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O
momento do fechamento de mais um número de aSEPHallus
é sempre uma grande satisfação. Sem a intensa dedicação de
Rosa Guedes e Fabiana Mendes, essa teria sido uma tarefa
interminável. A elas, meus agradecimentos.
O
tema desse número surgiu ao longo da leitura do Seminário
XVI, de Jacques Lacan, De
um Outro ao outro. Cada um dos artigos escolhidos aborda a
especificidade do Outro da psicanálise. O saber do psicanalista
desliza entre as estreitas margens do Deus da religião e do
Deus da ciência. Lacan a define assim: “a essência da teoria
psicanalítica é um discurso sem palavras” (1968-69, p. 11),
evocando, simultaneamente, o saber altamente formalizado da ciência
e o saber revelado da religião.
Pierre-Gilles
Guéguen, sobre o Seminário
XVI, desenvolve um comentário acerca do deslocamento desde
Descartes até Pascal, que vai permitir que Lacan redefina o seu
conceito de Outro. O Outro não é somente incompleto, um
sujeito suposto saber, como em Descartes. O Outro de Pascal é
inconsistente, está em todo lugar e em lugar nenhum. Ele não
existe e, sobre isto, cada um precisa
fazer a sua aposta. É a aposta, o ato do sujeito, sua fé,
que faz existir o Outro e não o saber.
O
tema da responsabilidade pelo gozo, mais além do saber, é
abordado por Diana Paulosky. Mostra que, se certos tipos de laços
são normais porque são próprios de uma época, isso não
justifica que o sujeito possa isentar-se do peso da
responsabilidade pela escolha de um tipo de laço em detrimento
de outro. Os laços mais universais ou típicos dependem, para
constituir-se, de uma escolha particular de objeto, onde se
localiza a responsabilidade que cada sujeito tem sobre seu gozo.
Saber
e crença, ou responsabilidade subjetiva, não podem ser
dissociados. Rosa Guedes Lopes conclui, em sua tese de
doutorado, que é o desejo do analista que sustenta esse enlaçamento.
A noção de desejo do analista, introduzida por Lacan em 1958,
depende de dois axiomas. O primeiro define o sujeito da psicanálise
como equivalente ao sujeito da ciência. O segundo define o
fazer do psicanalista como o de reintroduzir o Nome-do-Pai na
consideração científica. A autora apresenta sua tese de que o
discurso do analista é a formalização lógica e resumida do
desejo do analista. Além disso, mostra que o discurso do
analista atualiza o debate de Freud com a ciência e formaliza a
ação do psicanalista no mundo. Conclui que o aspecto mais
essencial ao debate da psicanálise com a ciência resulta da
introdução do termo desejo do analista.
François
Leguil, sobre as origens do desejo do analista, recorda que,
muito antes da invenção da psicanálise, Freud já advertia
seus colegas de que o abandono, clínico e epistemológico, da
consideração pelos poderes da palavra, custaria muito caro no
futuro. Embora ele tenha tratado relativamente pouco da medicina
propriamente dita, endereçou-se muitas vezes aos médicos. O
autor lança uma tese original e muito profícua. Acredita que
se pode, talvez, até demonstrar que o verdadeiro médico para
Freud é o psicanalista.
É
precisamente isso que podemos depreender do desafio lançado por
Jorge Forbes às pesquisas em genética. Os avanços nesse campo
permitem conhecer e, por conseguinte, comunicar a um paciente um
prognóstico científico anunciando-lhe uma doença futura. O
prognóstico antecipa o sofrimento e a hipótese ousada do autor
é que ele facilita, por esta antecipação, o progresso da doença
anunciada. O desejo do analista revela, então, sua potência.
Perante as famílias dos futuros doentes, o analista interpreta
a resignação e a compaixão menos como virtudes religiosas e
muito mais como pecado, do vício, da acomodação indiferente
que congela a situação em um dueto dor-piedade. O ato do
analista consiste desautorizar o sofrimento padronizado.
Que
propriedades têm a interpretação do analista? Como é que
essa virtude se transmite? Antônio Márcio Teixeira mostra que
a interpretação psicanalítica é necessária, pois é
restrita a uma situação clínica singular e não está, por
isso, aberta a todos os sentidos. Se, ao final, uma análise
deve produzir um analista, pode-se falar de uma transmissão da
virtude interpretativa? Em 1964, Lacan definiu a virtude como
acesso a uma verdade pontual, diferente da verdade científica,
por ser anterior à constituição do saber. A verdade que a
interpretação analítica deve revelar é o objeto a,
causa do desejo, junção do verdadeiro com o real, que Lacan
identifica ao ser do sujeito. O dizer da interpretação pode
ser ensinado porque expõe a articulação do sujeito, efeito do
dito, à estrutura da linguagem em que ele se significa. O mistério
da relação necessária entre saber e responsabilidade é essa
junção entre o verdadeiro e o real, o ser de objeto e o
sujeito.
Esse
ponto onde se dá essa junção é justamente o fantasma. Em seu
artigo, Roberto Calazans,
Fernanda Dupin Gaspar e Tiago Iwasawa Neves pretendem
apontar como a disciplina auto-intitulada neuropsicanálise,
devido ao seu viés cientificista, não consegue articular um
conceito importante para a teoria e a clínica psicanalítica: o
de fantasma. As definições propostas pelos neuropsicanalistas
não integram o conceito de sexualidade em seus textos. É a
partir da noção psicanalítica da sexualidade que somos
necessariamente levados a pensar o fantasma, principalmente, no
que se refere ao que este conceito aponta, tanto para o sujeito,
quanto para a definição de campo de ação da psicanálise.
Uma vez que se trata de um campo ético, não legitima a redução
cientificista proposta pela dita neuropsicanálise.
A
elisão pelo discurso pseudocientífico das organizações de saúde
mental, da dimensão eminentemente ética do fantasma – onde
desejo e gozo, saber e crença
se depositam para um sujeito – é o tema do artigo de
Sabrina Camargo. A autora questiona os efeitos sobre o sujeito
do mais recente guia sobre a depressão, publicado e divulgado
nos meios de comunicação da França. Fala-se de um aumento do
número de casos de deprimidos e, medicamentos são prescritos
em larga escala. O discurso oficial, em nome da ciência,
contribui para difundir essa nova forma de mal-estar atual. Numa
era dominada pela ciência tecnológica, quando o saber se
dissocia progressivamente da crença, aumenta a experiência de
desamparo dos sujeitos. A aposta da autora é reveladora do
desejo do analista. Ela conclui que através da palavra, a
psicanálise pode operar sobre o sujeito, levando-o a recuperar
o laço social, em sua dimensão simbólica.
Na
contramão do discurso oficial que elide a causalidade do
sujeito, Jorge Luís Gonçalves dos Santos lembra que a operação
significante dos sonhos indica a causa que compõe a estrutura
do discurso psicanalítico. Destaca o paradoxo de que essa causa
só pode ser definida como condição deste discurso no momento
mesmo em que se dá o advento da ciência. A ciência inaugura o
sujeito ao excluí-lo do procedimento científico. A verdade que
escapa ao saber científico coloca-o permanentemente em questão.
Os sonhos de angústia testemunham que a causa do desejo é um
objeto logicamente impossível, irredutível aos objetos
conhecidos no mundo. O trabalho desse autor, retomando a dimensão
ética do sonho, vem somar-se às denúncias de que o discurso
da ciência contemporânea desconhece a singularidade do saber e
da responsabilidade em jogo no sofrimento subjetivo.
Maria
Angélia Teixeira analisa a experiência subjetiva da violência
na contemporaneidade, revelando sua dependência do discurso do
capitalista. Baseada em sua tese de doutorado, toma a violência
contemporânea como um índice da mutação subjetiva produzida
pelo discurso capitalista. O sujeito produzido pelo discurso do
capitalismo foi esvaziado de seu saber e de sua responsabilidade
singular. A autora pergunta-se sobre o poder de intervenção do
discurso psicanalítico nas novas formas da violência, uma vez
que extravasam
os limites do mal-estar na civilização. A violência produzida
pelo discurso da tecnociência capitalista nos exigiria, como
ela propõe, uma nova leitura da causalidade em jogo no
desarranjo dos laços sociais. Neste artigo, somos convocados a
responder a contundente questão: quando o saber e o gozo não
se enodam no fantasma singular, com que estratégias o desejo do
analista e seu discurso podem ainda operar?
Jésus
Santiago prolonga a interrogação suscitada pelo artigo
precedente. Sabemos que um dos efeitos mais sensíveis do
discurso do capitalismo é o fenômeno subjetivo que o autor
nomeia como presentismo. Esse fenômeno é um dos modos pelos
quais podemos captar a condensação do tempo num eterno
presente. O enlace fantasmático, singular, entre saber e crença,
sobreviveria a essa redução temporal? O chamado “presentismo”,
com suas operações narrativas próprias, não acarretaria
conseqüências pouco favoráveis para a instalação do laço
transferencial? O autor observa que o historiador, atento aos
estilos de vida atuais, verifica o crescimento de uma categoria
do presente invasiva, maciça e onipresente. Isto mostra
que a experiência do tempo, nas distintas épocas históricas,
não é única e nem homogênea. A
formidável transformação que se opera sobre a cena das
sociedades tecnificadas e opulentas – com a ênfase, cada vez
mais acentuada, no mercado, na eficácia técnica e nas mais
diversas formas de consumo – promoveu a erradicação das
grandes utopias futuristas, ainda presentes em um passado
recente.
A
redução do Outro - que em nosso passado religioso tinha a
forma do ideal – ao outro – que em nosso presente se
condensa nas formas metonímicas do objeto de consumo - nos
desafia a renovar os poderes da palavra e do ato do analista. Parafraseando
Jacques-Alain Miller, à medida que os avanços do capitalismo
nos obrigam a abrir mão da hipótese Nome-do-Pai, do sujeito
suposto saber, de Deus, talvez, mais do que nunca, não possamos
mais prescindir do desejo do analista.
O
tema do próximo congresso, que vai se dar em Buenos Aires em
abril, tem relação
com o tema desse numero de aSEPHallus:
os objetos a na experiência
analítica. Em atualidades, eu comento uma pontuação de
Jacques-Alain Miller, quando nos propôs esse tema. Em meu
pequeno texto, trato desse pequeno excerto: “E
falaremos também do analista. Se o analista pode ser assimilado
ao objeto a é na
qualidade de causa de uma análise e por ele ter revogado o
desconhecimento do objeto a,
no caso, o desconhecimento de seu ato”.1
Nota
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Ref.:
Miller, J.-A. Os objetos a
na experiência analítica. In: Opção
Lacaniana, n. 46. São Paulo: Eólia, 2007, p. 30-34.
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