|
Introdução
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS)1 estimam que
aproximadamente 121 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem
de depressão. Esta doença é o principal motivo de afastamento
do trabalho e sua alta incidência acarreta um problema de saúde
pública.
Diante desses números, vemos surgir, cada vez mais, medidas
preventivas no intuito de alertar a população para o problema.
E é neste contexto que assistimos à deflagração de uma maciça
campanha que se estende a todos os meios de comunicação da
França. Especificamos a França porquanto tivemos a
oportunidade de presenciar, recentemente, a luta que se trava
entre o Estado, através do Ministério da Saúde, os
profissionais e demais órgãos de saúde, as indústrias farmacêuticas
e os meios de comunicação deste país. Entretanto, a distância
geográfica que existe entre o novo e o velho continente não
nos torna, a nós, população brasileira, menos imune a esta
batalha, que também começa a se instalar implícita e
vagarosamente em nosso meio (OMS, 2000).
Propagandas veiculadas na televisão e no rádio e nada menos que a
tiragem gratuita de um milhão de exemplares do mais novo guia
sobre a depressão conformam o cenário com o qual nos
deparamos. Em todos esses contextos, a mensagem é a mesma: a
depressão é um problema, um déficit do organismo que revela o
mau funcionamento cerebral que, por sua vez, influencia no
comportamento, devendo, e rapidamente, ser solucionado.
É exatamente em termos deste sintagma ‘problema-solução’ que o
tratamento da depressão ganha terreno e vem sendo estudado pela
ciência neurofarmacológica. Os medicamentos antidepressivos são
vendidos em grande escala, pois, na cultura atual não há espaço
para os tristes, desiludidos, desesperançados. Não há lugar
para o menos. É então necessário arrancar o mal pela raiz e
nada mais justo que seja de forma ‘indolor’, através das
famosas pílulas da felicidade. Nesta abordagem, o olhar que
deveria ser dirigido ao sujeito volta-se para uma disfunção
(neuronal, por exemplo). Os sujeitos são enquadrados em
estudos, em cinco ou mais sintomatologias do CID 10 ou do DSM
IV, abolindo-se toda e qualquer possibilidade de expressão de
singularidade.
Trata-se não apenas do culto ou do fetiche ao número, mas de uma
colagem massiva a um significante que é impróprio, pois, além
de não dar conta de toda uma gama de múltiplas manifestações
afetivas do humano, o significante ‘depressão’ não é próprio
do sujeito, mas uma atribuição do Outro.
É diante deste cenário atual que nos propusemos desenvolver este
ensaio. Para tanto, permitimo-nos tomar, como exemplo, o guia2
que acaba de ser publicado na França sobre a depressão, com o
objetivo de analisar as dimensões do discurso aí contido e dos
seus efeitos sobre a subjetividade.
Tristeza
ou Depressão?
Este subtítulo é um empréstimo que fizemos com tradução livre do
guia sobre a depressão. A primeira parte do manual se intitula
“Déprime ou Dépression: ne pas confondre”.
Tomamos déprime como
um estado equivalente ao da tristeza, e dépression
como a doença, propriamente falando, em conformidade com o
guia.
Numa análise (Chazaud,
1989) desses termos em francês, vemos que ambos, déprime e dépression,
constituem um mesmo campo semântico, sendo que sua diferença
reside apenas em relação ao registro em que ocorrem, ou seja,
o primeiro numa linguagem mais íntima e familiar, e o segundo
numa situação mais solene e formal.
No guia francês, déprime
equivale, em termos gerais, ao estado de tristeza ocasional,
passageira, ao passo que dépression
representa um estado patológico que exige tratamento e cujos
medicamentos seriam os melhores combatentes. Acreditamos que a
problemática maior está na maneira como o guia trata a
tristeza ocasional, como algo que precisa ser observado
atentamente, pois a persistência deste estado por dois ou mais
meses é sinal de uma depressão, corroborando a mesma idéia do
CID 10 ou do DSM IV.
É nesse quadro que o uso de antidepressivos tem se difundido numa
escala nunca antes vista. A tristeza normal do luto é tratada
da mesma maneira que a dor moral da melancolia, sem nenhuma
distinção.
Recentemente, Miller (2007a) publicou um texto apresentando os perigos
da “medicalização da tristeza”, verificando que momentos
de baixa estima e de tristeza são absolutamente normais nos
seres humanos. Segundo o autor, o que antes era sentido como um
mal-estar, fadiga, ou ansiedade, é hoje considerado como doença.
Qualquer reação do corpo ante um desconforto, ou a angústia
frente a uma situação com todos os sinais daí advindos podem
ser interpretadas como uma doença. Como tal, precisa ser
rapidamente tratada, não permitindo espaço para o desejo que
se instaura com a falta. É uma forma de suprimir, de abolir o
sujeito do inconsciente, que insiste em reaparecer.
Na nossa cultura atual não há espaço para o tristonho. Este
geralmente é rotulado como o ‘baixo-astral’, o desanimado,
aquele que sempre está de ‘mal com o mundo’. Esta mesma
sociedade que o produz também o rejeita a partir do momento em
que impera a necessidade de ser feliz. Mais que um estado, a
felicidade estatui-se como condição do ser vivente.
Sim, hoje é preciso ser feliz. Tudo está ao alcance, não há mais
distâncias, as barreiras foram suprimidas e tudo parece mais
frouxo, mais elástico. Diante do fácil acesso a tudo, não há
espaço para o fraco. Todos estão aí para chamar a atenção:
“mas você tem tudo, por que está assim?”. O controle
social parece cada vez mais atento e vigilante aos que se
excetuam ao padrão exigido.
Por detrás de tudo isso, cresce o poder das indústrias farmacêuticas.
É o que Foucault (apud
MILLER, 2007b) demonstrou através do conceito de biopoder: o
poder que se exerce sobre os corpos, através das medicações,
dos horários, das normas, disciplinando-os e docilizando-os. Os
órgãos públicos de saúde responsáveis pelo ‘bem-estar’,
em busca de uma melhor qualidade de vida para a população e,
através de uma política higienista e protética, ou seja, de
adequação do que é inconforme com a norma, controlam a vida
social dos sujeitos através de estudos, comparações e dados
estatísticos.
Vive-se o presente, enquanto passado e futuro são anulados. O que
importa é a urgência, a imediatez. Acredita-se em achar soluções
rápidas para todos os problemas, tão rápidas que não
permitem qualquer elaboração subjetiva. Ao desamparo do
sujeito não é dirigido nenhum olhar, nem à sua
responsabilidade face ao seu mal-estar. É uma clínica
submetida ao medicamento, que não coincide e nem tem a ver com
o tempo do sujeito.
Para Milner (1995), o que resulta de tudo isso é o aparecimento de um
sujeito sem substância, sem consistência e sem predicados. Um
sujeito esvaziado de toda e qualquer subjetividade, comandado
por um único significante.
A esta colagem imaginária soma-se a fragilidade do registro simbólico,
que expõe a condição do sujeito sem amarras, face ao gozo
mortificador do Outro, numa realidade fragmentada e extremamente
precária.
Depressão:
uma impropriedade significante
Em nosso meio lingüístico, em sua grande variedade geográfica e
social, os termos tristeza e depressão co-ocorrem em muitos
contextos, em diferentes registros, quer no meio médico, por
exemplo, quer no uso corrente, de forma indiscriminada, embora
verifiquemos que, na linguagem coloquial, o termo depressão é
empregado com maior freqüência, talvez para dar ênfase aos
estados de desânimo ou mesmo de insatisfação do sujeito. A
tristeza não parece avultar no discurso daquele que a carrega,
daí o apelo significante que fazem os sujeitos dos nossos dias
em aumentar a carga semântica dos termos já tão combalidos
pelo uso.
Diariamente, nos deparamos em nossos ambientes de trabalho com sujeitos
em estado de sofrimento, totalmente identificados a diagnósticos
atribuídos por médicos, colegas de trabalho, balconistas de
farmácias e testes de revistas. Pessoas que não se permitem
sentir um mínimo sinal de tristeza e desconforto. Que não se
autorizam a ouvir o seu corpo e que, ao menor mal-estar sentido,
já começam sua busca desenfreada por medicamentos que aliviem
suas dores e aflições.
A tristeza deixou de fazer parte do vocabulário corrente, cedendo espaço
para a depressão, cada vez mais amplamente utilizada. O que
leva as pessoas a querer estar nesse lugar, o do deprimido?
Na leitura que propomos, a hipótese é de que, cada vez mais, a
palavra tristeza parece não dar conta de um estado de
desconforto e desamparo, como se não fosse apropriada e
demonstrasse total incapacidade de bem precisar o mal-estar.
Diante da intensidade dos sentimentos, o termo tristeza se torna
vazio demais para absorvê-los. Por isso, o uso indiscriminado
do termo depressão parece não só ser capaz de nomear a
fadiga, o desânimo, o desamparo, como também de incluir
aqueles que o empregam em uma determinada série.
Em outras palavras, enquanto se reduz a carga semântica da palavra
tristeza por não conseguir expressar o mais profundo sentimento
de solidão, deflacionando-a de sentido, por um lado,
maximiza-se, infla-se, por outro, o significado da palavra
depressão, ‘única’ capaz de magnificar a dor, o sofrimento
e a piedade, como se somente este termo fosse capaz de dar
sentido ao já sem-sentido. É uma tentativa de dar conta de uma
realidade fragmentada, de dar conta daquilo que dói, que faz
sofrer, que tortura pela presença, uma maneira de tentar nomear
o inominável.
A partir do momento em que o sujeito atrela-se a este significante, ele
tem a ilusória sensação de tudo resolver. Apesar de estar com
depressão, há remédios para isso. E, felizmente, crê ele,
encontrou o diagnóstico para aquele choro sem sentido! O
sujeito, antes à margem, encontra agora seu grupo, o dos
adoecidos, uns mais, outros menos, mas todos debaixo do mesmo
significante!
Entretanto, este significante depressão, que parecia ter resolvido
tudo, também ele se mostra falho, tal como a tristeza. Ele também
não vai conseguir dar conta dos sentimentos que continuarão a
aflorar no sujeito, a despeito das doses mais extensas de
medicamentos, além de não ter conexão de pertença com o próprio
sujeito, que dele se apropria como remendo, prótese
significante.
O imperativo da indústria farmacêutica – “Consuma! As pílulas da
felicidade estão aí!”, estimulado pela indústria
televisiva, radiofônica, impressa (a exemplo do guia francês)
corrobora a tese de que há solução, basta seguir o
tratamento.
A identificação ao significante depressão exclui o sujeito,
tamponando a falta e fazendo crer que agora tudo está bem.
Contudo, dadas as suas condições estruturais, o significante
é por natureza impróprio ou, em outras palavras, pela sua
impropriedade, nenhum significante é suficiente para dizer do
sujeito: algo escapa, algo sem sentido que o remédio não
consegue curar. Voltam as dores, a angústia, o desânimo, e
aquela agradável sensação de bem-estar e felicidade dá
novamente lugar ao doloroso sentimento de incompletude.
Vive-se, constantemente, sob a hegemonia significante, na tentativa de
massificar e equalizar os sujeitos. Porém, os corpos, de alguma
forma, resistem a isto. E
é sobre isso que escapa que a ciência não encontra explicação;
é para este retorno no real que a clínica psicanalítica deve
se voltar. Uma clínica da urgência e da emergência, eis o que
caracteriza a sociedade atual, e sobre a qual urge uma posição.
Mas,
e a quem recorrer?
Esta é uma pergunta presente em todos os guias e artigos educativos
sobre a depressão. Com o objetivo de informar as pessoas e
permitir-lhes cernir os seus sintomas, esses documentos destinam
algumas páginas a informar quem são os profissionais
capacitados a assegurar o tratamento terapêutico.
É interessante observar que no guia francês sobre a depressão o médico
é o principal encarregado desta luta, visto que, e isto é bem
enfatizado, é o único profissional qualificado para prescrever
a medicação. Desde já vemos uma indistinção no tratamento:
o medicamento é o primeiro instrumento terapêutico indicado,
independente da intensidade e do teor dos sintomas.
Posteriormente, vemos a indicação de um tratamento de
psicoterapia baseado em testes e em questionários de
personalidade. Estes, através de dados estatísticos e de gráficos,
pregam que a mudança de comportamento e de atitudes de risco são
as melhores armas frente ao desencadeamento e a progressão da
depressão.
E a psicanálise? Bem, no guia em tela e na maioria dos panfletos
educativos, ela está excluída, sumariamente, das condutas
terapêuticas, e apenas intuída entre outras tantas
possibilidades, de resto secundárias, às quais o “etc”
remete. A psicanálise, a despeito das conquistas do campo
freudiano nas terras gaulesas, é posta à margem, pura e
simplesmente.
Entretanto, é sobre este sujeito, para o qual a ciência crê
encontrar respostas e solucionar todos os males, que a psicanálise
opera e aposta. É sobre este resto, este a
que escapa da ciência, de um horizonte caracterizado pelo
surgimento de novas patologias e por novas “formas aberrantes
do gozo contemporâneo” (Cottet, 2005, p. 24), que a psicanálise tem se debruçado.
No texto célebre, “A ciência e a Verdade” (Lacan, 1965), Lacan, de forma primorosa, aborda a subtração
do sujeito pela ciência, mostrando que, ao tentar dar conta de
um todo de forma massificada, algo do sujeito escapa, não
deixando de existir, fazendo-se aparecer e se contar no real.
Esta foraclusão do sujeito pela ciência o expõe a uma angústia
inefável, sem nomeação, presentificando no corpo aquilo que
antes deveria estar inscrito na linguagem.
Resulta daí a presença de um mal-estar generalizado, da inflação de
prescrições medicamentosas inúteis, da banalização das
patologias graves e da superestimação dos mínimos sinais de
desconforto.
Os psicanalistas dificilmente se colocam contra o uso de medicamentos.
Mas é imprescindível que estes sejam utilizados de forma
criteriosa, e segundo as indicações de cada caso. É
importante que o sujeito não seja um número diluído na
dosagem, mas que seja “reintroduzido” nesta prescrição. É
aí que a psicanálise aposta, de que há um sujeito e não um
doente, de que algo emerge, mesmo que tardiamente.
A psicanálise nos propõe o “dever ético de bem-dizer o desejo” (Lacan,
1973). Apostamos que somente a fala poderá amenizar os efeitos
reais que surgem e devastam o campo da subjetividade humana. Há
um saber que falta, que impulsiona a articulação de novos
significantes desconhecidos e que são capazes de permitir ao
sujeito reatar o laço social fragmentado.
Numa era em que a tristeza e a depressão são tratadas rápida e
indistintamente, em que o sem-sentido, embora ignorado, insiste
em emergir, o sujeito atual mostra seu desamparo. Assim como a
palavra tristeza já não é mais capaz de bem-precisar os
estados de desânimo, de cansaço e de fadiga, acreditamos que
num futuro muito próximo o termo depressão também estará
neste mesmo patamar, cada vez menos dando conta do mal-estar.
Poderíamos antever uma fossilização do termo depressão e o
surgimento cada vez maior de novos nomes, métodos e tratamentos
que insistem em dar conta do que surge no real e devastam o
campo da subjetividade.
Notas
-
Depression. In. Organização Mundial de Saúde. Disponível em http://www.who.int/mental_health/management/depression/definition/en/.
Acesso em: 22 dez. 2007.
-
La dépression: en
savoir plus pour en sortir. Disponível
em www.info-depression.fr.
Acesso em: 20 dez. 2007.
“Tristeza e depressão: não confundir”.
Apesar de déprime e dépression serem sinônimos, no guia francês os termos são
empregados com diferentes acepções, em função dos registros
em que ocorrem.
Referências
Bibliográficas
OMS (2000). Prevenção do Suicídio:
Um manual para profissionais da saúde em atenção primária. In.
Organização Mundial de Saúde. Disponível em http://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/en/suicideprev_phc_port.pdfAcesso
em: 05 jan. 2008.
CHAZAUD, H. B. du. Le Robert. Dictionnaire
des Synonymes. Paris: Les Usuels, 1989.
COTTET, S. Efeitos terapêuticos na clínica psicanalítica contemporânea.
In. COELHO DOS SANTOS, T. (Org). Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada, Rio de Janeiro:
Contracapa, 2005.
MILLER, J.-A. (2007a) Tout le
monde passe par des états d’humeur dépressifs. Disponível
em www.forumpsy.org.
Acesso em: 18 dez. 2007.
_______. (2007b) Entretien à
Jacques-Alain Miller. Disponível em http://www.cifpr.fr/+Si-la-tristesse-est-une-maladie.
Acesso em: 20 dez. 2007.
MILNER, J.-C. (1995) L’oeuvre
claire: Lacan, la science et la philosophie, Paris: Seuil,
1995.
LACAN, J. (1965) La science et la vérité. In. Écrits II. Édition de Poche, Paris: Seuil, 1999. p. 335-358.
_______. Télévision
(1973), Paris: Éditions du Seuil, 1974.
Texto recebido em: 20/05/2007.
Aprovado em: 10/08/2007.
|