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 DE TEL AVIV A ROMA, ENTRE LUZES E SOMBRAS

 
 


Eric Laurent

Delegado Geral da Associação Mundial de Psicanálise

Docente da Seção Clínica do Hospital Val de Grace

AME da École de la Cause Freudienne
ericlaurent@lacanian.net

 

 

Resumo

O autor retoma o work in progress coletivo, que será finalizado em Roma, durante o Congresso sobre os Nomes-do-Pai, abordando três textos sobre o significado da exceção paterna. As acepções do termo “exceção” se prestam a usos heterogêneos. Há muitos mestres, mas o homem sábio deve escolher um para ensiná-lo. O pai pode ser qualquer um, basta que seja um modelo da função. O pai é aquele que diz não. A voz terrível é um dos atributos excepcionais do pai.

 

Palavras-chave: Nome-do-Pai, exceção paterna, Nomes-do-Pai, gozo.

 

 





           
FROM TEL AVIV TO ROME, BETWEEN SHADOWS AND LIGHTS

         Abstract

The author deals with the collective work in progress to be concluded in Rome during the Conference on Father Versions and analyses three texts on the meaning of fatherly exception. The meanings of “exception’ may point to heterogeneous uses. There are many masters but the wise man should choose one to teach him. The father can be anyone, as long there is a model for this function. Father is the one who says no. The terrible voice is one of the exceptional qualities of a father.  

Key words: father versions, fatherly exception, fruition.

 

 

Vou retomar hoje o curso do nosso work in progress coletivo, que nos conduz em direção a Roma para o Congresso da AMP2, onde se fará a pontuação desses dois anos de trabalho3.  Eu retomarei então, a partir dos três textos que nos acolhem na entrada desta sala, no bonito cartaz deste congresso. Estes três textos apresentam três versões do que podemos entender por “exceção”.

O primeiro texto origina-se de Pirké Avot, coletânea da Michna citada por Lacan em “A introdução aos Nomes-do-Pai”4. Nossos colegas extraíram uma passagem que está em hebraico neste cartaz. Aqueles que não lêem hebraico, certamente, não a leram. Eu vou traduzir para vocês graças a Jean Pierre Klotz que tomou a precaução de trazer os Pirké Avot na tradução francesa, e eu agradeço a ele por ter me dado, desta forma, a oportunidade de encontrar a passagem e de poder lê-la para vocês. O texto que se encontra na entrada, designa a particularidade da diferença de tratamento entre o que se deve conceder ao amigo e ao rabino. Podemos ser generosos com o amigo, dar-lhe presentes e entretê-lo. Com o rabino, é muito diferente: é preciso marcar uma grande reserva porque aquilo que ele dá é de outra ordem. Então, o texto se pergunta: podemos dizer que devemos estudar com numerosos rabinos ou com um só? O texto responde: “É verdadeiro o que Belsoma ensinou: é sábio aquele que aprende com todo homem. Mas, isto não quer dizer que devemos estudar com numerosos mestres porque nós já vimos que isto pode contribuir para uma grande confusão. Isto significa, sobretudo, que um homem sábio pode aprender com aquele que ele escolheu como mestre, e não deve se desencorajar dizendo que não pode aprender com ele. É preciso que haja um único mestre, e não vários”5. Eis aí uma versão da exceção. Existe a lista, vários, mas é preciso escolher um.

O segundo texto, de Joyce, fala dos poderes excepcionais do pai. Ele pode encarregá-los de deveres e levá-los a partilhar com ele os seus inimigos. É o seu poder de exceção. O terceiro texto, o de Lacan, nos introduz na última parte da sua formulação, a um paradoxo. A exceção é tomada a partir do seguinte: qualquer um pode ser uma exceção. Mas, é redigido da seguinte maneira: “É preciso que qualquer um possa fazer exceção para que a função de exceção se torne modelo, porém a recíproca não é verdadeira – a exceção não deve circular com qualquer um para, dessa maneira, constituir modelo... É suficiente que ele seja um modelo da função. Eis o que deve ser o pai, uma vez que ele não pode ser senão, exceção”6. Vamos nos deter um momento nesta formulação paradoxal: que quer dizer “é suficiente que ele seja um modelo da função?”? Normalmente, um modelo é um ideal. No registro do imaginário, dizemos; “os modelos”. Na língua do globby-ish, do capitalismo global, um modelo é um corpo feminino que é considerado como especialmente ajustado ao cânone e que é oferecido como imagem à qual se identificar. O modelo também pode se situar em um registro simbólico. É o exemplo a ser seguido por suas virtudes. Trata-se de “modelo” em um destes dois sentidos ou, ao contrário, no sentido lógico-matemático? “Modelo; representação simplificada, freqüentemente matematizada, de relações ou de funções reunindo as unidades de um sistema. Do tipo descritivo, expositivo ou indutivo, o modelo se apresenta como um sistema de interações ligando os elementos de um conjunto. Ele simula a realidade ou pelo menos os aspectos da realidade correspondente à pertinência do ponto de vista adotado”7. Cada um desses sentidos talvez seja inadequado. Lacan sempre tomou distância da noção de modelo-representação. Ele escolheu, pelo contrário, a orientação pela estrutura, como do simbólico no real.

Estes três textos nos introduzem muito bem às variações do que entendemos por “exceções”. Essas variações se fizeram sentir a partir da sessão plenária de ontem. Peço desculpas, eu não poderia falar sobre a introdução de Diana Bergovoy porque estava ainda na estrada que me conduzia de Jerusalém, quando Diana se apresentou. As acepções do termo exceção apresentam uma certa heterogeneidade em seus usos. Alexandre Stevens mostrou o quanto a exceção do homem mascarado, no prefácio de Lacan à peça de Wedekind e na peça em si mesma, se caracterizava por um “dizer que não”.

Aquele que pode “dizer que não”, é excepcional no seguinte ponto, ele pode dizer que não, enquanto que os outros dizem sim, ou pior. O paradoxo é que Moritz pode então dizer que sim àquele que diz não. Ele pode conceder-lhe a sua confiança. O que é surpreendente é que Alexandre Stevens e Marco Mauas, sem se consultarem, comentaram o mesmo prefácio de Lacan em “O despertar da primavera”8. Marco Mauas sublinhava, sobretudo, que o que lhe havia interessado no texto era a passagem do regime “normal” da relação à “eternidade” do gozo e à exceção do nome. Na leitura que Lacan faz do texto de Robert Graves, a Deusa Branca é eterna, ela o é desde sempre, ela é o gozo como Outro. “Como saber se, como o enuncia Robert Graves, o próprio Pai, nosso eterno pai de todos, não é apenas um Nome entre outros da Deusa branca, aquela que, em suas palavras, perde-se na noite dos tempos, por ser a Diferente, o Outro perpétuo em seu gozo”9. O Nome-do-Pai se encontra pluralizado e em seguida colocado em série, a partir de um “numeral”. A exceção torna-se mais difícil de ser situada.

Suzana Huler examinava os atributos excepcionais do pai, como a voz. Uma voz tão terrível que, à falta de alcançar reduzi-la ao silêncio, é preciso ao menos poder replicar-lhe, responder-lhe através da música. Gabriel Dahan e Ernesto Piechotka, ambos sublinharam, e Piechotka mostrava muito bem, como o pai pode ser abordado ao mesmo tempo, segundo uma teologia negativa, segundo aquilo que ele não é: ele não é um papel social, ele não é uma categoria jurídica, ele não é um amigo, etc. E também pelo o que ele é, enquanto instrumento excepcional.

Passemos agora à série de casos que foram apresentados: por Vlassis Skolidis, René Rasmussen e Omri Bichovski. Observamos, primeiramente, no caso de Skolidis, os efeitos que produz um pai reduzido a um ideal. É um verdadeiro modelo no sentido da virtude ideal. Ele é excepcional, amado por todos. Por meio de que, isto produz uma verdadeira neurose experimental. Este pai tão bom, e tão morto, produz uma identificação a um desejo morto. Este desejo só pode ser despertado em análise. Um segredo de família oportunamente descoberto revela alguma coisa da particularidade do gozo do pai. As portas de um armário se abrem e a falta do pai aparece. O filho percebe em quê o pai não é um modelo, justamente naquilo em que ele próprio errou. Por meio disso o sujeito pode reencontrar o caminho do desejo. Através da falta do pai, ele renasce para o desejo. O pai era simbólico antes ou depois desta revelação? Após a sua falta, o pai é imaginário, ele é real? Onde situar a exceção?

No caso de Rasmussen, o delírio do seu paciente convoca Jesus, Buda e outros nomes divinos para se proteger do gesto letal da mãe imaginada durante um estado alucinatório. Eles detêm a mão que ia matá-lo. Este rapaz é ameaçado por uma mãe real. Rasmussen conseguiu interessá-lo, não em seu grande delírio sobre os nomes divinos, mas no que opera para ele como limite a esta ameaça de morte, os acontecimentos do corpo que o invadem, manifestações da dimensão do vivente. Omri Bichowski, ele também, fez a mesma operação. Ele limitou o grande delírio de filiação do seu paciente, que culmina com a declaração: “Itzak Rabbin pode ser o meu avô” – pai ideal morto – chamando a sua atenção sobre os acontecimentos excepcionais de corpo, sobre os quais o sujeito acumula um saber para dar conta disso. O modo pelo qual a exceção e o excepcional devem ser escutados em todos estes casos produz, ao mesmo tempo, sombras e luzes. Podemos reconciliar os diferentes aspectos da heterogeneidade da exceção?

Eu gostaria de retomar com vocês o modo pelo qual podemos situar a noção de exceção, em um dado momento do ensino de Lacan. Jacques-Alain Miller em seu ensino nos fez ver o quanto este momento se insere no desenvolvimento de Lacan sobre os Nomes-do-Pai. Então, vamos nos servir  nesta ocasião do Seminário “Introdução aos Nomes-do-Pai”. Tomemos neste Seminário o comentário de Lacan sobre isto que na tradição católica se chama o sacrifício de Abraão, e na tradição judaica a Akedah, o momento onde o laço da aliança entre pai e filho se define. Para começar, temos um primeiro Nome-do-Pai, o pai do Totem. Segundo Lacan, é dito no texto e, sobretudo, é dito nos Pirké Avot e em Rachi, Lacan sublinha10 que o carneiro deve estar lá desde o início dos tempos. Ele é o esperma da descendência de Abraão. É primeiro ele quem é um nome divino. A Akedah, quanto a ela, faz passar do registro do nome totêmico a um Nome-do-Pai que funciona de forma oposta ao totem. O totem nomeia uma descendência pela identificação a um nome, descendência sem fim, animal, enquanto que a Akedah, ela supõe um nome que se sustenta apenas pela eficácia do seu dizer. Ele se sustenta na particularidade de uma relação. A partir deste segundo momento, a Akedah encarna a eficácia do dizer de Deus através da intervenção do anjo. O anjo é o poder da palavra em si mesma, que diz não à linhagem totêmica ideal. Neste sentido, diz Lacan, aquele que é sacrificado é o pai totem. A operação produz um resto, um pedaço do carneiro que subsiste, seu chifre, que se transformará em instrumento ritual do chofar. É o resto da operação de substituição. A descendência de Abraão não tem, então, mais nada de animal. É uma descendência ligada a um ato de fala, à transmissão de uma benção, a baraka, que faz com que o pai transmita ao filho a eficácia de um dizer, na sua particularidade.

Aproximemos esta primeira leitura da forma pela qual, ao final do Seminário da Ética da psicanálise, Lacan comente o mito freudiano de “Totem e Tabu”. O mito freudiano supõe que na origem há um pai totêmico que se torna, em seguida, “o agente” da castração. A ameaça de castração se produz: o que se passa então? Aparece aí um novo sujeito, tomado numa relação nova com o pai que se torna imaginária. Imaginário, neste contexto, quer dizer que o pai não aparece mais no universal. Ele se torna o pai que criou esta criança, que criou esta criança insuficiente que eu sou. “Mas não se apaga esse pai real e mítico no declínio do Édipo por trás [...] o pai imaginário, o pai que fez essa criança ser tão fodida [...] Não é em torno da experiência da privação que tem a tenra criança – não tanto por ser pequena mas por ser homem – não é em torno do que para ela é a privação que o luto do pai imaginário se fomenta e se forja? – isto é, de um pai que é verdadeiramente alguém. A recriminação perpétua que então nasce, de uma maneira mais ou menos definitiva e bem formada segundo os casos, permanece fundamental na estrutura do sujeito. Esse pai imaginário, é ele, e não o pai real, que é o fundamento da imagem providencial de Deus [...]”11. A partir daí subsistem, então, juntos, o pai simbólico ou Nome-do-pai, providencial, e o pai imaginário ou o pai da raiva e da acusação. A raiva é ao mesmo tempo a raiva de si mesmo e raiva dele, por ter me feito na minha miserável particularidade. Tudo o que eu tenho em mim de fracassado, tudo o que eu odeio em mim e nesse Deus que me fez, eu vou passar a minha vida tentando me separar. O kakon que existe em mim, e que eu odeio, eu passarei na particularidade da minha vida, a querer me separar. Esta separação, esta expulsão fora do corpo do objeto pode ir até a mutilação.

Do mesmo modo, a Akedah permite passar do totem ao pai da castração. Como Rachi diz muito bem, e Lacan retoma, é preciso nessa aliança cortar um pedaço do corpo, é preciso arrancar qualquer coisa do corpo, mutilar.Este pedaço ritual virá recobrir o objeto da raiva de si, este objeto que vem encarnar ao mesmo tempo aquilo do qual eu sou privado e o excesso de gozo. A operação religiosa de aliança, ela mesma, consiste em velar este objeto pela castração, como aliança e como rito.

Onde então está a exceção? Onde ela se situa: no real, no simbólico, no imaginário? Sob que função ela se apóia: castração, privação? Este duplo comentário nos introduziu à oposição entre o universal, que Lacan vai terminar por chamar de eterno, e a particularidade. Daí a necessidade de retomar a abordagem dos mitos a partir das lógicas da quantificação.

No totemismo, o nome do totem define um deus. Todo pai é carneiro de acordo com o seu totem. Antes da Akedah, Abraão faz parte da descendência do carneiro. Todo pai é deus nesse sentido, se ele se inclui em sua identificação totêmica. O paradoxo que se propõe a nós pode se enunciar: “Todo pai é Deus”, com a condição de que, em sua existência, “nenhum pai seja Deus”. Verifica-se que “Todo pai é Deus” com a condição de que não se verifique a existência de um pai. Uma vez que a existência não está colocada entre parênteses, a objeção do complexo de castração aparece ao mesmo tempo em que o pai imaginário, que não tem nada de deus, uma vez que é o ser limitado que me fez mal feito. Lacan, desta forma, põe em jogo a oposição entre “a essência” da função – a função enquanto definindo um todo – e a existência. Esta tensão colocada em dois níveis faz parte do projeto radicalmente anti-hegeliano de Lacan, o de recusar-se a reduzir as existências particulares a uma parte de um todo. Este projeto se anuncia radicalmente no Seminário “Introdução aos Nomes-do-Pai”. “Toda dialética hegeliana é feita para preencher essa falha e mostrar, numa prestigiosa transmutação, como o universal pode chegar a se particularizar pela via da escansão da Aufhebung12.

Esse afrouxamento com relação ao todo visa nos permitir respirar, considerar a particularidade de nossa existência como tal. A Akedah toma a paternidade a partir de uma relação particular. A novidade que introduz Abraão é a da relação particular com o filho. Lacan logifica essa abordagem quando se propõe a definir o Nome-do-Pai a partir de uma função. A grande vantagem de uma função é a de não definir um todo. Uma função define somente o seu domínio de aplicação. Para saber o que é da natureza de uma função lógica, é inútil defini-la a partir de uma essência como na lógica antiga. A lógica moderna considera, com efeito, a questão dos conjuntos infinitos. É suficiente levar em conta processos infinitos para que não possamos jamais definir totalmente o conjunto de casos da função. Vocês não chegarão jamais ao final do seu domínio de aplicação. A lógica contemporânea explora, com esse propósito, toda uma série de paradoxos. A função não é definível senão por meio das realizações das variáveis que constituem o seu desenvolvimento. Nós só a conhecemos a partir dos modelos que ela realiza. Se ser é ser o valor de uma variável, ser um pai da função paterna é ser um dos modelos de realização. Ele é um dos valores (a, b, c, d) da função P(x). Donde dizer “o pai enquanto agente da castração só pode ser o modelo da função” é dizer que o acesso que Lacan escolheu para a questão do pai é aquele do “um por um” daqueles que se tornaram pais. Para definir um pai Lacan falará então de “versão-do-pai”, versões do pai uma por uma, definidas pela particularidade do gozo do pai. “Um pai não tem o direito ao respeito, nem ao amor, a menos que o dito amor e o dito respeito, sejam [...] perversamente orientados, quer dizer, feitos de uma mulher objeto a que causa o seu desejo. Mas, aquilo que uma mulher a-colhe assim não tem nada a ver com a questão. Aquilo de que ela se ocupa é de outros objetos a que são as crianças”13. Ser pai então, é ter tido a perversão particular de se apegar aos objetos pequeno a de uma mulher. Normalmente, o homem se vincula aos objetos pequeno a que causam o seu desejo. Por exemplo, o fetichista tem a perversão particular de se ligar ao falo que falta à mãe realizando-o em um fetiche particular: sapato, “brilho no nariz”, e etc. Lacan define o pai a partir de um fetichismo particular. Não é aquele que liga o homem à sua mãe, mas aquilo que liga um homem a uma mulher. Não se trata de um objeto que não está em seu lugar, que ex-siste, mas de um objeto que uma mulher produziu. A criança é um objeto a da mãe. Deste objeto a, o pai deve tomar um cuidado particular que se diz paterno, para ser entendido num sentido mais amplo. É um cuidado que podemos definir dizendo que ele separa a criança da mãe, da boa maneira. Aquele que faz esta escolha é um pai, Lacan acrescenta: “quer ele queira quer não”, sublinhando que se trata de uma decisão de outra ordem que aquela da vontade. Ao ocupar esta posição, um pai é um modelo da função.

No século vinte, tentamos prescindir dos pais. Na aurora do século, há o grito de Gide: “Famílias, eu vos detesto!”. Em diversas experiências comunitárias, dos anos 30, procurou-se prescindir sem servir-se delas. Gabriel Dahan havia citado os Kibutz, também houve as experiências na Rússia nos anos 30, aquelas da Makarenko14, por exemplo. Depois houve a crítica das famílias dos anos 60 e suas utopias comunitárias americanas e européias. Essas experiências foram fracassadas. Elas não atingiram o objetivo desse tipo de perversão: se ocupar particularmente dos filhos de uma mulher e não dos filhos da comunidade. Há alguma coisa que não foi totalmente desencorajada. A propósito do casamento, Jacques-Alain Miller observava que nas comunidades utópicas dos anos 60, o casamento não os desagradava. Graças ao reforço das comunidades gays e lésbicas, todo mundo continua querendo mais casamentos. A demanda de pai acompanha a do casamento nestas comunidades que, até então, não desejavam se incluir nesse tipo de categoria. Isto renova as ficções jurídicas da paternidade e dá trabalho àqueles que estão encarregados de fazer as leis. Isto desloca os velhos ideais. É preciso mudar um certo número de coisas. Nós precisamos enfrentar uma nova modalidade desse desejo de ser pai, agora, por meio de novos “modelos”.

Se a função paterna só se define a partir de seus modelos, a partir da existência, como podemos estar certos que eles decorrem de fato da função? A função ao nível do “para todos” não cessa, portanto, de existir. Trata-se de manter a distância entre a existência e o “para todos”. Se por acaso, uma existência, um modelo dentre outros, põe-se a crer que a sua forma de ser pai vale para todos, ele fica louco e enlouquece todo mundo. A partir disso, se deduz uma definição da virtude paterna, é uma virtude que Lacan definiu de forma engraçada como “causar espanto à sua família”. Para aqueles que não são francófonos, sublinhemos que “espantar” (épater) é ao mesmo tempo produzir uma certa admiração, produzir um efeito, mas é sobretudo, jogar com o termo Pater em latim, desviar15 em relação ao ideal do Pater Família. É uma operação na qual trata-se de produzir um efeito, porém um efeito particular. A virtude reside no seguinte: que ele se mantenha à distância da crença de que um pai possa sê-lo “para” todos. Retornemos agora ao efeito que produz um pai sobre a sua família. No caso geral, o efeito produzido advém da mesma categoria do que ocorreu no caso apresentado por Skolidis. O efeito sobre a família é produzido a partir do pecado do pai, ele é produzido pelo fato de que o pai em sua existência presentifica um fracasso da função Nome-do-Pai. É preciso sempre ter presente no espírito que “causar espanto” não quer dizer “bancar o herói”. Um pai, via de regra, não é um herói de sua família, sabemos disto muito bem, justamente, porque ele encontra a operação da castração. Pode existir, é verdade, pais excepcionais. É preciso reservar-lhes um lugar.

Podemos agora abordar o texto de Lacan sobre o “Prefácio ao despertar da primavera” de Wedekind. Eu espero, neste momento, que a relação das sombras e das luzes seja um pouco deslocada. Retomemos a questão de Lacan: “Como saber se, tal como o enuncia Robert Graves, o próprio pai, nosso eterno pai de todos, não é apenas um Nome entre outros da Deusa branca, aquela que, em suas palavras, perde-se na noite dos tempos, por ser a Diferente, o Outro perpétuo em seu gozo?”. Ele situa a Deusa Branca como aquela que marca o lugar do gozo, como a que “perde-se na noite dos tempos”. O Nome-do-Pai, que poderia ser seu equivalente é o nome do Totem: o pai, enquanto animal ou eterno. Encontramos aí a nomeação de dois modos do eterno. Jacques-Alain Miller situa a sua equivalência da seguinte forma: “Freud estabelecendo a genealogia de Deus, parou no Nome-do-Pai. Lacan, ele, aprofunda a metáfora até o desejo da mãe, e até o gozo suplementar da mulher. Daí a noção [...] que seria possível que o pai fosse apenas um dos nomes da Deusa materna, a Deusa branca, que se mantém sempre Outra no seu gozo”.

Considerada esta equivalência, como então manter a diferença entre o lugar do Outro do gozo, que diz respeito a todas as religiões, e a aventura do patriarcado que começou com o Akedah. Ela começa no momento onde o gozo é substituído, de que o totem enquanto animal é um dos nomes, por uma aliança particular. No momento do seminário sobre a “Introdução dos Nomes-do-Pai”, Lacan distancia-se da crença de Robert Graves em A mulher, como garantia do lugar do gozo. Ele o fazia pela consideração, não d’O gozo, mas de um gozo particular, que pode ser apreendido em uma “perversão particular”. “É aqui que assume seu valor a ênfase que me permiti conferir à função da perversão quanto à sua relação ao desejo do Outro como tal [...] O Deus Eterno tomado ao pé da letra, não de seu gozo, sempre velado e insondável, mas do seu desejo como interessado na ordem do mundo”16. Graves, pacifista militante, depois soldado de mérito, descreveu em suas memórias da guerra, Good buy to all that!, as razões que o impeliram a não acreditar mais nas mentiras da civilização. Ele colocou-se no banco dos homens. Contudo, ele salvou-se ao criar para si um Deus sob a forma dessa crença no Gozo, anterior à Lei. Ele tentou em seguida nomeá-la no desdobramento da sua obra.

Lacan mantém uma distância em relação a essa crença, ao que parece, considerando que no texto de Wedekind não há um nome que seja o nome próprio do pai. Não há nome senão como ex-sistência. É uma existência à parte, como para o pai que es-panta (é-pate). “Não há Nome que seja o seu Nome-Próprio, a não ser o Nome como ex-sistência”17. Esta destituição supõe uma exigência: só apreender o pai a partir dos modelos que se realizam um por um. Porém, em quê esse pai pode garantir o acesso ao gozo, como o pai-Deus, no modelo freudiano, o fazia para todas as mulheres? Lacan fala de uma aliança particular: fazer de uma mulher a causa da sua perversão paterna. Não se trata mais de considerar todas as mulheres. Através desta aliança particular, o sujeito pode ter acesso ao real do gozo em jogo. Nós abordamos aí a questão do pai real, que Lacan pode reduzir ironicamente ao esperma segundo a ciência, ao separar do pai real que está em jogo na psicanálise. Quando se trata do carneiro e do esperma da descendência de Abraão, o esperma tem a sua dignidade. Porém, na ciência, é outra coisa. A ciência produz um objeto de troca como os outros. Nós o estocamos, o vendemos como qualquer objeto do mercado. Ele é classificado em bancos de espermas segundo critérios os mais variados. É suficiente pagar um pouco mais caro para obter efetivamente o esperma de um prêmio Nobel ou de um lindo jovem rapaz. É de acordo com o gosto. Existem até clubes de mulheres que se reúnem para trocar suas experiências sobre os diferentes benefícios que oferecem os bancos de esperma que estão no mercado. Elas avaliam tal como no Amazon.com, a qualidade do serviço, as verificações feitas e o frescor do produto. Isto convém muito bem às jovens mulheres apressadas, que não têm mais tempo de dar conta das complicações da vida em comum com os homens para ter um filho. Como para todas as coisas, existe agora um mercado onde cada uma faz as suas compras.

Passamos desta forma do esperma bíblico ao esperma do mercado global; é completamente outra coisa. O que Lacan quer fazer valer é que a criança não vem da aliança da mulher com o esperma, a criança vem de um homem que faz aliança com uma mulher. Se depois o casal infértil faz apelo às fecundações artificiais, isto não se apresenta como um problema. O real em jogo é o modo pelo qual uma mulher é causa de um desejo; o que pode querer dizer também causa de seu ódio, etc. O desejo é complicado, não há apenas a significação fálica, mas muitas outras. Se admitimos esta função geral, percebe-se a mudança de perspectiva.

Eu concluirei através do ateísmo. Eu partirei da bela citação que Alexandre Stevens havia destacado no início das nossas jornadas: “O ateísmo é a doença da crença em Deus, crença de que Deus não intervém mais no mundo. Deus intervém o tempo todo, por exemplo, sob a forma de uma mulher”18. Não é a Deusa branca que emerge aí. Não é A mulher que daria acesso ao gozo supremo. É uma mulher a quem, e com quem, estabeleceu-se esta aliança particular, que faz com que o homem acredite nela. Ele faz desta mulher um deus que age no mundo. Em 1963, Lacan falava da encarnação da particularidade do gozo evocando um certo uso da “perversão”. Em 1975, em Yale, ele evoca essa mesma encarnação de gozo, do Outro gozo, através da crença em uma mulher. É de fato, por meio de uma mulher que um homem tem acesso a um gozo que pode tomar uma outra dimensão que não a auto-erótica. Nos anos setenta, Lacan está longe de pensar a função fálica como troca simbólica. Ele sublinha, principalmente, sua tendência a voltar-se para o gozo do órgão. Ele insiste, portanto, no fato de que a causa da “perversão” de um homem, localiza-se em uma mulher e que ele crê recuperar o seu objeto a nela. É por esse viés que vai se operar o mal entendido entre eles. Ele recupera nela o seu objeto a, a mulher se ocupa, por sua vez, de seus objetos a. O que ela quer desse homem, o que nessa aliança é essencial, de acordo o modo feminino do amor, é que ele lhe fale. Que ele lhe fale sobre a sua crença nela. É preciso aproximar a declaração de Lacan em Yale daquilo de que Lacan antecipa sobre a crença em uma mulher como sintoma, por ocasião do Seminário RSI: “Você verá que uma mulher na vida de um homem, é qualquer coisa na qual ele crê. Ele crê que existe uma, às vezes duas ou três e isso é muito interessante – ele não pode acreditar apenas em uma, ele crê em uma espécie”19. “Acreditamos nela porque nunca tivemos provas de que ela não seja absolutamente autêntica. Mas, tornamo-nos cegos a este respeito. Este crer nela serve como rolha para crer nisto, coisa que pode ser muito seriamente colocada em questão. Crer que existe Uma, Deus sabe onde isso vai levá-los, vai levá-los a acreditar que existe A mulher, crença que é falaciosa”20.

Eis aqui porque a parentalidade moderna não pode ser atéia. Na parentalidade democrática, ao colocar-se à distância do “para todos” que introduz o deus universal ou o pai da eternidade, a tendência é a de dizer “não, a paternidade não supõe nenhuma crença, é um dispositivo jurídico, é uma norma”. A parentalidade não pode ser atéia porque ela supõe um ato de fé, que se funda na crença em um gozo particular.

Eis aí algumas sombras e luzes que, eu espero, tenham sido deslocadas. Teremos ainda a oportunidade de prosseguirmos com esse deslocamento, esse grande trabalho coletivo de leitura em comum, por ocasião de uma reunião da AMP, em Paris, daqui a um mês. Nós prosseguiremos a partir dos textos do volume do Scilicet do Nome-do-Pai21. Comentaremos um certo número de textos que abordam essa definição de uma mulher como um deus local poderoso, porque quanto a ela tudo é local. Quando uma mulher pensa que, pelo fato dela ter um poder local, ela é tudo para um homem, que ela é uma “Dama branca”, isto também produz catástrofes. Nós iremos ler esses textos para compreendermos um pouco mais os paradoxos em jogo e nos preparamos melhor para este grande debate coletivo que acontecerá em Roma. Nós poderemos deste modo, perceber melhor a originalidade da posição do ensino de Lacan na renovação das questões sobre a paternidade, a crença, e as comunidades do gozo. O seu entrecruzamento será uma questão decisiva para a próxima década.


Tradução: Kátia Moskal Danemberg.

Revisão técnica: Tania Coelho dos Santos.

Revisão final: Rosa Guedes Lopes.

 

Referências bibliográficas

1. N.R.F.: Laurent, É. “De Tel Aviv à Rome, entre ombres et lumières”. Texto publicado originalmente em Quarto, Revue de psychanalyse n. 87. École de La Cause Freudienne – ACF en Belgique, juin, 2006. p. 19-24.

2.  N.R.T.: IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise Os Nomes-do-Pai: prescindir, saber se servir, realizado na cidade de Roma, em 2006.

3.  Intervenção de Éric Laurent no 4º Congresso da NLS, Tel Aviv, no dia 13 de abril de 2006.

4.  Lacan, J. (1963) Introduction aux Noms-du-Pére, Paris: Seuil, 2005, p. 99.

N.R.F.: Lacan, J. (1963) “Introdução aos Nomes-do-Pai”. In: Lacan, J. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 84.

5. Avot, P. Maximes de Peres. Tradução francesa de N. Kohn. New York/Jerusalem: Moznaim Publishing Corporation, livro 6, cap. 1.

6. Lacan, J. (1975) Le Seminaire. Livre XXII: RSI. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, 21 de Janeiro de 1975. In: Ornicar? Bulletin périodique du Champ Freudien, n. 3, maio de 1975, p. 108.

7. “Les Notions Philosophiques”. In: Encyclopèdie Philosophique Universelle, tomo 2, Paris: PUF, 1990, p. 1646.

8. N.R.T.: Lacan, J. (1974) “Prefácio a O despertar da primavera”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 557-559.

9.  Lacan, 1974, Op. Cit., p. 559.

10. Lacan, 1963 Op. Cit., p. 84.

11. Lacan, J. (1959/60) Le Seminaire Livre VII, L’ Éthique de la psychanalyse. Texte établi par Jacques-Alain Miller, Paris: Seuil, 1986, p. 355.

N.R.F.: Utilizamos a versão publicada em português: Lacan, J. (1959/60). O Seminário. Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 368-369.

N.R.T. No original, “si mal foutu”, quer dizer tão mal feita. O tradutor brasileiro escolheu uma versão literal, “tão mal fodida”, que pode suscitar algum mal entendido em nossa língua.

12. Lacan, 1963, Op. Cit. (p. 74, francês; p. 63, português).

13. Id., 1975, Op. Cit., p. 107.

14. Os trabalhos de Makarenko tiveram um eco particular na França, Louis Aragon pôde qualificar “seu Poema pedagógico, história de uma colônia de crianças criminosas e vagabundas, de um dos documentos mais pungentes que a humanidade já produziu”, In: Le Petit Robert des Nons Propres, 1994, p. 1289.

15. N.R.T.: A expressão empregada pelo autor foi “faire un pas à côté”, que traduzida literalmente significa, “dar um passo ao lado” ou “passar ao lado”.

16. Lacan, 1963, Op. cit. (p. 89, francês; p. 75, português)

17. Id., 1974, Op. Cit. (p. 563, francês; p. 559, português).

18. Lacan, (1975) “Conférences et entretiens dans des universités nord américaines”, Yale University, 24/11/1975: “Entretiens avec des étudiants, Réponses a leurs questions”. In: Silicet 6/7, Paris: Seuil, 1976, p. 32.

19. Lacan, 1975, Op. Cit. P. 109.

20. Id., p. 110.

21. N.R.F.: AMP (2005). Scilicet dos Nomes-do-Pai. Textos preparatórios para o Congresso de Roma (13 a 17/07/2006). Rio de Janeiro: EBP, nov/2005.