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Antes
da invenção da psicanálise, antes do “Estudos sobre a
histeria” (1893-1895), Freud advertia seus colegas do preço
que ia custar o abandono clinico e epistemológico do cuidado
com os poderes da palavra. Pode parecer que ao longo de sua obra
- preocupado com o desenvolvimento de uma disciplina que não
existia sobre a terra antes que ele a forjasse - que ele não se
tenha se debruçado, suficientemente, sobre o futuro da
medicina, com exceção de um ou dois de seus textos célebres,
para os quais nos voltamos eventualmente.
As
coisas parecem ter se modificado desde que nos apercebemos que,
se ele não tratou efetivamente da medicina enquanto tal, Freud
endereçou-se freqüentemente aos médicos. Poderíamos demonstrá-lo,
sustentando que o verdadeiro médico para Freud era... um
psicanalista. Assim, a cada vez que sob sua pena surge a palavra
médico, podemos identificar todos aqueles que ocupam um lugar
ao qual se endereçam as demandas de melhorar ou de sofrer
menos. Falar de pessoal da medicina como de “pessoal de
Dublin” é restituir este endereçamento de Freud; endereçamento
que reencontramos em Lacan – que, em seu ensino, também pouco
falou de medicina enquanto tal - mas, que constantemente endereçou-se
àqueles que a prática analítica, mais além do seu campo
específico, questiona. Com respeito ao pessoal da medicina, uma
outra consideração – que aproxima Freud e Lacan - merece ser
feita, pois, um e outro, curiosamente, deram testemunho de uma
inflexão quase idêntica de suas respectivas posições face à
modificação do império incontestado das exigências que a ciência
criava em sua aproximação com as doenças do homem.
Podemos
partir de nossa atualidade mais recente para examinar as razões
desta inflexão comum. Cito um artigo do jornal vespertino francês,
Le Monde, datado de 17
de março de 2007. Este artigo informa que a Igreja pensa em
beatificar o professor Lejeune, um grande geneticista
parisiense, que teve o mérito incontestável de dirigir os
trabalhos de uma equipe responsável pela descoberta da
trissomia do 21. Depois desta abordagem das causas do
mongolismo, Jerôme Lejeune destacou-se pelo seu combate em
favor das modificações das vidas sexuais e das maneiras de
pensar a procriação. Partidário da condenação papal dos métodos
contraceptivos artificiais, militante contra a interrupção da
gravidez, este professor de medicina nunca recuou, destacando-se
nas lutas que são geralmente conduzidas pela parte mais reacionária
da direita de seu país. A Igreja quer beatificá-lo; quer dizer
que ela mesma não recua diante do risco de predispor
negativamente a fração progressista de sua comunidade.
Há
uma razão nesse paradoxo. Há alguns anos, Jacques-Alain Miller
apercebeu-se dele, manifestando sua surpresa em ver que a Igreja
havia se inclinado nesse campo que é preciso chamar de
cientificismo. Entre os que acompanham isso de perto, Alain de
Libéra, mostrou num livro grosso, sério e magistral, que o negócio
é antigo (Libera, 2003).
Depois
do Concílio do Vaticano II, seguido da constituição pastoral Gaudium
et spes até a publicação da encíclica do papa João
Paulo II Fides et ratio, a Igreja esforçou-se em persuadir seus contemporâneos
de que, primeiramente, a separação das ciências da natureza e
da filosofia com relação à teologia e a fé, devia ser
imputada a um acidente da
história das idéias – Alain de Libéra, numa pesquisa
apaixonante, buscou a genealogia e a descobre no século XIII
–; em segundo lugar, que uma releitura do tomismo que defendia
a unicidade do ser permite mostrar – como Karol Josef Wojtyla
consagrava-se a fazê-lo– que não há combate em nome da fé
que valha a pena se ele não é conduzido, também, em nome da
ciência. Com um imenso cuidado e uma fineza convincente, Alain
de Libéra explica como, desde os primeiros esforços do
Vaticano II, os Pais em concílio defendem a tese segundo a qual
uma fé que negligencia as descobertas científicas é suspeita:
graças à crença nas Escrituras, segundo eles, é preciso
explorar, integrar, levar em conta todos os avanços da cultura.
O ponto é que nada que decorra da criação pode ser ofensivo
ao nosso laço com o criador... sob a condição expressa de que
não postulemos jamais, no estudo da criação, que possa não
haver... Criador.
Desde
o aggiornamento2
de Angleo Giuseppe Roncalli, o pitoresco e excelente João
XXIII, uma indicação implícita é ressaltada: o saber que se
obtém do real. Aquele que conseguimos alojar nesse real, não
prejudica a religião, longe disso... desde que preservemos a
supremacia de uma verdade: não há criação sem Criador. Não
é a insurreição da verdade contra o saber que faz sintoma,
segundo os Écrits, de
Jacques Lacan, mas a verdade que afrouxa seu laço ao saber, que
não deverá sua liberdade senão ao perímetro onde toleramos
que ele perambule. Libéra mostra que, no interior desta concepção
moderna da doutrina, uma variação decisiva se instala em torno
da mesma palavra; a cultura, sob a pluma dos contemporâneos de
Paulo VI, engloba todas as descobertas das ciências físicas e
das ciências ditas humanas. Em Fides
e ratio, ela se reduz àquilo que João Paulo II chama de
seus votos: um retorno à filosofia. Libéra cita de modo
preciso e bem fundamentado a Karol Wojtyla – formado na
fenomenologia e especialista em Max Scheler - uma vez que ele
anuncia que a falta da ciência moderna foi abandonar a preocupação
filosófica. Na realidade, o apelo a esta preocupação filosófica
não é outra coisa senão a expectativa de que esta seja uma
garantia do respeito pela transcendência.
Neste
movimento de reconquista da ciência, graças a essa substituição
da palavra cultura pelo
apelo à filosofia, o historiador oculta uma maneira de
condenar, sem dizê-lo, aquilo que nos anos sessenta chamávamos
de ciências humanas. São claramente visadas a sociologia e a
psicanálise por esta tentativa de aumentar nosso saber sobre o
real no interior da verdade da criação divina. Lembremo-nos de
Lacan na sua carta de dissolução; a igreja...
Falar
disso ganha uma certa importância se queremos ter uma idéia do
percurso de Lacan depois de 1960. Em 1960, diante dos Pais de
Louvain que o convidaram, ele anuncia - é ao mesmo tempo o
contrário - e, estranhamente, premonitório do que sabemos ser
sua última posição: “Há uma certa desenvoltura na maneira
pela qual a ciência se desembaraça de um campo, do qual não
vemos bem porque ela se aliviaria tão facilmente do seu fardo.
Igualmente, acontece muito freqüentemente que a fé deixe à ciência
o trabalho de resolver os problemas quando as questões se
traduzem em um sofrimento muito difícil de manejar” (Lacan,
2005, p. 30). Na página precedente, citandos os versículos 7
à 11 do capítulo V da epístola de São Paulo aos Romanos,
Lacan explica que esta divisão moderna no campo da verdade
confronta a ciência à sua incapacidade de apreender esta parte
essencial da clínica que ele designa sob o termo bem geral de
moral. “Conotar um
domínio do ser, aquele da crença, por mais que ele o seja
assim, não me parece suficiente para excluí-lo do exame
daqueles que se apegam ao saber. Além do mais, para aqueles que
crêem, é de um saber que se trata aí.” (Lacan,
2005, p, 28-29). Seguindo o mesmo impulso, diante do cônego Van
Camp e de seus colegas, Lacan afirma que, dentro da clínica –
no domínio do pessoal da medicina -, a psicanálise se
encarrega daquilo que a ciência abandona e que antigamente era
tratado pelas pessoas que tinham a responsabilidade das coisas
da fé. Em 1974, diante dos jornalistas da revista italiana Panorama, em Roma, Lacan declara: “Eu detesto a filosofia” (Lacan,
2004, p. 25-29). Este trajeto conduz Lacan desde uma consideração
da verdade até uma crescente preocupação com o real; esse
trajeto é o inverso incompatível daquele descrito por Libéra
de Gaudium et spes até
Fides et ratio. Freud,
mutatis mutandis, o
efetuou. Um e outro ajudam a compreender que, se da parte da
medicina, eles não podem mas esperam grande coisa, os
psicanalistas têm tudo a esperar e realizar se trabalharem com
o pessoal da medicina, interrogando-os de maneira diferente da
que se propõem a fazer as religiões revigoradas pelas novas
formas de mal-estar na civilização.
Após
a Segunda Guerra mundial, ocorreu a real, verdadeira, a grande
revolução médica, planejada durante um século e meio pelos
maiores espíritos do século dezenove, de Magendie a Paul
Ehrlich. O Freud de 1880 já tinha anunciado as conseqüências
dessa revolução. A psiquiatria clássica se situava, então,
na interseção de dois campos, ambos reivindicados pelo espírito
científico, a medicina biológica e a psicanálise.
Esta,
devido à sua ambição científica defendida desde sempre por
Freud e até o início dos anos sessenta por Lacan, oferecia à
psiquiatria o horizonte epistemológico capaz de basear suas
ambições psicopatológicas. O único, em todo caso, que podia
responder à expectativa dos psiquiatras conscientes de que a
intervenção, útil e indispensável, dos medicamentos não
explicava muita coisa no que tange às causas. Também, romper
com a psicanálise, transformou-se para a medicina psiquiátrica
em romper com o estudo psicopatológico. Isto é, com a busca
das causas. O ateorismo do DSM é testemunha disso.
A
psiquiatria delimitava a zona de interseção entre a medicina e
a psicanálise. Seu desaparecimento, desejado, planejado em
proveito da clínica quantitativa, corresponde a uma ruptura
real entre a medicina e a psicanálise. A História não voltará
atrás. Resta o pessoal da medicina. “Reabsorvida” –
palavra de Lacan em 1966 ou 1967 – na medicina geral, a
psiquiatria não desempenhará mais o papel, para nós e para
aqueles que se seguirão, que ela tinha para os contemporâneos
de Freud e Lacan. Nós éramos aí, os visitantes noturnos. Lá,
não seremos mais que in partibus infidelium. Sublinhemos o que Lacan diagnostica: a
desaparição da psiquiatria não acontece como um evento da
ordem do saber, mas devido ao dinamismo industrial e ao avanço
do capitalismo. O DSM não substitui a psiquiatria clássica,
ele é a bóia náutica que assinala o local de seu naufrágio,
que Lacan chama: reabsorção. Ademais, é no fundamento da
desaparição do que se via na superfície que se deve pensar,
agora, as relações da psicanálise com o que a fez nascer, e
quem era a medicina quando a psiquiatria dissimulava sua
transformação; transformação essa que, ao final, implicava
na exclusão do que a psicanálise desenvolve.
O
que aconteceu com essa interseção entre a medicina e a psicanálise,
ilustrada pela psiquiatria em suas disputas internas, suas adesões
ou sua proscrição do freudismo? O que queremos dizer é: o que
é que está ocupando essa zona de interseção hoje em dia,
agora que não se investe mais nela todo o conjunto das preocupações
etiológicas, estranhas ao determinismo científico? A
causalidade dos viventes, estranha às leis físicas e químicas,
que a psiquiatria colocava dentro da medicina, quando ela se
interessava por psicanálise, foi substituída pelo quê?
Por
uma grande ficção democrática e pelo que chamamos atualmente
de consenso, isto é, o reino da norma estatística que valida o
que a ciência verifica, que testa o que a ciência pesquisa,
que impõe o que a ciência supõe. Dentro deste subterfúgio
que se denomina ciência práticas, contabilísticas da clínica
moderna, entendemos por que o último papa defunto aconselhava
um pouco de filosofia; não para adormecer, como se fazia no
tempo de Madame du Châtelet, mas para ficar um pouco mais
apresentável.
Assim
se fazem os DSM: por consenso. A histeria parece fora de moda: não
há mais histeria. A homossexualidade, muito distinta, faz
parecer segregação: exit3
da homossexualidade do campo clínico. Lá onde estava a procura
das causas, procuraremos o acordo do povo. Enfim, não todo o
povo, sem dúvida. Um homem chamado Philippe Pignarre, fundador
e animador de uma empresa editorial, que está longe de
desprovida de mérito, acaba de “cometer” um livro (Pignarre,
Les malheurs des Psys, 2006)
– na realidade, um factum
dirigido, especificamente, contra o freudismo – onde ele
afirma que a única maneira de renovar a clínica das coisas
mentais é entregando a elaboração do saber clínico às
associações de doentes. Esse autor não menciona precisamente
como o acordo democrático, ou, na medicina, o consenso obtido
nas práticas pela difusão das normas, impedirá que a ditadura
dos efeitos de sugestão que amplificam até a obscena
caricatura os fenômenos de massa, assassine qualquer rigor.
O
que é um médico? No início desta conferência eu afirmei que
um médico, segundo Freud, era na época... um psicanalista.
Releiamos, em 1912, suas “Conseils au médicin” (Freud,
1912, p. 143-154) para absorvermos esta evidência: os “médicos”
são para Freud seus jovens colegas da coisa... freudiana. Ou
seja, alguém com quem Freud pouco se importava, apesar de ele não
desprezar nem títulos, nem erudição indispensável, quer eles
fossem alardeados pela Faculdade ou não. Um médico, segundo o
Freud, tal como nós o lemos com Lacan, é alguém que precisa
enfrentar a “demanda que parte de um doente”, e que não
encontra resposta na medicina, desde que ela se confundiu - por
pior ou melhor que seja isso - com as ciências da vida. Um “médico”,
é alguém que está encarregado de muito mais do que o que a
medicina contemporânea cobre. É também assim com a “gente
de Dublin”: eles podem sê-lo porque nós os encontramos lá,
sem que seja necessário verificar se eles são das redondezas
ou nascidos na paróquia. O pessoal da medicina idem. Isto não
se limita à pele de asno. Eu aposto que é a eles que se dirige
o Freud de 1912, assim como o Lacan de 1966 na Salpêtrière.
Em
seus “Conseils au médecin”, Freud, sem dúvida consciente
da necessidade de fazer parecer que a prática nova que ele
acaba de inventar seja acolhida pelo senso comum, ele a compara
ao exercício da cirurgia, à profissão de cirurgião. Sua
argumentação é bastante conhecida. Tanto esse como aquele,
devem “eliminar” todo afeto na orientação técnica de suas
intervenções, para que a dimensão subjetiva de suas posições
não interfira nos resultados. Mas, se lermos bem o breve texto
nas entrelinhas, veremos que uma outra razão motiva a analogia
freudiana: tanto o psicanalista quanto o médico extraem a
causa, acham a origem etiológica do sofrimento em seu próprio
ato, em seu manejo da transferência, assim como o cirurgião
encontra a fonte do mal, tumor, lesão, mal-formação, etc. em
sua operação. Assim como o cirurgião, o psicanalista encontra
a causa do distúrbio no interior de seu ato provocado por sua
“preocupação em curar” (Lacan,
1936, p. 80). Se, à maneira dos círculos de Euler, colocarmos
no conjunto da direita a pesquisa das causas, isto é, a ciência,
e à esquerda, a clínica, podemos perceber que em 1912, tanto
para a psicanálise quanto para a cirurgia, na parte comum dos
dois conjuntos, onde a clínica e a ciência se encontram, está
a terapêutica.
Depois
de 1930, a posição de Freud em relação à terapêutica se
modifica. Não contente em aconselhar aos seus colegas que não
precipitassem a cura, ele opõe terapêutica e ciência, e
recomenda em nome desta última, em nome do serviço da ciência,
que se controle tanto quanto for possível a ambição terapêutica.
O
curioso neste assunto de laços da ciência e da terapêutica,
é que achamos, durante o ensino de Lacan, uma inflexão comparável
a esta. Em “La psychiatrie anglaise et la guerre” (1947, p.
119), exatamente antes do segundo conflito mundial, o sentimento
de Lacan é que somente a psicanálise pode trazer a caução de
um método científico à medicina psiquiátrica. Até a metade
dos anos sessenta, seu ponto de vista praticamente não mudou.
No pequeno livro,“Mon
enseignement, ele afirma, com certa prudência irônica, que
a “psicanálise, pode ser um modo de abordagem científica que
concerne às coisas que dizem respeito ao sujeito” (Lacan,
2005, p 80). Dentro dessas três conferências publicadas por
Jacques-Alain Miller, todas proferidas em grandes instituições
de cuidados e transmissão do saber médico, Lacan separa o que
ele chama de “o sujeito” de todas as outras funções que a
Faculdade agrupa sob a denominação de “psiquismo”. Assim,
ele afirma a estrita relação com a ciência, às “exigências
científicas”, ao mesmo tempo que com essa concepção do
sujeito ele se proporciona os meios que lhe permitirão
distanciar-se: já em 1967 ele estigmatiza esse “extravagante
modo terapêutico” (Lacan,
2005, p 32).
Parece
ser pela distinção do sujeito como uma função irredutível a
uma outra e pela refutação do papel do amor na distribuição
dos cuidados, que Lacan demonstra o que são as conseqüências
de sua “obediência científica”. Dentre essas três
intervenções que compõem um verdadeiro “Improviso ao
pessoal da medicina”, Lacan mostra que o amor não trata, não
muda nada, porque ele é da ordem do prazer. Há um ano,
aproximadamente, Edgar Morin escreveu no jornal Libération,
um artigo cujo título, da largura de uma página dupla,
retomava a fórmula de Paracelso: “a medicina é amor”. O
filósofo, em nossa humilde opinião, erra, na medida em que é
exatamente após Paracelso – e em parte, paradoxalmente, graças
e ele – que a medicina do século dezessete mudará sua concepção
do signo e começará seus primeiros passos na direção da
medicina moderna que, um século e meio mais tarde, dará à luz
a medicina científica.
Durante
os anos cinqüenta e antes deles, a relação da psicanálise
com a medicina podia ser reconhecida no ensino de Lacan pela
reivindicação do status científico
da elaboração conceitual da ação psicanalítica. Nos anos
sessenta, notamos que dentro de uma posição específica no que
concerne uma definição rigorosa do sujeito como sujeito da ciência
e na retomada das apostas freudianas de além do princípio do
prazer, Lacan articula a relação da psicanálise com a
medicina por uma “marcação” cada vez mais cerrada,
centrada na questão terapêutica – marcação essa, no
sentido extraído do futebol, de marcar um jogador.
O
princípio da reflexão de Lacan é conhecido: em 1936, ele
critica a “parcialidade da observação” (Lacan,
1936, p 80), assim como “a bastardia de concepções como a de
pitiatismo” (Ibid)
– a escola francesa é considerada “bastarda” pois ela se
apóia na distinção entre a etiologia orgânica de um distúrbio
e a sugestão para pregar com o aluno de Charcot, Babinsky, uma
mistura de gêneros que julga uma clínica da palavra com os
critérios obtidos em um exame somático. Inspirado, sem dúvida,
por sua frequentação do seminário de Kojève - que lhe abre
para as virtudes da dialética hegeliana - Lacan postula que a
psicanálise foi inventada por alguém que estava preso ao
impasse de uma medicina moderna, uma medicina que pretende levar
em consideração uma prática de escuta fechando as orelhas.
“de
fato, é um ponto de vista semelhante que impõe ao médico esse
impressionante desprezo pela realidade psíquica [...] Mas,
porque é no médico, quer dizer, naquele que pratica por excelência
a vida íntima, que este ponto de vista aparece da maneira mais
flagrante como uma negação sistemática, é também de um médico
que deveria vir a negação do ponto de vista dele mesmo. Não a
negação puramente crítica [...] mas uma negação eficaz no
sentido em que ela se afirmava com renovada positividade. Freud
fez esse passo fecundo [...] e a ele foi determinado por sua
preocupação em curar, isto é, por uma atividade onde, [...]
é necessário reconhecer a inteligência por excelência da
realidade humana, no sentido em que ela se aplica em transformá-la”
(Lacan, 1936, p.
80).
A
“preocupação em curar” era a fórmula - consagrada,
explicitamente, por ninguém menos que Louis de Bonald! – que
os médicos utilizavam para se oporem à ingerência da ciência
na terapêutica. Na conhecida passagem citada acima, através da
fórmula “preocupação em curar”, Lacan se opõe à escolha
reacionária que deplora a modificação que exige a “obediência
científica”. Como Freud, em 1890, não é questão para ele
de protestar contra o progresso das técnicas, mas estudar suas
conseqüências.
A
“preocupação em curar” tem mais um alcance: o de se
distinguir da famosa “vontade de curar”, o furor
sanandi. É uma preocupação, nada mais e nada menos.
Preocupação se opõe à vontade e prepara uma definição do
desejo do analista, não como desejo de não curar – isto
seria irresponsável - , mas, diferentemente, como um “não
desejo de curar” (Lacan,
1986, p. 258), seja como um tipo de suspensão da questão da
cura, como também uma recuperação daquilo com que nossa clínica
se confronta: a cura é uma demanda que devemos decifrar através
da interpretação de um desejo.
Quando
na metade dos anos sessenta retornou à palavra preocupação,
é novamente de maneira significativa para qualificar sua posição
em relação à terapêutica. Lacan opõe desta vez a
“preocupação terapêutica à “forma perfeita” –
perfeita deve ser tomado em seu sentido antigo: é perfeito o
que revela a natureza do que está em questão – isto é, a
psicanálise didática: “se a psicanálise tem um campo específico,
a preocupação terapêutica nela justifica curtos-circuitos, até
temperamentos; mas, se é um caso ao qual deve ser proibida
qualquer redução semelhante, é o da psicanálise didática”
(Lacan, 1966, p.
231). Em 1936, a preocupação em curar era um princípio de ação;
exatamente trinta anos depois, a preocupação terapêutica
tornava-se um princípio de limitação da ação psicanalítica,
por que esta, em sua forma perfeita, em sua forma pronta, pode
fazer o analisando correr um risco, se ele não for capaz de
suportar o risco subjetivo potencial.
Ocorre
que apenas a psicanálise didática, aquela que dela revela a
verdadeira natureza, o “campo específico”, permite elaborar
uma “teoria congruente” que possa mantê-la “no status que preserva sua relação com a ciência”... Dentro de um
percurso de duração quase equivalente, Lacan encontra Freud,
mas com uma nuance que merece ser dita: a terapêutica em nosso
campo específico não é tanto o que se opõe à ciência, mas,
especialmente, o que no campo específico, em que sua ação se
desenrola, não interroga diretamente a ciência; Jacques-Alain
Miller em seu curso, define essa zona que questiona nossa posição
em relação à ciência como um “além da terapêutica”. A
preocupação terapêutica de Lacan consiste em encontrar os
casos em que convém manter o sujeito aquém de uma linha, além
da qual a ação analítica se define como sendo outra coisa
diferente daquilo que apenas melhora a capacidade de um sujeito
para se manter dentro de uma divisão tolerável entre prazer e
desprazer. Freud, depois de 1930, opõe terapêutica e ciência
à psicanálise. Ao fazer da relação da psicanálise com a ciência
uma questão que se coloca para além da terapêutica, Lacan faz
dela outra coisa, que em nosso campo não pode se fundar,
verdadeiramente, na “razão científica”. Seria dizer que
tudo o que na ação analítica pode ser considerado relacionado
aos efeitos de sugestão, não pode ser confrontado com a ciência.
Nessa
dupla destituição, tanto lacaniana quanto freudiana, da posição
de nosso “campo específico” em relação à terapêutica e
à ciência, se encontra uma razão que permite, a partir da
psicanálise, identificar um ponto da evolução da medicina e
de seu lugar na civilização. Em 1923, em Viena, Freud publica
“Le moi et le ça” (Freud, 1981, p. 219-275); neste mesmo ano, em Paris, toda a
cidade ia ao teatro assistir à criação por Louis Jouvet do Docteur Knock, de Jules Romain. Não se tem o costume de prestar
muita atenção ao subtítulo desta célebre peça teatral: O triunfo da medicina. Em 1925, Freud escreveu a August Aichorn a
fim de prefaciar seu livro Jeunesse
à l’abandon (1973) dedicado aos desvios delinqüentes.
Freud evoca as três profissões impossíveis que a tradução
lhe legou: governar, educar, curar. Sabemos que cinco anos mais
tarde essa tríade se torna: governar, educar, psicanalisar. A
impossibilidade da obtenção da cura tornou-se a tarefa impossível
de psicanalisar.
É
que, entre as duas guerras, curar se torna possível. A
possibilidade terapêutica é a conseqüência da conversão
(meditada desde longa data) da medicina à tecnologia científica.
Eis o que Jules Romain – o artista que, justamente, precede o
analista – tinha previsto: uma capacidade terapêutica que
estenda até o infinito todo o domínio da pertinência médica.
A sala de espera de Knock fica cheia, pois toda a região quer
consultar o médico e sente necessidade de fazê-lo. A
possibilidade do “curar” apaga os limites da ação médica.
Mas torna-se possível curar graças à tecnologia científica,
o que é médico e o que é “cosmético”: recorrer à
cirurgia para refazer um rosto devastado por um acidente é
unanimemente considerado como questão médica. Mas, não estar
satisfeito com a forma de seu nariz ou com a aparição ainda
discreta de uma primeira ruga, isto é um caso médico? Isso
depende da capacidade de assumir o custo financeiro, isto é,
depende de poder político e econômico. Decidir, politicamente,
que um cuidado não deve ser fornecido pelo Estado não é
declará-lo não médico, mas sim reservar-lhe o acesso aos
recursos do mais rico, ou do menos pobre, dependendo da riqueza
do país onde se vive.
Essa
mudança vem sendo preparada desde o fim da primeira guerra
mundial. Isso é o que Knock representa e que Freud consigna
quando substitui o impossível do curar pelo impossível do
psicanalisar. A atenuação dos limites do domínio médico
ocorre também no interior, de tal maneira que hoje é
reconhecido que a topicidade dos produtos que a farmácia
inventa confunde a repartição das essências patológicas que
consagrava a “ontologia” implícita das velhas nosografias.
Isto é aceito para os doentes orgânicos; mas, no registro das
coisas mentais, a incidência é mais forte ainda. Anestésicos
eficazes da dor moral e dos sofrimentos do espírito, os psicotrópicos
não “respeitam” a antiga distribuição das essências e
das entidades nosológicas: os antidepressivos desangustiam, os
ansiolíticos parecem ser capazes de livrar da extravagância
delirante, tal neuroléptico será indicado a léguas de distância
de sua destinação original, etc. As velhas categorias não
resistiram à OPA, chamada de DSM, de tão infiltradas que elas
já se encontravam pela irônica contestação da química do cérebro.
Em
1966, quando a terapêutica galopava, Lacan não fez da
“preocupação terapêutica um freio para a ação psicanalítica,
mas algo como um limite a essa ação que leva em conta os
limites do sujeito. Um ano mais tarde, no primeiro terço de sua
“Proposition...” sobre o passe, que traça o perfil da
finitude própria à psicanálise em uma forma “perfeita”
mantendo a relação da invenção freudiana com a ciência, ele
enuncia, à guisa de “digressão” uma precisão decisiva que
radicaliza o que ele pode distinguir nos anos anteriores:
“Essa
experiência é essencial para isolá-la na terapêutica, que não
distorce a psicanálise somente por relaxar seu rigor. [§]
Podemos encontrar os tempos idos e revolvidos em que aquilo a
que se tratava de não causar dano era a entidade mórbida. Mas
o tempo do médico está mais implicado do que se supõe nessa
revolução – pelo menos, a exigência, tornada mais precária,
do que torna o médico ou não um ensino” (Lacan,
1967, p. 251).
Antigamente,
havia um tempo específico para a ação médica, que consistia
em observar um certo desenvolvimento da entidade mórbida, para
apreender o momento específico da intervenção curativa. Isto
dava ensejo, aliás, à criação de belas ficções, que faziam
da obra do médico um exemplo de prudência e audácia próprio
a alçar sua prática ao nível dos grandes gestos da história,
comparável ao que escreve o Cardeal de Retz que eu cito de memória:
“não há nada no mundo que não tenha seu momento decisivo, e
a obra prima da boa conduta é conhecer e escolher este
momento”. Lembro-me de um romance de um médico inglês
chamado Joseph Archibald Cronin, Les années d’ illusion, (bibliografia nota 22), cuja trama
inteira, feita de histórias de amor e aventuras de estudo, era,
na realidade, ritmada pelas histórias de suspense que
transformavam a terapêutica em proezas épicas.
Em
outubro de 1967, Lacan anuncia que esse tempo se foi, isto é,
que a temporalidade própria à ação médica, a temporalidade
que definia esta ação, que a fundava em razão e técnica,
hoje em dia está transtornada. Ele não é o único a
diagnosticar isto, mas é o único a notar que esse transtorno
impede, hoje em dia, que se identifique o que é médico e o que
não o é em seu próprio ensinamento. Em sua “Proposition...”
sobre o passe, ele estabelece – só de passagem, se ousarmos
dizê-lo – a constatação de uma crise na própria transmissão
da medicina conquistada pela tecnologia científica. Essa crise
na transmissão do saber não é anódina. Uma das conseqüências
dela é a desaparição desse desejo que chamávamos de “vocação”,
desejo esmagado pelos princípios de uma seleção universitária
por concursos cada vez mais anônimos, reduzidos à questionários
esvaziados de qualquer ambição retórica, impostos a
candidatos intimados, se quiserem ouvir o dignus
est intrare4 de tratar com soberano desprezo sua
própria enunciação.
Essa
transmissão evidentemente continuou! Talvez até de forma mais
inteligente que antes. Mas foi ao preço de uma distinção
tornada quase supérflua: aquela que antigamente separava a clínica
e a terapêutica, aquela que permitia à oferta suceder
logicamente a demanda, e não, como hoje em dia, confundi-la ao
precedê-la. É a lei do mercado, sem dúvida. Mas, não era
verdadeiramente aquela do velho saber das Faculdades altivas e
tenazes. Não temos, obviamente, nada contra as vidas salvas, os
destinos recuperados e as dores espantadas. É questão aqui de
uma outra coisa, que deve ser menos deplorada do que
simplesmente conhecida. Onze anos antes de Georges Canguilhem, a
constatação de Lacan, não está em acordo com o que pensa, em
1978, o mestre da epistemologia médica, que vê na medicina: a
ciência dos limites dos meios que as outras ciências querem
lhe dar. (Canguilhem,
1968, p. Paris,
392-488). Não é tanto aqui questão do lado “ficção científica”,
de um “tudo é possível”, que nós podemos inclusive levar
à sério, como nos convida Lacan em sua entrevista ao magazine
italiano Panorama, em
1974 (Lacan, “Il ne peut y avoir de crise de la psychanalyse,
loc. cit.) É mais questão da atualidade, tal qual nós a
constatamos quarenta anos depois que Lacan publicou a breve
“digressão” de sua “Proposition...” de outubro de 1967.
O que podemos observar em todos os sistemas de saúde dos países
ditos desenvolvidos prova bem que o limite do cuidado será econômico,
político, social, e que não será mais trabalho da medicina
dizer o que concerne ao seu saber e o que está fora de seu
campo. Na falta de conceber que a questão deve ser situada
sobre a demanda, sobre uma demanda exacerbada por uma oferta
dopada por suas incontestáveis e às vezes prodigiosas vitórias,
isto é, por não acentuar o próprio sujeito, a clínica médica,
atravessada pelo desenvolvimento exponencial das capacidades
terapêuticas da ciência, não achará mais o que a limite fora
do confronto à sua incidência político-econômica; ou social,
assim como demonstra a redução crescente ao jurídico da doença
mental. A própria definição do campo clínico – falamos das
coisas como elas são vividas na
cidade, e não nos serviços
de ponta dos hospitais e universidades, templos
bunkerizados de uma técnica que só deve sua relativa
independência ao prestígio justificado do trabalho de elite
que nela se realiza – escapa ao controle do clínico e
dependerá cada vez mais da ditadura do mercado, maquiado sob
seus ideais democráticos, isto é, sob suas ficções igualitárias.
O
confuso no que constatamos hoje em dia, apesar de estarmos
avisados pelas premonições instruídas e calculadas enunciadas
por Lacan entre 1965 e 1968, é que podemos adivinhar,
certamente, não a profecia, mais a história da maneira como as
coisas se acomodavam no início da conversão à ciência do
conjunto das práticas médicas; conversão efetiva e contemporânea
na alvorada do que podemos chamar de era pasteuriana. Não é
impróprio falar de conversão, pois é de fato questão da
substituição de um universo de crenças por um outro muito
mais eficiente nos métodos que ele prega para localizar o saber
no real. Em um artigo do jornal francês Le
Figaro, datado do dia 2 de maio de 1973, intitulado “Uma
coletividade de pesquisadores é uma ordem mendiga”, o
ganhador do prêmio Nobel e pasteuriano, André Lwoff declara:
“Todos
sabem que o sufixo –iano se adiciona a nomes para formar
adjetivos ou nomes designando a profissão, a escola, a
filosofia, a religião, o pertencimento a uma ordem: cartesiano,
cisterciano [...] O leque está largamente aberto [...] Minhas
preferências vão para pertencer a uma ordem [...] Ser
“pasteuriano” é então pertencer a uma ordem [...] Às
vezes é questão de ser aluno da Sorbonne, sorboniano jamais”
(Lwoff apud Le
Grand Robert, vol. 5, p. 2001, artigo: “pasteuriano”)
Essa
história, de uma força anunciadora comparável às formulações
de um Nietszche, data de alguns anos antes da invenção da
psicanálise. Ela é conhecida; ela é de Sigmund Freud em 1890
(Freud, 1905, p.
1-23). Subordinada à ciência, a medicina ganha tudo, exceto o
que ela abandona e que desde sempre atravessava sua prática: a
autoridade sábia do médico, a dimensão prestigiosa de sua
figura que evoca Jacques Lacan em 1966, no hospital da Salpêtrière
(Lacan, 1966, p.
761-774), baseava-se na “mágica das palavras” (citação
nossa). A ciência apenas cobre uma parte do campo clínico; o
outro tem relação com essa potência do verbo (o poder da
palavra como diríamos hoje em dia). Dentro do processo de
curar, esse poder, essa mágica, intervém quando, segundo
Freud, opera-se no paciente, a transformação de uma “espera
ansiosa” em “espera crente” (Freud,
1905, p. 8), isto é, a mutação da apreensão angustiada de
uma ameaça contra o bem-estar em uma posição subjetiva que
ele chamará mais tarde de transferência.
Em
sua intervenção na Salpêtrière, Lacan evocou o caso daqueles
que esperam do médico serem confirmados em seu “status de
doentes”. O que se deve dizer senão que a demanda feita ao
saber médico por segurança, garantia pela essência da doença,
é uma demanda de ser? Ela demonstra que além da patologia somática,
uma zona, uma parte inclusa na situação clínica concerne
precisamente o sujeito, a falta de ser e sua queixa. Não há
artifício em misturar o Freud de 1890 e a contextualização
lacaniana, para colocar que é a foraclusão do sujeito pela ciência
que trabalha na eliminação da dimensão da transferência pela
transformação tecnológica da medicina.
Se
Lacan pode considerar que o aporte da ação analítica é bom,
no exterior de seu campo específico, tão longe quanto é possível
concebê-lo, não seria porque esta obra benfeitora, ao
interpelar a ordem da ciência em nome da ordem do sujeito,
oferece uma escuta que é bem mais do que a respiração
proposta por todas as células psicológicas que o poder político
põe, diligentes, a fim de socorrer os acidentados da civilização,
persuadindo-os que a bondade de um Outro administrativo
conseguirá suprir a inoperância contemporânea do amor do pai?
Ao
final de seu ensinamento, o autor de “Question préliminaire...”
define a clínica como “o real no sentido em que ele é impossível
de suportar” (Lacan,
1977, p.11). Pelo quê, por quem esse real seria impossível de
suportar senão pelo sujeito? Pelo sujeito que deve ser
reintroduzido na própria prática clínica para que uma parte
decisiva de sua queixa entre no cálculo que modelará a
resposta adequada.
Deve-se
conceber a condução desta tarefa necessária, através da
consideração do que Jacques Lacan soube identificar como
efeito maior da ação produzida pela ciência. É esta
consideração que faz com que se diga que convém muito mais
procurar o pessoal da medicina do que dissertar a respeito da
medicina, porque dissertar sobre a medicina, quando não se está
diante dos problemas concretos colocados pelas demandas, mais
cedo ou mais tarde, transforma o indivíduo em professor.
A
cientificização da medicina, apesar de ter se iniciado,
segundo Michel Foucault, há mais de dois séculos, está apenas
começando – para simplificar. Não podemos duvidar da
dessubjetivação crescente percebida por Canguilhem. Esta
“dessubjetivação” é uma objetivação do doente. Ela é
da estrutura. O pessoal da medicina faz o que pode a respeito
disso com uma alegria desigual; mas nós não temos que opinar,
pois não faríamos melhor no lugar deles! Aquilo que é da
nossa competência é o “médico” (no sentido em que
tratamos dele), pois é do seu lado, tanto quanto do lado do
estudioso que se coloca a questão da destituição subjetiva.
Esta destituição subjetiva do pessoal da medicina, da qual
temos todos os indícios, ainda que só abrindo o jornal da manhã,
como toda destituição do sujeito pela ciência, não pode ser
protestada por eles, é uma destituição sem volta dentro do
discurso que a engendra, pois este discurso não pode dar lugar
à divisão singular de cada um. Essa clínica da destituição,
da qual a recente história de um drama hospitalar (Forest,
2007) é testemunha chocante e pungente, é aquilo que podemos
transformar numa ocasião de nos endereçarmos e falarmos. Falar
com o pessoal da medicina desta posição de desidealização
radical na qual eles se encontram, pode ensejar um desejo de uma
escuta diferente para a queixa. Propor ao pessoal da medicina
que eles digam alguma coisa a respeito do que a medicina faz,
sobre a posição deles em sua prática, é mais motivante
que as avaliações e outros consensos de pretensões democráticas
que cerceiam incansavelmente o desejo de fazer melhor. Não
podemos mais tomar posição, como nos tempos heróicos dos
grupos Balint que acreditavam em um “todo interpretável”:
do dodói à prescrição do tratamento. Não podemos mais fazê-lo,
pois isso implicaria numa situação transferencial sociológica
que não existe mais, por um lado, e, por outro, porque as
perguntas e as respostas estão presas numa exigência de
padronização que não permite mais que se decifre
integralmente a queixa à ordenança! Mas é possível tomar as
coisas pelo viés, senão do sofrimento do pessoal da medicina,
pelo menos por aquele de seus sintomas do qual eles conseguem
dizer alguma coisa. Para isso, eles devem ser pegos
um a um, caso a caso. Se há um futuro para as relações da
psicanálise e da medicina, sem dúvida ele não está no que
poderemos dizer dos cuidados, mas no que permitiremos fazer os cuidantes
dizerem. Ou seja, em maior ou menor escala, o que poderemos
fazer todos dizerem, como demonstra o ideal persecutório da
medicina preventiva e a promessa sem fim de um tudo
saber atiçada pela internet! “Todos doentes” anunciava
o Doutor Knock. “Todos cuidantes” responde de mil e uma
maneiras a nossa época.
Notas
-
Este
texto é uma nova versão da intervenção feita sob o mesmo
título em Bruxelas no quadro da ACF - Bélgica (noite
“Sobre o vivo”), em 22 de março de 2007. Publicado
em Quarto, n. 91.
Revue
de psychanalyse publiée à Bruxelles.
-
Termo
utilizado em italiano e em várias outras línguas para
significar atualização.
-
N.T.:
em inglês no original.
-
N.T.:Significa
“ele é digno de entrar”. Esta é uma fórmula emprestada da
cerimônia burlesca do Malade Imaginaire e que se emprega, sempre como brincadeira, quando
é questão de admitir alguém em uma corporação ou sociedade.
Segundo o Petit Larousse,
de 2007.
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Texto enviado em: 20/03/2007.
Aprovado
em: 20/07/2007.
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