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Neste
livro, Angelina Harari nos apresenta sua dissertação de
mestrado sobre a clínica lacaniana da psicose, realizada no
Instituto de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo,
sob a orientação do professor Luiz Carlos Nogueira. Além
disso, ela presenteia o leitor com a tradução de três textos
do psiquiatra francês Gaëtan Gatian de Clérambault:
“Automatismo mental e cisão do eu”, “Definição de
automatismo mental” e “Lembranças de um médico operado de
catarata”.
A
psicanálise não é sem relação com a psiquiatria clássica.
Freud, mesmo sendo neurologista, teve como um de seus mestres o
célebre psiquiatra francês Jean-Martin Charcot, no seu estágio
no manicômio da Salpêtrière, quando entrou em contato com a
clínica da histeria e das doenças mentais. Quanto a Lacan,
essa relação é muito mais estreita, porque ele era
psiquiatra, além de ter sido contemporâneo e aluno de um dos
últimos grandes mestres da psiquiatria clássica: Clérambault,
referência maior de Lacan na sua formação como psiquiatra,
quem lhe imprimiu a marca estruturalista.
Angelina
Harari tem como seu fio condutor uma abordagem não deficitária
da psicose, tratando da relação da psiquiatria com a psicanálise
lacaniana, e, principalmente, das conseqüências desta relação
na prática lacaniana da psicose. Ela inicia seu livro falando
da vida e da obra de Clérambault, do período de sua vida que
vai de 1905 a 1934, quando ele clinicou na Enfermaria Especial
da Prefeitura de Polícia de Paris, até seus últimos dias de
vida. A clínica deste psiquiatra “se fundamenta na agudeza do
olhar do observador” (p. 8).
O
olhar clínico de Clérambault se verifica na sua maior
contribuição à psiquiatria, como mostra Harari, que foi a
elaboração da “síndrome do automatismo mental”. Nesta síndrome
ele isola um grupo de fenômenos elementares e estruturais que
apontam a entrada na psicose: “a) conteúdo essencialmente
neutro (ao menos, em seu início); b) caráter não sensorial;
c) função primária no decurso da psicose” (p. 14).
Mas
há outra vertente do olhar de Clérambault, aquela do olhar do
etnólogo que se interessou pelo drapeado árabe e dedicou-se a
fotografá-lo, produzindo uma coleção de fotos sobre o tema,
além de tentar classificar milhares de vestes drapeadas,
redigindo um texto de 19 páginas. No entanto, uma tragédia
marca a vida deste brilhante pesquisador: os problemas de visão,
que se iniciaram quando ele estava com 55 anos, o que o levou à
perda da visão e ao suicídio, aos 62 anos. Ele próprio
descreve esse sofrimento, em um dos textos traduzidos por Harari
neste livro, “Lembranças de um médico operado de
catarata”:
“Minha
meia-cegueira tornava fatigante meu próprio pensamento, pois
quando estamos saudáveis, mesmo sonhando, apoiamo-nos no
exterior seja para descansar de nosso pensamento, seja para
reencontrá-lo. Privados dessa ajuda, nós devemos, com esforço
e sem repouso, empurrar o movimento das idéias ou reencontrá-lo.
O devaneio é muito menos propício na escuridão total do que
diante de um cenário interior ou de uma paisagem. Jamais havia
sentido essa dependência das coisas” (p. 75).
Após
localizar com precisão a dívida da clínica lacaniana da
psicose com Clérambault, Harari mostra a ruptura de Lacan com a
psiquiatria e o começo de suas próprias contribuições a esta
mesma clínica. Partindo do texto princeps do psicanalista sobre
o tema, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível
da psicose” (1957), e do conceito de foraclusão do
Nome-do-Pai, ela segue até os anos de 1970, quando Lacan propõe
“a foraclusão generalizada como modelo do núcleo real de
todo sintoma” (p. 12).
A
autora explica a ruptura de Lacan com a psiquiatria a partir do
momento em que seu método clínico e mesmo suas apresentações
de pacientes deixam “de contribuir para o avanço” (p. 24)
daquela ciência, e passam a ter como objetivo servir à psicanálise.
A contribuição de Lacan à psicanálise se daria
fundamentalmente em três âmbitos: o do diagnóstico, o da relação
do sujeito psicótico com o Outro e, na questão das suplências,
quando a estrutura psicótica se torna um paradigma. Ou seja,
“a inversão de perspectiva conduz, então, à pragmática, ao
bom uso do sintoma” (p. 34).
Após
especificar o que foi a clínica psiquiátrica de Clérambault e
a clínica psicanalítica de Lacan com as psicoses, ela contrapõe
as duas clínicas: a de Clérambault, como uma clínica do
olhar, e a de Lacan, como uma clínica da escuta. Para tal, ela
utiliza os “laudos” que Clérambault redigia e as apresentações
de doentes feitas por Lacan, para saber “como é possível
tratar o gozo por meio da linguagem, sem inserir o sujeito na
norma fálica” (p. 10). Segundo Harari, a orientação
lacaniana do tratamento da psicose se faz pela via dos
“desdobramentos do conceito de gozo” (p. 45). Quer dizer, é
preciso se debruçar sobre o desenvolvimento deste conceito, ao
longo de toda a obra de Lacan para, assim, se tirar todas as
conseqüências possíveis para o tratamento psicanalítico da
psicose.
Contudo,
Harari não oferece apenas o mapa lacaniano para se estudar e não
recuar no trabalho clínico com a psicose, ela também nos
brinda com a tradução de três textos fundamentais de Clérambault,
já que dois deles mostram a elaboração e a definição da síndrome
do automatismo mental.
O
primeiro texto chama-se “Automatismo mental e cisão do eu”,
de 1920. Nele, Clérambault relata três casos, nos quais
pretende mostrar que o automatismo mental independe da atividade
delirante-alucinatória. Ou seja, o sujeito primeiro apresenta
os fenômenos elementares: ecos do pensamento, ideação e fala
automáticas, fenômenos psicomotores, automatismos gráficos,
dentre outros. O automatismo é um “terreno” propício ao
desencadeamento psicótico, visto que nele predomina uma cisão
do Eu. O delírio, por exemplo, seria uma maneira de o sujeito
interpretar o automatismo. “O delírio propriamente dito é
apenas a reação obrigatória de um intelecto que raciocina,
freqüentemente inalterado, diante dos fenômenos emergentes de
seu subconsciente, ou seja, do automatismo mental” (p. 56).
No
segundo texto, “Definição de automatismo mental”, de 1924,
Clérambault arremata suas considerações anteriores sobre o
conceito, de uma forma ainda mais precisa, mostrando que o
automatismo em si mesmo não carreia uma alteração de humor,
nem mudança no caráter do sujeito. Quando isto ocorre, é em
função da atividade delirante secundária.
Por
fim, temos o texto “Lembranças de um médico operado de
catarata”, onde ele narra sua saga na tentativa de cura de seu
problema de visão. É um texto delicado, fino, assim como sua
clínica. Ele fala de si mesmo, de suas angústias, medos e
esperanças quanto à cirurgia a qual se submeteu na Espanha,
com o Dr. Barraquer. Ali podemos entrar em contato com um Clérambault
solitário e frágil, que se dizia, naquele momento, pronto para
enfrentar a escuridão da semi-cegueira e a “companhia de si
próprio”.
De
fato, o livro de Angelina Harari retira do escuro aquele
psicanalista que quer praticar a clínica lacaniana da psicose.
Ela nos reenvia ao estudo. Se, por um lado, ela reafirma a
declaração de Lacan de que não se deve recuar diante da
psicose, por outro, ela nos alerta para o fato de que este
trabalho não pode ser realizado por pessoas desavisadas quanto
ao longo caminho que a formação de um psicanalista lacaniano
exige. E mais, este caminho não se trilha sem mestres, sem
tradição. E, quanto a ela, fica bastante claro que Clérambault,
Freud, Lacan e Miller são seus pontos de referência, no que
tange à psicose. E é em relação ao trabalho deles que ela
pretende contribuir com algo de seu, a partir de seu trabalho de
pesquisa.
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