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I – Introdução
Este artigo pretende apontar como a disciplina auto-intitulada
neuropsicanálise, devido ao seu viés cientificista, não
consegue articular um conceito importante para a teoria e a clínica
psicanalítica: o de fantasma. Não aborda o conceito de
fantasma porque, longe de ser um retorno ao sentida da experiência
freudiana, é um movimento revisionista tal como o definiremos
na primeira parte. Em seguida, traremos as definições
propostas pelos neuropsicanalistas e apontaremos como eles não
integram o conceito de sexualidade em seus textos. É a partir
da noção psicanalítica da sexualidade que somos
necessariamente levados a pensar o fantasma, principalmente no
que este aponta para o sujeito e para a definição de campo de
ação da psicanálise como sendo um campo ético, não
permitindo a redução cientificista proposta pela dita
neuropsicanálise.
II
– Revisionismo
Na introdução de seu “Projeto para uma psicologia científica”
(1895), Freud argumenta em favor de seu interesse de estruturar
uma psicologia “[...] capaz de representar os processos psíquicos
como estados quantitativamente determinados de partículas
materiais especificáveis” (1985, p. 395). Podemos apontar, a
partir da forma como Freud coloca o problema, que o objetivo
dele era fazer com que a psicanálise viesse a ser reconhecida
como uma ciência do psiquismo. Disso decorre que o
cientificismo de Freud não é outra coisa senão um
assentimento ao ideal de ciência, como diria Milner (1996, p.
47). O problema poderia se resumir a uma pergunta do tipo: do
que necessita a psicanálise para ser científica?
No entanto, segundo Fernandes (2005), a relação da psicanálise
com a ciência – muitas vezes assumida de forma a se propor um
estatuto científico para
o campo analítico – não deve se submeter ao interesse de
Freud pela ciência de seu tempo. Em alguns textos (1895, 1925),
vemos Freud constrangido pelo desenvolvimento das ciências de
sua época; ele considera importante que a psicanálise seja
consolidada sob os princípios que regem uma ciência natural
para que se tenha seu justo reconhecimento. E em outros (1900,
1913, 1915), Freud se preocupa em demonstrar como um sintoma
neurótico se sustenta a partir de uma lógica de funcionamento
psíquico, implicando necessariamente em um posicionamento do
sujeito; e se há um sujeito em jogo, já não estamos em um
campo científico de problemas.1
Cremos que há uma tensão entre o assentimento de Freud à ciência de
sua época e a sua construção em relação aos problemas com
os quais se defrontou na clínica. Ora, se vamos julgar Freud,
é preciso partir do que de sua teoria ficou como conceitos e não
como intenções. É através da observação do que ele
construiu conceitualmente que podemos verificar que, se em vários
momentos ele foi contrário ao ideal de ciência da época, ele
não o foi em relação ao que Bachelard (1996) chama de “espírito
científico”: a capacidade de por à prova os princípios que
orientavam sua investigação. Afinal, não encontramos na obra
de Freud vários momentos em que ele se vê levado a produzir
novos conceitos em função dos impasses de sua experiência?
Nesse mesmo contexto – sobre o estatuto científico da psicanálise
– podemos evocar a invectiva lacaniana de retornar ao
pensamento de Freud. Esse retorno indica, de início, que o
problema da psicanálise ser ou não uma ciência deve ser
pensado em função dos conceitos que Freud propõe para tratar
clinicamente um sujeito. Podemos afirmar ainda, que estes
conceitos estão bem localizados na obra freudiana. Localizados
em função de um problema, não de uma cronologia. Portanto, a
psicanálise não surtiria efeito por ser uma teoria bem
trabalhada em nível empírico: não se trata de testar a
veracidade das palavras que Freud utilizou. Mas, antes de tudo,
é preciso analisar quais os problemas que Freud recortou, além
de avaliar os efeitos produzidos pelos conceitos que criou.2
Se, de um lado, temos o projeto de retorno a Freud feito por Lacan, de
outro, temos o trabalho dos revisionistas freudianos, que
divergem no ponto principal nesse primeiro momento: a relação
da psicanálise com a ciência. Dessa forma, neste artigo
trataremos do impasse provocado quando a psicanálise –
especialmente pelas palavras de Freud – se refere ao psiquismo
como um campo específico de problemas. É a partir do sentido
dessa referência que podemos pensar se a psicanálise alude ao
psiquismo do mesmo modo que os outros sistemas psicológicos
objetivantes, ou seja, a psicanálise coloca sob o seu campo de
problemas a questão de ser uma ciência dos fatos mentais? A
primeira implicação que temos a partir desse problema é a de
que a questão da cientificidade da psicanálise deve ser
pensada em função do campo de problemas no qual ela opera. Em
conseqüência disso, devemos, em segundo lugar, avaliar se o
projeto revisionista se sustenta a partir de um problema
psicanalítico ou, ao contrário, se suas referências aos
conceitos psicanalíticos já se configuram como um
deslocamento, ou seja, se colocam um problema que já não é
psicanalítico.
Com efeito, levando-se em conta o sentido do problema da psicanálise,
é que compartilhamos com Milner (1996) da tese que afirma que a
psicanálise é compatível com o espírito científico. Tanto a
psicanálise quanto a ciência adotam um mesmo princípio para
tratar seus problemas: ambas recusam uma realidade quando esta
se impõe sem se submeter a algum tipo de constrangimento
intelectual e partem do princípio de que a obtenção do
sentido de um problema implica a existência de impossibilidades
na subordinação deste mesmo problema a outros campos
distintos. Para Bachelard (1996), uma ciência é considerada
como tal quando seu processo de objetivação se dá em função
da rede conceitual produzida para explicar determinado fenômeno.
Na atividade científica todos os objetos são produzidos em função
de uma rede conceitual. Dessa forma, a lógica científica é
marcada pela impossibilidade de tratarmos de um fenômeno – ou
de um problema – longe da rede conceitual produzida para
explicá-lo. É por essa razão que Lacan define o estatuto do
inconsciente freudiano como sendo ético, pois o problema da
psicanálise também o é.3 O primeiro ponto a ser
considerado a partir dessa asserção é o seguinte: o estatuto
do inconsciente e a práxis
psicanalítica se referem a um problema específico; ético,
não científico.
Logo, podemos falar de uma implicação da psicanálise em um problema
unicamente clínico: Freud avança na articulação dos
conceitos psicanalíticos a partir dos impasses que surgem
quando tenta propor uma técnica para tratar um sujeito. É a
relação em que os conceitos se encontram tramados que
possibilita à ciência produzir um objeto tanto quanto à
psicanálise propor um tratamento para o sujeito. Longe de se
referir a uma busca científica para a causa de um sujeito,
Freud só consegue estabelecer seus conceitos a partir do
momento em que ele se coloca questões de um homem qualquer, ou
seja, a partir do momento em que ele dá importância aos
problemas que lhe afetavam, e não em nome de um ideal científico.4
É em nome desse ideal, científico, que surge o que nós chamaremos
aqui de revisionismo.5 Os revisionistas aparentemente
se justificam a partir de uma asserção de Freud de que a
psicanálise ainda não é uma ciência (1938a). Mas esta
justificativa nos parece inapropriada. A partir do momento em
que a psicanálise se estabelece como uma clínica de problemas
psíquicos – e, quando nos referimos a uma clínica esta só
é possível a partir de uma colocação do problema pelo
sujeito – temos por conseqüência uma modalidade de
tratamento que afastaria a possibilidade de tratar o sujeito
como um objeto. E, ainda, se o conceito de sujeito não denota
uma experiência científica, então, é necessário pensarmos
em outra possibilidade no tratamento das neuroses. Assim,
o revisionismo se esquece de que o passado é histórico, ou
seja, articulado a partir de certo tipo de problema.
Dessa forma, temos um problema quando aqueles que chamaremos de
revisionistas freudianos procuram, a partir de deslocamentos6
na teoria psicanalítica, estabelecer uma teoria científica
para o tratamento de um sujeito. Jacoby (1977) define o projeto
revisionista como sendo aquele que, a partir de idéias
fracassadas do passado, buscará a totalização de uma
determinada teoria independentemente de uma experiência. Jacoby
(1977) ainda nos fala que para uma teoria ser considerada
revisionista, ela deve, necessariamente, abandonar ou deixar de
lado conceitos que são fundamentais. Ele tem por objetivo
retirar todo o poder subversivo de uma teoria. Não é gratuito
que o livro de Jacoby (1977) tenha o título de Amnésia social: uma crítica à psicologia conformista de Adler a Laing.
Sua tese é a de que vários autores pós-freudianos tentaram
fazer uma revisão de Freud retirando da psicanálise aquilo que
ela tem de mais traumático: ora a restauração de unidade do
sujeito (teorias do eu forte e do eu fraco), ora a definição
de uma sexualidade reduzida à genitalidade, como no caso de
Reich.
Dessa forma podemos dizer que uma teoria é revisionista quando não
aborda nem os conceitos de inconsciente de Freud (1900) como uma
nova lógica de funcionamento, nem a sexualidade infantil
(1905). Ou quando não aborda uma das maneiras pelas quais
podemos pensar a articulação dessas duas dimensões: o
conceito de fantasma
III – A neuropsicanálise
e a crítica cientificista
É nessa linha revisionista que podemos situar alguns desenvolvimentos
recentes que tentam criticar a psicanálise a partir da não
inclusão da psicanálise no campo científico, ou a acusação
de que ela é uma pseudociência. Nesta perspectiva foi
publicado, em 1995, um livro panfletário intitulado Imposturas
intelectuais (Sokal
& Brickmont). Este livro pretendia denunciar o caráter
de teorias vagas das ciências humanas e sociais em comparação
com as ciências exatas. A denúncia se dava por uma
desqualificação de autores das ciências sociais e humanas, o
psicanalista Jacques Lacan entre eles, para desqualificar as
obras desses autores. O livro “denunciava” que Jacques Lacan
usava determinados conceitos científicos de maneira errada,
mas, em momento algum, os autores de tal livro se perguntam se
esses conceitos assumem outro sentido quando inseridos na grade
conceitual da psicanálise, e muito menos se perguntam sobre o
problema ao qual a psicanálise se dedica. Este tipo de crítica
é, de acordo com J.L. Genard, uma crítica que “não toca na
ordem de argumentação”, e comparando com a crítica de um
texto literário, é como se pudéssemos avaliar o valor de um
texto corrigindo apenas os erros de ortografia, não levando em
conta a sintaxe e o estilo (Genard
Apud Cartuyves, 2006,
p. 162).
Em 2005, foi publicado na França outro livro panfletário intitulado Le
livre noir de la psychanalyse (Meyer,
2005). Este livro é um libelo acusatório que, em tom de denúncia,
chama Freud de mitômano, a psicanálise de fruto de propaganda
e monopolista do “mercado psi”, a clínica psicanalítica de
uma sucessão de erros sem eficácia e os psicanalistas, de
crentes de uma nova religião à qual não fazem nenhuma crítica.
No entanto, o cerne de todos esses supostos argumentos é a
afirmação de que a psicanálise é uma pseudociência que não
teria comprovação empírica de suas teses. Temos aqui a afirmação
de um princípio cientificista: tudo aquilo que não for científico
é desprovido de sentido e, conseqüentemente, de validade. Mas
misturar argumentos acusatórios com a afirmação de
cientificidade não seria, como diz Cartuyves, “um apelo à ciência
por um modo de encaminhar as questões que não respeita suas
regras mínimas”? (Cartuyves,
2006, p. 155).
Por outro lado, estas críticas cientificistas não ficam apenas no nível
de publicações, mas passam a ação através da criação de
Instituições. No ano 2000, foi fundada em Londres a Sociedade
Internacional de Neuropsicanálise (Serpa,
2006). Esta sociedade conta com a participação de
neurocientistas – Antonio Damásio e Mark Solms – e de
alguns psicanalistas – Daniel Widlocher e Otto Kernberg –
que, sob os auspícios de uma pesquisa aparentemente
interdisciplinar, pretendem fornecer um substrato empírico à
psicanálise – a saber, o cérebro. É, ao menos, o que
podemos depreender da posição de um neurocientista que se
aliou prontamente ao projeto da neuropsicanálise: “o método
psicanalítico foi eficaz em propor hipóteses científicas,
mas, ao mesmo tempo, pouco eficaz em testá-las” (Kandel,
1999). Parte-se aqui do pressuposto de que o sujeito é o efeito
de dados de realidades e de que Freud fez uma teoria amparada em
metáforas, em conceitos que “não teriam uma localização
cerebral. Metáforas, como tais, não são testáveis” (Gedo,
1997). Assim, a psicanálise se ampararia tão somente em
argumentos de autoridade (Fonagy, 1999, p. 654).
Amparando-se em dados supostamente objetivos, a neuropsicanálise
seria, assim, o modo pelo qual a psicanálise conseguiria
responder às críticas de ser uma pseudociência. No entanto, a
neurociência não se pergunta se a psicanálise e o seu
problema podem ser tratados por métodos estranhos à psicanálise.
Encontraríamos aqui a confusão entre campos de problemas
distintos – aqueles relativos ao sujeito que demanda um
tratamento clínico pela fala e aqueles relativos ao
funcionamento do sistema nervoso e que não depende de um
sujeito para ser pensado, mas de procedimentos experimentais. A
psicanálise corre o risco de ser reduzida a um capítulo menor
da neurociência. Temos então um deslocamento do sentido dos
conceitos psicanalíticos por não haver uma consideração
sobre o sentido do problema da psicanálise.
No Brasil podemos dizer que há duas posições que consideram
relevante o projeto neuropsicanalítico ou que acham importante
a conquista das neurociências para a psicanálise. Cheniaux
adota a posição que podemos chamar de dogmática em relação
à neuropsicanálise. Ele defende a afirmação de que a psicanálise
só poderá se tornar científica se responder a dois aspectos:
o de fazer apelo ao método experimental – primeiro aspecto
–, que hoje seria mais eficaz para detectar a base empírica
dos problemas psíquicos no cérebro – segundo aspecto (Cheniaux,
2006, p. 101).
A outra posição que encontramos no Brasil em relação à neuropsicanálise
é a que podemos chamar de crítica. A que considera que todos
os atores envolvidos devem ser ouvidos sem sectarismo. Essa é a
posição de Winograd (2004), que defende um diálogo franco
entre a psicanálise e as neurociências. Como se a psicanálise
pudesse dizer algo à neurociência por ter antecipado hipóteses,
e como se a neurociência tivesse algo a dizer a psicanálise
por ter comprovado essas hipóteses antecipadas. Ora, para haver
diálogo deve haver ao menos um assunto em comum, e é
justamente esse assunto em comum que resta saber se há.
Winograd (2004) acredita que sim. Acreditamos que a questão
pode ser considerada de outra maneira: a neurociência não nega
e muito menos confirma hipóteses psicanalíticas, assim como a
psicanálise não antecipa ou forjou hipóteses acessórias,
construtos hipotéticos para as descobertas neurocientíficas.
A ciência, no projeto neuropsicanalítico é tomada como equivalente
de eficácia e a eficácia como sinônimo de utilidade. Lanez
(2005), ao entrevistar Jacques-Alain Miller, demonstra que a
publicação do Livro negro seria apenas mais uma investida contra a psicanálise,
tal como o projeto de profissionalização de psicoterapias que
vemos em diversos países e um relatório do Ministério da Saúde
francês que afirmava que as terapias cognitivo-comportamentais
eram as mais eficazes. É nesta via que autores que são
oriundos das Terapias Cognitivo-comportamentais, da
Psicofamacologia e da Etnopsiquiatria, que escrevem no Livro negro, pretendem estabelecer a avaliação de diversas
psicoterapias por meio de saberes que indicariam qual a melhor
para adaptar os homens às necessidades da sociedade. Apenas,
como aponta novamente Cartuyves (2006, p. 164), em momento algum
se preocupam em interrogar sobre a normatividade social. Reduzem
o tratamento da fala, que sempre qualificou a psicanálise, a
uma mera questão de técnicas e competências, como demonstram
Milner e Miller (2006, p. 5). Desse modo, pretende-se encontrar
não somente um meio de tratar os sujeitos que seria
supostamente objetivo, mas um modo de orientar os homens e a
sociedade. Vemos isso no projeto que pretende que os professores
infantis se tornem “policiais” para detectar por meio de
questionários de avaliação se uma criança de três anos pode
se tornar um delinqüente na adolescência.7
Isto que trouxemos no parágrafo anterior é importante porque é
seguindo essas orientações que um dito neuropsicanalista
define o tratamento: “atingir um funcionamento mental
adequado” (Doin,
2001). No entanto, não podemos esquecer que a psicanálise, ao
formular suas hipóteses, forja um campo de práticas próprio
(a clínica de um sujeito falante) com fins próprios. Laurent
(2006), ao pensar os princípios do ato analítico, afirma: “a
psicanálise não pode determinar sua visada e seu fim em termos
de adaptação da singularidade do sujeito a normas, regras,
determinações standard da realidade”. Laurent segue aqui a
determinação de Freud no texto em que discute a questão do
fim de análise. Pois Freud diz que a psicanálise dá ao
sujeito a oportunidade de fazer novas escolhas de objeto (1937,
p. 230). Ou, retomando Laurent (2006), “afrouxar as identificações
às quais o sujeito está fixado”.
Estes fins se dão em função de que a psicanálise é uma prática do
registro da fala e da linguagem, tal como Lacan a chamou (1953,
p. 238). Por esta razão, ela é do domínio de problemas éticos.
Como lembra Brousse (2006), “é no domínio da ética e do juízo
que se situa a psicanálise. Desde sua invenção por Freud, o
laço da psicanálise à ética é manifestado pelo abandono de
toda sugestão, de todo julgamento social ou moral da parte do
psicanalista”.
Não podemos deixar de notar que a noção de que se pode traduzir as
questões da clínica psíquica está em relação direta com
propostas de avaliação e de submissão dos diversos
tratamentos psíquicos a um discurso medicalizante. Acreditamos
que estas propostas não deixam de ter incidência sobre a condução
dos tratamentos. Julgamos que os problemas de uma clínica psíquica
exigem um conceitual e um instrumental próprio, e que apelar
para conceitos e instrumentais de outras áreas somente porque
eles são considerados objetivos, como faz o discurso
medicalizante, pode trazer conseqüências danosas a esses
sujeitos.
Entretanto, um ponto chama a nossa atenção quando analisamos os
textos neuropsicanalíticos: não encontrar nenhum comentário
relativo à sexualidade. As referências geralmente são em relação
à teoria do aparelho psíquico e utilizam o texto “Projeto de
uma psicologia científica para neurólogos” (1895) como
argumento de que Freud sempre teve como meta a redução ou
tradução de suas teses em termos neuronais. Apenas esquecem
que as elaborações desse texto foram abandonadas por Freud
quando ele formulou sua hipótese fundamental da psicanálise: a
de que há pensamentos inconscientes – em sua opus
magna, a “Interpretação dos sonhos” (1900). Se
considerarmos o livro de um autor brasileiro que mais se
estendeu sobre o tema da relação entre a psicanálise e as
neurociências nos últimos tempos (Andrade,
2003), podemos indicar que na parte em que trata diretamente da
tradução dos conceitos psicanalíticos em termos neurocientíficos,
não encontramos o tema da sexualidade. Os nomes dos capítulos
são: “A teoria freudiana do desenvolvimento da mente e as
neurociências” (p. 91); “A mente como sistema fechado”
(p. 93); “Aspectos neurocientíficos do afeto” (p. 99);
“Ligação intersubjetiva: attachment
e relação objetal” (p. 103); “Aspectos neurocientíficos
do sonho” (p. 146); “O inconsciente freudiano e a neurociência”
(p. 154). Ou seja, encontramos apenas a parte da teoria
freudiana concernente ao aparelho psíquico ou sobre suas teses
sobre o desenvolvimento.
O mesmo autor, quando aborda o conceito de pulsão, situa sua argumentação
no nível da tradução do alemão para o português, e não no
nível conceitual. Pois o termo alemão que designa pulsão é Trieb. O autor defende que ele seja traduzido por instinto. Faz essa
defesa para facilitar a redução da pulsão aos domínios biológicos.
A sua argumentação se vale, em verdade, de um sofisma: se a
pulsão não pode ser entendida dentro do psíquico, como afirma
Freud (1915, p. 82), ela é necessariamente biológica. Mas como
pode ser de ordem biológica um conceito que indica ser uma força
constante, quando sabemos que uma exigência biológica é
sempre momentânea e cíclica? Como considerar biológico uma
exigência que não indica em si mesma os caminhos e os objetos
de satisfação dessa pulsão? Prova disso é a possibilidade de
haver satisfação com objetos-fetiche (Freud,
1927).
A dimensão da sexualidade é um tema que atravessa a obra freudiana de
ponta a ponta. Como lembra Gallano (1991, p. 9), Freud define a
sua teoria etiológica da neurose como uma modalidade de defesa
em relação a representações investidas sexualmente. Daí a
sua importância na etiologia das neuroses (Freud,
1898). Como diz Laurent (2006), “a descoberta da psicanálise
é, em primeiro lugar, a da impotência do sujeito em alcançar
a plena satisfação sexual”. A isso Freud chamou em 1905, com
seu “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, de
sexualidade infantil. O infantil não é relativo à infância,
mas é uma característica intrínseca da sexualidade que indica
a falta de um saber específico para a escolha de objeto. Daí a
importância para a psicanálise da dissociação entre o tema
da sexualidade que, a princípio pode encontrar satisfação com
qualquer objeto e de qualquer modo (daí ela ser
perverso-polimorfa), e o tema da reprodução que impõe um
objeto a priori para o sujeito. Deste modo, não podemos mais
falar em proporção quando estamos às voltas com a
sexualidade, mas de um problema inteiramente subjetivo: qual o
objeto de investimento para um sujeito? Ora, a tentativa do
sujeito fixar um objeto para si é elucidada pela psicanálise
através do conceito de fantasma. E é essa dimensão
fundamental para pensar a clínica psicanalítica que o
revisionismo da neuropsicanálise pretende deixar de lado.
IV – Fantasma e posição subjetiva
O conceito de fantasma marca a
passagem da teoria da sedução traumática para a teoria
psicanalítica, como aponta Freud em “Um estudo autobiográfico”
(1925a). Esta passagem não é apenas de uma maneira de pensar o
sujeito para outra, mas estabelece uma ruptura no que diz
respeito ao pensamento clássico sobre o sujeito e instaura um
novo campo de experiência que Freud denominou psicanálise. A
partir do estabelecimento desta nova dimensão, a psicanálise
rompe com a redução do sujeito à objetividade e se insere,
decididamente, no campo de um sujeito. É por esta razão que o
conceito de fantasma vai se tornando cada vez mais importante
dentro da teoria psicanalítica. Se na “Interpretação dos
sonhos” (1900), a tarefa mais importante era a interpretação
dos sintomas, já em “Bate-se em uma criança” (1919/1996) e
“Construções em análise” (1938b), é o fantasma que
aparece como preocupação principal na clínica. Lacan (1953,
p. 245), por sua vez, a partir do momento em que se propõe a
desenvolver um retorno a Freud, marca o estabelecimento da adoção
de uma construção lógica para a psicanálise, uma tentativa
de logicizar este campo, como vemos em seu Seminário
XIV, intitulado “A lógica do Fantasma” (1966).
Podemos começar uma primeira
aproximação do tema situando o fantasma em oposição ao
sintoma. Miller, em “Percurso de Lacan” (1987), apresenta o
conceito de fantasma em oposição ao de sintoma no que tange ao
campo da interpretação. Se por um lado o sintoma é da ordem
do interpretável, o fantasma se insere em outra dimensão. O
fantasma é uma dimensão apartada do resto da neurose, como já
enunciava Freud em “Bate-se em uma Criança” (1919). O que
está em jogo é uma articulação com a satisfação pulsional,
com o gozo.
Ainda na esfera desta
oposição entre fantasma e sintoma, podemos estabelecer uma
diferenciação entre a psicanálise e as psicoterapias, como
apresentada por Santiago (1997, p. 87). O sujeito da psicanálise
é situado como não sendo passível de ser reduzido a uma
expressão sintomática. Para além do sintoma, o sujeito
encontra-se na ordem do fantasma. O psicanalista lida com uma
divisão subjetiva que não se restringe às formações do
inconsciente. Também se encontra em jogo a satisfação
paradoxal da pulsão. Neste sentido, um aspecto fundamental, que
distingue a psicanálise das psicoterapias, refere-se ao fato de
que, no campo da psicanálise, para além da remissão de
sintomas, o que está em jogo é a travessia do fantasma.
Segundo Lacan, a função do
fantasma é sempre a de tamponar a falta que marca a emergência
do sujeito e que se apresenta na cadeia significante. Em psicanálise,
não há uma noção de unidade, não há completude quando se
está no campo do sujeito. É neste sentido que surge o
fantasma, no intuito de estabelecer uma unidade que não há, de
encobrir a falta. Como dito anteriormente, o fantasma não se
encontra no campo do interpretável, está para além deste;
assim, quanto ao fantasma, cabe à psicanálise levar o sujeito
à sua travessia. É em torno deste ponto que se desenvolve o
trabalho analítico. A cura, enquanto remissão de sintomas, vem
por acréscimo.
Assim sendo, Lacan realiza uma
mudança de privilégios, há uma superação da primazia do
registro do imaginário em direção ao simbólico, como
demonstra Miller (2005). Ou seja, se em um primeiro momento
havia um privilégio do campo do imaginário, em um segundo
momento estabelece-se o primado do registro do simbólico. Três
pontos apresentados por Lacan na primeira lição do Seminário
XIV evidenciam esta mudança de privilégio:
1-
A instituição do campo da psicanálise como campo de
uma existência lógica, em oposição ao de uma existência de
fato. Lacan se dedica de maneira mais sistemática a este tema
em “Do sujeito enfim em questão” (1966), no qual apresenta
uma diferenciação do campo do fato para o campo do direito. O
autor pontua que o objeto da psicanálise é sempre no campo da
linguagem, do discurso, do direito, da existência lógica, da
enunciação, nunca é o da objetividade. Assim, pensar a
possibilidade de uma junção entre a psicanálise e as neurociências
ou de subordinação de uma a outra é tão somente uma forma de
revisionismo, pois pretende deixar de lado conceitos
fundamentais para o campo psicanalítico.
2-
A superação de uma relação imaginária com o objeto,
em virtude da adoção do objeto a
como objeto lógico. Aqui Lacan diz retomar alguns
encaminhamentos já apontados no desenvolvimento do seu Seminário,
livro IV, intitulado “A relação de objeto” (1956-57),
onde ressaltava a importância do imaginário da mãe para
constituição da estrutura subjetiva da criança. No seminário
sobre a lógica do fantasma, vai valorizar os elementos lógicos
desta constituição.
3-
O estabelecimento de uma distinção entre a fantasia e o
fantasma. O
fantasma se opõe à fantasia por obedecer a uma lógica. Como
conseqüência, o estatuto do objeto a não poderá ser situado no campo do imaginário, visto que ele se
apresenta enquanto objeto lógico. Lacan falará posteriormente
do objeto a como
consistência lógica, núcleo do real que resiste à interpretação
significante. Construção semelhante à Freud, já elaborara em
sua interpretação dos sonhos ao falar do umbigo do sonho, em
torno do qual giram as diversas formações significantes do
inconsciente.
Contudo, a tentativa do autor
em apresentar a lógica do fantasma perpassa pelo
desenvolvimento de uma lógica do próprio conceito de sujeito.
Sabe-se que a perspectiva psicanalítica é uma teoria da clínica,
se fundamenta nesta e se dirige a ela; clínica esta que, por
sua vez, é a clínica de um sujeito. Ou seja, a perspectiva
psicanalítica está no campo do sujeito, é intrínseca a este.
Tendo em vista a impossibilidade de estabelecer uma lógica
desvinculada da lógica do sujeito, Lacan apresenta, sobretudo
na primeira lição do Seminário
XIV, a lógica da constituição do sujeito. O sujeito da
psicanálise é compreendido enquanto emergido a partir de um
recorte; o sujeito é barrado, barrado em função do objeto a,
o que, por sua vez, estabelece a exigência de uma relação
fundamental com o Outro.
Esta relação com o Outro,
que faz parte da constituição do sujeito, é estabelecida
segundo três pontos fundamentais:
-
A
noção de reunião e exclusão. Lacan já havia trabalhado
estas noções em seu seminário sobre os conceitos
fundamentais da psicanálise (1964), onde conceitua as duas
operações de constituição do sujeito, a saber, alienação
e separação.
-
A
função da negação, onde Lacan aponta para sua discussão
com Jean Hippolyte a propósito do texto de Freud sobre a
denegação (1925b). Neste texto Freud trata do que podemos
chamar, a partir do texto de Miller, de modalização
subjetiva.
-
O
recalque originário como sendo o processo fundamental de
divisão do sujeito.
Em linhas gerais, pode-se
dizer que, o objetivo do Seminário
XIV: a lógica do Fantasma, é estabelecer uma redução do
valor do imaginário e uma ampliação do valor do simbólico em
direção ao real. O que é proposto por Lacan no presente
trabalho é justamente o desenvolvimento de uma lógica, lógica
que não há na fantasia e no imaginário; por isso o
estabelecimento da primazia do simbólico. E trabalhar também
as operações lógicas de constituição de um sujeito e seu
posicionamento no fantasma.
Podemos então concluir, a partir dessas elaborações, que
a perspectiva psicanalítica está situado no campo do sujeito,
é intrínseca a este. Em “Discurso do Método Psicanalítico”
(1998, p. 189), Miller define a psicanálise como uma questão
ética. E, por esta razão, o autor reforça a idéia de não
haver um só ponto nesta teoria que não se dirija a um sujeito.
Neste sentido, não é possível desenvolver nenhuma articulação
teórica sem se trabalhar a noção do sujeito da psicanálise;
enfim, não é possível apresentar a lógica do fantasma sem
antes apresentar a própria lógica da constituição do
sujeito. A noção de fantasma não se encontra em um campo
vazio, encontra-se no campo do sujeito. E não há como pensar o
sujeito sem pensar a ética que acompanha as suas questões. Não
é possível tentar reduzi-las a problemas de regiões
neurocientíficas. Seria uma revisão de Freud – revisão que
leva ao abandono de suas teses fundamentais – e não um
retorno ao mesmo, como fez Jacques Lacan.
Notas
1.
“Na
formação médica os senhores estão acostumados a ver coisas (...) Nada acontece em um
tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras
entre o paciente e o analista. O paciente conversa, fala de suas
experiências passadas e de suas impressões atuais, queixa-se,
reconhece seus desejos e seus impulsos emocionais” (Freud,
1916, p. 27-28).
2.
“Não
basta fazer história, história do pensamento, e dizer que
Freud apareceu num século cientista. Com a Interpretação
dos Sonhos, efetivamente, algo de uma essência diferente,
de uma densidade psicológica concreta, é reintroduzido, a
saber, o sentido” (Lacan,
1954-55/1986, p. 9).
3.
“O
estatuto do inconsciente, que eu lhes indico tão frágil no
plano ôntico, é ético” (Lacan,
1964/1998, p. 37).
4.
Procurando
unicamente sustentar sua teorização em nome de um ideal científico,
isto é, sob os votos de que a psicanálise seja um dia
considerada uma ciência, Freud não poderia estabelecer os
principais conceitos da psicanálise. Segundo Lacan, quando
levamos adiante a premissa de que há uma ciência pronta e
ideal, não haveria razões de abandonarmos este campo. “Se
Freud saiu, é que ele se deu outras [razões]. Ousou dar importância
àquilo que lhe acontecia, às antinomias de sua infância, às
suas perturbações neuróticas, aos seus sonhos. Daí ser Freud
para todos nós um homem que, como cada um, está colocado no
meio de todas as contingências – a morte, o pai, a mulher”
(Lacan,
1954-53/1986, p. 10).
5.
Revisão
no sentido de alterar os conceitos fundamentais da psicanálise.
6.
Segundo
Lecourt (1969), uma palavra não é um conceito. A definição
de um conceito só é possível a partir de um sistema de relações
interconceituais. Logo, um deslocamento conceitual não leva em
consideração o sentido do problema que está em jogo, uma vez
que variados tipos de interesses recobrem a lógica onde esta
produção do conceito se deu.
“Com a medicalização generalizada, esse
projeto instiga a criminalização generalizada da sociedade.
Todos culpáveis – futuros, potenciais. Se cada inocente é
culpado em potencial, cada profissional de saúde e da educação
torna-se um agente potencial do poder, mobilizado a este título,
fora de todo consentimento, em nome simplesmente da ciência”
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Texto recebido em: 11/05/2007.
Aprovado em: 20/09/2007.
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