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 PRESENTISMO E NOVOS MODOS DE RELATO: EFEITOS SOBRE O SUJEITO SUPOSTO SABER

 



Jésus Santiago
Doutor pelo Departamento de Psicanálise de Paris VII
Pós-doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ
Professor Adjunto da Faculdade de Psicologia da UFMG
Psicanalista. AME da Escola Brasileira de Psicanálise
Membro da Associação Mundial de Psicanálise
jesussan.bhe@terra.com.br

Resumo:

A idéia do “presentismo”, com suas operações narrativas próprias, acarreta conseqüências pouco favoráveis para o laço transferencial. Para a atualidade dos históricos, ela é repercussão da ascensão vertiginosa de um presente onipresente. Isso significa que a experiência do tempo, para as diversas épocas, são múltiplas. Para a psicanálise, se cada sociedade mantém uma relação particular com o passado, o presente e o futuro, isto tem conseqüências para a “função da palavra”. Portanto, o fenômeno do “presentismo” impõe à prática do analista novas modalidades da narrativa que, certamente, repercutem sobre a própria concepção da transferência. O ato analítico na contemporaneidade exige uma mudança de paradigma clínico, sobretudo, no âmbito da transferência, pois seu exercício passa a ser correlativo da dimensão do real que falha incessantemente. Para o autor, a prática lacaniana deve instruir-se no terreno em que o impossível e as falhas no real se estendem intensificando a derrisão que não poupa nem a psicanálise. Cabe perguntar: que lugar para o sujeito suposto saber em um mundo que, diante da presença desenfreada do “isso falha”, força o sujeito a responder com ficções que se fabricam com a derrisão do saber?

Palavras-chave: presentismo, transferência, tempo, saber, sujeito, neo-inibições.

 

 

 

PRESENTISM AND NEW FORMS OF REPORT: EFFECTS ON THE KNOWLEDGE SUPPOSED SUBJECT

 

Abstract

Would the so called ‘presentism’ with its own narrative operations not bring unfavorable consequences upon the transferencial tie installation? To the modern life perceiving historian it reveals the fast growing ‘present’ category and even what imposes itself as evidence of an omnipresent, invasive, and massive present. This means that the experience the different historical times keep with time are not unique nor homogenous. The formidable change that takes place on the scene of opulent and technified societies – with greater emphasis on the market, technical efficiency, and on the many forms of consumption – promoted the eradication of the great futuristic utopias still present in a recent past.

Key words: presentism, transference, time, knowledge, subject, neo-inhibitions

 

Deparo-me, com freqüência, com material clínico que me faz interrogar a aplicabilidade da psicanálise aos mais diversos estilos de vida contemporâneos. Pergunto-me, por exemplo, se o chamado “presentismo”1 (Hartog, 2003), com suas operações narrativas próprias, não acarreta conseqüências pouco favoráveis para a instalação do laço transferencial. Chamo a atenção para o fato de que o historiador atento aos estilos de vida atuais, revela o crescimento rápido da categoria de “presente” e, mesmo, o que se impõe como a evidência de um presente invasivo, maciço e onipresente. Isto significa que a experiência que as distintas épocas históricas mantêm com o tempo não é única e nem homogênea. A formidável transformação que se opera sobre a cena das sociedades tecnificadas e opulentas – com a ênfase, cada vez mais acentuada, no mercado, na eficácia técnica, e nas mais diversas formas de consumo – promoveu a erradicação das grandes utopias futuristas, ainda presentes em um passado recente.

Os novos estilos de vida que se caracterizam pelo culto do excesso hedonista não provocam apenas um crescimento do individualismo, mas uma dissolução das esperanças em um futuro promissor, com uma visível diminuição das ideais éticos, sócio-culturais e políticos. O entusiasmo com o progresso histórico dá lugar aos horizontes em que prevalece uma experiência com o tempo dominada pela idéia de que o usufruto de um bem é sempre precário e efêmero. Confundindo-se com a queda das construções voluntaristas do futuro e com o triunfo concomitante das normas consumistas centradas sobre a vida no presente, a civilização atual assiste o advento de uma temporalidade marcada pelo primado do “aqui e agora”. O “culto da utilidade direta” (Miller, 2003), como se exprime Edgar Alain Poe, suplantou a glorificação dos fins e dos ideais. Menos o futuro é previsível, mais é preciso ser móvel, flexível, reativo, sempre pronto para mudar. A mitologia da ruptura radical - quase sempre associada ao idealismo revolucionário – foi substituída pela cultura do “mais rápido” e do “sempre mais”: mais flexibilidade, performance e inovação.

 

Neo-inibições e desbussolamentos2

As particularidades do caso que favorecem a discussão sobre a interferência do presentismo na própria direção do tratamento, particularmente, sobre as condições de emergência da transferência dos jovens em análise, me foi relatado durante uma supervisão clínica. Trata-se de um rapaz de 23 anos que, antes de procurar o tratamento analítico, passou por um psiquiatra, amigo e colega de seu pai, queixando-se de timidez e dificuldade para expor, em sala de aula, os trabalhos escolares solicitados. Após recebê-lo, por algumas vezes, o psiquiatra prescreveu um anti-depressivo. Diante de sua fala que o remédio não estava adiantando nada, o psiquiatra reagiu, dizendo-lhe: “vamos, então, parar com esse veneno e você vai procurar uma psicanalista.”

Depois de alguma hesitação, ele chega à análise acompanhado de sua etiqueta diagnóstica, fato que, aliás, é bastante corriqueiro, nos dias de hoje. Portanto, o início do tratamento coincide com a fala de que é portador de uma “espécie de fobia social”. Ou seja, o diagnóstico não é mais um assunto circunscrito ao saber médico, ele é, cada vez mais, objeto de uma demanda do paciente. É preciso considerar que, nesse caso, mais do que um diagnóstico, o uso da expressão “fobia social” assume o valor de um significante-mestre (S1) que visa tornar legível o aspecto angustiante de suas inibições e desbussolamentos, característicos da chamada hipermodernidade (Lipovetski & Charles, 2004) Nas primeiras sessões, retoma, com um maior detalhamento as suas inibições e, principalmente, o quanto se sente mal nos momentos em que é preciso expor publicamente os afazeres escolares. Observa-se que ele apresenta grande dificuldade para dar início às sessões e que se mostra bastante constrangido quando constata que se espera dele a iniciativa da fala. O silêncio do analista constitui, assim, um recrudescimento dessas inibições com a fala.

Que fazer? O analista decide, então, formular-lhe perguntas, às quais ele próprio se mostra receptivo. Queixa-se muito. No âmbito da sua vida amorosa, a timidez o impede de aproximar das moças que o interessam e, das outras, quando se aproxima, enxerga mil defeitos e põe fim a esses relacionamentos. Com relação àquelas que deseja, reclama que quase sempre falta-lhe coragem. Sente-se, com um grande vazio. “Talvez, se tivesse alguém ao meu lado, tudo fosse diferente. Ou talvez, não!” Além de não se entusiasmar com o curso universitário que faz, não consegue imaginar nenhum outro que lhe interesse. Aprecia bastante a música, porém, não anda nada satisfeito com seus colegas de banda. Não parece antever ver nenhum caminho viável para sua vida.

Quanto à família, afirma que é muito tranqüila, ainda que o relacionamento entre eles seja também superficial. Sente-se pressionado pela sociedade para levar adiante o seu curso superior, ganhar dinheiro e namorar. O peso que assume, para ele, a formação universitária, a inserção na vida profissional, e, sobretudo, o relacionamento familiar e afetivo é um indício explícito das dificuldades do sujeito em consentir com as exigências da vida civilizada. A cada sessão repete suas mesmas queixas introduzindo, aos poucos, novos ingredientes à sua insatisfação com a vida. É o caso do uso de maconha que, desde os treze anos, se faz presente. No início, experimentava bem estar, porém agora torna-se mais tímido e angustiado. Chegou a ser preso por diversas vezes e já passou por muitas situações difíceis. Diante disto, decidiu não se expor. Evita fumar na rua, entretanto, em sua casa, faz uso da droga todas as noites. Ainda que os pais não façam nenhuma objeção mais incisiva, advertem: “Olha o que você está fazendo com a sua vida. Onde você vai chegar com isso?”

 

A derrisão do saber

Antes de procurar o tratamento, assinala que era, sucessivamente, reprovado em pelo menos uma disciplina de cada período do seu curso universitário. Argumenta que o pai nada questionava. Sem maiores discussões, ele efetuava o pagamento para refazer a disciplina em que obtivera reprovação. Ao mesmo tempo em que, pouco a pouco, suas queixas emergem, ele introduz questionamentos e comentários diversos a respeito da pessoa do analista e do próprio tratamento. Indaga, assim, se o analista é casado, se tem filhos e onde mora. Reafirma que, para ele, é bastante difícil falar das coisas íntimas para uma pessoa completamente estranha e de quem nada sabe sobre sua vida. Ao dar continuidade aos questionamentos dirigidos ao analista, indaga: “O que sou em relação a ele? Um paciente? Um doente mental? Um neurótico? Quanto tempo dura a sessão? Quando vou deitar nessa caminha? Porque você escolheu ser psicanalista e não trabalhar com uma terapia? Que curso se faz para ser analista?”

De tempos em tempos manifesta sentimento de preguiça e desânimo quanto ao seu comparecimento às sessões, pois, segundo ele, “a análise não é uma prioridade”. Justifica-se com o argumento de que pensa sempre em termos de “custo-benefício”: “deixa de estudar para ir à análise, cansa-se muito no trajeto do ônibus e, finalmente, gasta o dinheiro que poderia usar com alguma diversão”. A mentalidade utilitarista do “custo-benefício” e do “mais-rápido”, própria do “presentismo”, retorna, uma vez mais, a propósito da continuidade do tratamento. Coloca-se em dúvida se não deveria tomar um ansiolítico ou, ainda, se o psiquiatra deveria ter tirado o anti-depressivo sem dar um jeito de dosar a serotonina que ele tem no cérebro. “Quem sabe, haveria uma parte do cérebro responsável pela timidez? Não deveria estar em um neurologista e não em uma analista? Não é possível ter um tratamento mais rápido, tal como pude ler, na internet, sobre a fobia social?”

Como se vê, as queixas e as críticas que dão o colorido desse quadro de desbussolamento do sujeito traduzem o seu descrédito na função da palavra, função essencial à constituição do sujeito suposto saber. No entanto, é preciso levar em conta que, apesar dessa disposição queixosa, própria da dúvida obsessiva em que o envoltório formal do sintoma se tece, ele não deixa de freqüentar o consultório de seu analista. É ele mesmo que questiona: “Por que venho à análise? Ninguém me obriga, assim devo vir porque quero”.

Na medida em que o trabalho analítico avança, as dúvidas e impasses próprios da configuração sintomática desse sujeito se complexificam. Seria apressado dizer que se trata apenas de um niilismo exacerbado com os rumos da vida ou, ainda, um mero ceticismo com relação ao tratamento. O que me parece claro é que, para esse sujeito, o saber assume o valor de um puro semblante que torna relativa toda e qualquer apreensão do real. A prova mais evidente desse relativismo com o saber é a maneira, bastante perspicaz, como ele interroga o lugar que o analista ocupa diante dos impasses de sua existência. Questiono, inclusive, se não é a própria articulação da demanda de tratamento que passa a ter lugar nas indagações surpreendentes do sujeito: “Você deve ter suas opiniões pessoais e deve ser muito difícil não levá-las em conta. Manter a ética deve ser muito difícil. Você deve saber mais coisas sobre mim do que eu mesmo. As coisas da infância afetam a vida adulta? As coisas ditas aqui, mesmo se superficiais, têm importância?”

A explicitação das suas tendências sintomáticas essenciais e de sua dificuldade em formular uma demanda de tratamento não impede que o manejo da transferência se processe em um terreno cheio de situações sinuosas e adversas. Durante um período de tempo significativo, logo após esse início, ele mantinha sua recusa em assumir a regularidade do tratamento. Esquecia de algumas sessões, desmarcava outras por motivos vários. Após cada sessão desmarcada, entrava-se em um longo processo de negociação a respeito da reposição da mesma. Na segunda-feira estava cansado do fim de semana; na sexta, da semana; às duas horas não dava tempo de almoçar direito; às quatro, o dia era cortado ao meio. Os empecilhos iam, uma vez mais, avolumando-se. Quando as sessões eram marcadas, sem o seu prévio consentimento, ele ausentava-se. A cobrança das sessões que faltava nem sempre sortia o efeito esperado. Pode-se dizer que foi apenas com o manejo cuidadoso dessa situação adversa que o tratamento encontrou uma abertura mais favorável para a sua consolidação.

Em um dos momentos mais produtivos da análise é possível apreender uma certa expressão do sujeito da enunciação que conecta o analista com o que constitui o fundamento de seu sintoma. Ao queixar-se, para o analista, de que os pais já desistiram dele, que já sabem que não há mais jeito, infere-se um instante capital de sua enunciação: como o analista reagirá diante de meu esforço em fazê-lo desistir de mim? Ele reagirá como meus pais? A inexistência desses enunciados não quer dizer que não haja, nesse momento, um ponto de subjetivação crucial para a continuidade do tratamento. Ou seja, a emergência desse material constitui uma indicação sobre a estratégia transferencial a ser adotada com relação à trama dos tropeços, desistências e falhas que se dispõem ao longo do tratamento. Assim, quando em uma outra ocasião telefona, duas horas antes da sessão, para dizer que queria desmarcá-la, pois estava com preguiça, o analista responde: “de forma alguma!”. Ainda, nesse telefonema, chega a perguntar se preguiça não era um motivo justo. O analista replica que não e que vai esperá-lo no horário marcado. Comparece à sessão no horário previsto. No início, reclama que o analista “pegou pesado”, que não tem o que falar, porém, fala a sessão inteira.  

 

Presentismo e sujeito suposto saber  

É evidente que não é apenas o componente inibitório presente nesse sujeito que dificulta o progresso do trabalho analítico. A meu ver, há uma questão relativa à incidência da operação narrativa do “presentismo” sobre o modo em que se estabelece o laço transferencial. É sabido que o sujeito suposto saber exige a extração de uma configuração particular da cadeia significante que remete às características próprias do chamado sujeito cartesiano. O sujeito cartesiano se define pela relação que mantém com a cadeia significante visto que, para ele, esta última toma a forma de uma cadeia dedutiva, cujos elementos se articulam entre si por uma causalidade e uma temporalidade própria. Se a experiência analítica viabiliza a introdução do inconsciente como um sujeito dotado de uma matriz de combinações significantes calculáveis, ela introduz também uma temporalidade entre esses elementos que é inteiramente singular.

Essa temporalidade própria da cadeia significante recebeu o nome de efeito sujeito suposto saber tendo em vista que é ele que confere significação à relação causal entre os vários elementos da cadeia significante. Miller explicita essa temporalidade da cadeia significante por meio do “paradoxo do futuro contingente” que, de modo resumido, passo a aplicá-lo, ao funcionamento do sujeito suposto saber (Miller, 2000, p. 25). Se o sujeito se coloca no tempo Tn, um acontecimento pode ocorrer, com ele, no tempo futuro Tn+1. Na verdade, ele pode ocorrer ou não ocorrer.

                                                   Tn+1

              Tn

                                                   –

Se ele ocorre, se ele, de fato, aconteceu,

                                                        Tn ––––––––––––> Tn+1

então, sempre será verdadeiro que ele ocorreu no passado. É aqui que aparece a significação própria do sujeito suposto saber, pois, será sempre necessário, sempre verdadeiro que ele tenha acontecido no passado. Em outros termos, para a significação que o sujeito confere ao acontecimento Tn+1 é impossível que o que ocorreu no passado possa não ter acontecido. O essencial desse paradoxo é explicar a conversão do possível em necessário, ou seja, o fato de que o acontecimento passado possa ser, retroativamente, significado como necessário. Portanto, em Tn, o que ocorrerá no futuro (Tn+1) é simplesmente possível. Assim, se em Tn+1 isso aconteceu, tornou-se efetivo, aparece a significação dessa efetividade. É simplesmente porque “reprojetamos” essa efetividade no sentido contrário - ou seja, do presente em direção ao passado - que se pode dizer que o acontecimento passado já era necessário. Em última instância, se o acontecimento é sempre contingente – marcado por uma abertura dos possíveis –, o sujeito suposto saber, por sua vez, é sempre a introdução de uma significação que capta a causalidade do acontecimento passado como necessária.

É o caso de dizer que o “presentismo” é refratário ao sujeito suposto saber, pois este consiste na estrutura temporal que, retroativamente, apreende uma relação necessária entre um acontecimento passado e o presente. Trata-se de uma relação causal que supõe um sujeito que se capta afetado pela materialidade significante que se constituiu no passado. É essa articulação entre a temporalidade retroativa do passado no presente e a cadeia significante que concerne à consideração científica do sujeito suposto saber.

Diferentes concepções da transferência têm conseqüências para a clínica psicanalítica. Quando se considera, por exemplo, apenas o aspecto da suposição de saber, corre-se o risco do trabalho analítico encaminhar-se para a paralisia transferencial, pois, prevalece, nela, sua vertente puramente imaginária. Tomar a suposição de saber como uma significação que se encarna em alguém que os demais supõem que sabe é inteiramente insuficiente para o trabalho analítico. É por isto que não se pode dizer que o simples fato de se fazer uma pergunta para alguém já o constitui como sujeito suposto saber. Nesse sentido, o próprio Lacan precisa que não se trata de que o sujeito seja suposto saber pelos demais, senão que o sujeito seja suposto por um significante. Ao se levar em consideração sua formalização, admite-se que o efeito de significação retroativa, própria do sujeito suposto saber, exige a presença de um conjunto mínimo de significantes (Lacan, 2003, p. 253).

            S ––––––––––––––––––––> Sq

            s(S1, S2, S3 ... Sn)

É suficiente que algo, S, seja distinguido como significante, ou seja, como um significante qualquer – que se escreve Sq – para que se pergunte o que ele quer dizer. E o que ele quer dizer escreve-se sob a forma de um “x” ou de um ponto de interrogação. Assim, a pergunta – o que isto quer dizer? – é uma demanda de outro significante que exprime o que quer dizer o significante anterior. Em outros termos, o segundo tempo desta operação mínima é que este significante passa a ser correlativo de um segundo, que é o que, supostamente, permitirá saber o que quer dizer o significante anterior. Enfim, essa significação nova que se obtém, por meio dessa operação temporal de retroação de um termo sobre o outro, escreve-se com um s minúsculo.

 
Neo-transferências

Com relação ao caso clínico relatado, afirmei que a experiência do sujeito com a palavra padece do relativismo que denota a sua natureza supérflua, muitas vezes, esvaziada de sentido e impotente para lidar com o impossível a suportar. Na verdade, o próprio sujeito se lança nessa interrogação: “as coisas ditas aqui, mesmo se superficiais, têm importância?”. Uma outra maneira de cernir essa mesma dificuldade se traduz pela força da operação narrativa do presentismo: “as coisas da infância afetam a vida adulta?” Ou seja, o passado não constitui nenhuma fonte significante que torna possível acionar a demanda de outro significante, sustentáculo essencial da operação transferencial. É possível afirmar que a função da palavra, nesse caso, é um indício de que o avanço do trabalho analítico não ocorrerá se o analista permanecer à espera da emergência do sujeito suposto saber.

Creio que o funcionamento da tríade clássica sintoma-demanda-transferência, própria da clínica do retorno do recalcado, se mostra em questão em muitos casos de jovens que procuram o tratamento analítico. As novas configurações da transferência não se assentam do lado do sujeito dividido, ao contrário, elas parecem se colocar em relação à proliferação da função de S1, em uma época em que o sintoma do tipo anoréxico ou toxicomaníaco não constituí, no sentido clássico do termo, formações do inconsciente. Vale dizer que esses sintomas não se apresentam por meio do regime significante ordenado pelo Nome-do-Pai, mas, sim, pelas práticas pulsionais que se evidenciam como técnicas vitais de gozo que contrastam com o sujeito do inconsciente. Se o sintoma aparece mais do lado de S1, ele dificilmente poderá se articular à demanda, pois, esta tem seu fundamento na privação de ser do sujeito, ou seja, na sua divisão. Do mesmo modo que nossa época experimenta os limites da interpretação semântica, a condução da transferência gera também questionamentos quanto ao seu manejo. A estratégia transferencial deixa de estar inteiramente referida à articulação entre o sintoma e a demanda e, portanto, não pode se restringir à demanda de significação dirigida ao saber inconsciente. É, nesse sentido, que no caso dos novos tipos de sintoma, ela se configura como articulada ao traço identificatório ou ao objeto de gozo preferencial do sujeito.

Ao personificar os novos modos e estilos de vida, os jovens estão em boas condições para exprimir, em seus sintomas e inquietações, o desencanto com o mundo em que prevalece a degradação dos significantes-mestres capazes de velar a verdade da “não-relação sexual”. Não basta diagnosticar a inexistência do Outro, é preciso admitir que a entrada triunfante do objeto a na cena do mundo trouxe consigo a contaminação, cada vez mais extensiva, do real da “não-relação” entre os sexos. Para Miller, a invenção da prática lacaniana que se mostra orientada pelo último ensino de Lacan deve tomar como ponto de partida fundamental o princípio do “isso falha” (2005, p. 15).

Ninguém desconhece que a psicanálise foi inventada para responder ao mal-estar dos sujeitos mergulhados em uma civilização na qual a função do interdito funcionava para fazer existir a relação sexual. Na época de Freud, para fazer existir a relação sexual era necessário refrear, inibir, recalcar o gozo. De alguma maneira, a presença da psicanálise no mundo estimulou a via do que se manifesta, nos dias de hoje, como sendo a degradação do discurso do mestre, cujos indícios presentificam os novos estilos de vida que decorrem da relação devastada do homem com a natureza, da dissolução do ideal matrimonial, da dispersão galopante da estrutura familiar, dos remanejamentos múltiplos sobre o corpo e de muitos outros. Para Miller, se a prática freudiana antecipou a ascensão do objeto pequeno a ao zênite social e contribuiu para instalá-lo como tal, a prática lacaniana tem a ver com as conseqüências desse sucesso sensacional (Miller, 2005, p. 13). Esse sucesso se repercute na substituição do discurso do mestre pela emergência de um novo real do qual testemunha o discurso da civilização hipermoderna. Isto quer dizer que a prática lacaniana não opera segundo o princípio de que ela se constitui como o avesso do discurso do mestre. A presença do ato analítico na contemporaneidade exige uma mudança de paradigma clínico, sobretudo, no âmbito da transferência, na medida que seu exercício passa a ser correlativo da dimensão do real que falha incessantemente. Com isto quero dizer que a prática lacaniana deve instruir-se, no terreno em que o impossível e as falhas no real se estendem de um modo que intensificam a derrisão que não poupa nem a psicanálise. Enfim, cabe a pergunta: que lugar, para o sujeito suposto saber em um mundo que, diante da presença desenfreada do “isso falha” (id., 2005, p. 13), força o sujeito a responder com ficções que se fabricam com a derrisão do saber?

 

 

Notas

  1. A idéia do “presentismo” aparece, para esse autor, como a repercussão da ascensão vertiginosa de um presente onipresente. Isso significa que a experiência do tempo, para as diversas épocas, são múltiplas. Para a psicanálise, interessa enfatizar que se cada sociedade mantém uma relação particular com o passado, o presente e o futuro, isto tem conseqüências para a “função (Hartog, 2003). Portanto, é preciso reconhecer que o chamado fenômento do “presentismo” impõe à prática do analista novas modalidades da narrativa que, certamente,  repercute sobre a própria concepção da transferência.  

  2. O termo “desbussolamento”, apareceu na intervenção de Jorge Forbes, no IV Encontro da AMP, com o intuito de precisar as manifestações sintomáticas da pós-modernidade (Lipovetsky & Charles, 2004).

 

Referências Bibliográficas

HARTOG, F. Régimes d’historicité: présentism et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003.

LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

LIPOVETSKY, G; CHARLES, S. Les temps hypermodernes. Paris: Grasset, 2004.

MILLER, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: EBP-RJ, 2000.

__________. Un effort de poésie. Orientation lacanienne, Département de Psychanalyse. Paris, leçon du 5 mars 2003, cours inédit.

__________. Uma fantasia. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo: Edições Eólia, n. 42, p. 7-18, fev. 2005.

 

Texto recebido em: 20/06/2007.

Aprovado em: 27/09/2007.