|
Há
uma polarização, sem nenhuma dúvida, que acompanha o estudo da
técnica. Com o vigoroso desenvolvimento das tecnologias de
informação e comunicação (TICS), ressurgem os debates, via de
regra inconclusivos, sobre a cultura cibertécnica entre aqueles
que, segundo Balandier (1999), são taxados de tecnofóbicos
(pessimistas apocalípticos) e os que são chamados de
tecnofílicos (otimistas integrados).
Poucos
devem discordar das afirmações de que estes tempos sejam
especialmente prolíficos em termos de excesso de signos
paradoxais, ambivalentes e instáveis. Tempos de tecnicismo,
individualismo e consumismo - e de consumo de tecnicismo
individualista.
A
temática abordada neste livro representa uma faceta específica
do espírito desta época onde as TICS assumiram uma dimensão
essencial em múltiplos níveis da vida social. Um dos signos
deste contexto pode ser localizado no onipresente telefone
celular. Este aparelho adquiriu estatuto de objeto fetiche no
âmbito do consumo e, ao mesmo tempo, que dilatou grandemente as
possibilidades de comunicação, participou ativamente na
transformação da privacidade nas conversas interpessoais. Mais
ainda, os telefones celulares transformam padrões de
sociabilidade.
Há
indiscutíveis vantagens na simultaneidade espaço-temporal de
nossas ações proporcionadas por estes objetos técnicos,
possibilitando diversas ordens e níveis de acessos, contatos e
trocas. É evidente a utilidade de vários produtos tecnológicos
de consumo em termos de propiciar confortos na moderna vida
cotidiana. Mesmo assim, seus efeitos podem assumir dimensões
excessivas e logo se tornarem adversos, provocando
disfuncionalidades. Um exemplo corriqueiro no dia a dia diz
respeito ao uso de automóveis em grandes centros urbanos, cujo
conforto em termos de viabilizar rápidos deslocamentos, pode logo
se inviabilizar diante dos freqüentes engarrafamentos que assolam
as vias públicas.
Ao
lado dos óbvios aspectos positivos das redes comunicacionais,
teríamos um estreitamento espacial em favor da velocidade da
perspectiva on line. O
excesso de informação tópica participa de um quadro de
desinformação estrutural. Um sintoma desta manifestação pode
ser representado pelo estado de confusão labiríntica
eventualmente sentido por aqueles que se dedicam a longas
atividades de navegação pela Internet em que perdemos a
orientação e/ou nos afastamos dos contextos iniciais que
inspiraram a busca. Encontramos aqui sintomas compatíveis com uma
poluição ‘ambiental’ que Paul Virilio (1999) chamou
‘dromosférica’ (de dromos, corrida). Este neologismo
refere-se a uma forma de agressão do espaço-tempo planetário,
originária do aperfeiçoamento de veículos tanto de transporte,
bem como de comunicação. Assim entre o sujeito e o objeto
perde-se algo crucial - o trajeto – como efeito da contração
espaço-temporal produzido pelas TICS, levando o tempo a
restringir-se a um eterno presente amnésico.
Se
a grande rede viabiliza a difusão de informações de saúde como
nunca ocorreu, por outro lado, diante da respectiva profusão
desmesurada, o controle da qualidade destes conteúdos por
enquanto ainda é muito problemático. Além disto, se os bancos
de dados sobre pacientes podem facilitar o manuseio das
informações clínicas e facultar atendimentos mais efetivos,
trazem também sérias questões de sigilo e confidencialidade
sobre as vidas privadas das pessoas.
Um
item preocupante embutido em meio aos vários processos
simultâneos do que se convencionou designar ‘modernidade
tardia’ diz respeito aos sintomas referentes aos sentimentos de
desenraizamento, que se manifestam com as grandes transformações
sociais ocorridas nas últimas décadas. Lidamos cada vez mais com
a instabilidade nas matrizes simbólicas espaço-temporais
instituintes de nossas identidades - especialmente aquelas ligadas
ao pertencimento localizado em termos de rituais e costumes com
demarcações especificadas de lugar e de temporalidade.
Nas
brechas deste desenraizamento, a Internet, que nasceu
Revolucionária (com maiúsculas), na conotação transgressora do
termo, libertária, sem amarras regulatórias, se tornou apenas
revolucionária (com minúsculas) - um fantástico meio de
localizar tesouros, fragmentos ou detritos cognitivos. A Internet
é revolucionária pela ilusão de simultaneidade, eternamente
incompleta em retratar e veicular incompletudes que, em seu
conjunto e à distância se assemelham à torre de Babel que tenta
alcançar o firmamento. Comunicação ágil, transmissão maciça
de dados em tempo real em meio à atemporalidade transcendente dos
meios – este é o pacote adquirido pela sociedade do consumismo
individualismo tecnicista. Uma revolução de técnicas
transmissionais que nos isolam em um oceano de fragmentos de
informações.
Além
de não permitir a equivalência das diversas manifestações da
condição humana, a presente redução espaço-temporal aumenta a
polarização e os antagonismos. Como desenvolve Bauman (1999), se
liberta uma determinada elite das amarras territoriais,
‘deslocaliza’ significados produtores de pertencimento e
mantém restritos outros grupos que têm debilitados seus vetores
estabilizadores de significados e de identidades.
À
primeira vista, o título deste livro pretende designar um
paroxismo mediante um paradoxismo - figura de linguagem que
contrapõe duas idéias aparentemente antagônicas. Para além de
um jogo retórico pedante, trata-se de destacar em ‘precário’
as idéias quantitativas de ‘escassez’, ‘insuficiência’
– aquilo que está aquém da medida, e, em ‘excesso’, a
noção ‘daquilo que sobra’, ‘exagerado’ – que
ultrapassa a medida. Em síntese, trata-se de explorar
criticamente o fato ambivalente de que, ao lado das indiscutíveis
vantagens tecnológicas, reside uma considerável perda das
medidas.
Sob
este ponto de vista, as medidas estabelecidas pelos sistemas
modernos de ordenação normativa se debilitaram diante do
monumental vórtice dos excessos produzidos pela atual sociedade
de consumidores, movidos pelas incessantes tentações localizadas
na enorme cornucópia de opções e ofertas de mercadorias, bens e
serviços. Diante desta atmosfera de sedução intensa e
constante, resulta que as normas que organizavam o comedimento e a
temperança se esgarçam. O excesso passa a ser o padrão de
referência e se estreita muito o espaço das contenções
normativas. O excesso, antes encarado como descontrole, que
conduzia ao desperdício e devia ser evitado, agora, é desejado
como ‘norma’, significando a ampliação quase ilimitada de
possibilidades, para além dos controles, que agora são encarados
como restrições inconvenientes. Paradoxalmente, diante deste
quadro, proliferam tentativas de manutenção de controle de
situações que tendem à instabilidade – haja vista as
tentativas governamentais de monitorar preventivamente
estratégias terroristas.
Nada
é demasiado, se o excesso se faz ‘norma’. Neste caso, a
idéia familiar de norma tende a se desfazer, e se divisam
‘modos de ordenação’ baseados em exercícios desabridos da
força, para além das regras de convivência, de preceitos
éticos e da idéia apaziguadora de normalidade. Há indícios que
nossa era se institui atravessando as paisagens normativas, para
além das normas, tempos nos quais passaria a vigorar algo da
ordem, se permitem a expressão (originária da geometria
moderna), da transnormalidade - uma estabilidade precária dentro
dos excessos, afastada das condições usuais de equilíbrio.
Assim, o excesso deixa de ser encarado como algo de concreto que
se perde, e sim, como uma referência que acena para ganhos e
prazeres, atuando como miragem sedutora, como virtualidade
impossível de se atualizar em sua totalidade, para sujeitos
heterônomos, vulneráveis, mas que não se submetem a normas,
mesmo pagando alto por isto. Bauman (2003), sugere que o excesso
se constitui em um preceito da razão contemporânea numa
existência de exposição frenética à abertura e à
experimentação hedonista, para além de ditames contabilistas
comedidos. Daí as dificuldades postas por perguntas que careciam
de sentido há algumas décadas atrás: em que circunstâncias o
excesso fica por demais excessivo e o desperdício passa a ser
considerado perda?
O
livro coloca seu foco crítico em distintos aspectos das TICS -
onde se destaca o uso de internet, que vêm marcando
acentuadamente o campo sanitário contemporâneo. Partimos da
premissa de que as questões de saúde coletiva envolvem cada vez
mais dimensões estruturantes atravessadas por recursos e objetos
comunicacionais.
Este
mundo hipercomunicativo apresenta ambivalências que podem se
manifestar na co-existência de dimensões tecnológicas
inovadoras com facetas ideológicas conservadoras, cujos efeitos
tanto implicam no aumento espantoso no acesso a informações, com
inegáveis resultados, mas ao não disporem de mecanismos
satisfatórios que assegurem a correspondente consistência,
também ampliam assustadoramente a possibilidade de
manipulações, seduções e fatalidades.
O
capítulo 1 enfoca as TICs que são transformadas em
elementos/processos/objetos produzidos para serem utilizados no
âmbito das tecnobiociências humanas, vinculadas tanto às
práticas da biomedicina como às da saúde pública.
No
capítulo 2 oferecemos um recorte emblemático dos excessos
geradores de precariedades no ambiente das organizações
profissionais de saúde.
No
capítulo 3 observamos a transformação histórica do paradigma
da “melhor informação para melhor decisão”.
Com
este pano de fundo, o capítulo 4 aborda um proeminente
empreendimento biomédico que se convencionou chamar medicina
baseada em evidências que depende grandemente da informática e
da internet.
O
capítulo 5 apresenta aspectos da insegurança que atingem as
sociedades contemporâneas, descritos e abordados analiticamente
como uma questão pertinente ao
âmbito da saúde pública. (...)
Ao
final, é assinalada a necessidade de desenvolvimento de uma
ética global voltada para problemas de saúde pública que
envolvem desigualdades sociais e vulnerabilidade de parcelas
expressivas das populações em escala mundial.
Notas
1.
Este texto é um
recorte, feito por Márcia Aparecida Zucchi, do capítulo de
apresentação do livro: Castiel,
L. D. et
Silva, P. R. V.
Precariedades do excesso. Informação e Comunicação em
Saúde Coletiva. Rio de Janeiro:
Fiocruz Ed, 2006.
referências
bibliográficas
BALANDIER,
G., O dédalo.
Para finalizar o século XX.
Rio de Janeiro: Ed.
Bertrand Brasil, 1999
VIRILIO,
P. La
Vitesse de Libération.
Paris:
Ed. Galilée, 1999.
BAUMAN,
Z. Globalização.
As
conseqüências humanas.
Rio de Janeiro: Ed.
Jorge Zahar, 1999.
|