Escolher o desejo do analista
como tema para a minha pesquisa de doutoramento implicou, de
partida, um problema metodológico. O desejo do analista não é
propriamente um conceito. É uma noção introduzida por Lacan
em 1958, que comparece em sua obra daí por diante sem que ele
tenha optado por uma definição única. Além disso, e talvez
por esta mesma razão, trata-se de uma expressão que, muitas
vezes, é usada pelos analistas de um modo pouco preciso, dando
margem a muitos mal-entendidos.
Afinal, o que quer um sujeito quando ocupa o lugar do psicanalista? Ele
pode “desejar” qualquer coisa? Como cingir o desejo que deve
animar o seu trabalho com a psicanálise? Há alguma maneira de
delimitar, minimamente, o que deve estar em jogo no desejo do
analista? Para onde ele deve “querer” conduzir cada
analisante quando dirige um tratamento psicanalítico? Em nome
de que ele age?
O primeiro passo foi, então, o de encontrar os pilares conceituais que
subordinariam os rumos de toda a pesquisa. A orientação
recebida levou-me a decidir pela escolha de dois axiomas
lacanianos fortes, ambos presentes no texto “A ciência e a
verdade” (1965).
Do ponto de vista lógico, um axioma é uma proposição admitida como
verdadeira porque se pode deduzir dela as proposições de uma
teoria (Ferreira,
1986). Tratava-se, portanto, de fundar o ponto de partida da
tese sob a égide da razão, arbitrária e fundante, ou seja,
determinada pelo modo particular como Jacques Lacan sustentou
sua leitura da obra freudiana.
O primeiro axioma - “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só
pode ser o sujeito da ciência” (Lacan,
1998, p. 873) - define o sujeito da psicanálise localizando-o
por uma relação de equivalência com o sujeito oriundo do
advento da ciência moderna. Dizendo de outro modo, à maneira
como a ciência moderna se constituiu corresponde um modo específico
de organização subjetiva.
O axioma lacaniano do sujeito funda em razão um princípio relativo ao
sujeito da psicanálise: há um sujeito que não é uma
individualidade. Ao situar o sujeito da psicanálise como
equivalente ao sujeito da ciência moderna, Lacan propõe uma
teoria estrutural do sujeito e, correlativamente uma teoria
sobre a cultura. A psicanálise é tomada como uma das evidências
da existência do sujeito da ciência, na medida em que opera
sobre os efeitos desse discurso na subjetividade moderna. A
partir do sintoma, ela recolhe o retorno real, recalcado, do
corte que fundou a ciência como ciência moderna e o sujeito
como sujeito do desejo.
O termo “corte” evoca o conceito bachelardiano de corte epistemológico, que designa as rupturas ou as mudanças súbitas
que ocorrem na história da ciência e que explicam porque “o
passado de uma ciência atual não se confunde com essa mesma ciência
no seu passado” (Canguilhem,
1977, p. 15). Para Bachelard, o progresso da ciência não deve
ser avaliado a partir de uma perspectiva continuísta, mas por
rupturas. Localizar o ponto de ruptura entre o velho e o novo é,
então, o que permite mostrar porque, sob o nome habitual que a
inércia da linguagem perpetua, encontramos sempre um objeto
diferente (Ibid.,
p. 25).
O gesto cartesiano de introduzir a dúvida como método de obtenção
de conhecimento é o ponto de corte entre o mundo antigo e o
moderno. Lacan localiza esse ponto baseando-se em Koyré. Para
esse autor (1953), o século XVII é marcado por uma revolução
espiritual (científica e filosófica) que conta a história do
declínio da visão cosmológica do mundo e do surgimento de um
novo ponto de vista baseado na indefinição e infinitização
do universo.
Descartes funda o mundo moderno a partir de uma estrutura topológica
original: a dúvida hiperbólica que resulta num corte com todo
o saber oriundo da tradição. Desta estrutura, presente na
cultura, Lacan ressalta seus efeitos subjetivos. O nascimento da
psicanálise, a descoberta do inconsciente, resulta de que Freud
tenha conceituado a censura e a divisão do sujeito articulados
à dúvida.
O corte com a tradição antiga, que propiciou o advento da ciência
moderna, separou definitivamente o campo do saber e o plano da
verdade. Desde então, já não se supõe mais a existência de
um cosmo fechado e de um saber finito, o saber de Deus. O
universo se torna infinito e todo o saber passa a ser enunciado
a partir da perspectiva de um sujeito e não de um referencial
absoluto. É por esta razão que Lacan pode afirmar que o
sujeito em questão se caracteriza por sua divisão entre o
saber e a verdade (Lacan, 1998, p. 870). A cultura moderna, marcada pelo advento
da ciência moderna, é o que determina este modo de constituição
subjetiva.
A escolha de iniciar a pesquisa a partir deste axioma lacaniano
possibilitou tecer e verificar a tese da existência de uma
homologia estrutural entre a operação de corte executada pela
dúvida metódica cartesiana e a perda de uma parte da realidade
conceituada por Freud (1924; 1940 [1938]; 1940a [1938]) como
operação fundadora da subjetividade. Ambas as estruturas se
distinguem por um corte que implica uma perda de realidade, ou
uma perda de gozo, e também por um recomeço, sempre inédito.
O corte que separa o mundo antigo e o moderno retira do mundo um
significante especial: Deus. No mundo antigo, é este
significante que agencia toda a ordem cósmica, normatiza o
pensamento e confere sentido a todas as coisas. É deste modo
que entendo a definição de Koyré (1991) do mundo antigo como
um cosmo fechado. Na visão cosmológica existe a relação
sexual. Os opostos se acoplam, fazem sentido e resultam numa
totalidade harmônica.
Já a operação constitutiva da subjetividade, que é também uma
operação de substituição, implica uma realidade insuportável
para todos os sujeitos. A perda em jogo aqui é relativa à
diferença sexual. Para o aparelho psíquico é impossível
subjetivar a castração materna. Por isso, uma corrente psíquica
a repudia. No entanto, Freud mostra que o repúdio não abole o
reconhecimento da castração pelo sujeito. Este reconhecimento
se faz presente “através de outros pensamentos e estruturas
de linguagem” (Coelho
dos Santos, 1999a,
p. 56-57), ou seja, de modo sintomático.
Esta demonstração permite conceituar a operação de corte com o
saber da tradição (que funda a ciência moderna) e a perda da
realidade (decorrente da expulsão primordial) como operações
topologicamente homólogas. Esta equivalência estrutural
localiza o ponto de interseção entre a psicanálise e a ciência
moderna. Nele, o campo da psicanálise se define por sua relação
de exclusão interna ao campo da ciência.
Enquanto a ciência aprofunda, cada vez mais, a separação entre o
sujeito e a sua origem, em direção ao ideal do sujeito sem
qualidades, a psicanálise se encarrega de recolher os efeitos
psíquicos desta operação. A tese de Freud (1933 [1932]) é a
de que é impossível erradicar completamente a ilusão porque
ela é constitutiva. A divisão psíquica impossibilita que a
psicanálise endosse a unidade ideal proposta pela equação
cartesiana entre a existência e o pensamento.
Deste modo, Freud desloca o ideal do campo da razão engendrada pela ciência
para mostrá-lo completamente articulado ao desejo do Outro, ou
seja, ao desejo do casal parental responsável por trazer o
sujeito ao mundo.
A descoberta do inconsciente atesta que o sujeito estrutura a sua relação
particular com o desejo relacionando-o ao desejo do Outro e esta
é a razão pela qual a realidade psíquica é o fundamento da fé,
do sentido, do sonho e de toda a espécie de crença (Coelho
dos Santos, 1999a, p. 144).
Em conseqüência do desamparo, o espírito humano tem uma inclinação
natural para a religião. A ficção de um pai que protege, que
é o “primeiro a se amar neste mundo” revela essa tendência
universal. A reintrodução no campo da ciência, por Freud, da
dimensão edípica presente no sintoma – dimensão identificatória
e reguladora - prova a impossibilidade da identidade entre o
sujeito e a consciência. Portanto, o
sujeito sem qualidades é um ideal e não uma realidade de fato
alcançável.
Este caminho conduziu a pesquisa ao segundo axioma lacaniano, que
define a responsabilidade do psicanalista em seu ato. Se o
sujeito sobre o qual a psicanálise opera só pode ser o sujeito
da ciência e se ele se caracteriza pela expulsão da realidade
psíquica do campo do pensamento enquanto uma dimensão da
verdade, então, a tarefa da psicanálise deve ser,
essencialmente, a de reintroduzir o Nome-do-Pai na consideração
científica (Lacan, 1998, p. 889).
O que isto quer dizer? Este foi o problema teórico que orientou o
segundo módulo da pesquisa.
A releitura lacaniana da obra de Freud, sustentada pelo estruturalismo
antropológico e lingüístico, privilegiou o registro simbólico
sobre o imaginário e o real. O conceito de Outro forneceu a
chave para a redução do sujeito aos elementos lógicos que
enraízam sua determinação subjetiva no puro pensamento. Estes
elementos (S1-S2) precedem o sujeito
porque implicam a anterioridade do discurso do Outro. Assim,
Lacan reafirmou a diferença geracional, intransponível, como
uma das faces da castração.
Do mesmo modo, o Nome-do-Pai foi o conceito pelo qual Lacan formalizou
o complexo de Édipo conceituado por Freud a partir da verificação
da insistência real do sintoma. O complexo paterno orienta e
problematiza os conceitos de sujeito, lei e desejo. Os mitos
freudianos sobre o pai são os operadores do advento da lei do
que se deve desejar porque o objeto primário é interditado ao
sujeito. Por esta razão, eles só permitem subjetivar como
impotência o que é da ordem do impossível.
O conceito lacaniano de Nome-do-Pai é um conceito descontínuo. A razão
desta descontinuidade deve-se ao fato dele acompanhar as mudanças
teóricas que Lacan confere ao conceito de Outro em sua obra.
Para tratar esta descontinuidade no âmbito da tese de um modo
que me permitisse extrair suas conseqüências, escolhi duas
ferramentas teóricas estabelecidas por Jacques-Alain Miller
(2002, 1999): os três eixos do ensino de Lacan e os seis
paradigmas sobre o conceito de gozo.
Estas balizas me permitiram verificar que a metáfora paterna é a
formalização mais precisa do Nome-do-Pai no primeiro ensino de
Lacan. Ela introduz o pai como símbolo da falta localizada no
Outro primordial e opera em duas vertentes: a do recalque e a da
sublimação.
A vertente do recalque separa a criança da qualidade de falo materno.
Faz dela um sujeito sem qualidades e promove o recalque das pulsões
carregadas de desejo. Separar a criança de sua origem parece
endossar a operação da ciência. No entanto, o Nome-do-Pai não
metaforiza todo o desejo da mãe. O resto desta operação é o
que reassegura o lugar da criança como objeto no plano fantasmático
porque o desejo do Outro é confundido com sua demanda, à qual
a criança responde como objeto.
Pela vertente sublimatória, o Nome-do-Pai transforma o valor da
satisfação pulsional. O valor de uso da criança se torna um
valor simbólico. Com isso, a operação paterna garante a sua
entrada na rede de trocas, ou seja, promove a passagem da criança
ao laço social.
A metáfora paterna permite prescindir dos mitos sobre o pai porque é
uma estrutura. Portanto, é anterior ao mito. Ela reduz toda
constituição subjetiva a uma operação na qual o pai intervém
como operador lógico. Trata-se do passo que permitirá a Lacan
colocar a operação paterna como secundária à castração
operada pela entrada do sujeito na linguagem.
Se o Outro é desejante, então, ele não é de um campo fechado de
saber (A), mas um universo infinito (
). O Nome-do-Pai funciona como barreira ao automatismo da
linguagem porque introduz o falo como significante que sexua e
reparte os sujeitos em fálicos ou castrados. Deste modo,
organiza a cadeia significante, estabelecendo os seus pontos de
basta. A significação fálica torna impossível ao sujeito ser
definido como sujeito sem qualidades porque passar pelo código
é, efetivamente, tornar presente o desejo do Outro.
A introdução de uma hiância no campo do Outro tem como conseqüência
o desvelamento de que a operação do recalque, que inaugura o
pensamento científico, funciona também a serviço do princípio
do prazer. Enquanto resíduo de uma operação lógica, o desejo
marca o sujeito com o significante no mesmo lugar em que ele é
habitado pelo desejo do Outro. O sintoma manifesta, portanto, a
face de objeto do sujeito e é o que o impede de ser reduzido à
pura cadeia significante.
Se, por um lado, o Nome-do-Pai é o significante do Outro da lei
inserido no Outro do significante que produz o sujeito como
significação fálica, como identificação, por outro, o
sujeito só se constitui ao se subtrair do campo do Outro. Ou
seja, é preciso que ele crie uma interpretação sobre o seu
valor de uso como objeto para o Outro.
Há um paradoxo
intrínseco à operação de separação: se, por um lado, ela
tem lugar no ponto de falta do Outro no qual o objeto se
instaura como causa, por outro, o sujeito encontra um lugar para
si ali onde, no Outro, há uma falta. O efeito da separação é
uma fixação no Outro através do fantasma.
O campo do Outro não contém o significante do sexo feminino,
portanto, ao plano identificatório corresponde sempre um efeito
de apagamento (fading)
do sujeito. O matema S(
) remete ao significante que poderia preencher a falta do Outro.
No segundo ensino de Lacan, o Nome-do-Pai comporta uma face nova: além
de formalizar o Édipo excluindo o gozo e indicando a série
constitutiva do desejo, ele implica uma nomeação, definida por
uma escritura particular (e não universal) do sujeito em relação
ao desejo do Outro, relativa, portanto, ao complexo de castração.
Por esta via, o signo é lido como objeto e entra em jogo um
novo estatuto do inconsciente, que contempla as ligações
libidinais primitivas, auto-eróticas, não incluídas na metáfora
paterna por serem anteriores ao advento do desejo e ao objeto do
desejo, à lei e à sua simbolização.
A teoria do Nome-do-Pai como nome próprio permite ir além do Édipo e
pluralizar os Nomes-do-Pai. Ela questiona a primariedade do falo
e situa a castração efetuada pelo pai como interpretação
fantasmática da operação de separação, uma “elucubração
de saber sobre a castração” (Miller,
2004b, p. 37-40). Trata-se de uma necessidade lógica (Lacan,
1964, p. 100-101) que permite a extração do objeto, que é
constitutiva do sujeito como tal.
Essa teorização alarga o conceito de inconsciente. Além de discurso
do Outro ou suposição de saber, ele também passa a ser
pensado como lugar de interseção entre a linguagem e o corpo
através das zonas erógenas, um isso
pensa sem sujeito. Aqui a lei e a causa se distinguem porque
a segunda implica algo de anticonceitual.
O inconsciente pulsional introduz a lei do significante no domínio da
causa e faz o sujeito equivaler à causa do desejo como algo que
não se encaixa nessa lei ($àa), como
tropeço, como fenda (Lacan,
1964, p. 28-31). A ética do inconsciente é a do fracasso da
articulação significante, do corte que constitui o circuito
pulsional onde o desejo se realiza sem se satisfazer, mas onde a
pulsão encontra uma satisfação sempre nova. Este circuito
implica o sujeito em vias de advir e isso prova que o objeto
causa do desejo precede o sujeito e que a angústia não é sem
objeto (Id.,
1962-63, p. 113). A via da angústia permite o acesso ao objeto
real, à satisfação pulsional, que é gozo. Portanto, o
Nome-do-Pai produz o sujeito conectado ao gozo porque localiza o
objeto a ao qual o
desejo se refere (Ibid.,
p. 365-366).
A introdução do desejo no Outro provocou uma retificação no
conceito de Nome-do-Pai e também uma redefinição do próprio
conceito de Outro. Ele se torna o campo do vivo onde o sujeito
é chamado a comparecer como tal (Id.,
1964, p. 194). Isso permite um deslocamento no campo do gozo: de
impossível ao sujeito, ele passa a ser acessível em pequenos
fragmentos. O significante tem um vínculo original com o objeto
e é esta característica que impede que o sujeito seja sem
qualidades. Se a pulsão é equivalente ao tesouro dos
significantes, ela também é o circuito pelo qual os
significantes se ligam aos objetos pulsionais, como conseqüência
da sexualidade no psiquismo.
Quando o
Nome-do-Pai era um significante da tradição, seu peso simbólico
constituía o sujeito determinado por uma ordem antecedente que
o localizava na hierarquia das relações sociais. Porém, o
modo acelerado como o discurso da ciência põe todo o saber à
prova tem como efeito a destituição das hierarquias e a
homogeneização dos indivíduos entre si. O valor de uso do
saber é substituído por seu valor de troca. Como conseqüência,
os significantes-mestres, que orientavam os sujeitos numa ordem
simbólica, devêm equivalentes, tornam-se substituíveis,
intercambiáveis. A localização subjetiva, por sua vez,
torna-se fluida, questionável. A homogeneização dos saberes
é correlata da homogeneização dos homens sob o peso dos
ideais modernos da liberdade e da igualdade.
Sem a posição de
exceção que encarna a coincidência entre o eixo simbólico e
o antropológico (ou imaginário), o campo do Outro vacila, se
mostra inconsistente, a verticalidade das relações imposta
pelo pai enquanto metáfora torna-se pouco visível e as referências
identificatórias, menos passíveis de sustentarem as
dessimetrias necessárias à constituição subjetiva normal.
Despido dos
ideais, como a função paterna mantém seu caráter subversivo?
Onde ancora a dessimetria?
A separação
entre o Édipo e a castração, a localização da castração
como estrutural porque situada na própria linguagem, bem como a
primazia do complexo de castração sobre o complexo de Édipo
respondem a estes problemas teóricos. Lacan desloca a função
paterna de seu lugar primário para considerá-la uma operação
secundária, porém correlata à operação primária da
linguagem.
A teoria dos
quatro discursos (Lacan,
1969-70) coroa a conceituação do Nome-do-Pai no segundo ensino
de Lacan porque implica a passagem da primazia do simbólico à
primazia do gozo. Ela formaliza a existência da relação
primitiva entre o significante e o gozo. Reintroduzir o
Nome-do-Pai é reintroduzir a dimensão discursiva do gozo no
campo da interpretação. Por esta via, o que caracteriza a
reintrodução do Nome-do-Pai é a conjunção original entre o
significante e o gozo.
Esta conjunção
orienta a posição original do sujeito como objeto no nível da
satisfação pulsional relativa à castração do Outro, designa
a constituição do sujeito como desejo relativo ao objeto causa
e impõe a dessimetria entre os sexos e as gerações. O
Nome-do-Pai nomeia a causa como sexual.
As definições lacanianas do Nome-do-Pai fornecem o contorno do que
significa reintroduzi-lo na consideração científica.
Portanto, definem o que suporta o ato analítico.
Ao longo da pesquisa, acompanhei os deslocamentos deste conceito
introduzindo questões que indagam sobre a efetividade de sua
operação para ambos os sexos e também sobre sua localização
em relação ao que se passa na cultura, no que se refere ao
aprofundamento do discurso da ciência. Neste percurso, mostrei
que é a entrada do saber no mercado das trocas que separa
efetivamente o saber e a verdade. Quando o saber devém
mercadoria, ele se torna um saber sem qualidades, um saber
desvinculado de todo o peso sexual veiculado pela enunciação
de alguém em posição de exceção. Isso elucida o
aparelhamento que as relações discursivas (ou os laços
sociais) dão ao sexual e também como ocorre a elevação dos
objetos à dimensão do significante.
As descontinuidades sofridas pelo conceito de Nome-do-Pai respondem
especificamente aos efeitos subjetivos do aprofundamento, na
cultura, da entrada do saber no mercado das trocas, promovido
pelo discurso da ciência, e de suas conseqüências psíquicas
no âmbito da diferença sexual. Elas visam garantir que a
reinserção do Nome-do-Pai guarde sua fundamental função de
manter a psicanálise em sua relação original subversiva em
relação ao discurso da ciência. Além disso, localizam a direção
do tratamento analítico relativamente ao final da análise que
estes deslocamentos permitiram a Lacan formalizar até aqui - a
assunção da castração, o atravessamento da fantasia e a
identificação ao objeto a.
Na terceira e última
parte desta pesquisa defendi a tese de que o discurso do
analista formaliza, lógica e resumidamente, a partir de novos
fundamentos, a noção de desejo do analista.
Se o desejo do
analista é o “que, em última instância, opera na psicanálise”
(Lacan, 1998, p. 868) e se a operatividade da psicanálise
pode ser resumida pela reintrodução do Nome-do-Pai na
consideração científica (Ibid.,
p. 889), então, é esta tarefa que deve guiar o ato analítico.
Neste percurso o
lugar do analista se desloca em relação ao lugar do Outro, ou
seja, ele deixa de ser representante do pai, tal como Freud.
Para Cottet (1985, p. 70), localizado neste lugar, o analista
nada tem de real. Ele se torna uma invenção do analisando, um
sujeito suposto saber. Como conseqüência, a estrutura do
desejo funciona sempre como desejo do Outro e a transferência
se torna interminável porque, quanto mais dividido o sujeito,
mais ele engendra efeito de saber (S2) dirigido ao
Outro.
Operar um tratamento analítico no âmbito do discurso do
mestre (S1→S2),
resulta na localização do gozo como impossível ao sujeito
porque apenas o pai poderia alcançá-lo. Ele é a exceção que
profere a lei que faz a castração incidir sobre todos os
sujeitos. Isso os torna desejantes em relação ao lugar da exceção
($àa).
No Seminário 17,
Lacan mostrou que a crença no pai como exceção tem, como
efeito, a impossibilidade de castrá-lo porque, morto, o pai se
torna mais forte do que vivo. Do assassinato decorrem o amor
pelo pai e a ordem fálica. O efeito é a impossibilidade de se
obter o gozo todo e também o desejo de alcançá-lo mesmo
assim. Para Lacan (1969-70, p. 92-94), toda essa mitologia é
apenas um saber com pretensão de ser apreendido como verdade e
só serve a uma finalidade: esconder a castração do pai.
O discurso do analista representa um progresso de Lacan em
relação a Freud e também um giro teórico importante. Agir a
partir do lugar do objeto a
não faz do analista uma suposição dependente dos
significantes do analisante (Cottet, 1985, p. 70). Ao contrário, o objeto a
faz objeção à significação fálica, ao imaginário. Ele
desloca o acento da operação analítica do encadeamento
significante, para privilegiar o mais-de-gozar intrínseco ao próprio
funcionamento da cadeia.
O discurso do analista mostra que a autoridade do
significante-mestre se origina na satisfação obtida na própria
articulação significante. Portanto, não há discurso
desinteressado e a verdade em jogo se fundamenta no gozo. O que
o discurso do analista ilumina é que “há sempre uma satisfação
no discurso” (Coelho dos
Santos, 2005e, p. 146).
Se tanto o objeto a
quanto o S1 pode ocupar o lugar de agente de um
discurso, isso quer dizer que S1 comporta gozo. Então,
é possível afirmar que, como agente, o objeto a
interpreta a mestria de S1. Denuncia que, de algum
modo, a histérica tem razão: a identificação tem uma relação
íntima com o gozo (Ibid., p. 124). Portanto, o mestre é castrado.
A escolha de balizar a pesquisa pelos axiomas lacanianos me
permitiu verificar e defender a tese de que o modo como Lacan
introduziu o termo desejo
do analista em 1958 - ou seja, sua proposta de que se
formule “uma ética que integre as conquistas freudianas sobre
o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do
analista” (Lacan,
1998, p. 621) - tem a mesma estrutura do axioma de 1965, “a
psicanálise é o que reintroduz na consideração científica o
Nome-do-Pai” (Ibid.,
p. 889).
Ambas as afirmações participam do mesmo debate sobre a
natureza da estrutura do sujeito moderno e sobre o papel da
psicanálise no mundo. Este debate, aliás, foi inaugurado por
Freud em “A questão de uma Weltanschauung”.
A reinclusão do Édipo no campo da ciência como prova de que não
se pode abrir mão totalmente das ilusões porque elas são
estruturais é a tese freudiana ali presente e que considero
topologicamente idêntica às de Lacan.
Em 1958, Lacan propôs a reinserção da dimensão simbólica
da análise e da natureza edípica do desejo referido à
falta-a-ser onde o sujeito se experimenta como desejo. Sob este
ângulo, o ato do analista seria orientado pela lógica do falo
para dar lugar ao discurso do inconsciente enquanto discurso do
Outro.
Em 1965, a reintrodução do Nome-do-Pai já contava com o
conceito de objeto a,
que permite a reintrodução da presença do analista enquanto
algo que não pode ser reabsorvido de modo algum porque
“encarna a parte não simbolizada do gozo” (Laurent,
s/d). É a partir deste ponto que o sujeito pode se separar de
suas identificações e extrair o modo de gozo só apreensível
pelas coordenadas de linguagem que caracterizam o circuito
pulsional.
Defendi a tese de que, ao formalizar o discurso do
analista, Lacan reuniu estes três momentos.
Na parte superior do discurso (a→$),
encontram-se, invertidas e separadas por uma flecha, as mesmas
letras que compõem o matema da fantasia ($àa) e que,
assim posicionadas, propiciam a histerização artificial do
discurso do analisante (Lacan,
1969-70, p. 31) e a produção dos significantes-mestres que
suportam a fantasia. Se o objeto a
é a causa do desejo, então ele é relativo à falha da metáfora
paterna, denuncia o segredo da identificação ao pai e vem em
suplência a essa falha. Como efeito, introduz a distinção
entre os níveis da demanda e do desejo.
No andar parte inferior do discurso do analista, a disjunção
entre o significante-mestre (S1) e o saber coletivizável
(S2) reproduz o corte que funda o sujeito como
resposta inédita, gozo novo, que abre as portas ao inconsciente
como pulsão, à redução da fantasia ao funcionamento
pulsional, ou seja, à experiência deste funcionamento na falha
central onde o sujeito é idêntico ao desejo.
A dimensão do desejo do analista e do discurso do analista
é tão subversiva quanto a própria introdução da psicanálise
no mundo por Freud. Ela implica “o analista como homem de
desejo, e de um desejo articulado ao insuportável, ou seja, um
desejo que não recua diante do ponto de insuportável de cada
um” (Brousse,
2002, p. 20). No diálogo da psicanálise com a ciência está
em jogo a relação fundamental do analista com a dimensão política
da psicanálise, o inconsciente (Ibid.,
p. 11).
A noção de desejo do analista é coerente com o discurso do analista
enquanto matema da operação analítica sobre o campo do gozo.
Além disso, considero esta noção como o germe do objeto a.
Localizado agora como agente do discurso do analista, torna-se o
seu operador. O objeto a
deve, então, ser pensado como uma posição subjetiva que
sempre recusa o que lhe é oferecido pelo paciente no
dispositivo analítico porque sabe que “não é isso”. O
desejo do analista faz objeção ao encadeamento significante
porque ressalta o mais-de-gozar em jogo.
O discurso do analista é a formulação amadurecida, conceitual e lógica
do desejo do analista, é a redução do desejo do analista ao
seu mínimo essencial.
Como resto do trabalho de confrontação entre o desejo do analista e o
discurso do analista, destaco as seguintes questões: como um
analista vivo pode vir a ocupar o lugar dominante do discurso do
analista, o lugar de objeto a?
O que é, afinal, estar na posição discursiva cuja função de
agente é ocupada pelo objeto a? Trata-se de uma posição que possa, efetivamente, ser ocupada
por alguém? Como isso pode ser feito se Lacan afirma que se
trata de uma posição impossível? (Lacan,
1969-70, p. 168).
Foi com estas questões que minha pesquisa
encontrou, temporariamente, o seu termo.
Nota
Referências
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Texto
recebido em: 09/09/2007.
Aprovado em: 10/10/2007.
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