Minas Gerais, agosto, p. 12-29.
[16]
“[...] amar é sempre dar o que não se tem, e não dar o
que se tem”. Lacan,
J. (1957-58/1999). O
Seminário, livro 5: as formações do inconsciente.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p.
218.
[17]
Lacan, J. (1965/2001) “Hommage fait à
Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. Stein”. In: Autres
écrits. Op.
Cit., p. 191-199.
[18]
N.T.: Trata-se do meio irmão do pai de Marie Bonaparte, filho
bastardo de seu avô, o príncipe Pierre. (Rousseau,
F.-O. (2006) Freud
e a princesa Bonaparte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p.
67).
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