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 A IMPORTÂNCIA DO PENSAMENTO DE KOYRÉ PARA A ORIENTAÇÃO LACANIANA

 



 

Fabiana Mendes Pinheiro de Souza
Graduada em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ
fabmps@gmail.com


Resenha do Livro:

Koyré, A. (1973). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Ed. Forense universitária, 1991.

 

 

Alexandre Koyré (1892-1964) foi um importante filósofo francês de origem russa. Dedicou o essencial de seu trabalho como historiador do pensamento científico, isto é, da gênese dos grandes princípios da ciência moderna. Seu pensamento encontra-se vivamente presente na obra de Lacan, que o conheceu através de Kojève, substituto de Koyré entre os anos de 1933 e 1939 nos cursos realizados na École Pratique des Hautes Études de Paris. O axioma lacaniano sobre o sujeito da psicanálise – “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (1998, p. 873) –, que equaciona o sujeito da psicanálise ao sujeito oriundo do advento da ciência moderna, é tributário da tese de Koyré sobre a existência de uma descontinuidade entre o mundo Antigo e o moderno.
Para Koyré, o nascimento da física moderna marca uma revolução científica. Trata-se, portanto, de uma concepção descontinuísta da história das ciências que supõe uma radical transformação das bases metafísicas sobre as quais a física repousava. Koyré teoriza a existência de um corte entre o mundo da Idade Média e o mundo moderno. Ele mostra como o advento da ciência moderna interrogou e expulsou do campo do conhecimento humano o sentido religioso e todo o saber oriundo da tradição. A religião e a tradição sustentavam este campo na Idade Média.
O pensamento da Renascença foi o elemento que permitiu a passagem do mundo medieval ao moderno. Ele evidencia a progressiva substituição do teocentrismo medieval pelo ponto de vista humano e a substituição dos problemas metafísico e religioso pelo problema moral. Segundo o autor, o pensamento renascentista ainda não retrata o nascimento do pensamento moderno, mas é a expressão do fato de que “o espírito da idade média” encontrava-se à beira do esgotamento (KOYRÉ, 1991, p.18). Os pensadores da Renascença e da pré-renascença que melhor representam esta passagem são Petrarca, Maquiavel, Nicolau de Cusa e Cesalpino. Eles mostram os diferentes aspectos dessa revolução que marca o fim da Idade Média. Maquiavel é quem a expressa melhor. Com ele, a Idade Média está morta. Nenhum de seus problemas - Deus, salvação, relações entre o mundo dos vivos e o além, justiça, fundamento divino do poder - existe para Maquiavel. Só há uma realidade: a do Estado; um fato: o poder; e um problema: como afirmar e conservar o poder no Estado. Segundo Koyré, a obra de Maquiavel é sustentada pela razão. Ela funda o pensamento moderno. Nele, a razão é a condição do sujeito e do mundo.
Nesta coletânea póstuma de artigos, Koyré demonstra como a retomada da herança grega - via Platão e Aristóteles - à luz da teologia cristã constituiu o solo do pensamento medieval no qual emergiu a ciência moderna.
Essa retomada se dá sob a existência de um único Deus. Para Koyré, as concepções cosmológicas nos levam à Grécia, palco do surgimento da oposição do homem ao cosmo, que redundou na desumanização deste (1991, p. 81). O advento da ciência moderna retirou Terra do centro do cosmo. A dissolução do cosmo foi a revolução mais profunda realizada ou sofrida pelo espírito humano desde a invenção deste pelos gregos. Ela significa a destruição da idéia de um mundo de estrutura finita, hierarquicamente ordenado, qualitativamente diferenciado do ponto de vista ontológico. Essa idéia é substituída pela idéia de um universo aberto, indefinido e infinito, unificado e governado pelas mesmas leis universais, um universo no qual todas as coisas pertencem ao mesmo nível do Ser, contrariamente à concepção tradicional que distinguia e opunha os dois mundos do Céu e da Terra.
Na perspectiva de Koyré, a geometrização do espaço e a expansão infinita do universo são as premissas fundamentais da revolução científica do século XVII, isto é, da fundação da ciência moderna (1991, p. 53), que se dá com Descartes. Este passo começou com Galileu, que deu corpo ao novo modo de operação da ciência. Sua obsessão era a “redução do real ao geométrico” (IBID., p. 52), ou seja, a ultrapassagem da realidade sensível pela construção de leis matemáticas que ofereçam uma inteligibilidade nova aos fenômenos. O mundo real da experiência cotidiana é substituído por um mundo geométrico. Segundo Koyré, trata-se de “explicar o real pelo impossível” (IBID., p. 84). A mentalidade moderna nasce em oposição à mentalidade “natural” renascentista, definida pela fórmula “tudo é possível” (IBID., p. 48). Definir o real como impossível implica questionar o campo da verdade e de sua garantia sustentada por Deus enquanto único referente. É o que Descartes torna explícito com a introdução do cogito.
Para Milner (1996), a geometria de Galileu e a aplicação da dúvida metódica por Descartes tiveram como conseqüência a produção de objetos desprovidos das qualidades sensíveis. O próprio sujeito, reduzido à equação “penso, logo sou”, se torna um sujeito sem qualidades. Ao questionar o campo da verdade, a dúvida metódica introduz uma falta no campo do saber, que fica então reduzido a proposições matemáticas.
A psicanálise foi inaugurada como um campo de investigação sobre o que particulariza o sujeito e não sobre o que o universaliza. Mas a psicanálise como prática e o inconsciente enquanto descoberta só puderam ter lugar no mundo com o advento da ciência moderna (LACAN, 1965, p. 871). Segundo, Milner (1996, p. 54), o triunfo do universo moderno sobre o mundo Antigo corresponde a dizer que o inconsciente prevaleceu inclusive sobre Deus.
O ponto de corte existente entre o mundo antigo e o moderno, tese de Koyré sobre o advento da ciência moderna, é originalmente constitutivo do sujeito da ciência, sujeito idêntico à equação “penso, sou”, que Milner (1996) nomeou como sujeito sem qualidades. No entanto, este mesmo ponto também constitui o sujeito do inconsciente. Freud (1900, p. 651) conceituou o inconsciente como a verdadeira realidade psíquica e demonstrou que ela se constitui como defesa subjetiva ao encontro do sujeito com uma realidade traumática - a castração da mãe. A constituição subjetiva é sintomática.
A realidade da castração, insuportável, provoca uma divisão no ego (FREUD, 1940 [1938]). Como conseqüência, tornam-se presentes duas atitudes psíquicas concomitantes: uma atitude normal, que leva em conta a realidade da castração, e outra, que a rejeita. As manifestações do inconsciente expressam o tratamento (recalque, rejeição e desmentido) dado ao conflito que se instala a partir daí. O inconsciente freudiano subverte a lógica cartesiana porque não permite a ilusão de equacionar o ser ao pensamento e, com isso, constituir um sistema onde a verdade se fecha. O inconsciente é o campo resistente às certezas porque ele prova que a existência não se reduz ao ego e que há pensamentos fora da consciência. O estatuto do sujeito é o da Spaltung. É por isso que Lacan definiu o sujeito do inconsciente como aquele que pensa onde não é e é onde não pensa (COELHO DOS SANTOS, 2001, p. 138-139).
Lacan (1998, p. 869-70), em “A ciência e a verdade”, afirma que a ciência moderna advém de uma mutação decisiva no campo científico. Esta mutação se refere ao tratamento do real, que passa a ser recortado pela linguagem matemática. Se não há real fora do campo da linguagem, então toda realidade é uma criação. Portanto o sujeito se encontra dividido entre o saber que a linguagem matemática é capaz de produzir e a garantia da sua verdade.
“Dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (LACAN, 1998, p.873) implica comprometer tanto a constituição subjetiva quanto a invenção da psicanálise por Freud com um determinado momento da história da civilização. A expressão sujeito da ciência é uma interpretação lacaniana comprometida com a particularidade do advento de uma ciência: a moderna. Isso não teria sido possível sem que Lacan fizesse uma dívida com Koyré.

 

NOTA:


1. Referência ao corte epistemológico, conceito fundamental da epistemologia de Bachelard. Ele designa as rupturas ou mudanças súbitas que ocorrem na história da ciência para explicar porque “o passado de uma ciência atual não se confunde com essa mesma ciência no seu passado” (CANGUILHEM, 1977, p. 15). Bachelard defende “a tese da descontinuidade epistemológica do progresso científico” (ID., p. 20). Isso quer dizer que o progresso da ciência precisa ser avaliado por suas rupturas e não pela sucessão dos fatos. Situar o ponto de ruptura entre o antigo e o novo permite mostrar porque “sob o nome habitual, perpetuado por inércia lingüística, se encontra um objeto diferente” (ID., p. 25). A perspectiva cronológica, ao contrário, se caracteriza pela sucessão manifesta de enunciados mais ou menos sistematizados cuja perspectiva é continuísta (LOPES, 2007, p. 22-23).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ANTUNES, M.C.C. (2002). O discurso do analista e o campo da pulsão: da falta de gozo ao gozo com a falta. Tese de doutorado em Teoria Psicanalítica. Orientada pela Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos. PPGTP/UFRJ. Rio de Janeiro, 2002. Mimeo. Disponível em: <www.nucleosephora.com>.

COELHO DOS SANTOS, T. (2001) Quem precisa de análise hoje? – O discurso analítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
FREUD, S. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

________. (1900). A interpretação de sonhos. Vol. IV e V.
________. (1924). A perda da realidade na neurose e na psicose. Vol XIX.
________. (1940 [1938]). A Divisão do ego no processo de defesa. Vol. XXIII.

LACAN, J. (1965). A Ciência e a Verdade. In: Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 869-892.
LOPES, R.G. (2007). O desejo do analista e o discurso da ciência. Tese de doutorado em Teoria Psicanalítica. Orientada pela Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos. PPGTP/UFRJ. Rio de Janeiro, 2007. Mimeo.
MILNER, J.-C. (1996) A obra clara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Texto recebido em: 10/07/2007.
Aprovado em: 28/09/2007.