“somos seres olhados pelo espetáculo do mundo. [...] será que não há
satisfação no fato de estar sob este olhar [...] este olhar que nos cerca e
que nos converte primeiramente em seres olhados, mas sem que nos seja
mostrado? O espetáculo do mundo, neste sentido, nos parece ser onivoyeur. Esta
fantasia a qual encontramos o efeito na perspectiva platônica, aquela de um
ser absoluto sobre o qual se transfere a qualidade de onividente”.
(Jacques
Lacan - 19-02-1964)
O espetáculo do mundo girou
seu ângulo de visão. Hoje ele se encarna em um gadget privilegiado: a
televisão global olha em cada casa a forma de vida que dissemina com seu modo
uniforme de gozo, assim como os efeitos identificatórios que produz.
Por este motivo, talvez
valha a pena – literalmente - deter-se nesta função da televisão, já que nos
dá mostras da “época do Outro que não existe”[3].
O que Jacques Lacan afirmou a respeito do mundo foi sua condição de
onivoyeur, quer dizer, igual àquilo que o Deus-Um pretendeu com sua
presença: tudo ver. Este que olha a tudo e a todos.
O protagonista do filme "O
Show de Truman" demonstrou a incômoda satisfação que produzia nele o fato de
estar sob o olhar do Outro. Ele não sabia que estava sendo olhado e acreditava
que vivia num mundo real. Encontramos este mesmo ponto em um outro filme,
intitulado "Matrix", no momento em que protagonista desperta “do deserto do
real”, depois de ter escolhido saber da verdade encoberta pelos semblantes do
mundo.
A televisão é onivoyeur.
Penetra em vossas casas forçando a porta da realidade para disfarçar, cada vez
mais, o real. Ela induz em vocês e - sobretudo em seus filhos -,
identificações, traços, formas de vida a serem aderidas: simplesmente por
olhá-los lhes impõe a uniformidade de um modo de gozar.
Talvez não tenhamos dado
ênfase suficiente ao fato de que os filhos da televisão – isso ultrapassa os
países e as variantes culturais – não levam mais
em conta seus pais como outrora, com seus traços de identificação.
Muitas são as vezes em que tomam personagens da televisão, a partir, por
exemplo, de maneiras de falar que nada tem a ver com os termos de suas línguas
maternas, aquelas de suas cidades, respondendo desta forma ao monolingüismo da
globalização.
Nós as escutamos: as
crianças falam (quer dizer, gozam da linguagem) segundo os termos fônicos
disso que assistem todos os dias - e que eles
não querem deixar de modo algum – a televisão.
Ela nos faz tele-gozar a
partir de desenhos animados, novelas, seriados, filmes ready-made nos
quais seus diretores se enfrentam para ver qual deles se destaca ao oferecer
mais e mais lugares comuns, sempre de um modo convencional
– quero dizer adaptativo – mas no quais nunca falta uma pitada (às
vezes várias) de violência e de realismo sexual.
Overdose[4] de sexo
e de violência são introduzidos através de seu olhar para chegar ao segmento
adolescente tentando seduzir até os mais “rebeldes”, filhos do piercing,
aqueles que marcam seus corpos erigindo zonas erógenas a partir da dor (ou
ressaltando as tradicionais). Exibem o que perfuraram no corpo onde a
impotente função do semblante paterno deixou seu lugar vazio.
Que dizer dos adultos que
oferecem tudo para ver[5]?. A
máquina de tele-gozar se intrometeu em seus lares, especialmente com a
invenção dos reality-shows, que dão a medida mais exata da função
onivoyeur da “TV”. Ali eles se mostram seres anônimos, tanto como qualquer
espectador, que apenas sonha com estar ali, do outro lado da tela, sendo
olhado por todos. Entretanto desconhecem que na qualidade de
espectadores já estariam sendo olhados, do mesmo modo que aqueles indivíduos
quaisquer, olhados em sua intimidade, enquanto fazem tudo o que sabem; quer
dizer, uma normalidade pletórica de nada.
Enquanto isso, o tele-adicto
olha, olha, esperando (uma vez mais) que o sexo explicite seu gozo, e que a
violência sobrevenha entre os medíocres concorrentes. Nada acontece. E, quando
sucede algo, é apenas uma isca jogada para aumentar a audiência e ganhar
alguns pontos no
rating[6].
Este invento tão rentável e
de baixíssimo custo, usa (quer dizer, abusa) da identificação do tele-adicto
com o (eu) protagonista, mas - especialmente – do gozo que produz o olhar;
como um aficionado. O peeping se encontra nos reality-shows
autorizado para consumo massivo por parte dos chefes de família sem que tenham
a necessidade de sair de suas casas para satisfazerem-se. O show pornô, o
encontramos no quarto - no living - e isto continua a ser completamente
normal. Não se trata da prática destes "degenerados que pagam para ver" (como
disse, certa vez, uma mulher defendendo o gozo televisivo).
Mas, enquanto o indivíduo
fica capturado pela cena oferecida, desconhece que também
é olhado pela máquina de gozar, da mesma forma que os protagonistas no
show são olhados em seu cotidiano.
Temos também a categoria de
talk shows, parentes próximos dos reality shows ,instrumentos do
gozo televisivo via escândalo. Para dizer a verdade, são variantes débeis dos
reality shows porque - pelo menos
aparentemente – neste caso, quem os olha é o animador.
Basta apertar um botão. Faz
pouco tempo eu tive a sorte (a Tyché, pela contingência, pelo
inesperado do encontro) de ver um destes programas. Tratava-se de um talk
show com excelente rating - quer dizer, com muitos objetos
escópicos de consumo garantido. Eu já havia escutado muitos comentários a
respeito deste programa, sobre o protagonismo circense de seus personagens,
sobre a disparatada participação da audiência, a exuberância da animadora e -
fundamentalmente – sobre os excessos dos participantes e o histrionismo de
todos. Mas, devo confessar que nenhum destes comentários pôde aproximar-se,
realmente, do que aconteceu naquela tarde.
Ao ligar a televisão, ela já
estava diante de mim, olhando-me a olhá-la. Parecia que me censurava pelos
quinze minutos de atraso em tele-olhá-la, e mostrando-me, o que eu ou
teria que ver.
A partir deste primeiro
minuto fiquei capturado pela máquina de gozar, me deixando levar até ser
tomado como um objeto a mais, quer dizer, como um perfeito indivíduo, um
tele-adicto normal.
A cena era imponente: a
animadora, com sua opulência corporal decadente, estava entre uma mulher e um
homem que brigavam. A animadora tentava juntá-los e separá-los. Eles tinham um
filho do qual este homem pedia a guarda, mas sua ex-mulher negava-se a dar.
Nem sequer permitia que ele visse o filho.
Até ali poderíamos dizer que
se tratava de uma situação normal, mas, de repente tudo mudou. Apareceu na
cena uma terceira pessoa que se atirou sobre o homem e começou a bater nele,
deixando-o (aparentava?) completamente assombrado. Quem era esta mulher, este
personagem novo? Era, sem mais nem menos, a amante da ex-mulher daquele homem.
Enquanto batia nele ela gritava suas razões: "você é um infeliz, não tem nem
onde cair morto, é desempregado, aquela que mantém seu filho sou eu. Você não
faz porque é um inútil, um vadio".
Este homem em questão (termo
que nunca foi empregado tão bem) defendeu-se um pouco como pode. Enquanto
isto, a animadora (ibid: parêntesis anterior) dava a entender que queria
separá-los - porque sabemos que o rating sobe quando os corpos se
atracam, o que os apresentadores dos
talk shows[7] sabem
muito bem. Eles sabem o que estão fazendo quando permitem que isso aconteça,
quer dizer, eles são co-responsáveis pelo que a obscenidade da imagem capture,
olhe os telespectadores.
Neste caso, tudo se
encaminhou muito bem para o paroxismo do gozo escópico, até que, a dritte
person,[8] amante
da ex-mulher, possuída pelo seu ser-pleno-de-maldade, dirigiu-se ao homem aos
gritos dizendo: "você é tão tarado que não se deu conta de que ela engravidou
de você ainda que sentisse asco". Neste momento o homem-em-questão boquiaberto
(porque estava de queixo caído pelo efeito do espetáculo que ele presenciava)
deu uma volta e olhou sua ex-mulher que lhe dizia, sem alterar-se: "é verdade,
você sempre me causou deu asco".
A tragicomédia fora
desencadeada deixando no centro da cena um breve silêncio, que comparecera
pela primeira vez. Silêncio, que a animadora interrompeu imediatamente
para mostrar aos espectadores o saldo sobre a questão apresentada: tratava-se
de uma artimanha armada pelas duas mulheres porque desejavam ter um filho. Já
que não poderiam ter, pelas óbvias razões biológicas, decidiram que uma delas
se entregaria ao "tarado" (nome de gozo, que como vocês já deduziram, deram ao
homem-em-questão).
A partir deste momento, eu
supus que não haveria mais nada a ser mostrado, até que começou a defesa do
personagem masculino que, pretendendo contrariar o nome-insulto que lhe haviam
aplicado, confirmou sua condição de gozo de muitas maneiras.
O tarado murmurava que não
se reconhecia assim, e tentou dizer que havia sido enganado na sua boa fé. Ele
continuava sendo açoitado, agora, pelas duas mulheres, diante do olhar
cúmplice da animadora.
Para continuar, e atestar
definitivamente a pertinência deste nome escolhido, entrou em cena um novo
personagem: a mãe do rapaz para defendê-lo, porque o tarado só
conseguia chorar.
A briga verbal entre as três
mulheres não teve nenhum desperdício, não privou o espectador de nenhum
excesso ou detalhe. Foi, verdadeiramente, uma cena pantagruélica. Era um
banquete que tratava de quem comia quem, e encenava-se um estrago
generalizado.
Para a redenção dos males,
entrou em cena um outro personagem, desta vez o pai da ex-mulher. Ele se
opunha, (ainda que timidamente, e temos que sublinhar isso) ao que sua filha
havia feito. Questionava-a, enquanto a dama em questão lhe rebatia de forma
tão absurda quanto violenta, com a lógica argumentativa mais elementar, ao
mesmo tempo em que agitava seu braço esquerdo sem parar, para frente e para
trás, indo em direção a seu pai, instigando-o e censurando-o: "o Sr. cale a
sua boca, porque não tem autoridade moral para falar. Porque o Sr. também é um
bêbado vadio!"
Sim - continuando. O
declínio do pai é um signo de nosso tempo. Este programa usou um acelerador de
partículas para desintegrar a função paterna até pulverizá-la.
Em um outro lugar, separada,
no mesmo cenário, a amante permanecia sozinha, mas, lhes asseguro que não
parecia incomodada por este momento de solidão, porque parecia bastar-se
completamente. Continuava pulando e gritando, ameaçando bater no tarado a
distância.
Ali estavam uma mulher e seu
ex-companheiro, sua amante, seu pai, o pai dela e a mãe do rapaz, com a
animadora como mediadora?
A esta altura do espetáculo
pensei: "isso não pode ser verdade!" E imediatamente depois me
perguntei se por acaso importava a veracidade do fato na realidade cotidiana
destas pessoas? Ou só o que importa é o que estava sendo mostrado nesse
momento, nesse programa, a toda essa multidão que os via.
Mas minha pergunta insistia:
era ou não verdade? Neste momento entendi que - para dizer a verdade -
a substância com a qual se produz esta pergunta é como um gosto mórbido
de cada um, já que - como sempre - se quer saber sobre o gozo do
Outro... para se desconhecer o próprio e suas conseqüências.
Então, eu me lembrei do que
já sabia, que o verdadeiro e o falso são semblantes que não contam neste
âmbito. E a única coisa que importa para esta
máquina é produzir um mais de gozar que sintonize com o fantasma de cada
indivíduo que olhe, para então, neste momento mesmo, apanhá-lo como objeto de
gozo.
Também se pode dizer que
somente o que ocorre na televisão existe, ou seu equivalente, que é
verdadeiro. Baudrillhard tomou essa afirmação ao pé da letra, para
problematizar os fatos da realidade, quando escreveu que a guerra do Golfo
poderia não ter ocorrido, poderíamos apenas tê-la assistido pela
televisão.
Mas, diferentemente de
Baudrillard, eu afirmo que, o espetáculo que narrei da pantomima do laço entre
homens e mulheres, foi transmitida desta forma. Por essa apresentadora, neste
programa, neste momento e por este canal - (posso garantir) que existiu.
Qualificando os fatos da
realidade, se a verdade não é suficiente para avaliar o que aconteceu
ali, não é pela sanção do falso que recairia sobre as proposições formuladas
(já que não importava se os protagonistas simulavam ou sofriam, de verdade,
tais humilhações) e, sim porque esse acontecimento oferecido ao olhar é gozo.
O que aconteceu de verdade é
este dado a ver, oferecido como isca para consumo com a intenção de consumir o
tele-adicto. Isso vale também para a guerra do Golfo, mais além dos corpos
reais caídos cujas imagens foram capturadas naquela ocasião.
É neste ponto que podemos
interrogar sobre o que faz cada um com o que consome. O indivíduo se presta,
ou não, a ser consumido pelos gadgets, entre estes, por exemplo, pela
máquina onivoyeur de gozar; esta que produz tele-adictos entre
homens e mulheres? Deixa-se consumir muito, pouco, um pouquinho ou nada?
Por isso, e para não deixar
a análise numa posição de fácil ceticismo, é preciso localizar pelo menos uma
saída que permita reintroduzir a subjetividade no indivíduo das multidões, um
instrumento questionador do consumo. Chama-se psicanálise esta perspectiva que
vai na contramão do modo de gozo contemporâneo.
É evidente que a clínica
psicanalítica registra estes deslocamentos que se apresentam em muitas
oportunidades, de um modo dramático. Os psicanalistas se comovem com os
efeitos da subjetividade que afetam aos cidadãos, assim como se dedicam a
questionar sobre estes novos problemas.
Os casos que
nos chegam aos consultórios não têm mais a "pureza clínica" de
um século atrás. As obsessões não são mais o compêndio de
rituais sistematizados descritos por Sigmund Freud no início de
suas investigações, assim como as histéricas não são estes casos
"puros" que culminam em ataques e conversões, mas, no final,
dóceis às interpretações.
Hoje as drogas e os
transtornos alimentares se misturam com as estruturas clínicas e dificultam
não somente o diagnóstico diferencial como também questionam a eficácia da
prática analítica.
Questiona-se até que ponto,
a assim chamada "pós-modernidade", funciona como marco para que homens e
mulheres se incluam no mercado do consumo como seus objetos. Ao que devemos,
nós analistas, responder oferecendo nosso dispositivo para evitar que o
esmagamento da subjetividade seja tão simples.
Tradução: Rachel Amin de Freitas.
Revisão: Bartyra Ribeiro
de Castro.
Revisão Técnica: Tania
Coelho dos Santos.
Referências bibliográficas:
[1]
Este
texto se baseia, principalmente, no primeiro capítulo do
livro Nosotros los hombres, un estudio psicoanalítico,
Buenos Aires: Editorial TRES HACHES, 2003.
[2]
N.R.T.: Overdose: embora com origem na língua inglesa, é
empregada na nossa língua para dizer dose excessiva.
[3]
Miller,
J-A. & Laurent,
E. (1996/97) El Oto que no existe y sus comités de ética,
Buenos Aires, Paidós, 2005.
[4]
N.R.T.: Overdose:
embora com origem na língua inglesa, é empregada na nossa língua para dizer
dose excessiva.
[5]
O homem pós-moderno não é apenas um “tele-adicto”, é também um “tara-cinéfilo”:
um proeminente cineasta – oriundo do shopping da globalizacão do consumo–
afirmou que não há nada a ser esperado do atual cinema norte-americano, já
que o espectador construído pelo mercado cinéfilo tem ... 12 anos de idade
mental; Woody Allen propôs por fim, buscar gurus, novos signos de criação
cinematográfica na Europa, na Latinoamérica o no Irã, mas não mais nos EEUU.
[6]
N.R.T.:
Dizemos “nível de audiência” ou simplesmente IBOPE, nome do Instituto de
Pesquisa que afere o número de telespectadores que escolheram um determinado
programa de televisão.
[7]
N.R.T.: Dizemos talk show quando nos referimos a conversações
espontâneas que se dão ao vivo e de improviso.