|
Deparo-me,
com freqüência, com material clínico que me faz interrogar a
aplicabilidade da psicanálise aos mais diversos estilos de vida
contemporâneos. Pergunto-me, por exemplo, se o chamado
“presentismo”1 (Hartog,
2003), com suas operações narrativas próprias, não acarreta
conseqüências pouco favoráveis para a instalação do laço
transferencial. Chamo a atenção para o fato de que o
historiador atento aos estilos de vida atuais, revela o
crescimento rápido da categoria de “presente” e, mesmo, o
que se impõe como a evidência de um presente invasivo, maciço
e onipresente. Isto significa que a experiência que as
distintas épocas históricas mantêm com o tempo não é única
e nem homogênea. A formidável transformação que se opera
sobre a cena das sociedades tecnificadas e opulentas – com a
ênfase, cada vez mais acentuada, no mercado, na eficácia técnica,
e nas mais diversas formas de consumo – promoveu a erradicação
das grandes utopias futuristas, ainda presentes em um passado
recente.
Os
novos estilos de vida que se caracterizam pelo culto do excesso
hedonista não provocam apenas um crescimento do individualismo,
mas uma dissolução das esperanças em um futuro promissor, com
uma visível diminuição das ideais éticos, sócio-culturais e
políticos. O entusiasmo com o progresso histórico dá lugar
aos horizontes em que prevalece uma experiência com o tempo
dominada pela idéia de que o usufruto de um bem é sempre precário
e efêmero. Confundindo-se com a queda das construções
voluntaristas do futuro e com o triunfo concomitante das normas
consumistas centradas sobre a vida no presente, a civilização
atual assiste o advento de uma temporalidade marcada pelo
primado do “aqui e agora”. O “culto da utilidade direta”
(Miller, 2003),
como se exprime Edgar Alain Poe, suplantou a glorificação dos
fins e dos ideais. Menos o futuro é previsível, mais é
preciso ser móvel, flexível, reativo, sempre pronto para
mudar. A mitologia da ruptura radical - quase sempre associada
ao idealismo revolucionário – foi substituída pela cultura
do “mais rápido” e do “sempre mais”: mais
flexibilidade, performance e inovação.
Neo-inibições
e desbussolamentos2
As
particularidades do caso que favorecem a discussão sobre a
interferência do presentismo na própria direção do
tratamento, particularmente, sobre as condições de emergência
da transferência dos jovens em análise, me foi relatado
durante uma supervisão clínica. Trata-se de um rapaz de 23
anos que, antes de procurar o tratamento analítico, passou por
um psiquiatra, amigo e colega de seu pai, queixando-se de
timidez e dificuldade para expor, em sala de aula, os trabalhos
escolares solicitados. Após recebê-lo, por algumas vezes, o
psiquiatra prescreveu um anti-depressivo. Diante de sua fala que
o remédio não estava adiantando nada, o psiquiatra reagiu,
dizendo-lhe: “vamos, então, parar com esse veneno e você vai
procurar uma psicanalista.”
Depois
de alguma hesitação, ele chega à análise acompanhado de sua
etiqueta diagnóstica, fato que, aliás, é bastante
corriqueiro, nos dias de hoje. Portanto, o início do tratamento
coincide com a fala de que é portador de uma “espécie de
fobia social”. Ou seja, o diagnóstico não é mais um assunto
circunscrito ao saber médico, ele é, cada vez mais, objeto de
uma demanda do paciente. É preciso considerar que, nesse caso,
mais do que um diagnóstico, o uso da expressão “fobia
social” assume o valor de um significante-mestre (S1)
que visa tornar legível o aspecto angustiante de suas inibições
e desbussolamentos, característicos da chamada hipermodernidade
(Lipovetski & Charles,
2004) Nas primeiras sessões, retoma, com um maior detalhamento
as suas inibições e, principalmente, o quanto se sente mal nos
momentos em que é preciso expor publicamente os afazeres
escolares. Observa-se que ele apresenta grande dificuldade para
dar início às sessões e que se mostra bastante constrangido
quando constata que se espera dele a iniciativa da fala. O silêncio
do analista constitui, assim, um recrudescimento dessas inibições
com a fala.
Que
fazer? O analista decide, então, formular-lhe perguntas, às
quais ele próprio se mostra receptivo. Queixa-se muito. No âmbito
da sua vida amorosa, a timidez o impede de aproximar das moças
que o interessam e, das outras, quando se aproxima, enxerga mil
defeitos e põe fim a esses relacionamentos. Com relação àquelas
que deseja, reclama que quase sempre falta-lhe coragem.
Sente-se, com um grande vazio. “Talvez, se tivesse alguém ao
meu lado, tudo fosse diferente. Ou talvez, não!” Além de não
se entusiasmar com o curso universitário que faz, não consegue
imaginar nenhum outro que lhe interesse. Aprecia bastante a música,
porém, não anda nada satisfeito com seus colegas de banda. Não
parece antever ver nenhum caminho viável para sua vida.
Quanto
à família, afirma que é muito tranqüila, ainda que o
relacionamento entre eles seja também superficial. Sente-se
pressionado pela sociedade para levar adiante o seu curso
superior, ganhar dinheiro e namorar. O peso que assume, para
ele, a formação universitária, a inserção na vida
profissional, e, sobretudo, o relacionamento familiar e afetivo
é um indício explícito das dificuldades do sujeito em
consentir com as exigências da vida civilizada. A cada sessão
repete suas mesmas queixas introduzindo, aos poucos, novos
ingredientes à sua insatisfação com a vida. É o caso do uso
de maconha que, desde os treze anos, se faz presente. No início,
experimentava bem estar, porém agora torna-se mais tímido e
angustiado. Chegou a ser preso por diversas vezes e já passou
por muitas situações difíceis. Diante disto, decidiu não se
expor. Evita fumar na rua, entretanto, em sua casa, faz uso da
droga todas as noites. Ainda que os pais não façam nenhuma
objeção mais incisiva, advertem: “Olha o que você está
fazendo com a sua vida. Onde você vai chegar com isso?”
A derrisão do
saber
Antes
de procurar o tratamento, assinala que era, sucessivamente,
reprovado em pelo menos uma disciplina de cada período do seu
curso universitário. Argumenta que o pai nada questionava. Sem
maiores discussões, ele efetuava o pagamento para refazer a
disciplina em que obtivera reprovação. Ao mesmo tempo em que,
pouco a pouco, suas queixas emergem, ele introduz
questionamentos e comentários diversos a respeito da pessoa do
analista e do próprio tratamento. Indaga, assim, se o analista
é casado, se tem filhos e onde mora. Reafirma que, para ele, é
bastante difícil falar das coisas íntimas para uma pessoa
completamente estranha e de quem nada sabe sobre sua vida. Ao
dar continuidade aos questionamentos dirigidos ao analista,
indaga: “O que sou em relação a ele? Um paciente? Um doente
mental? Um neurótico? Quanto tempo dura a sessão? Quando vou
deitar nessa caminha? Porque você escolheu ser psicanalista e não
trabalhar com uma terapia? Que curso se faz para ser
analista?”
De
tempos em tempos manifesta sentimento de preguiça e desânimo
quanto ao seu comparecimento às sessões, pois, segundo ele,
“a análise não é uma prioridade”. Justifica-se com o
argumento de que pensa sempre em termos de “custo-benefício”:
“deixa de estudar para ir à análise, cansa-se muito no
trajeto do ônibus e, finalmente, gasta o dinheiro que poderia
usar com alguma diversão”. A mentalidade utilitarista do
“custo-benefício” e do “mais-rápido”, própria do “presentismo”,
retorna, uma vez mais, a propósito da continuidade do
tratamento. Coloca-se em dúvida se não deveria tomar um ansiolítico
ou, ainda, se o psiquiatra deveria ter tirado o anti-depressivo
sem dar um jeito de dosar a serotonina que ele tem no cérebro.
“Quem sabe, haveria uma parte do cérebro responsável pela
timidez? Não deveria estar em um neurologista e não em uma
analista? Não é possível ter um tratamento mais rápido, tal
como pude ler, na internet, sobre a fobia social?”
Como se
vê, as queixas e as críticas que dão o colorido desse quadro
de desbussolamento do sujeito traduzem o seu descrédito na função
da palavra, função essencial à constituição do sujeito
suposto saber. No entanto, é preciso levar em conta que, apesar
dessa disposição queixosa, própria da dúvida obsessiva em
que o envoltório formal do sintoma se tece, ele não deixa de
freqüentar o consultório de seu analista. É ele mesmo que
questiona: “Por que venho à análise? Ninguém me obriga,
assim devo vir porque quero”.
Na
medida em que o trabalho analítico avança, as dúvidas e
impasses próprios da configuração sintomática desse sujeito
se complexificam. Seria apressado dizer que se trata apenas de
um niilismo exacerbado com os rumos da vida ou, ainda, um mero
ceticismo com relação ao tratamento. O que me parece claro é
que, para esse sujeito, o saber assume o valor de um puro
semblante que torna relativa toda e qualquer apreensão do real.
A prova mais evidente desse relativismo com o saber é a
maneira, bastante perspicaz, como ele interroga o lugar que o
analista ocupa diante dos impasses de sua existência.
Questiono, inclusive, se não é a própria articulação da
demanda de tratamento que passa a ter lugar nas indagações
surpreendentes do sujeito: “Você deve ter suas opiniões
pessoais e deve ser muito difícil não levá-las em conta.
Manter a ética deve ser muito difícil. Você deve saber mais
coisas sobre mim do que eu mesmo. As coisas da infância afetam
a vida adulta? As coisas ditas aqui, mesmo se superficiais, têm
importância?”
A
explicitação das suas tendências sintomáticas essenciais e
de sua dificuldade em formular uma demanda de tratamento não
impede que o manejo da transferência se processe em um terreno
cheio de situações sinuosas e adversas. Durante um período de
tempo significativo, logo após esse início, ele mantinha sua
recusa em assumir a regularidade do tratamento. Esquecia de
algumas sessões, desmarcava outras por motivos vários. Após
cada sessão desmarcada, entrava-se em um longo processo de
negociação a respeito da reposição da mesma. Na
segunda-feira estava cansado do fim de semana; na sexta, da
semana; às duas horas não dava tempo de almoçar direito; às
quatro, o dia era cortado ao meio. Os empecilhos iam, uma vez
mais, avolumando-se. Quando as sessões eram marcadas, sem o seu
prévio consentimento, ele ausentava-se. A cobrança das sessões
que faltava nem sempre sortia o efeito esperado. Pode-se dizer
que foi apenas com o manejo cuidadoso dessa situação adversa
que o tratamento encontrou uma abertura mais favorável para a
sua consolidação.
Em um
dos momentos mais produtivos da análise é possível apreender
uma certa expressão do sujeito da enunciação que conecta o
analista com o que constitui o fundamento de seu sintoma. Ao
queixar-se, para o analista, de que os pais já desistiram dele,
que já sabem que não há mais jeito, infere-se um instante
capital de sua enunciação: como o analista reagirá diante de
meu esforço em fazê-lo desistir de mim? Ele reagirá como meus
pais? A inexistência desses enunciados não quer dizer que não
haja, nesse momento, um ponto de subjetivação crucial para a
continuidade do tratamento. Ou seja, a emergência desse
material constitui uma indicação sobre a estratégia
transferencial a ser adotada com relação à trama dos tropeços,
desistências e falhas que se dispõem ao longo do tratamento.
Assim, quando em uma outra ocasião telefona, duas horas antes
da sessão, para dizer que queria desmarcá-la, pois estava com
preguiça, o analista responde: “de forma alguma!”. Ainda,
nesse telefonema, chega a perguntar se preguiça não era um
motivo justo. O analista replica que não e que vai esperá-lo
no horário marcado. Comparece à sessão no horário previsto.
No início, reclama que o analista “pegou pesado”, que não
tem o que falar, porém, fala a sessão inteira.
Presentismo e sujeito suposto saber
É
evidente que não é apenas o componente inibitório presente
nesse sujeito que dificulta o progresso do trabalho analítico.
A meu ver, há uma questão relativa à incidência da operação
narrativa do “presentismo” sobre o modo em que se estabelece
o laço transferencial. É sabido que o sujeito suposto saber
exige a extração de uma configuração particular da cadeia
significante que remete às características próprias do
chamado sujeito cartesiano. O sujeito cartesiano se define pela
relação que mantém com a cadeia significante visto que, para
ele, esta última toma a forma de uma cadeia dedutiva, cujos
elementos se articulam entre si por uma causalidade e uma
temporalidade própria. Se a experiência analítica viabiliza a
introdução do inconsciente como um sujeito dotado de uma
matriz de combinações significantes calculáveis, ela introduz
também uma temporalidade entre esses elementos que é
inteiramente singular.
Essa
temporalidade própria da cadeia significante recebeu o nome de
efeito sujeito suposto saber tendo em vista que é ele que
confere significação à relação causal entre os vários
elementos da cadeia significante. Miller explicita essa
temporalidade da cadeia significante por meio do “paradoxo do
futuro contingente” que, de modo resumido, passo a aplicá-lo,
ao funcionamento do sujeito suposto saber (Miller,
2000, p. 25). Se o sujeito se coloca no tempo Tn, um
acontecimento pode ocorrer, com ele, no tempo futuro Tn+1. Na
verdade, ele pode ocorrer ou não ocorrer.
Tn+1
Tn
–
Se ele
ocorre, se ele, de fato, aconteceu,
Tn ––––––––––––> Tn+1
então,
sempre será verdadeiro que ele ocorreu no passado. É aqui que
aparece a significação própria do sujeito suposto saber,
pois, será sempre necessário, sempre verdadeiro que ele tenha
acontecido no passado. Em outros termos, para a significação
que o sujeito confere ao acontecimento Tn+1 é impossível que o
que ocorreu no passado possa não ter acontecido. O essencial
desse paradoxo é explicar a conversão do possível em necessário,
ou seja, o fato de que o acontecimento passado possa ser,
retroativamente, significado como necessário. Portanto, em Tn,
o que ocorrerá no futuro (Tn+1) é simplesmente possível.
Assim, se em Tn+1 isso aconteceu, tornou-se efetivo, aparece a
significação dessa efetividade. É simplesmente porque
“reprojetamos” essa efetividade no sentido contrário - ou
seja, do presente em direção ao passado - que se pode dizer
que o acontecimento passado já era necessário. Em última instância,
se o acontecimento é sempre contingente – marcado por uma
abertura dos possíveis –, o sujeito suposto saber, por sua
vez, é sempre a introdução de uma significação que capta a
causalidade do acontecimento passado como necessária.
É o
caso de dizer que o “presentismo” é refratário ao sujeito
suposto saber, pois este consiste na estrutura temporal que,
retroativamente, apreende uma relação necessária entre um
acontecimento passado e o presente. Trata-se de uma relação
causal que supõe um sujeito que se capta afetado pela
materialidade significante que se constituiu no passado. É essa
articulação entre a temporalidade retroativa do passado no
presente e a cadeia significante que concerne à consideração
científica do sujeito suposto saber.
Diferentes
concepções da transferência têm conseqüências para a clínica
psicanalítica. Quando se considera, por exemplo, apenas o
aspecto da suposição de saber, corre-se o risco do trabalho
analítico encaminhar-se para a paralisia transferencial, pois,
prevalece, nela, sua vertente puramente imaginária. Tomar a
suposição de saber como uma significação que se encarna em
alguém que os demais supõem que sabe é inteiramente
insuficiente para o trabalho analítico. É por isto que não se
pode dizer que o simples fato de se fazer uma pergunta para alguém
já o constitui como sujeito suposto saber. Nesse sentido, o próprio
Lacan precisa que não se trata de que o sujeito seja suposto
saber pelos demais, senão que o sujeito seja suposto por um
significante. Ao se levar em consideração sua formalização,
admite-se que o efeito de significação retroativa, própria do
sujeito suposto saber, exige a presença de um conjunto mínimo
de significantes (Lacan,
2003, p. 253).
S
––––––––––––––––––––>
Sq
s(S1,
S2, S3 ... Sn)
É
suficiente que algo, S, seja distinguido como significante, ou
seja, como um significante qualquer – que se escreve Sq –
para que se pergunte o que ele quer dizer. E o que ele quer
dizer escreve-se sob a forma de um “x” ou de um ponto de
interrogação. Assim, a pergunta – o que isto quer dizer? –
é uma demanda de outro significante que exprime o que quer
dizer o significante anterior. Em outros termos, o segundo tempo
desta operação mínima é que este significante passa a ser
correlativo de um segundo, que é o que, supostamente, permitirá
saber o que quer dizer o significante anterior. Enfim, essa
significação nova que se obtém, por meio dessa operação
temporal de retroação de um termo sobre o outro, escreve-se
com um s minúsculo.
Neo-transferências
Com relação
ao caso clínico relatado, afirmei que a experiência do sujeito
com a palavra padece do relativismo que denota a sua natureza
supérflua, muitas vezes, esvaziada de sentido e impotente para
lidar com o impossível a suportar. Na verdade, o próprio
sujeito se lança nessa interrogação: “as coisas ditas aqui,
mesmo se superficiais, têm importância?”. Uma outra maneira
de cernir essa mesma dificuldade se traduz pela força da operação
narrativa do presentismo: “as coisas da infância afetam a
vida adulta?” Ou seja, o passado não constitui nenhuma fonte
significante que torna possível acionar a demanda de outro
significante, sustentáculo essencial da operação
transferencial. É possível afirmar que a função da palavra,
nesse caso, é um indício de que o avanço do trabalho analítico
não ocorrerá se o analista permanecer à espera da emergência
do sujeito suposto saber.
Creio
que o funcionamento da tríade clássica
sintoma-demanda-transferência, própria da clínica do retorno
do recalcado, se mostra em questão em muitos casos de jovens
que procuram o tratamento analítico. As novas configurações
da transferência não se assentam do lado do sujeito dividido,
ao contrário, elas parecem se colocar em relação à proliferação
da função de S1, em uma época em que o sintoma do
tipo anoréxico ou toxicomaníaco não constituí, no sentido clássico
do termo, formações do inconsciente. Vale dizer que esses
sintomas não se apresentam por meio do regime significante
ordenado pelo Nome-do-Pai, mas, sim, pelas práticas pulsionais
que se evidenciam como técnicas vitais de gozo que contrastam
com o sujeito do inconsciente. Se o sintoma aparece mais do lado
de S1, ele dificilmente poderá se articular à
demanda, pois, esta tem seu fundamento na privação de ser do
sujeito, ou seja, na sua divisão. Do mesmo modo que nossa época
experimenta os limites da interpretação semântica, a condução
da transferência gera também questionamentos quanto ao seu
manejo. A estratégia transferencial deixa de estar inteiramente
referida à articulação entre o sintoma e a demanda e,
portanto, não pode se restringir à demanda de significação
dirigida ao saber inconsciente. É, nesse sentido, que no caso
dos novos tipos de sintoma, ela se configura como articulada ao
traço identificatório ou ao objeto de gozo preferencial do
sujeito.
Ao
personificar os novos modos e estilos de vida, os jovens estão
em boas condições para exprimir, em seus sintomas e inquietações,
o desencanto com o mundo em que prevalece a degradação dos
significantes-mestres capazes de velar a verdade da “não-relação
sexual”. Não basta diagnosticar a inexistência do Outro, é
preciso admitir que a entrada triunfante do objeto a na
cena do mundo trouxe consigo a contaminação, cada vez mais
extensiva, do real da “não-relação” entre os sexos. Para
Miller, a invenção da prática lacaniana que se mostra
orientada pelo último ensino de Lacan deve tomar como ponto de
partida fundamental o princípio do “isso falha” (2005, p.
15).
Ninguém
desconhece que a psicanálise foi inventada para responder ao
mal-estar dos sujeitos mergulhados em uma civilização na qual
a função do interdito funcionava para fazer existir a relação
sexual. Na época de Freud, para fazer existir a relação
sexual era necessário refrear, inibir, recalcar o gozo. De
alguma maneira, a presença da psicanálise no mundo estimulou a
via do que se manifesta, nos dias de hoje, como sendo a degradação
do discurso do mestre, cujos indícios presentificam os novos
estilos de vida que decorrem da relação devastada do homem com
a natureza, da dissolução do ideal matrimonial, da dispersão
galopante da estrutura familiar, dos remanejamentos múltiplos
sobre o corpo e de muitos outros. Para Miller, se a prática
freudiana antecipou a ascensão do objeto pequeno a ao
zênite social e contribuiu para instalá-lo como tal, a prática
lacaniana tem a ver com as conseqüências desse sucesso
sensacional (Miller,
2005, p. 13). Esse sucesso se repercute na substituição do
discurso do mestre pela emergência de um novo real do qual
testemunha o discurso da civilização hipermoderna. Isto quer
dizer que a prática lacaniana não opera segundo o princípio
de que ela se constitui como o avesso do discurso do mestre. A
presença do ato analítico na contemporaneidade exige uma mudança
de paradigma clínico, sobretudo, no âmbito da transferência,
na medida que seu exercício passa a ser correlativo da dimensão
do real que falha incessantemente. Com isto quero dizer que a prática
lacaniana deve instruir-se, no terreno em que o impossível e as
falhas no real se estendem de um modo que intensificam a derrisão
que não poupa nem a psicanálise. Enfim, cabe a pergunta: que
lugar, para o sujeito suposto saber em um mundo que, diante da
presença desenfreada do “isso falha” (id., 2005, p. 13),
força o sujeito a responder com ficções que se fabricam com a
derrisão do saber?
Notas
-
A idéia do “presentismo” aparece, para esse
autor, como a repercussão da ascensão vertiginosa de um
presente onipresente. Isso significa que a experiência do
tempo, para as diversas épocas, são múltiplas. Para a
psicanálise, interessa enfatizar que se cada sociedade mantém
uma relação particular com o passado, o presente e o
futuro, isto tem conseqüências para a “função (Hartog, 2003). Portanto, é preciso reconhecer que o
chamado fenômento do “presentismo” impõe à prática
do analista novas modalidades da narrativa que, certamente,
repercute sobre a própria concepção da transferência.
-
O termo “desbussolamento”, apareceu na intervenção
de Jorge Forbes, no IV Encontro da AMP, com o intuito de
precisar as manifestações sintomáticas da pós-modernidade (Lipovetsky
& Charles, 2004).
Referências
Bibliográficas
HARTOG,
F. Régimes d’historicité: présentism et expériences du
temps. Paris: Seuil, 2003.
LACAN,
J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da
Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003.
LIPOVETSKY,
G; CHARLES, S. Les temps hypermodernes. Paris:
Grasset, 2004.
MILLER,
J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: EBP-RJ, 2000.
__________.
Un effort de poésie. Orientation lacanienne, Département
de Psychanalyse. Paris, leçon du 5 mars 2003, cours inédit.
__________.
Uma fantasia. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira
Internacional de Psicanálise, São Paulo: Edições Eólia, n.
42, p. 7-18, fev. 2005.
Texto
recebido em: 20/06/2007.
Aprovado em:
27/09/2007.
|