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A partir do Seminário
XVI, é com Pascal, e não mais com Descartes, que Lacan
constrói o sujeito da psicanálise. François Regnault, em seu
curso, convidava a ler o livro de Henri Gouhier (2007) sobre
Blaise Pascal, que é de fato uma referência notável sobre a
qual irei me basear.
O Deus
de Pascal, um Deus da revelação
É útil dizer algumas palavras do Memórial, de Pascal (1654), pois Lacan lhe faz referência de
maneira cada vez mais insistente ao longo do tempo: nos Écrits, em 1958, mas também, em diferentes ocasiões no seminário
“Problemas cruciais para a psicanálise” (1964-65) e de
forma mais elaborada no Livro
XVI de seu seminário, D’un
Autre à l’autre.
O Memorial
é um texto que foi achado por ocasião de sua morte, rabiscado
em um pedaço de papel, copiado em um pergaminho e costurado no
forro de suas roupas. Na noite do dia 23 de novembro de 1654,
Pascal tinha trinta e um anos, entre dez e meia da noite e meia
noite e meia, mais ou menos, ele escreve o seguinte texto, ao
qual Lacan, desde os escritos, faz referência.
No
ano de graça 1654, Segunda-feira 23 de novembro, dia de São
Clemente, Papa, mártir, e outro, desde dez e meia da noite, até
meia noite e meia.
Fogo.
Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó
Não dos filósofos e dos sábios
Deus de Jesus Cristo
Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz,
Deum meum et Deum vestrum
Teu
Deus será o meu Deus
Esquecimento do mundo e de todo o resto exceto Deus.[...]
(Pascal, 1654).
Este é um texto que marca uma
reviravolta na vida de Pascal, pois, apesar de sempre ter sido
religioso, tinha levado até aí uma vida mundana, como se dizia
na época. Ele já tinha uma vida científica de alto nível e o
reconhecimento de vários cientistas. A partir deste momento,
1654, ele adota um modo de vida ascético e se aproxima de
Port-Royal, isto é, dos jansenistas, católicos fervorosos e
partidários, contrários ao relaxamento religioso da corte e
seu galicanismo, muito rigoroso na prática da religião, comparável
ao dos protestantes, cujas crenças na graça e na predestinação,
eles também tinham.
É a esse Deus que Pascal se refere
quando diz: “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, não dos
filósofos e dos sábios” (Lacan,
1963). Ele mesmo é filósofo e sábio, portanto é contra si
mesmo que escolhe este endereçamento a Deus. Evidentemente, é
o Deus do Antigo Testamento, mas, sobretudo, o que faz a grande
diferença em relação ao procedimento cartesiano, é que não
é um deus da construção intelectual, da adequação do
pensamento e do ser, é um deus da revelação.
O Deus dos filósofos é o Deus tal qual
poderia ser pensado o da prova ontológica de são Anselmo (eu
sou obrigado a achar que existe Deus porque existe sempre alguma
coisa no universo que me escapa). O Deus de Pascal não pode ser
reduzido a isso, muito menos ao Deus dos sábios de Descartes;
Pascal não tem grande simpatia por Descartes e não compartilha
sua idéia de um Deus como garantia do edifício da razão. Ele
exige um ato de fé. É a partir deste momento que a ele se impõe
a necessidade de pensar o Deus da revelação, a partir do qual
ele construirá sua famosa aposta, que supomos que ele tenha
escrito ao final do
Memorial, de 1657.
Necessidade
da aposta “cara ou coroa”
A
aposta de Pascal é uma aposta religiosa, que se baseia na
distinção entre o finito e o infinito. O primeiro folheto da
aposta é dedicado à questão de como pode ser concebido o
finito e o infinito. Assim, Pascal formula: “Finita a extensão
do meu corpo, eu conheço a existência e a natureza do
finito”. É o corpo que para ele é finito, a extensão dele.
Em segundo lugar: “sendo finito, não posso conhecer a
natureza de nenhum infinito (...) como demonstrou a matemática,
eu conheço a existência do infinito, mas não sua natureza”.
Terceiro parágrafo: “mas, não conhecemos nem a natureza nem
a existência de Deus, porque ele não tem nem extensão nem
fronteiras”.
Resumindo o que diz Pascal é: já que não
podemos conhecer Deus, temos que apostar! Temos que jogar, como
se dizia na época, “cara ou coroa”.
Diante do infinito sem extensão, de
coisas que não podemos conhecer, só nos resta apostar.
“Temos que apostar, não é uma escolha, vocês estão
embarcados. Qual é a sua escolha?” Pascal (1654) aponta para
uma escolha forçada. Não apostar na existência de Deus como
Outro, ainda é apostar. Entretanto, esta aposta não deixa de
apresentar uma faceta “utilitarista”: “Há duas coisas a
perder: a verdade e o bem, duas coisas são necessárias: sua
razão e sua vontade, seus conhecimentos e sua beatitude (...)
duas coisas a se evitar, o erro e a miséria. O fato de escolher
um ao invés do outro não ferirá sua razão, afinal, é necessário
escolher. Mas, sua beatitude? Pesemos o ganho e a perda”.
Assim, a aposta de Pascal, introduz em relação a Descartes uma
aposta probabilística. Freqüentemente, e não sem razão,
pensou-se que a introdução à era da ciência moderna, assim
como a introdução ao método experimental nasceram com
Descartes. É muito mais correto considerar que as ciências
modernas se fundaram na probabilidade, como recentemente o
demonstrou mais uma vez Ian Hacking (2001).
Lacan diz em “A ciência e a
verdade” (1966) que o verdadeiro modelo das ciências
contemporâneas é a física: desde o início do século XX, após
o enunciado do princípio de Heisenberg1, elas têm
se fundado no cálculo probabilístico. Não é possível, por
exemplo, calcular a posição de um elétron ao mesmo tempo como
corpúsculo e como onda. É necessário recorrermos a métodos
probabilísticos. Numerosos paradigmas da física moderna se
fundam muito mais na aposta de Pascal (especialmente no que
chamamos hoje em dia de nanociências2 e de astrofísica,
isto é, para o infinitamente pequeno e para o infinitamente
grande) que na razão cartesiana, que funciona muito melhor para
as ciências experimentais que se desenvolveram nos séculos XIX
e XX.
Então, retornando a Pascal, uma questão
se impõe: como escolher? “Vamos medir o ganho e a perda
acreditando que Deus é a beatitude. Pesemos ganho e perda,
estimemos os dois casos. Se ganharem, ganharão tudo, se
perderem não perderão nada. Apostem sem hesitação”.
Podemos ver que Pascal procura convencer seu interlocutor de que
não há nada a perder nesta escolha forçada.
Lacan
com Pascal
O
que eu gostaria de examinar de mais perto, é a forma como Lacan
faz uso do termo “aposta de Pascal” em diferentes momentos.
Em janeiro de 1965 encontramos a aposta em “Os problemas
cruciais da psicanálise” (1964-65), seminário que se segue
aos “Quatro conceitos fundamentais” (1964). Nele, Lacan
analisa a questão do número e da sua importância para o
acesso da criança à linguagem. Para isso, ele toma o exemplo
de uma menininha a quem são mostrados 3 copos e ela lhe diz que
há 4. Lacan lhe pergunta: “Nós estamos vendo os 4 copos?”
– “Claro, ela diz, 1,2,3,4”, sem nenhuma hesitação.
Contrariamente a Piaget que, na qualidade de ancestral dos
cognitivistas, diria que a inteligência da criança não está
suficientemente avançada para incluir o zero, Lacan considera
que o 4 é o zero para ela, pois é a partir deste zero que ela
conta, pois com seus quatro anos e meio de idade, ela já é o
pequeno círculo, o buraco do sujeito. Lacan traz aí a idéia
de que o sujeito, pontual e fugidio, pode muito bem, assim como
o fez grande parte da humanidade antes de entrar no sistema
decimal, viver sem zero. Esta menina, não tendo a sua disposição
o zero, utiliza o 4 como 0. Não é necessário relembrar que o
sujeito da psicanálise não é um sujeito de aprendizagem.
Lacan
(1964-65) prossegue: “(...)
é na grande edição Haveste, na página 72 dos Pensées,
que verão a referência a esta famosa esfera infinita cujo
centro fica em todo lugar, e a circunferência em lugar
nenhum.”
Quando Pascal falava de círculo, ele não
era um ignorante na matéria, pois, em meio a seus diversos
trabalhos figuram estudos em primeiro plano em geometria de
projetos (junto com Fermat) e sobre probabilidades. Portanto,
quando ele se refere ao círculo cujo centro está em todo lugar
e a circunferência em lugar nenhum para descrever Deus, ou
seja, sua concepção de Outro, é extremamente precisa.
Traduzindo em termos grosseiros aquilo
que opõe Descartes e Pascal, eu diria que um raciocina em
termos de lugares, o outro em termos de topologia. Evidentemente
que estou forçando um pouco, mas a construção cartesiana do Método
supõe a “tábula rasa” de todo conhecimento, em seguida a
construção analítica que dá lugar a cada uma das etapas do
raciocínio, então para concluir, chama-se Deus, que tinha sido
afastado de início, e que serve de certa forma como base para toda a construção. É claro que
existe o risco de Deus ser um mau gênio que nos engana (Descartes, 2000). Mas Descartes lê no saber a presença de
Deus, seu “sujeito suposto saber”.
A epistemologia de Pascal é mais
complexa, pois, segundo ele, Deus está em qualquer lugar e em
lugar nenhum, seu lugar não está designado. O Outro não é
somente incompleto como em Descartes, e dependente de uma base
suposta. O Outro de Pascal é inconsistente, em todo lugar e em
lugar nenhum, ele não existe, é por isto que ele deve ser
objeto de aposta. É a aposta que faz existir o Outro e não o
saber; é o ato do sujeito, sua crença. Já podemos aí
perceber porque Lacan desenvolveu um interesse tão particular
em Pascal à medida que começava a considerar que o Outro era não
só incompleto como também inconsistente. Isto é, que não
existe Outro universal.
É entre outras coisas o que
Jacques-Alain Miller e Éric Laurent formalizaram e
desenvolveram em seu curso de 1995 intitulado: “O Outro que não
existe e seus comitês de ética”. Neste curso, eles tiram as
conseqüências do ensinamento de Lacan que vai do Seminário XI ao Seminário XX,
para saber como nos orientarmos no mundo em que nós vivemos, no
qual não existe Outro universal, não há Outro absoluto
correlacionado ao Nome-do-Pai.
Pela
via do sintoma
Em Pascal a existência de Deus não
estava assegurada, temos todo o interesse em apostar nela, mas não
é uma certeza. O que existe entretanto é o gozo. Falando de
Pascal em “O saber do psicanalista”, Lacan (1971-72) diz que
basta ler a biografia escrita por sua irmã “para ver a que
ponto sua angústia, seus abismos, e todo o horror do qual ele
estava cercado poderia ter tido sua causa na aversão que ele
demonstra tão precocemente, levada até o pânico, à crise, às
convulsões, a cada vez que ele vê os pais apaixonados se
aproximarem da cama. É alguma coisa que se deve levar em conta,
desde que estejamos em condições de nos colocarmos a pergunta
sobre qual é o limite que a neurose deve impor ao sujeito”.
Lacan apresenta então Pascal a seu
auditório, essencialmente psiquiatras que estão em Sainte-Anne,
como um neurótico obcecado pelo assombro da cena primitiva.
Lacan atenta para o fato de que era por ser tão neurótico que
ele conseguiu elaborar coisas tão extraordinárias. Esse
movimento de interesse pelo sintoma como fonte de criação,
culminará em Lacan (1975-76) no seu ensinamento a respeito se
Joyce.
Lacan afirma também que o Deus de
Pascal, ao qual ele se refere, está ancorado no sujeito por
pontos de reversão entre o significante e o objeto. Passando ao
lado do significante nos encontramos ao lado do objeto, passando
ao lado do objeto nos encontramos ao lado do significante. Não
podemos melhor designar os momentos em que se produz o fading (desvanecimento) do sujeito, seja na surpresa trazida pelo
significante, seja no corte em relação ao gozo, isto é no
momento em que ocorre o desvanecimento, onde Lacan situa a incidência
do registro do real.
Com certeza já lhes aconteceu, na
experiência da análise, de ter que lidar com o corte na sessão
associado ou não a uma interpretação do analista. Depois
interroga-se o que aconteceu, o que motivou o corte. É nesse
momento que o sujeito experimenta, ao mesmo tempo, o sujeito e o
inconsciente: o ponto de reversão da superfície de um lado ao
outro, onde para vocês, de fato, se encarna o que Lacan naquele
momento chama de “desejo do Outro”, mas também “sujeito
do inconsciente”, e também o resto da operação, o objeto
pulsional. Sem dúvida, é necessário compreender que é muito
mais a esse inconsciente puntiforme, a esse sujeito que se
desvanesce que se faz referência. Muito mais do que a uma espécie
de história da vida que incluiria em uma textura narrativa os
elementos que o recalque apagou. Se é assim, estamos a mil léguas
da prática da psicanálise como ela é feita nos Estados Unidos
por alguém como Roy Schafer, o psicanalista americano para quem
a experiência analítica é essencialmente fundada na construção
de um romance individual, uma história da vida, prática que
leva ao relativismo.
Nota
1.
N.R.: “Na mecânica quântica, a relação de indeterminação de
Heisenberg ou princípio de incerteza de Heisenberg afirma que não
é possível determinar, simultaneamente e com precisão arbitrária,
certos pares de variáveis físicas, como, por exemplo, a posição
e o momento linear (quantidade de movimento) de um objeto dado.
Em outras palavra, quanto maior certeza se busca na determinação
da posição de uma partícula, menos se conhece sua quantidade
de movimento linear. Este princípio foi enunciado por Werner
Heisenberg
em 1927”
(http://es.wikipedia.org/wiki/Relaci%C3%B3n_de_indeterminaci%C3%B3n_de_Heisenberg).
2.
N.R.:
“É o estudo e o conhecimento das técnicas e aplicações das
nanotecnologias e está relacionada a diversas áreas do
conhecimento humano (engenharia,
física,
química,
biologia,
eletrônica,
computação,
medicina).
A nanociência e a nanotecnologia
têm por meta a compreensão e o controle da matéria em escala
nanométrica e o conhecimento da natureza na organização da
matéria átomo
por átomo, molécula
por molécula. (“Nano" é um prefixo que vem do grego
"nannós" que significa “excessiva pequenez”.).
[...] O estudo para compreender as alterações drásticas que
as propriedades dos materiais e elementos químicos apresentam
em escala nanométrica é essencial para o aproveitamento das
novas propriedades, possibilitando a cientistas reorganizar ou
desenvolver moléculas e células inteligentes, construir novas
estruturas e materiais, dispositivos tecnológicos com
finalidades específicas, miniaturização dos dispositivos para
economia de espaço e de energia, enfim um mundo que a nanociência
quer desvendar” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Nanoci%C3%AAncia).
Referências
bibliográficas
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de la méthode.
Paris:
Flammarion.
Gauhier,
H.
(2007) Blaise Pascal: conversão e apologética.
São Paulo: Paulus e Discurso
Editorial.
Hacking,
I. (2001) An introduction
to probability and indutive logique.
Cambridge: Cambridge University Press, july 2001. ISBN-13:
9780521772877.
Lacan, J. (1975-76). Le Seminaire, livre 23: Le sinthome.
Paris: Seuil, 2005.
_________.
(1971-72) Le savoir du psychanalyste. Conférènce à Saînte-Anne.
Inédito. Texto não publicado oficialmente
(exemplares mimeografados).
_________. (1968-69) Le séminaire,
livre XVI: d’un Autre à l’autre. Paris: Seuil, 2006.
_________.(1966)
Écrits. Paris: Seuil.
_________.(1964-65)
Le séminaire. Livre XII: les
problemes cruciaux pour
la psychanalyse French: unpublished.
_________.(1964)
Le Séminaire.
Livre XI: les quatre
concepts fondammentaux de la psychanalyse. Paris:
Seuil, 1973.
_________.
(1963) Des Noms-du-père.
Paris: Seuil, 2005.
Pascal, B
(1654). Memorial. Texto disponível nos seguintes sites: <http://www.users.csbsju.edu/~eknuth/pascal.html>,
<http://www.bibleetnombres.online.fr/memorial.htm>
<http://www.bibleetnombres.online.fr/memorial1.htm>,
consultado em 04/2007.
Miller,
J.-A (1996-97). El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
Miller,
J.-A. et Laurent, E. (1997) L’Autre
qui n’existe pas et ses comités d’étique – introduction.
In: L’Autre qui n’existe pas. La cause freudienne n.
35. Paris: Diffusión Navarin Seuil, fev/1997, p. 7-14.
Texto recebido em: 03/04/2007.
Aprovado
em:02/08/2007.
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