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Razões cidadãs e profissionais moveram meu
interesse para pesquisar as determinações subjetivas da violência.
Havia, por um lado, a perplexidade acompanhada da impotência em
que se vê, inicialmente, um analista, frente às experiências
de extrema violência relatadas por analisandos. De outro, as
inquietantes indagações relativas aos impasses gerados pelo
crescimento exacerbado da violência e sua imperativa presença
na contemporaneidade.
A magnitude do problema leva, via de regra, o cidadão
a pensar que não há nada a fazer. O mesmo sentimento de impotência
aparece com freqüência diante de tantos outros imperativos do
discurso capitalista.
O tema da violência gera debates, vira notícia,
cria polêmicas, incita a criação de movimentos estruturados e
de organizações supra-estatais para combatê-la, além das
medidas formais do Estado, mas nem todas as iniciativas se
ocupam das suas causas e efeitos buscando definir as razões que
as sustentam e suas implicações éticas. Ademais, tudo leva a
crer que não basta explicar e compreender os mecanismos em
questão, nem fazer apelos éticos.
Esperam-se novas ações e debates e a psicanálise
tem a algo a contribuir, pois ensina que, para além da
compreensão das razões e da contabilidade dos prejuízos
verificados, falta querer
saber por que fazemos exatamente o que dizemos que não queremos
fazer, por que repetimos o que dizemos que não queremos
repetir, por que desejamos o que dizemos que não queremos
desejar.
Responsabilizar ou culpabilizar o capitalismo, a
globalização ou a tecnociência não resolve o problema, pois
ainda restaria explicar como se constituiu e constitui esta
realidade explicitamente devastadora da ordem dos discursos,
como dela participamos e o que nela realizamos do desejo e do
gozo. É preciso também dizer que o discurso da tecnociência
capitalista está sujeito a irônicas contradições, pois, sem
dúvida, o progresso engendrado pela tecnologia tem seus
encantos.
Os
atos de violência banalizaram-se significativamente no final do
século XX e início do XXI. Nossa intenção é não ficar
petrificada, identificada com o gozo do espectador, nem adotar
uma atitude passiva e vitimizada. Recusamo-nos a contemplar com
fascínio compulsivo ou evitação fóbica o estado atual da
violência. Aliás, Freud já advertira quanto à tendência da
maioria a reagir com extrema moralidade e hipocrisia diante das
situações de violência.
Partimos do princípio de que tudo relativo ao laço
social diz respeito à psicanálise. A violência que se
configura na contemporaneidade se apresenta como um dos
problemas cruciais da complexa relação do sujeito com a polis.
Abordamos psicanaliticamente o estranho e familiar universo da
violência, marcando um posicionamento distinto daqueles que
atribuem a violência ao outro, a cujo campo não pertencem.
Estudar psicanaliticamente a dimensão subjetiva da
violência requer um retorno ao conceito de pulsão de morte
postulado por Freud na segunda tópica. Partimos precisamente da
revisão realizada pelo autor no texto “O mal-estar na
civilização”
(1930 [1929]), quando adotou o termo pulsão destrutiva e admitiu a
presença imperativa da desfusão das pulsões erótica e
destrutiva, em todos os âmbitos, especialmente no clínico.
Consideramos que ainda nesse texto Freud realiza significativo
acréscimo ao conceito de pulsão de morte ao atribuir a esta
nova instância psíquica, o supereu, a responsabilidade dos
destinos da destrutividade, da agressividade e da crueldade no
ser falante. É sempre surpreendente e clinicamente esclarecedor
reencontrar ou mesmo encontrar no meio do caminho o conceito de
supereu como o ponto extremo da teoria da pulsão de morte,
provavelmente o último elemento colocado por Freud na
arquitetura desta teoria.
Impasses de muitas ordens caminharam concomitantes
à confirmação das proposições que foram se definindo na
construção deste trabalho. Há, entretanto, um impasse
freudiano que mereceu nossa consideração, com suporte nas
reflexões de Coelho dos Santos (2001) e Rudge (2006). Estou me
referindo à clássica definição freudiana da pulsão como o
limite entre o somático e o psíquico, que é bastante evidente
quando se trata da pulsão erótica, cuja excitação está
claramente localizada nas bordas do corpo, consideradas zonas erógenas.
No que tange à pulsão de morte, destrutiva, pergunta-se qual a
sua evidência corporal, no sentido de localizar uma determinada
zona onde possivelmente estaria localizada.
Ou seja, como localizar alguma fonte interna para os
impulsos destrutivos relativos aos atos de crueldade sem entrar
no mérito do princípio para o qual tudo que é vivo visa
retornar ao inorgânico?
Rapidamente, torna-se evidente, em Freud, que é
necessário localizar a pulsão de morte, destrutiva, não em
zonas específicas do corpo, porém nas manifestações sintomáticas
atribuídas ao supereu e ao que supostamente aí se realiza da
ordem de certa satisfação colocada para além do princípio do
prazer. Satisfação que, sem dúvida, está no corpo, porém de
modo muito particular: o masoquismo, a melancolia, a neurose
obsessiva, a reação terapêutica negativa, as compulsões e
impulsões (bastante ampliadas na contemporaneidade), além de
outras modalidades de violência.
Seguimos acompanhando alguns ultrapassamentos
significativos feitos por Freud no que tange à concepção da
pulsão de morte, às manifestações subjetivas de
destrutividade: o aparecimento da pulsão de morte configurada
como fusão/desfusão da pulsão de vida; a configuração da
pura manifestação da pulsão de morte desfusionada da pulsão
de vida; e por último a proposição do supereu como a instância
psíquica que decide sobre os destinos subjetivos da
destrutividade.
Pudemos constatar que Freud estava interessado em
explicar psicanaliticamente alguns fenômenos subjetivos
marcantemente determinados pela destrutividade que se
apresentaram na experiência analítica. Também estava bem
comprometido em explicar a violência que adveio à civilização
no entre-guerras. Estava, além disso, preocupado com as conseqüências
subjetivas mortíferas provocadas pela primeira guerra mundial e
com os horrores já prenunciados da segunda guerra mundial.
Temia a barbárie do genocídio nazista que já se anunciava,
posteriormente confirmado.
Antes, contudo, de entrar nas contribuições feitas
por Lacan ao conceito de pulsão de morte e supereu é
importante que se diga, para não incorrer em prejuízos para
ambos, que passar do campo conceitual de Freud para o de Lacan
requer admitir o exercício da pura descontinuidade, pois
seguramente o caminho não se faz de modo progressivo, linear,
ascendente.
Lacan retoma o conceito de pulsão e de supereu
postulados por Freud com o conceito de gozo, o que por si só não
incorre em nenhuma simplificação, pois passando ao campo
lacaniano, resta ainda precisar a qual teoria do gozo, dentre as
suas múltiplas abordagens, está-se referindo.
Para analisar a dimensão subjetiva da violência
privilegiamos em Lacan a teoria dos discursos, por apresentar
uma nova concepção do aparelho psíquico e da sua economia de
gozo pulsional, baseada na noção de entropia, perda e recuperação
de gozo articulado como estrutura significante dos discursos
(1969-70). A retomada feita por Lacan do supereu, enquanto
imperativo de gozo, pode ser demonstrada na estrutura de
discurso, o que veio criar outras possibilidades para a definição
da pulsão de morte e conseqüentemente da violência.
Aqui a
discussão não se põe mais nos termos do limite entre o somático
e o psíquico, nem da fonte, nem da constância do impulso
interno, muito menos do retorno ao inorgânico, mas nos termos
da incidência do significante sobre o corpo, das ressonâncias
e dos efeitos imaginário, simbólico e real de gozo, próprios
das operações da linguagem ou, mais precisamente, do discurso.
Julgamos necessário destacar a importância do
conceito do supereu freudiano para a construção do conceito de
gozo em Lacan. Lacan afirma no seminário Os
escritos técnicos de Freud (1953-54) que o supereu é, a um
só tempo, a lei e sua destruição, explicando que nisso ele é
a palavra mesma, o comando da lei, na medida em que dela não
resta mais do que raiz. É nesse sentido que o supereu acaba por
se identificar àquilo que há de mais devastador e de mais
fascinante nas experiências primitivas do sujeito. Acaba sendo
identificado por Lacan ao que chamou de figura
feroz, as figuras que podem estar ligadas aos traumatismos
primitivos e aos enunciados primordiais, sejam eles quais forem.
O recalque é primário, a castração e o supereu
também. São figuras do significante mestre (S1),
efeito de discurso. A gulodice e a severidade auto-acusatória
do supereu, que obrigam o sujeito a dizer algo, são
estruturais, isto é, não são efeitos da civilização, mas sintoma na
civilização. A báscula essencial apresentada por Freud na
segunda tópica reside na afirmação de que o supereu é
estrutural e não efeito da cultura. Nesta revisão, em que o
recalque é produtor da repressão, estão os pontos que levam
Lacan a interrogar: “Por que a família, a própria sociedade
não seriam criações a se edificarem a partir do recalque?”
(1992, p. 52) E sua resposta favorável a esta inversão
freudiana está baseada na concepção da ex-sistência
do inconsciente, motivado, causado pela estrutura de
linguagem, ordenada nas formas dos discursos. Nesta tradição
lacaniana podemos compreender porque o supereu ordena
imperativamente: goza!
De acordo com a lógica dos gozos que se articulam
nos discursos, o supereu representa a dimensão imperativa que
marca a entrada do sujeito na linguagem. O supereu é um
imperativo de gozo da linguagem que se ordena na estrutura do
discurso sob o comando do significante mestre, o S1,
tal qual se coloca no discurso do mestre (Soler,
2000-2001).
Lacan também se ocupou em explicar as manifestações
subjetivas destrutivas, identificando-as a certas modalidades de
gozo e, como Freud, se preocupou em criar uma teoria que pudesse
explicar as manifestações de violência advindas da civilização.
Desta vez, não exatamente das guerras, mas do discurso do
capitalista, sinalizando para o crescimento da violência própria
às várias formas de segregação, chamando especial atenção
para o nazismo.
Freud e Lacan não viveram o suficiente para
assistir ao atual estado globalizado de violência que, neste
trabalho, estamos identificando como efeito devastador do
capitalismo, seu brasão.
Por todas as razões expostas, o gozo da violência
não mais se explicaria como um impulso que vem de dentro do
organismo, mas como um gozo que se articula na cadeia dos
discursos. Ou ainda, que se transmite e propaga como realidade
de discurso. Ele é inerente a esta estrutura que traz o outro
como um lugar vazio a ser ocupado em cada discurso por um dos
quatro elementos ou letras distintos. É neste lugar, onde, aliás,
estão colocados o objeto e o sujeito que, ao circularem nos
lugares fixos, se modalizam conforme o discurso em questão. O
discurso não precisa necessariamente de palavras (Lacan,
1968-69) para transmitir os enunciados primordiais, os códigos,
as leis, enfim todo o universo simbólico que na cadeia
significante apresentada por Lacan aparece, inicialmente, como
voz.
Esta pesquisa percorreu simultaneamente três
caminhos: o primeiro está relacionado aos fundamentos teóricos
da constituição subjetiva da violência; o segundo está
destinado a identificar a violência contemporânea como índice
da mutação subjetiva produzida pelo discurso da tecnociência
capitalista; e, por fim, não pudemos deixar de analisar a
participação da psicanálise em toda esta engrenagem
discursiva e confrontar o poder de intervenção do discurso
psicanalítico frente às manifestações de violência na
atualidade.
A psicanálise define a violência como um modo
paradoxal de satisfação pulsional determinante da constituição
da subjetividade e da construção/desconstrução da cultura,
como se pode verificar no exercício das leis, nas guerras, nos
sacrifícios e rituais religiosos, nos dispositivos do poder e
no cotidiano das relações humanas. Inerente ao laço social, a
violência se encontra na origem da criação das leis, dos
contratos e das organizações sociais. Portanto, é preciso
evidenciar que a violência, além de uma aberração psicopatológica,
é uma vicissitude da vida mental, inscrita nas dimensões de
gozo pulsional dos diferentes discursos, e que se modifica com a
civilização.
Procuramos registrar em algumas situações a presença
exacerbada da pulsão destrutiva desfusionada da pulsão erótica,
vicissitude do supereu e do real desarticulado dos registros
simbólico e imaginário, como é o caso da sua intensificação
no crescimento da violência que se apresenta na tecnociência
capitalista. A violência globalizada não confirmou a projeção
feita por Freud em “Mal-estar na civilização”, segundo a
qual a civilização se faria às custas da redução da pulsão
destrutiva. A fórmula se inverteu, e hoje testemunhamos o
estrondoso crescimento da tecnociência capitalista produzindo,
epidemicamente, a violência.
O trabalho da escritura da tese foi distribuído em
três capítulos. No primeiro, intitulado “Violência: avatar
da pulsão destrutiva”, abordamos a constituição subjetiva
da violência de acordo com os pressupostos da segunda tópica
freudiana, em dupla perspectiva: do conceito de pulsão de morte
ou de pulsão destrutiva, como Freud preferiu chamar em 1929, e
do conceito de supereu.
Numa primeira perspectiva, Freud apresenta três
vicissitudes da pulsão de morte. A primeira diz respeito à união
de Eros com Tânatos, como vamos encontrar no sadismo e no
masoquismo; a segunda, ao aparecimento de Tânatos domado e
inibido em sua finalidade, portanto sublimado; e uma terceira,
que diz respeito à cega fúria narcísica de destrutividade, de
fundamental importância para o nosso estudo sobre a violência,
por apresentar a possibilidade primária da desfusão da pulsão
de morte com a pulsão erótica.
Na segunda perspectiva, a violência advém dos
avatares do supereu, instância do aparelho psíquico responsável
pelos destinos da pulsão de morte, paradoxalmente postulada
como instituída e instituinte da subjetividade e das leis da
civilização.
A concepção de pulsão destrutiva e de supereu,
enquanto conseqüências diretas do “Além do princípio do
prazer” (1920), produziu avanços teóricos de grande valor
para analisar problemas clínicos, especialmente aqueles
relativos às violências que se configuram na
contemporaneidade, seja no âmbito das manifestações sociais,
seja no âmbito das manifestações estritamente subjetivas.
No segundo capítulo, intitulado “Violência,
avatar dos discursos”, analisamos a violência de acordo com
as proposições teóricas de J. Lacan, que redefine o conceito
de pulsão de morte a partir da teoria do gozo, com as
categorias do real e do supereu como imperativo de gozo,
correlato da castração e do recalque, operações dos laços
sociais próprias aos discursos, originariamente configuradas no
discurso do mestre.
Se, para Freud, o supereu é paradoxal porque é
simultaneamente herdeiro do complexo de Édipo (do Nome-do-Pai)
e do Isso (pulsão destrutiva), para Lacan pode-se dizer que o
supereu se apresenta duplamente como herdeiro do S1
(significante-mestre), posicionado no lugar do comando do
discurso do mestre e como objeto a, enquanto voz, produção derradeira desse discurso.
No âmbito da constituição da subjetividade, a
violência primeira é do significante, da arbitrariedade do S1,
tal como se apresenta no discurso do mestre, exibida nas
vicissitudes tirânicas do supereu, ao imprimir a ferro e fogo
as primeiras marcas da relação do homem com o significante.
O mal-estar na civilização que Freud atribuiu à
pulsão de morte e ao seu correlato, o supereu, foi por Lacan
(1969-70) atribuído aos avatares dos quatro discursos (do
mestre, da universidade, da histérica e da psicanálise) e suas
modalidades de ordenação do desejo e do gozo nos laços
sociais. O que Freud chamou civilização, Lacan chamou discurso
e, baseada nessa orientação, realizamos uma leitura de “O
mal-estar na civilização” recorrendo à teoria dos discursos
em Lacan.
O surgimento do quinto discurso, que é o da tecnociência
capitalista (Lacan,
1973, p. 29), transformou o mal-estar em devastação. Por esta
razão, confrontamos a violência instituída e instituinte do
discurso do mestre, discurso fundante da subjetividade regulada
pela perda e recuperação de gozo, nos termos do sujeito e do
objeto a, com a violência
que se apresenta como mutação subjetiva, ruptura dos laços
sociais, como desregulação do gozo no discurso do capitalista.
Do mestre antigo ao mestre moderno, que é o
capitalista, o que está em jogo é a mais-valia (Lacan,
1969-70) produzida pelo capitalismo neoliberal, razão da
exacerbação de todos os métodos de exploração cruel do
homem pelo homem, sem qualquer sentimento de solidariedade,
somando-se a este a furiosa devastação da natureza e, conseqüentemente,
da vida. Pode-se, portanto, dizer que a violência é do
capital, este significante mestre do discurso capitalista.
A violência na atualidade dá a entender que algo
da báscula entre o erótico e a destrutividade mudou
radicalmente e que o termo mal-estar, relativo à pulsão de
morte e utilizado por Freud, se tornou insuficiente para nomear
os fenômenos que estão acontecendo na contemporaneidade.
No capítulo três, intitulado “Incidências da
violência na clínica psicanalítica”, refletimos, com
suporte nas considerações de Carneiro Ribeiro (2006) e Alberti
(s/d), sobre aspectos clínicos relativos às vozes e aos silêncios
da violência; confrontamos impasses e perspectivas do discurso
do capitalista com o discurso psicanalítico e concluímos
evocando a participação do psicanalista na construção da
atualidade.
Dividimos a violência que comparece na clínica
psicanalítica em dois grandes planos. Aquela que poderia ser
chamada de social, por se apresentar entre corpos, e aquela que
poderia ser chamada de violência do sujeito,
por tomar-se a si próprio, em sua divisão como outro ou como
objeto. Queremos chamar atenção para esta misteriosa
modalidade estrutural de violência, para as vicissitudes do
gozo mortífero do masoquismo, que reage negativamente à vida e
à cura, e que, na maioria das vezes, é invisível para o
mundo, mas comparece como pano de fundo na clínica psicanalítica.
A reação terapêutica negativa lhe é exemplar, inclusive para
confirmar sua primariedade e desvelar a lei insensata, feroz e
cruel que rege o supereu.
As operações da castração, do recalque e do
supereu, que regulam a violência nos quatro discursos não têm
eficácia no quinto, o do capitalista.
A violência que é produzida pelo quinto discurso,
que é o da tecnociência capitalista, interpela a ética da
psicanálise a uma nova leitura sobre suas causalidades, seus
efeitos e incidências nos laços sociais. A primeira oposição
entre o discurso do mestre e o do capitalismo tem a finalidade
de confrontar a violência instituída e instituinte do discurso
do mestre (discurso fundante da subjetividade) com a violência
que se apresenta como mutação subjetiva, ruptura dos laços
sociais, desregulação do gozo no discurso do capitalista.
A segunda oposição, colocada entre o discurso do
capitalista e o do psicanalista, tem a finalidade de rediscutir
a evidência clínica da psicanálise, seu grau de
comprometimento com o discurso capitalista, bem como a participação
do psicanalista na construção da atualidade, regida por este
discurso.
Adotamos a proposição feita por Lacan (1969-70) de
que o discurso psicanalítico dispõe de recursos para
interpretar os desfuncionamentos subjetivos do discurso do
capitalista advindos dos desvios da relação da ciência com o
gozo do saber. Há mais de meio século, o saber transformado em
mercado e a apropriação da mais-valia pelo capitalista dão a
medida da deriva do sujeito, do objeto, do grande Outro e do
saber, especialmente do saber enquanto privilegiado meio de
gozo.
Antes de concluir, gostaria de reafirmar que, para
estudar a violência, adotamos uma teoria segundo a qual a
realidade se define como realidade de discurso regulada pelas
modalidades de gozo nos laços sociais. Desta perspectiva, a
linguagem, o inconsciente, as pulsões e os laços sociais são
constitutivos da subjetividade, são propriamente a
subjetividade. Os quatro discursos, a saber, o do mestre, da
universidade, da histérica e do psicanalista, regidos pela
castração, pelo recalque e pelo supereu, são os ordenadores
da estrutura de linguagem. O quinto discurso, que é o do
capitalista, não mais obedece a essas leis nem se inscreve
nestes princípios. Paradoxalmente, o crescimento da violência
no capitalismo termina expondo de forma maximizada a presença
deste significante, destrutividade, e das suas operações próprias
à estrutura do discurso e da linguagem.
Quero também evocar um aspecto que apareceu nas
considerações finais da tese, e que certamente merecerá um
estudo posterior. Consideramos que as proposições teóricas
sobre as manifestações subjetivas da destrutividade
apresentadas por Freud e Lacan caminham de certo modo
paralelamente ao que a filosofia política explora, até os dias
de hoje (Hobbes, Zizek e Janine Ribeiro). A compreensão da
realidade como estrutura de discurso nos leva a concordar com
aqueles que defendem que a barbárie contemporânea, as guerras,
as crueldades, as crescentes segregações não dependem das
paixões gananciosas do ser humano, mas da razão. A análise
desenvolvida pela filosofia política, de que a razão é o
instrumento que permite inferir a guerra porque o lugar onde
esta se dá é o das relações humanas, pode ajudar a refletir
acerca da concepção dos discursos como fundamento da
subjetividade no sentido da nova razão inaugurada pela psicanálise.
Enfim, a psicanálise, enquanto um discurso entre
outros, pode e deve se somar às outras áreas do conhecimento e
aos múltiplos movimentos que fazem resistência às múltiplas
formas de segregação e violência advindas do capitalismo.
Munidos do discurso do psicanalista, acreditamos que resta-nos
favorecer a circulação da suposição de saber ao Outro.
Concluo, dizendo que considero válida a aposta
psicanalítica de reinventar o mundo com o vigor da palavra que
supõe saber ao Outro. Aposto, na contramão do capitalismo, que
o método psicanalítico, sustentado no amor ao saber do
inconsciente, tenta resgatar a relação do saber com a verdade,
relançando o gozo da vida.
Notas
1.
Texto da defesa da tese de doutorado da autora, orientada pela
Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos e apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de
Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Teoria Psicanalítica.
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Disponível em: www.gradiva.com.br/egrad.htm.
Acesso em 10 dez. 2005.
Texto
recebido em: 10/09/2007.
Aprovado
em: 14/10/2007.
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