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Foi tardiamente
que Freud se propôs a abordar, de modo mais sistemático, o
problema da necessidade da interpretação. No seu artigo de
1937, “Construções em Análise”, verossimilmente endereçado
a K. Popper, ele trata da questão do assentimento e da recusa
do analisante em resposta à interpretação analítica,
carente, aos olhos de Popper, de um dispositivo de verificação
ou falseabilidade1. Ainda que, nesse momento, fosse
necessário a Freud dizê-lo, hoje é mais do que evidente que não
é o assentimento nem a recusa do paciente que verifica ou que
contesta a interpretação. O psicanalista antes disporia, no
dizer de Freud, de um plano de reconstrução da verdade histórica
do paciente, análogo àquele do qual se serve o arqueólogo
para compor a imagem original de uma construção em ruínas.
Mas se a eficácia da interpretação somente se deixa avaliar
em função dos efeitos produzidos ao longo da cura, no sentido
em que ela mobiliza novos elementos narrativos na fala do
paciente, seria então o caso de concluir que o analista procede
pela via da tentativa e erro, cujo princípio não seria mais do
que a verificação empírica dos resultados obtidos?
Tal não me parece
ser a conclusão de Lacan, que sempre afirmou o caráter de
necessidade da interpretação psicanalítica. Seja no Seminário
II, seja no Seminário
XI, seja no escrito
“L’Étourdit”, Lacan jamais se furtou a combater a noção
da interpretação como uma operação sem necessidade intrínseca,
“aberta a todos os sentidos” (Lacan,
1964, p. 226). Essa necessidade, todavia, não deve se confundir
com aquela que Popper pretendia atribuir aos enunciados do
discurso da ciência, pois ao passo que uma asserção científica,
que passou pela prova da falseabilidade, deve se mostrar
universalmente necessária em seu campo de aplicação, a
interpretação se coloca, por sua vez, como asserção cuja
necessidade se restringe a uma situação clínica singular.
Diversamente do saber científico que se aplica a uma coleção
de casos, a interpretação psicanalítica não se vale de
regras a priori e não
comporta tampouco extensão. Enquanto atividade que se dirige à
experiência singular, ela deve ser antes concebida não como um
saber, mas como uma virtude interpretativa que faz surgir, sob o
dizer modal da demanda do analisante, o necessário que nele se
encerra como causa do desejo. A considerar o teorema lacaniano
de que uma análise deve produzir, em seu termo um analista,
poder-se-ia então, cabe interrogar, falar de uma transmissão
da virtude interpretativa?
Temos aqui, como
se pode bem ver, uma pergunta cuja fórmula orienta o
encaminhamento da resposta que procuramos. O uso do léxico virtude,
por oposição ao termo saber
(reservado aos enunciados científicos), não é aqui
meramente alusivo: ele indica diretamente uma referência da
qual Lacan se serve ao menos por duas vezes para pensar o
estatuto da interpretação e o problema de sua
transmissibilidade. Trata-se do diálogo Ménon,
de Platão, que se constrói a partir de uma questão lançada a
Sócrates: o jovem Ménon quer saber se a virtude em geral, e em
seguida a virtude política, seriam ensináveis e quais seriam,
no caso afirmativo, as condições necessárias a sua transmissão.
A
referência é, a bem dizer, um tanto paradoxal: percebe-se
claramente que Ménon está apto a tudo, menos a ser ensinado. Há,
como nota Koyré, uma aproximação cômica na expressão “Ménon,
ou da virtude”, que dá o título a esse diálogo: Ménon quer
saber de tudo, salvo da virtude, no sentido em que esse conceito
deveria verdadeiramente se transmitir (Koyré,
1945, p. 33). Ele pretende conhecer a virtude, mas só sabe
enumerar as situações em que ela se aplica. Ora, replica Sócrates,
se o fato do círculo ser uma figura não me permite dizer que
toda figura seja um círculo, o mesmo se dá no caso da virtude,
cujo caso particular não me fornece o conceito genérico. O que
é preciso captar é a idéia da virtude como condição
anterior e necessária do agir virtuoso. Tal como o matema que,
segundo Lacan, por nada significar de particular, transmite-se
integralmente, a Idéia platônica, assim concebida, aproxima-se
desse ideal matemático (Badiou,
1991, p. 151-52). O conceito genérico de virtude
que Sócrates busca, por oposição ao múltiplo de sua
manifestação repertoriada por Ménon, é a Idéia de virtude
desprovida de toda significação particular.
O que se enuncia,
na seqüência do diálogo, é justamente a colocação em prova
da transmissão matemática que deve poder ser adquirida por
quem quer que seja. Mais do que uma transmissão, Sócrates
demonstra que ela é um deixar agir da função significante que
ele suscita no escravo de Ménon. Se concedermos então,
deixando de lado a discussão quanto à pertinência de sua
Teoria das reminiscências, que as matemáticas sejam
efetivamente ensináveis, a existência de uma ciência da
virtude implicaria, por sua vez, que ela seja ensinável, que
haja professores de virtude. É nesse momento do diálogo que
chega Anytos, rico burguês de Atenas a quem Ménon pergunta o
que fazer para adquirir a virtude. Anytos o encaminha, sem
hesitar, às pessoas honoráveis de Atenas, mas Sócrates objeta
dizendo que nenhuma dessas pessoas soube transmitir a virtude,
nem mesmo a seus filhos.
Anytos se vai zangado e a discussão
é retomada no seu início. Uma vez que nada permite dizer que a
virtude seja ensinável, Sócrates propõe então que se a
conceba como uma orthe-doxa, ou opinião
verdadeira, no sentido de uma relação com a verdade não
ligada pelo saber da ciência. Tal como as estátuas de Dédalus,
a opinião verdadeira seria um dom divino que pode se evadir,
por não estar fixada num saber passível de retenção e
transmissão (Platon,
1950, p. 553-554). Não obstante, por mais
sedutora que essa conclusão pareça, é difícil decidir se ela
corresponde de fato ao que pensa Sócrates, ou se antes se
trata, como sugere Koyré, de uma resposta irônica endereçada
a Ménon. Pois, se uma opinião é verdadeira, contesta Koyré,
é a ciência que decide quanto a sua veracidade.
Não
era esse, todavia, o ponto de vista de Lacan em 1954, para quem
a virtude se definia justamente pela idéia de um acesso à
verdade que não pode ser captado por uma ciência ou saber
ligado (Lacan,
1954-55, p. 24). É a orthè-doxa desprezada
por Sócrates que se deve colocar no centro da palavra fundadora
da interpretação, que se distingue de todo saber estabelecido.
Se ele então se permitia qualificar Péricles ou Temístocles
como analistas, era supondo que a virtude política também era
uma aptidão de bem interpretar, ou seja, de operar a partir de
uma verdade pontual, anterior à constituição do saber.
Para retornar então
ao problema da necessidade da interpretação e da transmissão
da virtude de interpretar, o que importa abordar não é o dito
ou o enunciado da interpretação, simples veículo de sua
potência, mas o dizer
ou a enunciação interpretativa, desde onde sua relação com o
real se inscreve. Mas do momento em que não nos é tampouco
dado tratar o dizer por um meta-dizer, o que então se transmite
é mais objeto de uma mostração do que de uma demonstração.
O essencial a situar é pois o ponto no qual se produz a opinião
verdadeira na estrutura do discurso sobre o qual esse dizer se
sustenta. Assim sendo, ao passo que o Lacan de 1954 referia essa
operação, de modo ainda indefinido, a um manejo da linguagem,
o que ele irá precisar, 18 anos mais tarde, em “L’Étourdit”,
é uma manipulação topológica que lhe permite mostrar esse
ponto em que se fixa a interpretação, como opinião
verdadeira, na estrutura do discurso analítico.
É
notável a ousadia do projeto: Lacan visa nada menos do que
fixar, mediante uma operação topológica, a virtude enquanto
opinião verdadeira que, para Sócrates, permanecia como uma
relação com a verdade não fixada numa episteme. Se, por um
lado, a topologia lhe serve para significar, mediante o modelo
esférico representado pela fita de Möbius, a retroação
significante na qual consiste a estrutura da linguagem, o
sujeito que dela se pode captar, por outro lado, como puro
efeito do dito, é a figura esférica (uma curva fechada de
Jordan) que resulta de um corte fechado aplicado sobre a mesma
superfície. O recorte fechado é assim o dito do qual o sujeito
é o efeito calculável, com o qual nos havemos na interpretação.
Mas ainda que o sujeito ali seja circunscrito como um ser por um
conceito, esse ser, por si só, não tem nenhum sentido (Lacan,
1973, p. 29, 40).
Ele seria no máximo o suporte de uma predicação universal,
sem que sequer a existência do sujeito seja requerida.
Assim sendo, do
momento em que o desejo se constitui para o sujeito a partir de
sua falta-a-ser, a interpretação, ao incidir sobre a causa do
desejo, deve revelar o lugar no qual emerge, no discurso do
sujeito, o objeto a,
que Lacan identifica ao ser do sujeito, subtraído ao sentido
que permite o discurso. A interpretação é um dizer que lhe
faz ver como se articula a causa de seu desejo ao ponto no qual
se fixa para ele, a partir da exclusão do real que não se pode
dizer, o universo do discurso. Em razão disso, se a
impossibilidade de dizer o verdadeiro do real se motiva, como
propõe Lacan, de um matema que situa a relação do dizer ao
dito, o dizer da interpretação somente se apreende como um
dito, ou opinião verdadeira, na medida em que ele indica a junção
do verdadeiro com o real, junção para além da qual a verdade
não pode mais ser dita.
O dizer da
interpretação se torna assim ensinável pelo fato de que se
pode identificá-lo, mediante uma manipulação topológica,
como um corte que, realizado sobre a superfície do cross-cap,
expõe a articulação do sujeito, como efeito do dito, à
estrutura da linguagem em que ele se significa. Trata-se de um
corte que, orientado por um ponto escolhido na linha de imersão
do cross-cap, destaca de sua superfície uma outra superfície,
orientável e esférica, que nada mais é do que o objeto a
que dela se separa como ser do sujeito ou causa do desejo. Se a
causa do desejo é o que dá consistência (ou roupagem esférica)
ao que se apresenta como universo do discurso para o sujeito, o
corte da interpretação coloca em evidência a esfericidade da
estrutura, desnudando essa roupagem que a suplementa.
Se, pois, o
ponto do qual o dizer da interpretação se orienta como corte
é “a opinião que pode ser dita verdadeira”, posto que “o
dizer (ou o corte) que a contorna a verifica”, ele o é
somente, precisa Lacan, por ser o que modifica o que se
apresenta como universo do discurso, para o sujeito, ao ali
introduzir a doxa como real (Lacan,
1973, p. 38-40).
A orthe-doxa se
transmite assim em matema por se ancorar na fixion desse ponto em que se suspende o sentido produzido no
discurso do sujeito, mas sem que esse ponto seja ensinável
previamente por um saber transcendente, ou, como em Platão,
pela inspiração de um sopro divino. Não é tampouco através
da bela forma, que faz das estátuas de Dédalus objeto de cobiça
humana que iremos reconhecê-lo, mas pelos efeitos de subversão
somente verificáveis, em suma, na própria estrutura do
discurso analítico.
Notas
1.
Vale lembrar, em favor desse argumento, que a família de Freud, nesse período, freqüentava a família de Popper, em Viena, e que a publicação do clássico Logik der Forschung, em que a questão da falseabilidade das proposições científicas já se colocavam, data de 1934 (três anos antes, portanto, de Konstruktionen in der Analyse). Para um estudo posterior, mais sistemático do tema ver Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge, no qual Popper (1963, p. 35-38) endereça diretamente sua crítica à psicanálise (sobretudo em sua vertente adleriana, denunciando o caráter circular das justificativas das interpretações psicanalíticas), assim como à teoria marxista da história e à psicologia individual. A se ler igualmente a crítica de Politzer e de Wittgenstein, assim como o inigualável estudo de Milner (1996, p. 60-69).
Referências
Bibliográficas
Badiou, A. Le
mathème est-il une idée. In: Lacan
avec les philosophes, Paris: Albin Michel, 1991, p. 151-52
Freud,
S. (1937)
Análise terminável e interminável. In: Obras Completas.
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1977, vol. XXIII.
Lacan,
J. (1954-55) Le Séminaire:
livre II - Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique
de la psychanalyse, Paris: Seuil, 1978.
_______.
(1964) Le Séminaire:
livre XI – Les quatres concepts fondamentaux de la
psychanalyse, Paris: Seuil, 1973.
_______.
(1973)
L'Etourdit. In: Silicet,
n. 4. Paris: Seuil.
KOYRE, A. (1945) Introduction à la lecture de Platon. Paris: Gallimard, 1962.
Milner,
J.-C. (1996) L’Oeuvre
Claire. Paris: Seuil.
Platon. Ménon
où de la vertu. In: Platon:
Oeuvres complètes. Paris: Gallimard , 1950.
Popper,
K. (1963) Conjectures and
refutations: the growth of scientific knowledge. New York:
Routledge.
Texto
recebido em: 13/04/2007.
Aprovado
em: 10/07/2007.
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