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Os crentes que se interessam pela invenção de Freud têm se referido múltiplas vezes à analogia existente entre a confissão religiosa e a psicanalítica. Mas para muitos agnósticos e ateus, esta última também não é mais do que uma continuação da primeira por outros meios.
Nem todas as confissões são religiosas. Há variedade. É quando se oblitera a questão de quem se confessa, do estilo da confidência e da resposta do real que se pode ficar com a impressão que as confissões de Santo Agostinho, as de Rousseau, as Confissões de Lúcio, de Mário de Sá Carneiro (1989) ou as de um paciente de Freud fazem todas parte de um mesmo gênero literário.
Aquilo que o psicanalista de orientação lacaniana pode dizer é que o enquadramento estrutural das duas práticas difere, pois a confissão religiosa é um antigo laço social formado a partir do discurso do mestre, enquanto que o que se passa numa sessão psicanalítica depende exclusivamente da emergência, com Freud, do discurso do analista.
É na religião católica apostólica e romana que encontramos o sacramento da confissão. Que procura o católico que abandona o seu orgulho para se confessar? Ser redimido dos seus pecados. Não é certo que o consiga, pois este desabafo pode até fazê-lo mergulhar mais profundamente no “universo mórbido da falta”.
Aquele que se confessa é normalmente alguém que fez o seu exame de consciência e acto de contrição, e espera receber palavras de bondade e perdão do sacerdote que escutará as suas mágoas. Em seguida, o arrependido deve cumprir as penitências estipuladas pelo padre no final da confissão. Por vezes, não é suficiente que a alma pene, é ainda necessário que o corpo seja açoitado ou mortificado1.
É-se culpado pelo crime que se cometeu ou se imagina ter cometido. Como o animal como tal não sente culpa, deduz-se que só o ser criado à imagem e semelhança de Deus pode confessar-se.
Na verdade, bastaria dizer que é o falante que se confessa. A confissão é um artifício que se insere na prática geral da (in)confidência, da revelação ou da extorsão do segredo ao falante, um segredo íntimo que muitas vezes a própria consciência desconhece.
Este hábito é tão antigo como o primeiro balbuciar da linguagem. Mas, desde o início do século XX, quem pretende libertar-se da incômoda intimidade tem à sua disposição um outro dispositivo discursivo que não o da orelha amiga, da confissão católica e do interrogatório policial: a sessão psicanalítica.
Desde essa época que o sintoma pode efectivamente levar alguém a procurar um psicanalista. Este escuta quem lhe vem falar sem o ilibar da culpa e lhe impor castigos. Se o sujeito se diz culpado, não há razão para o desmentir. Basta que reconheça a sua irresponsabilidade nata.
O que a análise permite é que o sujeito se responsabilize pelo seu fantasma. Esta responsabilidade não é natural, nem jurídica, e acaba por desacreditar toda e qualquer a “ilusão” religiosa.
Num primeiro momento, porque o crédito ligado à fé em Deus, bem como à credulidade ou à simples crendice, é transferido para a palavra dirigida ao analista.
Para o paciente, é o psicanalista que se torna o “sujeito suposto saber” o segredo que Descartes referia a Deus e Lacan ao inconsciente. É ainda graças a esta suposição de saber que o pedido de ajuda e de cura se revela como pedido de amor.
Efectivamente, pedir qualquer coisa a alguém é sempre pedir
amor2. Todo amor tem um objeto. É o analista como objeto que detém a chave do “amor de transferência”, ou seja, da relação de confiança que o analisante vai tecer com ele (LACAN, 1960-61).
Porém, ir ao psicanalista não é confiar-se a Deus ou a um dos seus intermediários (padre, santo ou a própria Virgem mãe). Apesar de provir da palavra, o amor de transferência não deve ser confundido com o amor divino que inspira a fala, a escuta e o conselho prosélitos na confissão católica.
As traduções latinas de Logos por oratio e ratio contribuíram bastante para o mal-entendido em que mergulhou a função da fala confiante – confessio –, na medida em que ajudaram que o verbo se tornasse Verbo, a palavra de Deus que o Filho encarnou, ao mesmo tempo em que atribuíam ao homem uma razão limitada.
Mas, como acontecia com os antigos palimpsestos, esta tradução não pôde apagar completamente a indicação inicial de que o homem é apenas o ser que habita a linguagem.
O sujeito que fala ao analista é também aquele que a palavra coloca em função no campo da linguagem. Mas o sujeito pode igualmente ver-se condenado ao silêncio: foi o que aconteceu a um jovem que sigo há vários anos em análise. Por toda uma série de razões, ele confrontou-se durante muito tempo com um muro de silêncio, apenas rompido de vez em quando por gritos e palavras hostis (não digo “vozes”, pois não se trata de um psicótico), que se transformavam rapidamente em motivo de troça. Foi deste modo que o muro de silêncio acabou por se tornar em muro de lamentações.
Não é que não existisse afeto na família, por vezes mesmo algum calor; o problema maior é que os membros da família não conseguiam escutar-se, cortavam constantemente a palavra uns aos outros, e isso gerava sempre incompreensão sobre o que pensavam, frustração e silêncio. Uma tal falta de comunicação conduziu pouco a pouco o jovem a uma depressão, com duas tentativas de suicídio, seguidas de algumas idas a uma psiquiatra, e uma ingestão de medicamentos que se revelou pouco eficaz.
Um dia, a porta da Igreja abriu-se milagrosamente para lhe proporcionar uma saída deste mundo de silêncio, que foi vista, logo de seguida, como um convite para que entrasse no silêncio místico ou de claustro.
Mas o crucial foi que a figura do padre confessor veio substituir a da psiquiatra e a do(s) pai(s). Por cima de todos, Deus começou a reinar.
Deus não é apenas nome e imagem. Ele também não fala como um semelhante, um alter-ego. Podíamos aqui dizer, com o Lacan do Seminário XVI (1968-69), que o real de Deus é o de um “discurso sem palavras”.
Se algo se transmite do Deus católico para os homens é essencialmente através da letra que articula o espírito do Livro: A Bíblia.
Foram os Padres fundadores da Igreja que se lançaram no comentário das Sagradas Escrituras. Entre eles, Santo Agostinho acabou por ganhar uma importância inesperada para o jovem a que me refiro. Depois de ter lido o diálogo de Agostinho entre um pai e um filho sobre o Mestre (o Cristo), surgiu repentinamente na sua mente a ideia de como seria bom seguir Jesus e entrar nas Ordens.
Mas nem todas as dúvidas se dissiparam depois desta iluminação. Foi assim que ele acabou por me procurar e encontrar.
Entretanto, tinha-se tornado filho de padres e de freiras. Foi mesmo com estes que pôde desenvolver o seu “complexo de Édipo”, acabando por ter as primeiras relações sexuais com uma mulher que pertencia a Deus pai. Depois do adeus à sua amiga freira, a vergonha e a culpa de ter cedido à tentação reforçaram-se bastante.
Para corrigir este grave erro, pensou, primeiramente, que o melhor talvez fosse mudar de Ordem, substituir a ideia de entrar no convento pela de entrar na caserna.
Freud (1921) explicou que o sujeito adere mais facilmente a uma ordem do tipo da eclesiástica ou da militar quando situa o seu objecto de amor (Deus, chefe ou hierarquia) no lugar do ideal-do-eu. É esta idealização que conduz à confusão subjectiva entre o objecto e o elemento simbólico que lhe é simultaneamente estranho e íntimo, o “traço de união” através do qual a identificação colectiva consegue agregar indivíduos de realidade (biopsicosocial) muito diferente.
Ao contrário da idealização, a análise procura separar o objeto e o traço significante que aliena o sujeito. No caso a que me refiro, o amor pelo analista levou o sujeito a recuar na vontade de ingressar na carreira militar, mas o mesmo não aconteceu de imediato com a sua fé religiosa, ainda que me tenha perguntado um dia se não estaria “maluco”, por acreditar na ressurreição do Cristo e outras ideias do género.
Nesta mesma altura, escapou-lhe que costumava ir confessar-se entre duas sessões de análise. Como vinha de fora de Lisboa, tinha os seus dois encontros comigo no mesmo dia. Era enquanto esperava pela segunda sessão que ia passear pela capital, entrava numa igreja desconhecida e pedia ao sacerdote que lá estivesse para se confessar.
Não conseguia dizer ao certo o que o levava compulsivamente para este velho hábito, na verdade um ritual formal, dado que os locais e as pessoas a quem se confessava não lhe eram minimamente familiares.
Pôde concluir que não era realmente para ser absolvido dos seus pecados, termo que deixou, aliás, de ter o mesmo significado para ele no decorrer da análise, até porque adotou costumes relativamente liberais com relação a uma vida sexual dantes bastante reprimida.
Também não era a penitência que então procurava. Parecia-lhe, sobretudo, ser animado pelo desejo de se abrir um pouco mais ao que continuava a fechar-se. Para tal, confiava-se a uma outra pessoa tão digna de confiança como o analista, o que qualquer padre representava para ele.
Que esperava ele na realidade: o reconhecimento ou o favor desta outra pessoa? Ou simplesmente que fosse ela a revelar-lhe o segredo íntimo, e ao mesmo tempo a indicar-lhe onde podia encontrar o objeto de amor que o analista teimava em não lhe entregar?
Entre as duas sessões, o sujeito ia ver um padre para colocar o analista no lugar do pai que não lhe dava a palavra e o amor que ele pretendia, até porque as sessões de análise lhe pareciam “curtas”, como dizem confusamente os críticos de Lacan. O sujeito aproveitava-se deste modo da existência de um outro (o padre) do Outro (Deus) para ganhar tempo e dinheiro - lembro que a confissão é gratuita e mais curta do que uma análise.
Mas o repetido retorno do Outro ao outro3 que é o objecto analítico fez com que o sujeito acabasse por se centrar na angústia que o invadia durante a espera da segunda sessão, que era também o seu encontro com a hora da verdade, a pontuação semanal do que vinha dizer-me a Lisboa, antes de regressar à casa paterna.
Mais tarde substituiu esta confissão por uma terceira sessão. Mas não coube então, nem cabe à análise fazer desaparecer a angústia, pois esta é o afeto de uma verdade que não engana, digna de ser mantida na sua metonímia, como causa do desejo de outra coisa.
Era a repetição que dominava a análise no momento da confissão entre duas sessões. Um dia, depois de chegar de uma destas confissões, o analisando concluiu o seu segundo encontro comigo da seguinte maneira: “hoje não consigo dizer mais”. Ao que retorqui: “conto escutar esse mais da próxima vez”.
Ao recolher na sua fala o advérbio “mais” e transformá-lo num substantivo, acabei por dizer – chama-se a isto uma “interpretação” – algo que introduziu realmente a diferença na repetição do mesmo, e que podia denominar agora como sendo a “substância” do seu gozo inconsciente.
Era no silêncio (da sua fala) que este gozo residia então. O sujeito dizia que não conseguia dizer-me “mais”, um “mais” que ele guardava há muito para si, independentemente do que podia confessar ao padre e ao pai.
Ao dar uma outra consistência (gramatológica) a este “mais”, lembrei então que, enquanto viesse ter comigo, provava que já tinha apostado em falar-me um dia dessa coisa preciosa.
Foi desde esse preciso momento que o sujeito começou a contar efectivamente com o inconsciente na análise, isto é, a deixar que a associação livre verbal prevalecesse sobre o seu eu consciente, logo que a fala cor-respondesse ao seu “mais-de-gozar” (LACAN, 1969-70).
Quando esta análise chegar à sua conclusão lógica, não será porque o sujeito me terá confessado tudo e em particular toda a verdade. Antes, por que terá deixado de ter fé no inconsciente que, desde a minha interpretação, tem vindo a colocar no lugar do Deus que devia amar acima todas as coisas.
Notas:
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Para melhor esclarecer a tirania da penitência, tão em voga ainda hoje em certos grupos religiosos, pode-se ler o artigo de Freud (1919) sobre o fantasma que conduz aos maus-tratos próprios e alheios.
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N.R.: Observar, por exemplo, o seguinte comentário de Lacan sobre a estrutura do grafo do desejo: “Em nosso esquema deste ano, temos, no nível superior, uma linha que é uma linha significante e articulada. Uma vez que ela se produz no horizonte de qualquer articulação significante, ela é o pano de fundo fundamental de toda articulação de uma demanda. No nível inferior, isso geralmente é articulado, por pior que seja. Temos uma articulação precisa, uma sucessão de significantes, dos fonemas. [§] Liguemos nosso comentário à linha superior, que está para além de qualquer articulação significante. [§] Essa linha corresponde ao efeito da articulação significante tomada em seu conjunto, na medida em que, por sua simples presença, ela faz aparecer simbólico no real. É em sua totalidade, ou por se articula, que ela faz surgir o horizonte ou a possibilidade da demanda, esse poder da demanda que consiste em que ela seja, essencialmente e por natureza, demanda de amor, demanda de presença, com toda a ambigüidade que convém introduzir nisso” (1957-58, p. 452).
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N.R.: O autor alude ao título do Seminário XVI, de Lacan, D’un Autre à l’autre.
Referências
bibliográficas
FIGUEIREDO, Pe. Antonio Pereira (Trad.).
Bíblia Sagrada. Publicação autorizada por Sua Eminência Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, Arcebispo do Rio de Janeiro. Barsa, 1974.
CARNEIRO, M.S. A Confissão de Lúcio. Publicações Europa-América, Lisboa, 2ª. edição, 1989.
FREUD, S. (1919). “Uma criança é batida”. In: Esquecimento e
fantasma. Lisboa: Assírio & Alvim, 1991.
_________. (1921) “Psicologia de grupo e análise do ego”. In:
Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1977, Vol. XVIII.
LACAN, J. (1957-58). O Seminário, livro 5: as formações do
inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
_________. (1960-61). O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
_________. (1968-69) Le séminaire, livre 16: D’un Autre à l’autre. Paris: Seuil, 2006.
_________. (1969-70). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed., 1992.
_________. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.
Texto recebido em: 11/07/2007.
Aprovado em: 28/10/2007.
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