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 quando o amor faz mal à saúde: obesidade feminina e erotomania

 
 

 

Maria Cristina da Cunha Antunes

Psicanalista
Professora Assitente da Universidade Estácio de Sá (UNESA)
Coordenadora do Programa de Psicanálise aplicada ao diagnóstico e tratamento da Obesidade
Doutora em Teoria Psicanalítica/PPGTP/IP/UFRJ

crisantunes@superig.com.br

 

Resumo

O artigo defende a tese de que, do ponto de vista psicanalítico, a obesidade não é uma formação simbólica, um sintoma, mas uma solução produzida pelo sujeito para tratar um gozo inassimilável, não simbolizado. Esse tratamento do gozo não se faz através da sexualidade, implicando, portanto, numa recusa do inconsciente. A autora apresenta um panorama teórico para compreender a obesidade feminina à luz das contribuições de Freud sobre a sexualidade feminina articuladas às fórmulas da sexuação de Lacan. Tece a hipótese de que a obesidade mórbida feminina pode dizer respeito a uma demanda de amor insaciável, não limitada pela vertente fálica da sexuação, ou seja, não endereçada a um parceiro sexual. Em seguida, apresenta um caso clínico pensado à luz da orientação teórico-clínica desenvolvida.

Palavras-chave: Sintoma, obesidade, gozo, sexualidade feminina, fórmulas da sexuação.

 

   
 

 

when love is unhealthy: feminine obesity and erotomania

 

Abstract:

This paper supports the thesis that, from a psychoanalytical standpoint, obesity is not a symbolic association or a symptom but a solution produced by the subject to deal with a non-absorbed and non-symbolized fruition. This mode of addressing fruition does not occur through sexuality thus implying in a refusal of the unconsciousness. The author presents a theoretical panorama to help understand feminine obesity according to Freud’s contributions on feminine sexuality and Lacan’s sexuation formulas. The author hypothesizes that feminine morbid obesity can be related to an insatiable love demand, unlimited by the phallic aspect of sexuation - not addressed to a sexual partner. To conclude, the author presents a clinical case analyzed according to the clinical and theoretical orientation developed beforehand.

Key words: symptom, obesity, fruition, feminine sexuality, formulas of sexuation.

 

 

1. Obesidade: sintoma ou solução?

Defendo a tese de que, do ponto de vista psicanalítico, a obesidade não é uma formação simbólica, ou seja, não é um sintoma1. No sentido freudiano, o sintoma é um enigma que divide o sujeito, é uma solução de compromisso entre o desejo sexual e uma exigência da realidade que se lhe opõe. O sintoma surge como uma mediação de um conflito psíquico, sendo, portanto, uma formação simbólica que visa conciliar tendências psíquicas opostas e tem a sua fonte num desejo sexual proibido, recalcado. Nesse sentido, o sintoma se escreve no corpo como uma mensagem que se enlaça a uma satisfação sexual disfarçada, não reconhecida como tal.

Tomar a obesidade como uma solução significa pensá-la como tratamento de um gozo que não pôde ser tratado pela via da sexualidade e, ou seja, pela via do inconsciente. A obesidade, portanto, não é uma formação simbólica, não se trata de uma formação do inconsciente. Não é um saber a decifrar, mas algo que se exibe, se mostra e não diz nada. A obesidade é uma solução, o tratamento de um gozo que envolve a recusa da sexualidade e do inconsciente.

Nos casos de mulheres obesas crônicas e obesas mórbidas que entrevistamos, não há mal estar sexual. O parceiro sexual, quando existe, não é a fonte do conflito, da divisão, ou do mal estar. Essas mulheres até relatam problemas conjugais ou dificuldades nos relacionamentos amorosos. Entretanto, estes sujeitos não localizam o seu incômodo, o seu mal estar na vida sexual. O desencontro sexual não as divide, não é disso que elas sofrem. Tampouco vêem qualquer relação entre o excesso de peso e o eventual mal estar na sexualidade. Nessas entrevistas, observei que essas mulheres entendem o casamento de modo semelhante a uma relação mãe e filho.

Quanto à parceria amorosa, encontramos, nessas mulheres, as seguintes situações:

1.   Mulheres que jamais fizeram um vínculo conjugal com um homem ou que tiveram relações esporádicas, precárias, com homens, mas mantêm, inalterada, a sua parceria com a mãe, morando, muitas vezes, na mesma casa. O importante nas suas vidas é a relação amorosa com a mãe, mantendo-se na posição de filhas.

2.   Mulheres que realizam um casamento, tiveram filhos, mas a relação conjugal, sexual, desaparece, diminui de importância perante a sua função como mãe. São mulheres que se dedicam aos filhos e estabelecem, com eles, a relação amorosa mãe e filho.

3.   Mulheres que têm um parceiro conjugal, mas jamais se afastaram de suas mães. O homem parece, nestes casos, um acessório na relação libidinal mãe e filha. Em alguns casos, ele é transformado em filho também pela família da mulher.

O laço social destas mulheres é parasitado pelo modelo da relação amorosa mãe – filha. Uma entrevistada me disse, certa vez, muito surpresa com uma observação minha, que jamais se separaria de sua mãe, que ela é a sua melhor amiga e que mãe é para sempre. Ou seja, não se deixa, jamais, a posição de filha e a expectativa é a de tudo receber da mãe. Numa outra perspectiva, mas na mesma lógica, encontramos mulheres que dão tudo aos filhos, ao marido, aos parentes etc. Elas são cativas de uma doação e de um amor inesgotáveis.

Resumindo, podemos dizer que essas mulheres são “cheias de amor”. A observação destes casos levanta a questão da relação entre o amor e o sexo na sexuação feminina, que passarei a desenvolver seguindo as coordenadas do último ensino de Lacan conjugadas com as fórmulas da sexuação apresentadas por ele no Seminário 20 (Lacan, 1985).

 

2. A sexuação feminina

Freud (1931, 1933), ao investigar a sexualidade feminina, se interrogou sobre os destinos da relação primeva da menina com a sua mãe, anterior ao Complexo de Édipo. Chegou mesmo a se perguntar se, no caso da menina, a relação com o pai é capaz de substituir, completamente, a relação da menina com a sua mãe.

Segundo ele, nos avatares da sexuação feminina, a substituição da mãe pelo pai é feita, pela menina, a partir da descoberta da diferença sexual e da conseqüente decepção com a mãe por esta não ter e não dar o falo que ela, a menina, deseja. Surge, neste momento, a reivindicação do falo e, numa evolução favorável, a menina localiza o pai como aquele que tem o falo e pode lhe dar. O desfecho desse remanejamento, na sexualidade feminina, surge no consentimento da menina em substituir o pai por um homem e receber dele um filho, como equivalente simbólico ao falo que ela não tem.

Neste raciocínio, a reivindicação do falo é o operador que possibilita à menina separar-se da mãe e orientar-se em relação à sua sexuação como mulher. Freud designa o desejo de ter um pênis como sendo um desejo feminino por excelência (1933, p. 158). Não escapa a ele que a evolução edipiana da menina, introduzida pela inveja do pênis, é longa e difícil. O Édipo, ou seja, a orientação da menina para o pai, é um refúgio e ela não tem grandes razões para abandoná-lo.

Do que a menina se refugia quando recorre à ligação com o pai? Freud nos dá uma pista ao afirmar que a relação da menina com sua mãe permanece subjacente à sua relação com o pai, parasitando a organização da sua sexualidade como mulher.

Na perspectiva freudiana, a reivindicação do falo orienta a menina em direção à sexualidade feminina. Ela se aferra a essa reivindicação e não ultrapassa esse limite numa análise. Freud articula, nessa resistência, a reivindicação do falo com o repúdio da feminilidade. Para esclarecer esta articulação, recorro a Coelho dos Santos (2006), que propõe que, em Freud, a sexualidade feminina (Weiblich sexualität) não se confunde com a feminilidade (Weiblichkeit). A sexualidade feminina se resolve a partir do falo e seu substrato é a reivindicação do falo endereçada ao pai e depois ao homem. Segundo Coelho dos Santos, o mistério, para Freud, não era a sexualidade feminina, que se resolveria no campo da organização fálica, mas a feminilidade, que ele nomeia como continente negro, e que as mulheres também repudiam. A conclusão da autora é que a reivindicação fálica, à qual a mulher permanece fixada, representa uma manobra de proteção em relação à feminilidade.

De que trata, então, o repúdio da feminilidade na sexuação feminina? Tentarei delimitar esse impasse na sexuação feminina, a partir das fórmulas da sexuação, orientada por Miller e Coelho dos Santos.

 

3. As fórmulas da sexuação

O axioma não há relação sexual sustenta as fórmulas da sexuação. Não há relação sexual significa dizer que não há, de partida, uma lei, uma regra de formação que ligue, que possibilite a relação entre homens e mulheres. Trata-se, aí, de uma inversão de perspectiva: da primazia do simbólico ao axioma de que o real é sem lei (Miller apud Coelho dos Santos, 2006, p. 91). Nas fórmulas da sexuação, aparecem os dois modos de fazer suplência à relação sexual que não há, ou seja, ao real sem lei: a sexuação masculina e a sexuação feminina. Assim, a modalidade de laço sexual é diferente para homens e mulheres. “O que uma mulher reivindica, seu sintoma, sua posição subjetiva, é estritamente diferente da posição masculina” (Coelho dos Santos, 2006, p. 191).

Para os meus propósitos, explorarei o que vem a ser a lógica do não-todo, que opera na vertente feminina das fórmulas da sexuação, e os avanços que ela permite realizar em relação à sexualidade feminina. Segundo Miller (2003), o não todo, como lógica da sexuação feminina, não é um limite ao tudo, não é uma fronteira, além do qual haveria uma transgressão. O não-todo também não pode ser pensado sob o modo do incompleto. A oposição completo–incompleto está no âmbito da lógica fálica, denominada por Lacan, nas fórmulas da sexuação, de lógica do todo. A lógica do todo diz respeito à vertente masculina da sexuação. Diz respeito à crença na exceção à castração, funda um conjunto por identificação ao modelo. Para compreender essa lógica é preciso sustentá-la nos mitos freudianos do pai da horda primitiva (Freud, 1912-13) e no mito do Complexo de Édipo (Coelho dos Santos, 2006). Nesta lógica, a feminilidade está revestida pelas insígnias da pobreza, da falta, o ser da mulher é marcado por um “a menos” irremediável.

O não-todo é uma lógica de funcionamento para além da lógica fálica. Nesse sentido, não funciona sob a crença da exceção à castração. A crença é na universalidade da castração. Não há a submissão à castração a partir da ameaça de castração e a posterior identificação ao modelo. A mulher já é castrada. Do lado da mulher, temos, então, “não a identidade, mas a diferença, o sem identidade” (Miller, 2003, p. 17). Nesse sentido, “[...] o ser feminino é suposto encarnar a diferença, inclusive consigo mesma, o que coloca de forma subjacente uma vacuidade essencial” (Id.). Como conseqüência, Miller aponta que a mulher receberia a sua identidade somente a partir de um homem.

Na sexuação feminina, como Freud apontou, a partida se joga a partir da reivindicação do falo, na substituição da mãe pelo pai e do pai pelo parceiro sexual. Esta substituição se coordena com o consentimento da mulher em ser o objeto de desejo de um homem, que, em Freud, pode ser pensado como a passagem da atividade à passividade na sexualidade feminina. Este é o modo como a mulher se insere na lógica fálica: ser o objeto causa de desejo de um homem.

Há, entretanto, uma outra vertente na sexuação feminina que aparece, em Freud, sob o tema do enigma da feminilidade e que Lacan formaliza sob o matema . Segundo Coelho dos Santos,

“Lacan contribuiu decisivamente para distinguir a reivindicação do falo, própria da sexualidade feminina, da feminilidade propriamente dita. Ele propõe formalizar esta última por meio do matema . Lacan equipara a feminilidade, o gozo da mulher – mais além do gozo fálico da mãe – ao Outro gozo.” (2006, p. 3).

Esta formalização permite circunscrever os impasses da sexuação feminina. Na vertente fálica, trata-se de uma mulher transferir para o parceiro amoroso o amor ao pai e o desejo de receber um filho dele. O outro passo diz respeito ao repúdio da feminilidade: “[...] é preciso que uma mulher efetue uma separação a mais da posição de objeto suplementar ao gozo feminino da outra mulher, ou seja, sua mãe.” (Coelho dos Santos, 2006, p. 6).

Segundo Coelho dos Santos (2006), esse outro gozo é o que Freud denomina como pulsão de morte. Trata-se do real sem lei, sem nome, sem a medida fálica que regula e submete todo gozo ao princípio do prazer. Na sexuação feminina, a pulsão de morte diz respeito ao gozo feminino da mãe, para além do falo. Trata-se de situar a posição  que a menina ocupou, ao  responder ao que falhou para a mulher, que foi sua mãe, em relação ao parceiro conjugal. Na análise de uma mulher, este é o ponto que se transmite da mãe, como mulher, à sua filha.

 

4. Erotomania e amor

Como apontei, a feminilidade, na sexuação feminina, diz respeito à relação da mulher com com um parceiro sem limites e que Lacan (1985) nomeia como Deus. Trata-se, conforme assinala Lacan, da outra satisfação (fora da lógica fálica) e que consiste nas palavras de amor, no discurso amoroso (Lacan, 1985, p. 112).

O campo da sexuação feminina aponta para um gozo sem limites, que não é regulado inteiramente pela lógica fálica. Coelho dos Santos (2006) ensina que as mulheres, infensas à ameaça de castração, não têm nada a perder e esperam tudo receber. Segundo ela, o desejo de ser tratada como exceção especifica o desejo feminino como sendo essencialmente da ordem da demanda de amor. Miller (2003) denomina essa relação da mulher com de erotomania.

A erotomania, no campo da psicose, constitui-se no delírio de ser amado (Miller, 2006). O postulado fundamental da erotomania é a certeza que o sujeito erotômano tem de ser amado pelo Outro. O exemplo clássico freudiano de erotomania apresenta-se no caso Schreber. Ele constrói um delírio em torno de uma erotomania divina, na qual ele é amado, como uma mulher, por Deus.

A erotomania, na psicose, coloca a céu aberto a relação entre o amor e a loucura. A psicose, sem poder contar com a regulação fálica, exibe a face devastadora do amor, a intensidade desmedida da paixão. A erotomania envolve a recusa do desejo, o esquecimento do sexo. Nesse sentido, o amor louco é sem sexo, isto é, sem relação com o falo. Nesse sentido, como assinala Borie (2006, p. 13) a erotomania representa uma objeção ao amor como resposta ao impossível: a relação sexual que não há.

Estendendo essas noções para o campo da sexuação feminina, Miller (2003) indica a forma erotômana da mulher amar. Amor sem limites, que repousa, justamente, na anulação completa do ter (regulação fálica). É pela via do amor que a mulher visa o ser mais além do ter. Esse estatuto do amor, como mais além do ter, explica o aspecto ilimitado, infinito do amor. Como amar é, fundamentalmente, querer ser amado, isso se traduz, na mulher, por uma demanda insaciável de amor. Esta é a vertente erotomaníaca da sexuação feminina.

 

5. Um exemplo clínico:

Vânia era obesa mórbida e, em 2003, se submeteu a uma cirurgia de redução do estômago. Quando me procura, em 2006, por ordem da endocrinologista, está com 100 quilos. Este é o motivo da sua consulta: ela, praticamente, readquiriu, nestes três anos, o peso que possuía antes da cirurgia bariátrica.

Vânia tem 54 anos e formação universitária. Entretanto, trabalha numa função burocrática, sem qualquer relação com a sua formação. Aos 37 anos, o marido separou-se dela porque arranjou outra mulher. Foi casada por 15 anos. Antes de se casar, trabalhava na sua profissão. Logo que casou, perdeu o emprego e, a seguir, engravidou. Não voltou a trabalhar fora. Dedicou-se à casa e aos filhos. Foi surpreendida pelo pedido de separação e se sente traída e decepcionada com o ex-marido até hoje. Não compreende como o seu amor, a sua doação integral à casa e à família foi tão mal recebida e não recompensada pelo marido. Investiu tudo no casamento, como mãe e dona de casa. Começou a engordar depois que teve os filhos e nunca mais voltou ao peso normal. Depois da separação, não teve nenhum parceiro amoroso.

Neste relato, o primeiro ponto que desejo destacar é o desaparecimento da sexualidade de Vânia no casamento. Logo que se casa e tem filhos, torna-se toda mãe e parece reduzir o casamento à parceria pai e mãe. Vânia não relata qualquer mal estar sexual durante seu casamento, nem percebeu qualquer sinal e insatisfação ou afastamento sexual do seu marido em relação a ela. Eles trabalhavam, cooperavam, cada qual à sua maneira, para manter e cuidar da família. A família ocupava toda a preocupação de Vânia e a parceria sexual parece ter desaparecido. A recusa em saber algo sobre o mal estar sexual aparece, de forma traumática, com o pedido de separação do marido. Até hoje, Vânia chora, penosamente, ao falar do ex-marido, do divórcio. Ela parece não compreender porque o amor não foi suficiente, não bastou para assegurar a relação com o marido.

Sobre seus pais, ela os descreve, unicamente, como pai e mãe. Constituíram uma família, lutaram muito para sobreviver. Dedicaram-se aos filhos. Interrogada sobre o casamento dos pais, sobre a vida amorosa, sexual deles, ela fica surpresa e não consegue lembrar qualquer sinal ou dizer qualquer coisa sobre o que foi a vida dos pais como casal. Para ela os seus pais eram somente pais: só amor, sem sexo. Declina-se, aqui, novamente, a recusa de Vânia em saber sobre o sexual.

Neste ponto, impõe-se a necessidade de um diagnóstico diferencial: trata-se de uma recusa neurótica ou psicótica? Este diagnóstico não é simples de se fazer, já que Vânia se apresenta numa posição que poderíamos chamar de “posição psicótica” (Coelho dos Santos, 2005, p. 83). Trata-se de sujeitos que se apresentam, ao analista, numa posição de objeto, indicados por outros, portanto, sem uma questão subjetiva, e exibindo sintomas que não são uma formação do inconsciente ou um delírio. Nesta posição ,são sujeitos que nada querem saber, que rejeitam o inconsciente, não associam livremente, nem tampouco apresentam um sintoma para ser decifrado. No caso de Vânia, o seu mal estar deriva do fato de que ela é gorda. Não vou me deter nos detalhes da investigação diagnóstica, pois não é esse o meu objetivo. Não encontrei fenômenos elementares e o modo como Vânia se serve do pai me inclinam a pensar que trata-se de uma neurose.

O ponto que me interessa ressaltar é o modo como se estabeleceu a relação transferencial e o lugar que eu ocupo como analista. Nos nossos encontros, os temas que ela apresenta giram em torno da preocupação e do prejuízo. Ela está sempre preocupada e se sente prejudicada sempre que o Outro não lhe diz as palavras que ela deseja ouvir e que a situam num lugar especial, de valor.Essa demanda tem relação com uma reivindicação ao pai, de quem ela diz que “faltaram palavras”.

A relação comigo, desde o início, é colorida por esta reivindicação: ser tratada como uma exceção, ter um lugar especial. Qualquer tentativa minha de operar uma retificação subjetiva implicando-a enquanto desejante nos eventos que ela relata, tem como resposta lágrimas, hostilidade, recriminações de que não compreende o que eu disse, ou ainda que eu a considero culpada e ela, então, procura se defender dessa injustiça. Definitivamente, neste momento, implicá-la na parte que lhe cabe na tragédia em que vive, não são, para ela, as palavras certas.

Vânia não quer saber sobre o seu inconsciente. Ela procura um lugar especial no Outro. Ela reivindica o amor do Outro. É uma demanda insaciável de amor. Ela quer palavras de amor. Transferencialmente, ela me propõe essa parceria. Isso fica evidente quando, um dia, preciso trocar o seu horário. Ela acata, mas depois me diz que “eu tirei o horário que era bom para ela”. Como resposta, imediatamente, levantei e confirmei, na agenda, o horário que ela queria, dizendo que achava importante ela conservar o horário que era bom para ela. Eu me tornei, na transferência, segundo a indicação de Miller (1995), o seu parceiro-sintoma. Como aponta Coelho dos Santos (2005), nestes casos, aparece a céu aberto, o ponto onde o sujeito se serve do analista como meio de gozo, onde se evidencia a compulsão à repetição e a pulsão de morte.

É claro que essa estratégia transferencial não é uma tentativa ingênua de satisfazer a demanda de amor do sujeito. A meu ver, a resposta do analista a essa demanda é uma resposta que acolhe e interpreta, em ato, possibilitando, simbolizar isso que, até então, não teve paradeiro ou nomeação. O ato interpretativo do analista, na vertente real da transferência, evidencia, recorta, localiza a exigência pulsional.

Vânia quer ser amada. Ela é uma crente do amor. Podemos chamar essa posição de uma posição religiosa, pois o paradigma é a relação com Deus, com as palavras de amor. Trata-se de uma relação amorosa que não é atravessada e, portanto, limitada pelo sexo, pelo desejo. Trata-se da crença em um amor incondicional.

Esta é a vertente erotomaníaca da sexuação feminina. Trata-se de uma exigência pulsional que a relação ao falo não recobre e que se traduz por uma demanda insaciável de amor: fome de palavras de amor.

Penso que esta pode ser uma hipótese frutífera a verificar nos casos de obesidade crônica e obesidade mórbida. A obesidade crônica, em mulheres, do ponto de vista pulsional, pode estar relacionada a uma demanda de amor insaciável, não regulada pelo falo, ou seja, que não está endereçada, localizada, limitada pelo parceiro sexual.

 

Notas:

1.    Ver a esse respeito: Coelho dos Santos, T. et Antunes, M. C.: “Se todo gordo é feliz: a obesidade é um sintoma ou uma solução?”, In: Grimberg, A.B. e Beividas, W. (org) Psicanálise e conexões. Rio de Janeiro: Contracapa ed., 2006.

 

 

Referências bibliográficas

Borie, J. “Uma versión de la vida sexual sin el falo”, In: Miller, J.-A. (org.). El amor en las psicosis. Buenos Aires: Paidós ed., 2006.

Coelho dos Santos, T. et Antunes, M.C.: “Se todo gordo é feliz: a obesidade é um sintoma ou uma solução?”, In: Grimberg, A.B. et Beividas, W. (org) Psicanálise e conexões. Rio de Janeiro: Contracapa ed., 2006.

Coelho dos Santos, T. et Azeredo, F.A. “Um tipo excepcional de caráter”. In: Psychê, São Paulo, n. 16, p. 77-95, 2005.

Coelho dos Santos, T. “O psicanalista é um sinthoma”. In: Latusa, n. 11. Rio de Janeiro: EBP-Rio, 2006, p. 57–72.

_______. Sinthoma: corpo e laço social. Rio de Janeiro, Ed. Sephora/UFRJ, 2006.

_______. “A prática lacaniana na civilização sem bússola” In: Coelho dos Santos, T. (org) Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada, Rio de janeiro, Contra capa ed., 2005.

Freud, S. (1912-13) “Totem e tabu”. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Ed. 1980, vol. XIII.

_______. (1931) “Sexualidade feminina". Op. Cit. Vol. XXI.

_______. (1933 [1932]) “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”. Conferência XXXIII – “Feminilidade”. Op. Cit. Vol. XXII.

Lacan, J. (1972-73) O Seminário. Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro. Ed Zahar. 1985.

Miller, J.-A. “Uma partilha sexual”, Clique. Belo Horizonte, n. 2, p. 12-4-, 2003.

_______. El amor en las psicosis. Buenos Aires. Paidós ed., 2006.