O tema da sessão
analítica, seu manejo, duração, o uso de seu espaço como depósito do resto
semântico, sua consideração como uma formalização do real na experiência –
mostra sua atualidade. Por outro lado, uma vez que se trata de um tema tão
familiar aos analistas, é necessário dar-lhe o caráter do Unheimlich
freudiano, o íntimo-estranho, para melhor nos aproximarmos dele.
A fórmula lacaniana “o
paciente deseja encontrar a pessoa do analista na sessão e se o analista não
corrige este efeito transferencial, cai numa sugestão grosseira” (Lacan,
1958, p. 597), nos serve de guia para introduzir a relação que pretendemos
abordar entre o analista e a emergência do real na sessão analítica. O
desdobramento da pessoa do analista será o atalho que tomaremos para tentar
alcançar um bem dizer sobre o tema da sessão analítica. Essa via foi
escolhida porque possibilita pensar a emergência do real na experiência. Na
sessão, o analista pode fazer existir o real ao ocupar o lugar de objeto que
lhe cabe no discurso analítico, situando-se como semblante, como suporte das
fantasias do analisante. Essa posição se apóia na disjunção entre semblante
e real, na qual a liberdade do analista se aliena no manejo da
transferência.
Estudar a sessão analítica
pressupõe levar em conta a lógica do tratamento, na qual o analista se situa
como aquilo que faz insígnia para o sujeito, insígnia do real, a partir
daquilo que foi revolucionário no movimento analítico: a introdução por
Lacan do tempo lógico e da sessão curta. Hoje, quarenta anos mais tarde,
isso não constitui problema mas uma orthedoxia, uma opinião verdadeira.
J.-A. Miller (2001-2002) emprega este termo em seu curso O
desencantamento da psicanálise, para diferenciar o uso que fazemos de
determinados elementos no dispositivo analítico, sem que isso se constitua
numa orthodoxia, a qual se sustenta no standard.
O que é uma sessão
analítica e como defini-la? Como reduzi-la à sua expressão mais simples e
universalmente inteligível? Em que ela se distingue de uma consulta médica,
por exemplo? Que caminhos percorrer para fundamentar e atualizar o debate em
torno das questões que constituem a essência da sessão analítica? Tomarei
alguns ordenamentos quanto a estas questões.
Comecemos com o Lacan dos
anos cinqüenta. O princípio da análise que situa o analista “em sua
falta-a-ser” mais “do que em seu ser” é uma crítica frente à concepção da
análise como “situação analítica”, a uma prática na qual os analistas não se
mostravam afetados pela problemática do analisante. As respostas que eles
davam eram ingênuas ou antifreudianas, incompatíveis com o discurso
analítico, deixando de lado questões fundamentais. Enfrentando o desafio de
avaliar a situação de estratificação e congelamento da experiência, Lacan
propõe que “o analista está tanto menos seguro da sua ação quanto mais está
interessado em seu ser” (1958, p. 592).
Destacamos duas questões
importantes que levaram Lacan a fazer essa virada A primeira diz respeito ao
analista: na sessão, ele não deve estar envolvido com seu ser mas com sua
falta-a-ser, o que lhe dá liberdade para decidir sobre sua interpretação.
“Eu decido sobre meu oráculo e o articulo a meu capricho, único amo em meu
barco depois de Deus”,diz Lacan (1958, p. 594). A segunda questão se refere
ao manejo da transferência, já que a liberdade do analista está
fundamentalmente alienada pelo desdobramento que sofre sua pessoa. Mas,
paradoxalmente, é justamente nisso, o fato de que o analista se fundamenta
mais em sua falta-a-ser do que em seu ser (p. 597) que mora o segredo da
análise. Essa afirmação ganha peso se a pensarmos no contexto da psicanálise
em 1958, momento em que a Psicologia do ego estava no auge.
O analista na experiência
é surpreendido ao se dar conta de que o paciente espera que esta relação
seja como as outras, entre dois sujeitos. Buscar resolver o problema do
manejo da transferência dizendo, simplesmente, que se trata de
contratransferência, é ocultar a verdadeira natureza da transferência,
porque não se pode raciocinar, criar as condições lógicas da análise a
partir do que o analisante faz suportar de suas fantasias à pessoa do
analista, como o faria um jurado ideal que raciocinaria a partir do que
supõe sejam as intenções de seu adversário. A função do analista é fazer
existir um real além da presença do analista, além do semblante.
Os analistas ditos
pós-freudianos, aqueles da era da técnica, entendiam que a situação
analítica era uma reeducação do paciente, como comenta Lacan nesse escrito.
Se a interpretação é recebida pelo paciente como proveniente da pessoa que
ele supõe que o analista é na transferência, este não pode aproveitar-se
desse erro. Mas é possível que o analista faça existir o real quando o
paciente o toma como suporte de suas fantasias, porque nesse caso ele está
ancorado no sujeito suposto saber.
Analisemos agora a posição
de Lacan na década dos sessenta. No grafo do desejo, em seu escrito “A
subversão do sujeito e a dialética do desejo” (1960, p. 807-864), Lacan
esclarece que o desejo se funda na retroação significante produzida pela
pergunta, Che vuoi? Nesse texto a sessão analítica é referida ao
sujeito do desejo e à sua demanda. A pulsão é homóloga a uma cadeia
significante, que tem por efeito o gozo. “Todo o progresso do ensino de
Lacan foi para que essas duas paralelas venham a se juntar: a do sentido e a
do gozo” (Miller, 1994) O
matema da pulsão: $àD
põe em jogo essa parceria entre o sujeito do desejo e o circuito pulsional.
No piso inferior do grafo,
a identificação ao pequeno outro (a-a’) corresponde à relação
eu–outro. A “situação analítica” implicou uma prática que operava neste
nível, o que ainda ocorre, hoje em dia, nas psicoterapias. A virada
lacaniana se orienta para localizar a sessão analítica no nível superior do
grafo, a partir da pergunta sobre o desejo do Outro e do gozo produzido pelo
desenrolar da cadeia significante, ambos revelados na localização do desejo.
Nesse desenrolar dos significantes, nessas articulações, a linguagem aparece
como aparelho de gozo, em que o sujeito se revela a si próprio como objeto
na fantasia. O grafo do desejo permite a Lacan definir a pulsão como “o que
advêm da demanda quando o sujeito nela se apaga” (1960, p. 807-864).
Lacan concebe a
contratransferência como sendo a resistência do analista, e assim o convocou
a pagar com sua pessoa: “Haja o que houver, ele [o analista] a [sua pessoa]
empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobre na
transferência” (1958, p. 593). Ele ressalta também três pontos. O primeiro é
que o analista tem que pagar com palavras, “se a transmutação que elas
sofrem pela operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação”; o
segundo é que o analista tem que pagar com sua pessoa e, finalmente, ele
paga com o que há de essencial, em seu juízo mais íntimo, para intervir numa
ação que vai “ao cerne do ser”, ou, como escreveu Freud, ao “núcleo do nosso
ser”. Nesse sentido, a transferência negativa, a contratransferência como
resistência do analista e a questão do ser do analista se relacionam com o
desejo do analista.
O encontro com um analista
na sessão analítica tem o status de tiquê, de encontro com um real, no qual
um traço do analista vem ao lugar de um significante qualquer que inaugura a
experiência analítica: o significante da transferência. Sua significação
será da ordem do “sem sentido”. Encontro que é sempre desencontro, já que o
automaton, a repetição do mesmo, traz consigo o diferente, convocando o
analista a ter que comparecer e pagar sempre com sua pessoa.
A sessão analítica era
definida na década de sessenta pelo exercício da função de corte no discurso
e visava surpreender o sujeito no ponto em que o seu discurso tropeça. Ela
era definida, portanto, como ruptura de um falso discurso. Hoje em dia, o
fato de que o analista deva permanecer em silêncio para obter a realização
do sujeito poderia ser considerado como uma regra da análise. O silêncio e o
corte são regras que tornam possível a emergência do real enquanto
funcionamento, na pulsão, de um objeto não especular, que pode ser
delimitado pelo corte. Mais tarde, no Seminário 11: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise2, Lacan fará do objeto nada o
objeto da pulsão por excelência.
Desse modo, para que em
cada sessão seja possível o trabalho de construção da fantasia, é necessário
que exista “um analista” em sua falta-a-ser, que ele possa ir além da
sugestão e da relação imaginária com o pequeno outro. As formulações que
Lacan introduz, em seu ensino, a partir da década de setenta, criaram um
novo campo de teorizações conhecido como o “último ensino de Lacan”.
Aparecem nesse campo a teoria da pluralidade dos gozos, o deslocamento da
clínica do Nome-do-Pai para a clínica do sinthoma, abrindo novas
perspectivas para a sessão analítica a partir da concepção da linguagem como
aparelho de gozo.
A linguagem agora tem, à
diferença da doutrina do significante, não só um efeito de significação mas
também de gozo, impondo um limite ao sentido. Esse efeito de gozo está para
além do principio de prazer e impõe ao sujeito o retorno do mesmo signo, uma
insistência da letra. A letra é entendida como signo considerado em sua
materialidade, como objeto, diferente portanto da cadeia significante.
Observa-se uma mudança na teoria da linguagem e do inconsciente, que é
prazer, brincando e gozando com suas substituições, seus lapsos. Daí a
fórmula lacaniana, por vezes incompreendida, de que na associação livre o
sujeito goza de seu inconsciente. A sessão analítica é a oportunidade para
tentar responder à questão sobre a possibilidade ou não de mudança do modo
de gozo daquele ser falante.
Notas
1. O
termo “situação analítica” é utilizado para definir a sessão como uma
relação entre dois sujeitos (Lacan,
1958, p. 592).
2. O
gozo é postulado por Lacan no final do escrito “A direção do tratamento e os
princípios de seu poder”, porém não é desenvolvido nessa época
(Lacan, 1964, p. 176).
Apenas em “Subversão do sujeito e dialética do desejo”, apresentado no
Congresso realizado em Royaumont em 19 a 23 de setembro de 1960 sob o nome
de “Colóquios filosóficos internacionais: a Dialética”.Esta intervenção é
muito importante para o entendimento dessas novas formulações.
Referências bibliográficas
Lacan, J. (1958) “A
direção do tratamento e os princípios de seu poder”.
Em:
Escritos. Op. cit; p. 592
_______. (1960) “A
subversão do sujeito e a dialética do desejo”. In: Escritos, Op. Cit.,
p. 807-864.
_______.(1964) O
Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
Miller,
J.-A. (2001-2002) Le
desenchantement de la psychanlyse.
Curso ministrado no âmbito
do Departamento de psicanálise da Universidade de Paris VIII. Aula de 14 de
novembro de 2001. Inédito.
_______.
(1994). Lo real y el sentido. Buenos Aires:
Colección Diva, 2003.