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Vou retomar hoje o curso do nosso work
in progress coletivo, que nos conduz em direção a Roma
para o Congresso da AMP2, onde se fará a pontuação
desses dois anos de trabalho3. Eu
retomarei então, a partir dos três textos que nos acolhem na
entrada desta sala, no bonito cartaz deste congresso. Estes três
textos apresentam três versões do que podemos entender por
“exceção”.
O primeiro texto origina-se de Pirké Avot, coletânea da
Michna citada por Lacan em “A introdução aos Nomes-do-Pai”4.
Nossos colegas extraíram uma passagem que está em hebraico
neste cartaz. Aqueles que não lêem hebraico, certamente, não
a leram. Eu vou traduzir para vocês graças a Jean
Pierre Klotz que tomou a precaução de trazer os Pirké
Avot na tradução francesa, e eu agradeço a ele por ter me
dado, desta forma, a oportunidade de encontrar a passagem e de
poder lê-la para vocês. O texto que se encontra na entrada,
designa a particularidade da diferença de tratamento entre o
que se deve conceder ao amigo e ao rabino. Podemos ser generosos
com o amigo, dar-lhe presentes e entretê-lo. Com o rabino, é
muito diferente: é preciso marcar uma grande reserva porque
aquilo que ele dá é de outra ordem. Então, o texto se
pergunta: podemos dizer que devemos estudar com numerosos
rabinos ou com um só? O texto responde: “É verdadeiro o que
Belsoma ensinou: é sábio aquele que aprende com todo homem.
Mas, isto não quer dizer que devemos estudar com numerosos
mestres porque nós já vimos que isto pode contribuir para uma
grande confusão. Isto significa, sobretudo, que um homem sábio
pode aprender com aquele que ele escolheu como mestre, e não
deve se desencorajar dizendo que não pode aprender com ele.
É preciso que haja um único mestre, e não vários”5.
Eis aí uma versão da exceção. Existe a lista, vários, mas
é preciso escolher um.
O segundo texto, de Joyce, fala dos poderes excepcionais
do pai. Ele pode encarregá-los de deveres e levá-los a
partilhar com ele os seus inimigos. É o seu poder de exceção.
O terceiro texto, o de Lacan, nos introduz na última parte da
sua formulação, a um paradoxo. A exceção é tomada a partir
do seguinte: qualquer um pode ser uma exceção. Mas, é
redigido da seguinte maneira: “É preciso que qualquer um
possa fazer exceção para que a função de exceção se torne
modelo, porém a recíproca não é verdadeira – a exceção não
deve circular com qualquer um para, dessa maneira, constituir
modelo... É suficiente que ele seja um modelo da função. Eis
o que deve ser o pai, uma vez que ele não pode ser senão, exceção”6.
Vamos nos deter um momento nesta formulação paradoxal: que
quer dizer “é suficiente que ele seja um modelo da função?”?
Normalmente, um modelo é um ideal. No registro do imaginário,
dizemos; “os modelos”. Na língua do globby-ish,
do capitalismo global, um modelo é um corpo feminino que é
considerado como especialmente ajustado ao cânone e que é
oferecido como imagem à qual se identificar. O modelo também
pode se situar em um registro simbólico. É o exemplo a ser
seguido por suas virtudes. Trata-se de “modelo” em um destes
dois sentidos ou, ao contrário, no sentido lógico-matemático?
“Modelo; representação simplificada, freqüentemente matematizada,
de relações ou de funções reunindo as unidades de um
sistema. Do tipo descritivo, expositivo ou indutivo, o modelo se
apresenta como um sistema de interações ligando os elementos de
um conjunto. Ele simula a realidade ou pelo menos os aspectos da
realidade correspondente à pertinência do ponto de vista adotado”7.
Cada um desses sentidos talvez seja inadequado. Lacan sempre
tomou distância da noção de modelo-representação. Ele escolheu,
pelo contrário, a orientação pela estrutura, como do simbólico
no real.
Estes três textos nos introduzem muito bem às
variações do que entendemos por “exceções”. Essas variações
se fizeram sentir a partir da sessão plenária de ontem. Peço
desculpas, eu não poderia falar sobre a introdução de Diana
Bergovoy porque estava ainda na estrada que me conduzia de
Jerusalém, quando Diana se apresentou. As acepções do termo
exceção apresentam uma certa heterogeneidade em seus usos. Alexandre
Stevens mostrou o quanto a exceção do homem mascarado, no prefácio
de Lacan à peça de Wedekind
e na peça em si mesma, se caracterizava por um “dizer que
não”.
Aquele que pode “dizer que não”, é excepcional
no seguinte ponto, ele pode dizer que não, enquanto que os
outros dizem sim, ou pior. O paradoxo é que Moritz pode então
dizer que sim àquele que diz não. Ele pode conceder-lhe a sua
confiança. O que é surpreendente é que Alexandre Stevens e Marco
Mauas, sem se consultarem, comentaram o mesmo prefácio de Lacan
em “O despertar da primavera”8. Marco Mauas
sublinhava, sobretudo, que o que lhe havia interessado no texto
era a passagem do regime “normal” da relação à
“eternidade” do gozo e à exceção do nome. Na leitura que
Lacan faz do texto de Robert Graves, a Deusa Branca é eterna,
ela o é desde sempre, ela é o gozo como Outro. “Como saber
se, como o enuncia Robert Graves, o próprio Pai, nosso eterno
pai de todos, não é apenas um Nome entre outros da Deusa
branca, aquela que, em suas palavras, perde-se na noite dos
tempos, por ser a Diferente, o Outro perpétuo em seu gozo”9.
O Nome-do-Pai se encontra pluralizado e em seguida colocado em série,
a partir de um “numeral”. A exceção torna-se mais difícil
de ser situada.
Suzana Huler examinava os atributos excepcionais do
pai, como a voz. Uma voz tão terrível que, à falta de alcançar
reduzi-la ao silêncio, é preciso ao menos poder replicar-lhe,
responder-lhe através da música. Gabriel Dahan e Ernesto
Piechotka, ambos sublinharam, e Piechotka mostrava muito bem,
como o pai pode ser abordado ao mesmo tempo, segundo uma
teologia negativa, segundo aquilo que ele não é: ele não é um
papel social, ele não é uma categoria jurídica, ele não é
um amigo, etc. E também pelo o que ele é, enquanto instrumento
excepcional.
Passemos agora à série de casos que foram apresentados:
por Vlassis Skolidis, René Rasmussen e Omri Bichovski.
Observamos, primeiramente, no caso de Skolidis, os efeitos que produz
um pai reduzido a um ideal. É um verdadeiro modelo no sentido
da virtude ideal. Ele é excepcional, amado por todos. Por meio
de que, isto produz uma verdadeira neurose experimental. Este
pai tão bom, e tão morto, produz uma identificação a um desejo
morto. Este desejo só pode ser despertado em análise. Um segredo
de família oportunamente descoberto revela alguma coisa da
particularidade do gozo do pai. As portas de um armário se
abrem e a falta do pai aparece. O filho percebe em quê o pai não
é um modelo, justamente naquilo em que ele próprio errou. Por
meio disso o sujeito pode reencontrar o caminho do desejo. Através
da falta do pai, ele renasce para o desejo. O pai era simbólico
antes ou depois desta revelação? Após a sua falta, o pai é
imaginário, ele é real? Onde situar a exceção?
No caso de Rasmussen, o delírio do seu paciente
convoca Jesus, Buda e outros nomes divinos para se proteger do
gesto letal da mãe imaginada durante um estado alucinatório.
Eles detêm a mão que ia matá-lo. Este rapaz é ameaçado por
uma mãe real. Rasmussen conseguiu interessá-lo, não em seu
grande delírio sobre os nomes divinos, mas no que opera para
ele como limite a esta ameaça de morte, os acontecimentos do
corpo que o invadem, manifestações da dimensão do vivente.
Omri Bichowski, ele também, fez a mesma operação. Ele limitou
o grande delírio de filiação do seu paciente, que culmina com
a declaração: “Itzak Rabbin pode ser o meu avô” – pai
ideal morto – chamando a sua atenção sobre os acontecimentos
excepcionais de corpo, sobre os quais o sujeito acumula um saber
para dar conta disso. O modo pelo qual a exceção e o
excepcional devem ser escutados em todos estes casos produz, ao
mesmo tempo, sombras e luzes. Podemos reconciliar os diferentes
aspectos da heterogeneidade da exceção?
Eu gostaria de retomar com vocês o modo pelo qual podemos
situar a noção de exceção, em um dado momento do ensino de Lacan.
Jacques-Alain Miller em seu ensino nos fez ver o quanto este momento
se insere no desenvolvimento de Lacan sobre os Nomes-do-Pai. Então,
vamos nos servir nesta
ocasião do Seminário “Introdução aos Nomes-do-Pai”. Tomemos
neste Seminário o comentário de Lacan sobre isto que na tradição
católica se chama o sacrifício de Abraão, e na tradição judaica
a Akedah, o momento
onde o laço da aliança entre pai e filho se define. Para começar,
temos um primeiro Nome-do-Pai, o pai do Totem. Segundo Lacan, é
dito no texto e, sobretudo, é dito nos Pirké
Avot e em Rachi, Lacan sublinha10 que o carneiro
deve estar lá desde o início dos tempos. Ele é o esperma da descendência
de Abraão. É primeiro ele quem é um nome divino. A Akedah,
quanto a ela, faz passar do registro do nome totêmico a um
Nome-do-Pai que funciona de forma oposta ao totem. O totem nomeia
uma descendência pela identificação a um nome,
descendência sem fim, animal, enquanto que a Akedah,
ela supõe um nome que se sustenta apenas pela eficácia do seu
dizer. Ele se sustenta na particularidade de uma relação. A partir
deste segundo momento, a Akedah
encarna a eficácia do dizer de Deus através da intervenção
do anjo. O anjo é o poder da palavra em si mesma, que diz não
à linhagem totêmica ideal. Neste sentido, diz Lacan, aquele
que é sacrificado é o pai totem. A operação produz um resto,
um pedaço do carneiro que subsiste, seu chifre, que se transformará
em instrumento ritual do chofar.
É o resto da operação de substituição. A descendência de Abraão
não tem, então, mais nada de animal. É uma descendência ligada
a um ato de fala, à transmissão de uma benção, a baraka,
que faz com que o pai transmita ao filho a eficácia de um dizer,
na sua particularidade.
Aproximemos esta primeira leitura da forma pela
qual, ao final do Seminário da Ética
da psicanálise, Lacan comente o mito freudiano de “Totem
e Tabu”. O mito freudiano supõe que na origem há um pai totêmico
que se torna, em seguida, “o agente” da castração. A ameaça
de castração se produz: o que se passa então? Aparece aí um
novo sujeito, tomado numa relação nova com o pai que se torna
imaginária. Imaginário, neste contexto, quer dizer que o pai não
aparece mais no universal. Ele se torna o pai que criou esta
criança, que criou esta criança insuficiente que eu sou.
“Mas não se apaga esse pai real e mítico no declínio do Édipo
por trás [...] o pai imaginário, o pai que fez essa criança
ser tão fodida [...] Não é em torno da experiência da privação
que tem a tenra criança – não tanto por ser pequena mas por
ser homem – não é em torno do que para ela é a privação
que o luto do pai imaginário se fomenta e se forja? – isto é,
de um pai que é verdadeiramente alguém. A recriminação perpétua
que então nasce, de uma maneira mais ou menos definitiva e bem
formada segundo os casos, permanece fundamental na estrutura do
sujeito. Esse pai imaginário, é ele, e não o pai real, que é
o fundamento da imagem providencial de Deus [...]”11.
A partir daí subsistem, então, juntos, o pai simbólico ou Nome-do-pai,
providencial, e o pai imaginário ou o pai da raiva e da acusação.
A raiva é ao mesmo tempo a raiva de si mesmo e raiva dele, por
ter me feito na minha miserável particularidade. Tudo o que eu
tenho em mim de fracassado, tudo o que eu odeio em mim e nesse
Deus que me fez, eu vou passar a minha vida tentando me separar.
O kakon que existe em
mim, e que eu odeio, eu passarei na particularidade da minha
vida, a querer me separar. Esta separação, esta expulsão fora
do corpo do objeto pode ir até a mutilação.
Do mesmo modo, a Akedah permite passar do totem ao pai da castração. Como Rachi diz
muito bem, e Lacan retoma, é preciso nessa aliança cortar um
pedaço do corpo, é preciso arrancar qualquer coisa do corpo,
mutilar.Este pedaço ritual virá recobrir o objeto da raiva de
si, este objeto que vem encarnar ao mesmo tempo aquilo do qual
eu sou privado e o excesso de gozo. A operação religiosa de
aliança, ela mesma, consiste em velar este objeto pela castração,
como aliança e como rito.
Onde então está a exceção? Onde ela se situa: no
real, no simbólico, no imaginário? Sob que função ela se apóia:
castração, privação? Este duplo comentário nos introduziu
à oposição entre o universal, que Lacan vai terminar por
chamar de eterno, e a particularidade. Daí a necessidade de
retomar a abordagem dos mitos a partir das lógicas da
quantificação.
No totemismo, o nome do totem define um deus. Todo
pai é carneiro de acordo com o seu totem. Antes da Akedah, Abraão faz parte da descendência do carneiro. Todo pai é
deus nesse sentido, se ele se inclui em sua identificação totêmica.
O paradoxo que se propõe a nós pode se enunciar: “Todo pai
é Deus”, com a condição de que, em sua existência,
“nenhum pai seja Deus”. Verifica-se que “Todo pai é
Deus” com a condição de que não se verifique a existência
de um pai. Uma vez que a existência não está colocada entre
parênteses, a objeção do complexo de castração aparece ao
mesmo tempo em que o pai imaginário, que não tem nada de deus,
uma vez que é o ser limitado que me fez mal feito. Lacan, desta
forma, põe em jogo a oposição entre “a essência” da função
– a função enquanto definindo um todo – e a existência.
Esta tensão colocada em dois níveis faz parte do projeto
radicalmente anti-hegeliano de Lacan, o de recusar-se a reduzir
as existências particulares a uma parte de um todo. Este
projeto se anuncia radicalmente no Seminário “Introdução
aos Nomes-do-Pai”. “Toda dialética hegeliana é feita para
preencher essa falha e mostrar, numa prestigiosa transmutação,
como o universal pode chegar a se particularizar pela via da
escansão da Aufhebung”12.
Esse afrouxamento com relação ao todo visa nos
permitir respirar, considerar a particularidade de nossa existência
como tal. A Akedah
toma a paternidade a partir de uma relação particular. A
novidade que introduz Abraão é a da relação particular com o
filho. Lacan logifica essa abordagem quando se propõe a definir
o Nome-do-Pai a partir de uma função. A grande vantagem de uma
função é a de não definir um todo. Uma função define
somente o seu domínio de aplicação. Para saber o que é da
natureza de uma função lógica, é inútil defini-la a partir
de uma essência como na lógica antiga. A lógica moderna
considera, com efeito, a questão dos conjuntos infinitos. É
suficiente levar em conta processos infinitos para que não
possamos jamais definir totalmente o conjunto de casos da função.
Vocês não chegarão jamais ao final do seu domínio de aplicação.
A lógica contemporânea explora, com esse propósito, toda uma
série de paradoxos. A função não é definível senão por
meio das realizações das variáveis que constituem o seu
desenvolvimento. Nós só a conhecemos a partir dos modelos que
ela realiza. Se ser é ser o valor de uma variável, ser um pai
da função paterna é ser um dos modelos de realização. Ele
é um dos valores (a, b, c, d) da função P(x). Donde dizer
“o pai enquanto agente da castração só pode ser o modelo da
função” é dizer que o acesso que Lacan escolheu para a
questão do pai é aquele do “um por um” daqueles que se
tornaram pais. Para definir um pai Lacan falará então de
“versão-do-pai”, versões do pai uma por uma, definidas
pela particularidade do gozo do pai. “Um pai não tem o
direito ao respeito, nem ao amor, a menos que o dito amor e o
dito respeito, sejam [...] perversamente orientados, quer dizer,
feitos de uma mulher objeto a que causa o seu desejo. Mas, aquilo que uma mulher a-colhe assim não
tem nada a ver com a questão. Aquilo de que ela se ocupa é de
outros objetos a que são
as crianças”13. Ser pai então, é ter tido a
perversão particular de se apegar aos objetos pequeno a
de uma mulher. Normalmente, o homem se vincula aos objetos
pequeno a que causam o
seu desejo. Por exemplo, o fetichista tem a perversão
particular de se ligar ao falo que falta à mãe realizando-o em
um fetiche particular: sapato, “brilho no nariz”, e etc.
Lacan define o pai a partir de um fetichismo particular. Não é
aquele que liga o homem à sua mãe, mas aquilo que liga um homem a uma mulher. Não se trata de
um objeto que não está em seu lugar, que ex-siste, mas de um
objeto que uma mulher produziu. A criança é um objeto a
da mãe. Deste objeto a,
o pai deve tomar um cuidado particular que se diz paterno, para
ser entendido num sentido mais amplo. É um cuidado que podemos
definir dizendo que ele separa a criança da mãe, da boa
maneira. Aquele que faz esta escolha é um pai, Lacan
acrescenta: “quer ele queira quer não”, sublinhando que se
trata de uma decisão de outra ordem que aquela da vontade. Ao
ocupar esta posição, um pai é um modelo da função.
No século vinte, tentamos prescindir dos pais. Na
aurora do século, há o grito de Gide: “Famílias, eu vos
detesto!”. Em diversas experiências comunitárias, dos anos
30, procurou-se prescindir sem servir-se delas. Gabriel Dahan
havia citado os Kibutz, também houve as experiências na Rússia
nos anos 30, aquelas da Makarenko14, por exemplo.
Depois houve a crítica das famílias dos anos 60 e suas utopias
comunitárias americanas e européias. Essas experiências foram
fracassadas. Elas não atingiram o objetivo desse tipo de
perversão: se ocupar particularmente dos filhos de uma mulher e
não dos filhos da comunidade. Há alguma coisa que não foi
totalmente desencorajada. A propósito do casamento,
Jacques-Alain Miller observava que nas comunidades utópicas dos
anos 60, o casamento não os desagradava. Graças ao reforço
das comunidades gays e lésbicas, todo mundo continua querendo
mais casamentos. A demanda de pai acompanha a do casamento
nestas comunidades que, até então, não desejavam se incluir
nesse tipo de categoria. Isto renova as ficções jurídicas da
paternidade e dá trabalho àqueles que estão encarregados de
fazer as leis. Isto desloca os velhos ideais. É preciso mudar
um certo número de coisas. Nós precisamos enfrentar uma nova
modalidade desse desejo de ser pai, agora, por meio de novos
“modelos”.
Se a função paterna só se define a partir de seus
modelos, a partir da existência, como podemos estar certos que
eles decorrem de fato da função? A função ao nível do
“para todos” não cessa, portanto, de existir. Trata-se de
manter a distância entre a existência e o “para todos”. Se
por acaso, uma existência, um modelo dentre outros, põe-se a
crer que a sua forma de ser pai vale para todos, ele fica louco
e enlouquece todo mundo. A partir disso, se deduz uma definição
da virtude paterna, é uma virtude que Lacan definiu de forma
engraçada como “causar espanto à sua família”. Para
aqueles que não são francófonos, sublinhemos que
“espantar” (épater)
é ao mesmo tempo produzir uma certa admiração, produzir um
efeito, mas é sobretudo, jogar com o termo Pater
em latim, desviar15 em relação ao ideal do Pater
Família. É uma operação na qual trata-se de produzir um
efeito, porém um efeito particular. A virtude reside no
seguinte: que ele se mantenha à distância da crença de que um
pai possa sê-lo “para” todos. Retornemos agora ao efeito
que produz um pai sobre a sua família. No caso geral, o efeito
produzido advém da mesma categoria do que ocorreu no caso
apresentado por Skolidis. O efeito sobre a família é produzido
a partir do pecado do pai, ele é produzido pelo fato de que o
pai em sua existência presentifica um fracasso da função
Nome-do-Pai. É preciso sempre ter presente no espírito que
“causar espanto” não quer dizer “bancar o herói”. Um
pai, via de regra, não é um herói de sua família, sabemos
disto muito bem, justamente, porque ele encontra a operação da
castração. Pode existir, é verdade, pais excepcionais. É
preciso reservar-lhes um lugar.
Podemos agora abordar o texto de Lacan sobre o
“Prefácio ao despertar da primavera” de Wedekind. Eu
espero, neste momento, que a relação das sombras e das luzes
seja um pouco deslocada. Retomemos a questão de Lacan: “Como
saber se, tal como o enuncia Robert Graves, o próprio pai,
nosso eterno pai de todos, não é apenas um Nome entre outros
da Deusa branca, aquela que, em suas palavras, perde-se na noite
dos tempos, por ser a Diferente, o Outro perpétuo em seu
gozo?”. Ele situa a Deusa Branca como aquela que marca o lugar
do gozo, como a que “perde-se na noite dos tempos”. O
Nome-do-Pai, que poderia ser seu equivalente é o nome do Totem:
o pai, enquanto animal ou eterno. Encontramos aí a nomeação
de dois modos do eterno. Jacques-Alain Miller situa a sua
equivalência da seguinte forma: “Freud estabelecendo a
genealogia de Deus, parou no Nome-do-Pai. Lacan, ele, aprofunda
a metáfora até o desejo da mãe, e até o gozo suplementar da
mulher. Daí a noção [...] que seria possível que o pai fosse
apenas um dos nomes da Deusa materna, a Deusa branca, que se
mantém sempre Outra no seu gozo”.
Considerada esta equivalência, como então manter a
diferença entre o lugar do Outro do gozo, que diz respeito a
todas as religiões, e a aventura do patriarcado que começou
com o Akedah. Ela começa no momento onde o gozo é substituído, de que o
totem enquanto animal é um dos nomes, por uma aliança
particular. No momento do seminário sobre a “Introdução dos
Nomes-do-Pai”, Lacan distancia-se da crença de Robert Graves
em A mulher, como garantia do lugar do gozo. Ele o fazia pela
consideração, não d’O gozo, mas de um gozo particular, que
pode ser apreendido em uma “perversão particular”. “É
aqui que assume seu valor a ênfase que me permiti conferir à
função da perversão quanto à sua relação ao desejo do
Outro como tal [...] O Deus Eterno tomado ao pé da letra, não
de seu gozo, sempre velado e insondável, mas do seu desejo como
interessado na ordem do mundo”16. Graves, pacifista
militante, depois soldado de mérito, descreveu em suas memórias
da guerra, Good buy to all
that!, as razões que o impeliram a não acreditar mais nas
mentiras da civilização. Ele colocou-se no banco dos homens.
Contudo, ele salvou-se ao criar para si um Deus sob a forma
dessa crença no Gozo, anterior à Lei. Ele tentou em seguida
nomeá-la no desdobramento da sua obra.
Lacan mantém uma distância em relação a essa crença,
ao que parece, considerando que no texto de Wedekind não há um
nome que seja o nome próprio do pai. Não há nome senão como
ex-sistência. É uma existência à parte, como para o pai que
es-panta (é-pate). “Não há Nome que seja o seu Nome-Próprio, a não ser
o Nome como ex-sistência”17. Esta destituição
supõe uma exigência: só apreender o pai a partir dos modelos
que se realizam um por um. Porém, em quê esse pai pode
garantir o acesso ao gozo, como o pai-Deus, no modelo freudiano,
o fazia para todas as mulheres? Lacan fala de uma aliança
particular: fazer de uma
mulher a causa da sua perversão paterna. Não se trata mais de
considerar todas as mulheres. Através desta aliança
particular, o sujeito pode ter acesso ao real do gozo em jogo. Nós
abordamos aí a questão do pai real, que Lacan pode reduzir
ironicamente ao esperma segundo a ciência, ao separar do pai
real que está em jogo na psicanálise. Quando se trata do
carneiro e do esperma da descendência de Abraão, o esperma tem
a sua dignidade. Porém, na ciência, é outra coisa. A ciência
produz um objeto de troca como os outros. Nós o estocamos, o
vendemos como qualquer objeto do mercado. Ele é classificado em
bancos de espermas segundo critérios os mais variados. É
suficiente pagar um pouco mais caro para obter efetivamente o
esperma de um prêmio Nobel ou de um lindo jovem rapaz. É de
acordo com o gosto. Existem até clubes de mulheres que se reúnem
para trocar suas experiências sobre os diferentes benefícios
que oferecem os bancos de esperma que estão no mercado. Elas
avaliam tal como no Amazon.com, a qualidade do serviço, as verificações feitas e o
frescor do produto. Isto convém muito bem às jovens mulheres
apressadas, que não têm mais tempo de dar conta das complicações
da vida em comum com os homens para ter um filho. Como para
todas as coisas, existe agora um mercado onde cada uma faz as
suas compras.
Passamos desta forma do esperma bíblico ao esperma
do mercado global; é completamente outra coisa. O que Lacan
quer fazer valer é que a criança não vem da aliança da
mulher com o esperma, a criança vem de um
homem que faz aliança com uma
mulher. Se depois o casal infértil faz apelo às fecundações
artificiais, isto não se apresenta como um problema. O real em
jogo é o modo pelo qual uma mulher é causa de um desejo; o que
pode querer dizer também causa de seu ódio, etc. O desejo é
complicado, não há apenas a significação fálica, mas muitas
outras. Se admitimos esta função geral, percebe-se a mudança
de perspectiva.
Eu concluirei através do ateísmo. Eu partirei da
bela citação que Alexandre Stevens havia destacado no início
das nossas jornadas: “O ateísmo é a doença da crença em
Deus, crença de que Deus não intervém mais no mundo. Deus
intervém o tempo todo, por exemplo, sob a forma de uma
mulher”18. Não é a Deusa branca que emerge aí. Não
é A mulher que daria
acesso ao gozo supremo. É uma mulher a quem, e com quem,
estabeleceu-se esta aliança particular, que faz com que o homem
acredite nela. Ele faz desta mulher um deus que age no mundo. Em
1963, Lacan falava da encarnação da particularidade do gozo
evocando um certo uso da “perversão”. Em 1975, em Yale, ele
evoca essa mesma encarnação de gozo, do Outro gozo, através
da crença em uma mulher. É de fato, por meio de uma
mulher que um homem tem acesso a um gozo que pode tomar uma
outra dimensão que não
a auto-erótica. Nos anos setenta, Lacan está longe de pensar a
função fálica como troca simbólica. Ele sublinha,
principalmente, sua tendência a voltar-se para o gozo do órgão.
Ele insiste, portanto, no fato de que a causa da “perversão”
de um homem, localiza-se em uma mulher e que ele crê recuperar
o seu objeto a nela.
É por esse viés que vai se operar o mal entendido entre eles.
Ele recupera nela o seu objeto a,
a mulher se ocupa, por sua vez, de seus objetos a.
O que ela quer desse homem, o que nessa aliança é essencial,
de acordo o modo feminino do amor, é que ele lhe fale. Que ele
lhe fale sobre a sua crença nela. É preciso aproximar a
declaração de Lacan em Yale daquilo de que Lacan antecipa
sobre a crença em uma mulher como sintoma, por ocasião do
Seminário RSI: “Você verá que uma mulher na vida de um
homem, é qualquer coisa na qual ele crê. Ele crê que existe
uma, às vezes duas ou três e isso é muito interessante –
ele não pode acreditar apenas em uma, ele crê em uma espécie”19.
“Acreditamos nela porque nunca tivemos provas de que ela não
seja absolutamente autêntica. Mas, tornamo-nos cegos a este
respeito. Este crer nela serve como rolha para crer
nisto, coisa que pode ser muito seriamente colocada em questão.
Crer que existe Uma, Deus sabe onde isso vai levá-los, vai levá-los
a acreditar que existe A mulher, crença que é falaciosa”20.
Eis aqui porque a parentalidade moderna não pode
ser atéia. Na parentalidade democrática, ao colocar-se à distância
do “para todos” que introduz o deus universal ou o pai da
eternidade, a tendência é a de dizer “não, a paternidade não
supõe nenhuma crença, é um dispositivo jurídico, é uma
norma”. A parentalidade não pode ser atéia porque ela supõe
um ato de fé, que se funda na crença em um gozo particular.
Eis aí algumas sombras e luzes que, eu espero,
tenham sido deslocadas. Teremos ainda a oportunidade de
prosseguirmos com esse deslocamento, esse grande trabalho
coletivo de leitura em comum, por ocasião de uma reunião da
AMP, em Paris, daqui a um mês. Nós prosseguiremos a partir dos
textos do volume do Scilicet
do Nome-do-Pai21. Comentaremos um certo número
de textos que abordam essa definição de uma mulher como um
deus local poderoso, porque quanto a ela tudo é local. Quando
uma mulher pensa que, pelo fato dela ter um poder local, ela é
tudo para um homem, que ela é uma “Dama branca”, isto também
produz catástrofes. Nós iremos ler esses textos para
compreendermos um pouco mais os paradoxos em jogo e nos
preparamos melhor para este grande debate coletivo que acontecerá
em Roma. Nós poderemos deste modo, perceber melhor a
originalidade da posição do ensino de Lacan na renovação das
questões sobre a paternidade, a crença, e as comunidades do
gozo. O seu entrecruzamento será uma questão decisiva para a
próxima década.
Tradução: Kátia Moskal Danemberg.
Revisão técnica: Tania Coelho dos Santos.
Revisão final: Rosa Guedes Lopes.
Referências
bibliográficas
1. N.R.F.: Laurent, É. “De Tel
Aviv à Rome, entre ombres et lumières”. Texto publicado
originalmente em Quarto,
Revue de psychanalyse n. 87. École de La Cause Freudienne –
ACF en Belgique, juin, 2006. p. 19-24.
2.
N.R.T.:
IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise
Os Nomes-do-Pai: prescindir, saber se servir, realizado na cidade de
Roma, em 2006.
3.
Intervenção
de Éric Laurent no 4º Congresso da NLS, Tel Aviv, no dia 13 de
abril de 2006.
4.
Lacan, J. (1963)
Introduction
aux Noms-du-Pére, Paris: Seuil, 2005, p. 99.
N.R.F.: Lacan, J.
(1963) “Introdução aos Nomes-do-Pai”. In: Lacan, J.
Nomes-do-Pai.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 84.
5.
Avot, P.
Maximes de Peres.
Tradução francesa de N. Kohn. New York/Jerusalem: Moznaim
Publishing Corporation, livro 6, cap. 1.
6.
Lacan, J. (1975)
Le
Seminaire. Livre XXII: RSI. Texto
estabelecido por Jacques-Alain Miller, 21 de Janeiro de 1975.
In:
Ornicar?
Bulletin périodique du Champ Freudien, n. 3, maio de 1975, p.
108.
7.
“Les Notions
Philosophiques”. In: Encyclopèdie
Philosophique Universelle, tomo 2, Paris: PUF, 1990, p.
1646.
8.
N.R.T.:
Lacan, J. (1974) “Prefácio a O despertar da primavera”. In:
Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 557-559.
9.
Lacan, 1974, Op.
Cit., p. 559.
10.
Lacan, 1963
Op.
Cit., p. 84.
11.
Lacan, J. (1959/60)
Le
Seminaire Livre VII, L’ Éthique de la psychanalyse. Texte
établi par Jacques-Alain Miller, Paris: Seuil, 1986, p. 355.
N.R.F.: Utilizamos a versão
publicada em português: Lacan, J.
(1959/60). O Seminário.
Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1988, p. 368-369.
N.R.T. No original, “si mal
foutu”, quer dizer tão mal feita. O tradutor brasileiro
escolheu uma versão literal, “tão mal fodida”, que pode
suscitar algum mal entendido em nossa língua.
12. Lacan,
1963, Op. Cit. (p.
74, francês; p. 63, português).
13. Id., 1975,
Op.
Cit., p. 107.
14. Os
trabalhos de Makarenko tiveram um eco particular na França,
Louis Aragon pôde qualificar “seu Poema pedagógico, história
de uma colônia de crianças criminosas e vagabundas, de um dos
documentos mais pungentes que a humanidade já produziu”, In:
Le
Petit Robert des Nons Propres, 1994, p. 1289.
15. N.R.T.:
A expressão empregada pelo autor foi “faire un pas à côté”,
que traduzida literalmente significa, “dar um passo ao lado”
ou “passar ao lado”.
16. Lacan,
1963, Op. cit. (p.
89, francês; p. 75, português)
17. Id., 1974,
Op.
Cit. (p. 563, francês; p. 559, português).
18.
Lacan, (1975) “Conférences et entretiens dans des universités
nord américaines”, Yale University, 24/11/1975: “Entretiens
avec des étudiants, Réponses a leurs questions”. In:
Silicet
6/7, Paris: Seuil, 1976, p. 32.
19. Lacan,
1975, Op. Cit. P.
109.
20. Id., p. 110.
21. N.R.F.:
AMP (2005). Scilicet dos
Nomes-do-Pai. Textos preparatórios para o Congresso de Roma
(13 a 17/07/2006). Rio de Janeiro: EBP, nov/2005.
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