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precariedades do excesso: informação e comunicação em saúde coletiva1

   
 

Luis David Castiel

Médico

Doutor em Saúde Pública/Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz)

Pós-Doutorado em Saúde Pública/Universidade de Alicante-Espanha

Professor do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da ENSP/Fiocruz

Pesquisador do Departamento de Epidemiologia da ENSP/Fiocruz

luis.castiel@ensp.fiocruz.br

 

 

Paulo Roberto Vasconcellos-Silva

Médico do Instituto Nacional do Câncer do Rio de Janeiro (INCA)

Doutor em Saúde Pública/Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz)

Professor de Clinica Médica e Bioética/Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio)

bioeticaunirio@yahoo.com.br

 



Resumo

Com o vigoroso desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TICS), ressurgem os debates, via de regra inconclusivos, sobre a cultura cibertécnica. A temática abordada neste livro representa uma faceta específica do espírito desta época onde as TICS assumiram uma dimensão essencial em múltiplos níveis da vida social. Seus efeitos podem assumir dimensões excessivas e logo se tornarem adversos, provocando disfuncionalidades.

 

Palavras-chave: precariedade, excesso, informação, comunicação, saúde coletiva.

 


 



the precariousness of superabundance: information and communication in the mass health system

 

 

Abstract

With the sudden growth of mass communications technology the inconclusive debates around the cybernetic culture are resurrected. The theme of this book shows a specific aspect of this tendency where mass communicative technology has assumed an exceeding dimension throughout the multiple stages of social life. These effects can reach majestic proportions and cause dysfunctional behavior.

Key words: precariousness, excess, information, mass health system

 

 

 

Há uma polarização, sem nenhuma dúvida, que acompanha o estudo da técnica. Com o vigoroso desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TICS), ressurgem os debates, via de regra inconclusivos, sobre a cultura cibertécnica entre aqueles que, segundo Balandier (1999), são taxados de tecnofóbicos (pessimistas apocalípticos) e os que são chamados de tecnofílicos (otimistas integrados).

Poucos devem discordar das afirmações de que estes tempos sejam especialmente prolíficos em termos de excesso de signos paradoxais, ambivalentes e instáveis. Tempos de tecnicismo, individualismo e consumismo - e de consumo de tecnicismo individualista.

A temática abordada neste livro representa uma faceta específica do espírito desta época onde as TICS assumiram uma dimensão essencial em múltiplos níveis da vida social. Um dos signos deste contexto pode ser localizado no onipresente telefone celular. Este aparelho adquiriu estatuto de objeto fetiche no âmbito do consumo e, ao mesmo tempo, que dilatou grandemente as possibilidades de comunicação, participou ativamente na transformação da privacidade nas conversas interpessoais. Mais ainda, os telefones celulares transformam padrões de sociabilidade.

Há indiscutíveis vantagens na simultaneidade espaço-temporal de nossas ações proporcionadas por estes objetos técnicos, possibilitando diversas ordens e níveis de acessos, contatos e trocas. É evidente a utilidade de vários produtos tecnológicos de consumo em termos de propiciar confortos na moderna vida cotidiana. Mesmo assim, seus efeitos podem assumir dimensões excessivas e logo se tornarem adversos, provocando disfuncionalidades. Um exemplo corriqueiro no dia a dia diz respeito ao uso de automóveis em grandes centros urbanos, cujo conforto em termos de viabilizar rápidos deslocamentos, pode logo se inviabilizar diante dos freqüentes engarrafamentos que assolam as vias públicas.

Ao lado dos óbvios aspectos positivos das redes comunicacionais, teríamos um estreitamento espacial em favor da velocidade da perspectiva on line. O excesso de informação tópica participa de um quadro de desinformação estrutural. Um sintoma desta manifestação pode ser representado pelo estado de confusão labiríntica eventualmente sentido por aqueles que se dedicam a longas atividades de navegação pela Internet em que perdemos a orientação e/ou nos afastamos dos contextos iniciais que inspiraram a busca. Encontramos aqui sintomas compatíveis com uma poluição ‘ambiental’ que Paul Virilio (1999) chamou ‘dromosférica’ (de dromos, corrida). Este neologismo refere-se a uma forma de agressão do espaço-tempo planetário, originária do aperfeiçoamento de veículos tanto de transporte, bem como de comunicação. Assim entre o sujeito e o objeto perde-se algo crucial - o trajeto – como efeito da contração espaço-temporal produzido pelas TICS, levando o tempo a restringir-se a um eterno presente amnésico.

Se a grande rede viabiliza a difusão de informações de saúde como nunca ocorreu, por outro lado, diante da respectiva profusão desmesurada, o controle da qualidade destes conteúdos por enquanto ainda é muito problemático. Além disto, se os bancos de dados sobre pacientes podem facilitar o manuseio das informações clínicas e facultar atendimentos mais efetivos, trazem também sérias questões de sigilo e confidencialidade sobre as vidas privadas das pessoas.

Um item preocupante embutido em meio aos vários processos simultâneos do que se convencionou designar ‘modernidade tardia’ diz respeito aos sintomas referentes aos sentimentos de desenraizamento, que se manifestam com as grandes transformações sociais ocorridas nas últimas décadas. Lidamos cada vez mais com a instabilidade nas matrizes simbólicas espaço-temporais instituintes de nossas identidades - especialmente aquelas ligadas ao pertencimento localizado em termos de rituais e costumes com demarcações especificadas de lugar e de temporalidade.

Nas brechas deste desenraizamento, a Internet, que nasceu Revolucionária (com maiúsculas), na conotação transgressora do termo, libertária, sem amarras regulatórias, se tornou apenas revolucionária (com minúsculas) - um fantástico meio de localizar tesouros, fragmentos ou detritos cognitivos. A Internet é revolucionária pela ilusão de simultaneidade, eternamente incompleta em retratar e veicular incompletudes que, em seu conjunto e à distância se assemelham à torre de Babel que tenta alcançar o firmamento. Comunicação ágil, transmissão maciça de dados em tempo real em meio à atemporalidade transcendente dos meios – este é o pacote adquirido pela sociedade do consumismo individualismo tecnicista. Uma revolução de técnicas transmissionais que nos isolam em um oceano de fragmentos de informações.

Além de não permitir a equivalência das diversas manifestações da condição humana, a presente redução espaço-temporal aumenta a polarização e os antagonismos. Como desenvolve Bauman (1999), se liberta uma determinada elite das amarras territoriais, ‘deslocaliza’ significados produtores de pertencimento e mantém restritos outros grupos que têm debilitados seus vetores estabilizadores de significados e de identidades.

À primeira vista, o título deste livro pretende designar um paroxismo mediante um paradoxismo - figura de linguagem que contrapõe duas idéias aparentemente antagônicas. Para além de um jogo retórico pedante, trata-se de destacar em ‘precário’ as idéias quantitativas de ‘escassez’, ‘insuficiência’ – aquilo que está aquém da medida, e, em ‘excesso’, a noção ‘daquilo que sobra’, ‘exagerado’ – que ultrapassa a medida. Em síntese, trata-se de explorar criticamente o fato ambivalente de que, ao lado das indiscutíveis vantagens tecnológicas, reside uma considerável perda das medidas.

Sob este ponto de vista, as medidas estabelecidas pelos sistemas modernos de ordenação normativa se debilitaram diante do monumental vórtice dos excessos produzidos pela atual sociedade de consumidores, movidos pelas incessantes tentações localizadas na enorme cornucópia de opções e ofertas de mercadorias, bens e serviços. Diante desta atmosfera de sedução intensa e constante, resulta que as normas que organizavam o comedimento e a temperança se esgarçam. O excesso passa a ser o padrão de referência e se estreita muito o espaço das contenções normativas. O excesso, antes encarado como descontrole, que conduzia ao desperdício e devia ser evitado, agora, é desejado como ‘norma’, significando a ampliação quase ilimitada de possibilidades, para além dos controles, que agora são encarados como restrições inconvenientes. Paradoxalmente, diante deste quadro, proliferam tentativas de manutenção de controle de situações que tendem à instabilidade – haja vista as tentativas governamentais de monitorar preventivamente estratégias terroristas.

Nada é demasiado, se o excesso se faz ‘norma’. Neste caso, a idéia familiar de norma tende a se desfazer, e se divisam ‘modos de ordenação’ baseados em exercícios desabridos da força, para além das regras de convivência, de preceitos éticos e da idéia apaziguadora de normalidade. Há indícios que nossa era se institui atravessando as paisagens normativas, para além das normas, tempos nos quais passaria a vigorar algo da ordem, se permitem a expressão (originária da geometria moderna), da transnormalidade - uma estabilidade precária dentro dos excessos, afastada das condições usuais de equilíbrio. Assim, o excesso deixa de ser encarado como algo de concreto que se perde, e sim, como uma referência que acena para ganhos e prazeres, atuando como miragem sedutora, como virtualidade impossível de se atualizar em sua totalidade, para sujeitos heterônomos, vulneráveis, mas que não se submetem a normas, mesmo pagando alto por isto. Bauman (2003), sugere que o excesso se constitui em um preceito da razão contemporânea numa existência de exposição frenética à abertura e à experimentação hedonista, para além de ditames contabilistas comedidos. Daí as dificuldades postas por perguntas que careciam de sentido há algumas décadas atrás: em que circunstâncias o excesso fica por demais excessivo e o desperdício passa a ser considerado perda?

O livro coloca seu foco crítico em distintos aspectos das TICS - onde se destaca o uso de internet, que vêm marcando acentuadamente o campo sanitário contemporâneo. Partimos da premissa de que as questões de saúde coletiva envolvem cada vez mais dimensões estruturantes atravessadas por recursos e objetos comunicacionais.

Este mundo hipercomunicativo apresenta ambivalências que podem se manifestar na co-existência de dimensões tecnológicas inovadoras com facetas ideológicas conservadoras, cujos efeitos tanto implicam no aumento espantoso no acesso a informações, com inegáveis resultados, mas ao não disporem de mecanismos satisfatórios que assegurem a correspondente consistência, também ampliam assustadoramente a possibilidade de manipulações, seduções e fatalidades.

O capítulo 1 enfoca as TICs que são transformadas em elementos/processos/objetos produzidos para serem utilizados no âmbito das tecnobiociências humanas, vinculadas tanto às práticas da biomedicina como às da saúde pública.

No capítulo 2 oferecemos um recorte emblemático dos excessos geradores de precariedades no ambiente das organizações profissionais de saúde.

No capítulo 3 observamos a transformação histórica do paradigma da “melhor informação para melhor decisão”.

Com este pano de fundo, o capítulo 4 aborda um proeminente empreendimento biomédico que se convencionou chamar medicina baseada em evidências que depende grandemente da informática e da internet.

O capítulo 5 apresenta aspectos da insegurança que atingem as sociedades contemporâneas, descritos e abordados analiticamente como uma questão pertinente ao âmbito da saúde pública. (...)

Ao final, é assinalada a necessidade de desenvolvimento de uma ética global voltada para problemas de saúde pública que envolvem desigualdades sociais e vulnerabilidade de parcelas expressivas das populações em escala mundial.

 

Notas

1. Este texto é um recorte, feito por Márcia Aparecida Zucchi, do capítulo de apresentação do livro: Castiel, L. D. et Silva, P. R. V. Precariedades do excesso. Informação e Comunicação em Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Fiocruz Ed, 2006.

 

referências bibliográficas

BALANDIER, G., O dédalo. Para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1999

VIRILIO, P. La Vitesse de Libération. Paris: Ed. Galilée, 1999.

BAUMAN, Z. Globalização. As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999.