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Introdução
A libido é um conceito chave para a compreensão dos conceitos
freudianos de narcisismo e de feminilidade, assim como para a da
lógica do não-todo formalizada por Lacan no Seminário
20. Trata-se de um termo de origem latina – derivado de Lieb,
amor em alemão –, que se associa com o desejo (Wunsch),
a luxúria (Lust) e a
paixão humana. Freud o emprega para designar a fonte da energia
psíquica tanto no campo da pulsão como no do amor.
Libido
e pulsão
Muito antes de ter desenvolvido uma teoria da pulsão, o que só
acontecerá em 1915, Freud, em seus manuscritos (1892-99),
já atribuía a causa das
afecções
psíquicas à sexualidade. Ele supõe um aparelho psíquico formado por excitações
endógenas, impulsos2 que se
transformam em registros psíquicos. Usa o termo libido para
determinar o resultado desta modificação. A libido exibe um
duplo aspecto: resulta do processo de elaboração da excitação
orgânica em psíquica e se define como “afeto sexual”
(“Carta 18”). Implica, portanto, a atribuição da qualidade
sexual ao que era apenas uma excitação3. No
“Rascunho G”, a propósito da gênese da melancolia, Freud
afirma que seu afeto é o luto, ali definido como “desejo de
recuperar algo que foi perdido”. Isso permite a hipótese da
melancolia como expressão de uma perda de libido. Sendo resultado
da tradução do orgânico em psíquico, podemos afirmar que
a libido é o efeito da exigência que a pulsão faz à mente de
trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo (1915,
p. 142). Ela implica, desde os seus primórdios, um laço sexual
com um objeto. Esse laço representa uma satisfação obtida sob
a forma de descarga. A natureza sexual desta ligação, que
Freud nomeia como libidinal, requer a presença ativa de um
outro, semelhante do sujeito, que tome para si a tarefa de
erotizar. Freud (1895, p. 438) dá o nome de “complexo do ser
humano” às circunstâncias em que esta tarefa é executada.
Podemos afirmar, então, que em sua relação com o que Freud
conceituará mais tarde como pulsão, o termo libido era já
empregado para descrever a manifestação dinâmica da
sexualidade humana, cujo protótipo é sempre infantil. Essa
expressão dinâmica se caracteriza pela formação de modos de
organização que visam à satisfação pulsional. Esses modos são
primeiramente pensados como compostos por traços de memória
que se desdobram em vários tempos e versões (“Carta 52”).
São libidinalmente estratificados e sujeitos, de tempos em
tempos, a retranscrições ou reordenamentos. Essa estrutura é
situada em relação às suas fontes orgânicas. A diversidade
dessas fontes – chamadas “zonas erógenas” - dá origem a
tipos específicos de organização psíquica libidinal e a uma
concepção de recalque apoiada no abandono de tais zonas. Das
zonas sexuais abandonadas não resultaria nenhuma descarga
libidinal, somente desprazer em relação ao objeto. A noção
de libido supõe investimentos eróticos primários, perdas e um
reordenamento da memória em diversos tipos de sinais, presentes
em diferentes versões, cuja lembrança geraria desprazer. A
libido se opõe à angústia e os seus reordenamentos desvelam
uma pré-história que permite a Freud chegar às cenas primárias,
fundamentando a arquitetura das neuroses4 numa mesma
etiologia, sexual, e num mesmo objetivo, o investimento
retroativo de traços organizados sob o modelo edípico
(“Carta 71”).
A sexualidade infantil apresentada em 1905 resulta desse percurso. Os
conceitos de libido e de zona erógena elucidaram a natureza
sexual das relações primárias e caracterizaram o
auto-erotismo como tendo sido originado através de pulsões
parciais e de zonas erógenas cuja finalidade é a obtenção de
prazer. O campo das excitações orgânicas é agora
legitimamente o campo das pulsões que não se dirigem para
outras pessoas, embora delas dependa para organizar um modo
característico de satisfação no corpo do próprio indivíduo.
Freud (1905) usa o exemplo de “chupar o dedo” para
demonstrar que o comportamento auto-erótico “é determinado
pela busca de algum prazer que já foi experimentado e agora é
lembrado” (p. 186). Trata-se da busca por um prazer vivido na
relação da criança com a mãe, no caso, durante a amamentação.
É por esta razão que, nos “Três ensaios...”, a libido
encontra seu lugar no auto-erotismo infantil. O desenvolvimento
pulsional auto-erótico é caracterizado pelas pulsões parciais
que são, em geral, desligadas entre si e independentes umas das
outras na busca do prazer. Sua fonte é orgânica e sua
finalidade, vinculada à satisfação localizada em cada zona erógena.
Essa satisfação deixa atrás de si uma disposição. A sedução
tem aqui um fator relevante. É responsável por despertar
prematuramente a pulsão sexual. Sob sua influência, “as
crianças podem tornar-se perversas polimorfas” (p. 196). Com
a introdução do caráter sexual, tudo o que poderia ser
pensado como sendo da ordem da necessidade ou da natureza fica
perdido para sempre. Freud postula a disposição para as
perversões como característica geral e fundamental da
sexualidade humana.
Para Freud, a constituição subjetiva tem seu ponto de partida em uma
relação dual real com a mãe, responsável pela erotização
do indivíduo, ou seja, pela introdução da sexualidade. Do
ponto de vista do organismo biológico do futuro sujeito, a
satisfação sexual que daí se obtém é parcial e
diversificada em diferentes objetos. Embora a pulsão em jogo
seja sexual, o circuito pulsional aqui não tem qualquer caráter
reprodutivo.
Libido
e amor
A sedução é, então, o meio pelo qual se introduz a conexão da
libido com o tema do amor. Para Freud (1905, p. 229), o protótipo
de toda relação de amor é uma criança que suga o seio da mãe.
O vínculo canibal primário, instaurado pela experiência de
amamentação, é o modelo da relação amorosa.
Os estágios de desenvolvimento da libido constituem um regime sexual
peculiar pré-genital. A organização sexual pré-genital
canibal ou oral se caracteriza pela não distinção entre a
atividade sexual e a ingestão de alimentos. Diante da exigência
pulsional, da “fome” sexual, o objeto da atividade sexual é
homólogo ao da ingestão de alimentos. O plano pulsional se
sobrepõe ao da necessidade e o amplia. A atividade pulsional
objetiva a incorporação do objeto. Trata-se do “protótipo
de um processo que, sob a forma de identificação5,
deverá desempenhar um importante papel psicológico” (1905,
p. 204).
A segunda fase pré-genital é a da organização sádico-anal,
caracterizada pela oposição de duas correntes que persistem
durante toda a vida sexual – a atividade e a passividade.
Essas correntes correspondem respectivamente à fruição das
posições de sujeito e de objeto na relação primária da
criança com a mãe. A pulsão de domínio põe a atividade em
jogo através da musculatura somática, ficando o objetivo
sexual passivo representado pelo ânus. As correntes ativa e
passiva possuem objetos distintos, mas a satisfação também se
caracteriza pelo auto-erotismo. Nesta etapa, é possível
observar alguma polaridade sexual e um objeto estranho ao ego6.
No entanto, a organização das pulsões em um único objeto e
sua finalidade reprodutora continuam ausentes.
Freud conceitua a pulsão como uma energética para sustentar a hipótese
da diversidade das catexias sexuais e amorosas existentes entre
o sujeito e o outro. Essa hipótese depende da libido como
conceito dinâmico. Se havia uma suposição de que a libido se
desenvolvia de modo linear, ou seja, se ela havia sido pensada
como transformação do impulso orgânico em registro psíquico,
a consideração da relação com o objeto mostrou que a
organização libidinal se dá através de processos heterogêneos.
Verificamos aí um deslocamento conceitual: o campo das excitações
orgânicas é propriamente o que define o campo pulsional,
ficando a libido vinculada à busca do objeto. Mesmo não tendo
desenvolvido ainda o complexo de Édipo e tampouco tenha
subordinado seus efeitos ao complexo de castração, Freud
conceitua a ligação arcaica da criança com a mãe como ligação
objetal. Seu principal atributo é ser sexual sem ser genital.
É o modelo de toda forma de amar, portanto, um ponto de fixação
que orientará a escolha do parceiro sexual.
A ligação primordial da criança com as pessoas que se encarregaram
de seus cuidados básicos caracteriza a natureza do amor sexual
desta organização pulsional. A condição amorosa torna-se
dependente da presença do objeto e sua ausência implica o
comparecimento da libido como angústia7. O objeto se
apresenta inicialmente sob as formas da escopofilia, do
exibicionismo e dos objetos oral e anal. Como já afirmamos,
eles não têm, a princípio, qualquer relação com a vida
genital e tampouco se constituem como imagem unificada. Essa
relação só se dará a posteriori, com a entrada da diferença
sexual. Neste momento do desenvolvimento pulsional, a existência
de dois sexos não é fonte de angústia para a criança, pois o
auto-erotismo se caracteriza pelo modo parcial como a pulsão se
satisfaz. Portanto, a presença da angústia se refere à ausência
do objeto da satisfação e não à diferença sexual. A
constituição do ego como objeto fálico privilegiado de
investimento pulsional será a condição para a entrada em jogo
da diferença sexual e de seu correspondente, a angústia de
castração. Nesta seqüência, a esfera do amor também sofrerá
alterações.
Libido,
pulsão, amor e narcisismo8
O que Freud conceituou, em 1914, como narcisismo é uma etapa
estrutural da subjetividade humana e se configura como extensão
da teoria da libido. Implica o investimento do corpo próprio do
sujeito como objeto amoroso a partir de uma nova
ação psíquica9. O narcisismo depende de que o
sujeito se apreenda como imagem fálica unificada, que deve ser
amada e preservada. Trata-se da passagem de um corpo que usufrui
uma satisfação pulsional parcializada em objetos, sem precisar
se ocupar da sua própria preservação, a um corpo
libidinalmente unificado como objeto de amor, que precisa ser
preservado. A libido converge para a imagem de si e toma-a como
objeto privilegiado de satisfação pulsional.
Para Freud (1914), as pulsões de autopreservação não são originárias.
Segundo sua teoria de 1923, o ego depende de uma modificação
oriunda da influência do mundo externo. A hipótese do
narcisismo freudiano, cuja conseqüência, como afirmamos acima,
é um corpo unificado e investido como objeto sexual, é a de
que o amor de si surge como efeito de uma identificação com o
amor do outro. Requer, portanto, a tomada da imagem do outro
como objeto com o qual o sujeito se confunde, unificando-se. A
ilusão proporcionada pelo amor é um dos elementos que promove
o passo da parcialidade auto-erótica à unidade da imagem narcísica.
Mas como isso ocorre? Como as pulsões podem convergir para um único
objeto se elas são parciais e se os objetos em questão nesse
tipo de satisfação se caracterizam por sua multiplicidade?
Como um único objeto pode satisfazer a essa multiplicidade
pulsional?
O narcisismo comporta um paradoxo: não há ego na origem, não há
sequer pulsões de autoconservação, apenas sexualidade que nem
é originalmente do próprio sujeito, mas da espécie. No
entanto, mesmo assim, há uma convergência da satisfação
pulsional no ego como objeto privilegiado e unificador. Sendo da
espécie – a referência freudiana é filogenética -, a
sexualidade comporta um imperativo de reprodução que, para ser
posto em prática, requer um reconhecimento de que possa haver
nisso algum ganho. Ora, o auto-erotismo característico das
etapas do desenvolvimento libidinal do ego é composto por uma
sucessão de estados de satisfação advindos da pura e simples
fruição pulsional de objetos sem que haja oposições. O
auto-erotismo está referido a um puro uso sem que o aparelho psíquico
disponha de um operador que o especifique, o delimite e o
dialetize. A reprodução, por sua vez, requer a sexuação, a
diferença, o destino à morte como uma oposição em tensão
com a vida, implicando uma transitoriedade. Como já afirmamos,
Freud pensa o desenvolvimento da libido, que culmina no
narcisismo, a partir da relação dual existente entre a mãe e
a criança, relação real onde vida e morte não constituem
inicialmente uma oposição, mas uma mescla pulsional.
O ego em vias de se constituir não é um indivíduo com condições de
discernir os interesses da espécie e a adversidade desses
interesses em relação a autopreservação. Ele é efeito do
fato de que as pulsões são originalmente sexuais, portanto, o
ego é sexual e deve ser sexuado. Ele é oferecido à satisfação
pulsional como objeto convergente para todo o circuito pulsional
parcial, promovendo um curto-circuito. É um objeto enganoso.
Engana as pulsões sexuais do mesmo modo como a imagem refletida
no lago engana Narciso.
O engano é necessário porque ao indivíduo, tomado como organismo
biológico, não se supõe a existência de um interesse
original pelas pulsões sexuais. Um “interesse” sexual
implicaria a organização convergente da pulsão no sentido
sexual genital, o que não é possível quando os interesses em
jogo estão fragmentados e não se organizam pela via da
genitalidade. Se, por um lado, há pulsões sexuais, por outro,
não há no funcionamento pulsional originário um programa no
sentido da reprodução. As perversões comprovam que o
interesse do indivíduo passa ao largo do da espécie. Portanto,
a questão continua sendo: como se chega à escolha objetal?
Constituir-se a partir de uma nova ação psíquica não define a
natureza do ego. É preciso o estudo das psicoses para que esta
se revele: quando há uma alteração na realidade a libido
anteriormente investida no objeto retorna em direção ao ego,
que passa a ser exaltado (megalomania) ou degradado
(melancolia). Os transtornos na economia libidinal mostram os
efeitos da perda do objeto: o ego toma o lugar do objeto porque
se identifica com ele. O retorno da libido faz da perda do
objeto a principal chave para a compreensão da natureza do ego.
Permite a afirmação de que todo narcisismo é secundário (Freud,
1914, p. 90-91) e mostra que o processo identificatório é
sempre regressivo porque depende de uma perda. A observação
das psicoses permite a Freud sair de um verdadeiro impasse: a idéia
da unificação pela nova ação psíquica reifica a relação
dual original, coloca o sujeito numa posição homossexual que o
impede de sair em direção a uma escolha objetal, ou seja, uma
escolha que considere a diferença sexual. A passagem do
narcisismo à escolha objetal depende de uma perda implementada
a partir da entrada em jogo do complexo de castração. Ainda
segundo Freud (1914, p. 109), a parte mais importante dos distúrbios
em relação aos quais o narcisismo original se vê exposto
“pode ser isolada sob a forma do ‘complexo de castração’
(nos meninos, a ansiedade em relação ao pênis; nas meninas, a
inveja do pênis)”. A observação dos efeitos do complexo de
castração por Freud é responsável pela inferência da existência
de um narcisismo primário, ou seja, de um tempo em que os dois
grupos pulsionais, mesclados, advêm com interesses narcisistas.
Foi o que a psicose comprovou.
Freud dá um passo a mais na própria consideração do conceito de
narcisismo. A perda do objeto, que a psicose mostra situar-se
como causa real do narcisismo, fornece um estatuto imaginário
à nova ação psíquica tomada como identificação do sujeito
à sua própria imagem unificada à imagem do outro. O texto de
1923, “O ego e o id”, ilumina ainda mais este ponto: não se
chega ao amor por uma imagem de si unificada sem que se tenha
feito uma separação no plano dos objetos, ou seja, sem que o
amor se separe do ódio. Melhor dizendo, sem a presença da
organização fálica genital trazida pelo encontro com a
diferença sexual não é possível distinguir amor e ódio.
Antes de prosseguirmos pela via apontada pelo texto de 1923 para a
diferença sexual, julgamos importante esclarecer como Freud
conceitua a gênese do amor e do ódio, uma vez que nossa hipótese
é a de que, relidas a partir dos textos dos anos trinta, a
identificação e a relação de objeto características das
etapas pré-genitais da libido esclarecem o narcisismo feminino,
isto é, mostram porque a escolha objetal da mulher é de
natureza narcísica e não anaclítica.
A
gênese do amor e do ódio na organização pré-genital
Para fundamentarmos este ponto, utilizaremos o texto “Os instintos e
suas vicissitudes” (1915, p. 160). Ali Freud demonstra que o
amor devém da capacidade egóica de obter satisfação auto-erótica
para algumas de suas pulsões por meio do prazer no órgão. Sua
origem é sempre narcisista e sua passagem aos objetos
incorporados ao ego, secundária. O amor se vincula às
atividades pulsionais posteriores, podendo mesmo chegar a
coincidir com o impulso sexual como um todo. No entanto,
enquanto as pulsões sexuais passam por um complexo
desenvolvimento, as fases preliminares do amor nascem como
finalidades sexuais provisórias.
No primeiro estágio do desenvolvimento pulsional a finalidade em jogo
é a incorporação ou o devoramento. Trata-se, afirma Freud, de
“um tipo de amor que é compatível com a abolição
da existência separada do objeto e que, portanto, pode ser
descrito como ambivalente” 10. Do ponto de vista
dinâmico das pulsões, os objetos não são de
amor ou de ódio, mas
de ambivalência em função da indiferenciação
presente no que concerne à existência do sujeito e à do
objeto. A lógica das pulsões amorosas ou hostis é implantada
em homologia à lógica do funcionamento pulsional: ingerir e
cuspir, engolir e expulsar.
Quando a organização sádico-anal se encontra em sua fase mais
elevada, a busca pelo objeto surge como ânsia de domínio, em
relação à qual é indiferente
se ocorre algum dano ou o próprio aniquilamento do objeto.
Tanto nesta forma quanto em sua fase preliminar o amor e o ódio
ainda são quase
indistintos em sua atitude para com o objeto. É preciso que
a organização genital se estabeleça para que, então, o amor
surja como oposto ao ódio. (Freud,
1915, p. 161) Sem a operação do complexo de castração, que
organiza as relações entre os sexos por meio da lógica fálica
acoplada à diferença sexual, não há uma perda responsável
por fundar o ego como sexuado e por promover uma escolha objetal
como tentativa de recuperação da perda narcísica em questão.
Estas considerações nos permitem afirmar que, no plano da organização
pré-genital, o amor não alcança o caráter civilizador ao
qual Freud se referiu em 1921, pois não encontra o limite real
que o diferenciaria do ódio. A satisfação pulsional da qual o
organismo usufrui nesta fase não se dialetiza. Seu caráter é
imaginário, estagnante e mortífero. Esta é a raiz da
erotomania freqüente nas psicoses. Como já observamos, o
estudo dos transtornos psíquicos presentes nas psicoses foi o
responsável por elucidar que o ego é oriundo de uma perda de
realidade ocasionada pela diferença sexual. Desta perda decorre
o circuito polimorfo das pulsões parciais, em relação ao qual
o narcisismo é um curto-circuito.
Só a consideração do complexo de Édipo atrelado ao de castração
permite dizer que o núcleo da libido é o amor sexual e seu
objetivo, a união entre os sexos (Freud,
1921, p. 116). Sabemos que há outras formas pelas quais o amor
pode ser declinado, mas convém lembrar que todas
constituem também expressões das mesmas moções pulsionais,
desviadas, entretanto, de seu objetivo sexual (p. 131). Eros
“mantém unido tudo o que existe no mundo” (p. 117) e tem um
caráter civilizador, pois “ocasiona a modificação do egoísmo
em altruísmo” (p. 130). É o nome do que faz laço entre os
seres humanos tomados como objetos de investimento e de satisfação
pulsional.
Freud valoriza o amor que leva ao laço social, resultante do
narcisismo secundário. No entanto, como acabamos de demonstrar,
ele também fala de um tempo preliminar do amor vinculado ao
funcionamento pulsional presente no auto-erotismo, ligado à
satisfação obtida no narcisismo primário, onde o amor não se
diferencia do ódio. Trata-se de um tempo em que o movimento
pulsional funciona desvinculado do caráter sexual genital, no
qual a pulsão se caracteriza pela reversão do amor em ódio em
função do não recobrimento desta etapa pelos complexos de Édipo
e de castração. O amor decorrente da pulsão sexual
desvinculada da diferença sexual tem um caráter ambivalente em
relação ao ódio. Esse caráter desregulado se constitui como
ponto de fixação que permanece associado às pulsões do ego.
É deste modo que o narcisismo sempre fará parte do caráter
libidinoso de investimentos do ego.
Com isso, coloca-se uma importante distinção entre o narcisismo como
amor de si, vinculado ao egoísmo, e o amor altruísta, oriundo
do narcisismo secundário. O primeiro serve de abrigo para as
perdas e as identificações primordiais, enfim, para os restos
das ligações pré-genitais às quais não se conseguiu
renunciar. Trata-se, segundo Freud, de “um verdadeiro amor
feliz”, ou seja, de um amor que “corresponde à condição
primeira na qual a libido objetal e a libido do ego [ainda] não
podem ser distinguidas” (1914, p. 117). Entendemos que o termo
“feliz” é usado aqui por Freud não para se referir
propriamente a um estado de espírito, mas à satisfação que a
pulsão encontra em relação ao seu próprio circuito. Não nos
esqueçamos que a pulsão freudiana é uma exigência
que se satisfaz apesar de tudo, é uma demanda de trabalho
articulada no inconsciente, capaz de produzir sua própria
satisfação.
“[...] uma pulsão nos aparecerá como sendo um conceito
situado na fronteira entre o mental e o somático, como o
representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do
organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência
feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua
ligação com o corpo” (Freud,
1915, p. 142, grifo nosso).
O amor altruísta, por sua vez, é efeito de uma perda e implica uma
catexia endereçada para o mundo externo. Indica a busca de um
objeto novo, heterossexual, complemento libidinal do ego que
renunciou a uma parte do próprio narcisismo e foi ampliado
pelas identificações secundárias. Neste registro, o amor narcísico
é trocado por um elevado ideal do ego, fator condicionante do
recalque, mostrando o importante papel da libido como fundamento
do laço social (1921). A existência de um ideal do ego faz
obstáculo à regressão da pulsão à fase oral porque
distingue o ego e o objeto ao invés de manter o caráter
indiscriminado encontrado nas etapas pré-genitais. Neste
sentido, o ego ideal pode ser tomado como resíduo do ideal do
ego.
Desta distinção na esfera do amor decorre a escolha objetal peculiar
à vida erótica humana. Segundo Freud, os homens se
caracterizam pelo amor objetal completo do tipo anaclítico ou
de ligação. Eles renunciam ao narcisismo do ego ideal e
transferem-no para o objeto sexual que deverá ser amado. A
capacidade de amar é, portanto, correlata da renúncia. Ama-se
a parte do próprio narcisismo à qual se renunciou. As
mulheres, por sua vez, não se caracterizam pela renúncia, mas
pela intensificação do narcisismo original, fator que Freud
aponta como desfavorável para o desenvolvimento de uma escolha
objetal verdadeira11. Elas amam a si mesmas e
precisam mais ser amadas do que amar. Nelas, segundo Freud, o
alcance do amor objetal completo depende da criança que geram
(1914, p. 105-106).
Freud revela uma situação curiosa, um impasse constituído sob a
forma de um aparente paradoxo que ele não resolve. Dizer que a
escolha de objeto da mulher é do tipo narcísica, é afirmar
que ela ama em conformidade com o que ela própria é (a si
mesma), com o que ela própria foi, com o que ela almejaria ser
ou, ainda, que ela ama alguém que, um dia, foi parte dela
(1914, p. 107). Trata-se, então, de uma escolha de natureza
homossexual. No entanto, ao asseverar que a maternidade permite
o alcance do amor objetal completo, Freud afirma que, para
ascender ao plano do amor altruísta, a mulher se coloca na
dependência de um encontro com um homem, ou seja, na dependência
de uma escolha heterossexual.
Freud monta um complicado quebra-cabeças: a escolha objetal da mulher
é narcísica e o amor objetal só pode ser experimentado por
ela através da maternidade. Sabemos que o desejo de filho foi
situado como um deslocamento do desejo de falo, portanto,
diretamente referido à diferença sexual. O filho é o
substituto do falo que ela não recebeu da mãe. Essa condição
o torna decorrente da relação da menina com a castração, ou
seja, com a falta que ela pôde localizar no próprio corpo.
Desta montagem conceitual decorrem importantes conseqüências teóricas
que o próprio Freud não pôde colher com todas as letras.
Dentre elas, a possibilidade de afirmar que a relação primária
mãe-bebê não é dual, mas uma relação já mediada pelo falo
presentificado do lado da mãe, uma vez que o filho substitui o
falo que ela deseja. Ao ler o narcisismo pela via do estádio do
espelho, Lacan ressaltou que o falo presente na mãe através do
seu desejo é o que aponta o bebê como objeto de satisfação
amorosa. O desejo da mãe serve de medida para o ego ser tomado
pelo circuito pulsional como ego ideal, permitindo a confluência
pulsional para aquele objeto.
A
equação falo-filho e o amor
Passar do raciocínio freudiano ao lacaniano não é uma tarefa
simples. Freud e Lacan partem de modelos metapsicológicos
diferentes. Enquanto o primeiro privilegia o modelo filogenético,
colocando o âmbito da ontogênese dependente da determinação
filogenética, o segundo parte da dependência primária de todo
sujeito para com o campo da linguagem. Lacan prefere o modelo
lingüístico. Por isso, não parte diretamente da constituição
subjetiva compreendida como oriunda da relação dual ou narcísica
da criança com sua mãe, mas da operação metafórica
resultante de que o significante é o que representa um sujeito
para outro significante. Assim, introduz o Nome-do-Pai como metáfora
fálica que responde à pergunta acerca do que o sujeito foi em
relação ao desejo da mãe como desejo de falo. O campo da
linguagem permite mostrar que o falo intervém como significante
da falta. Desse modo, “a criança não se acha sozinha diante
da mãe, mas que, diante da mãe, existe o significante de seu
desejo, ou seja, o falo” (Lacan,
1957-58, p. 267).
Lacan retoma o conceito freudiano de narcisismo através do estádio do
espelho. Afirma que ele é o responsável por propiciar a vivência
de uma experiência de identificação na qual o sujeito assume
como sua a imagem (fálica) da forma do corpo do semelhante (Lacan,
1998, p. 100). As pulsões parciais se unificam, de um modo
imaginário, em torno de um mesmo objeto, o ego. No Esquema L,
Lacan recupera o caráter conflituoso inerente à relação
dual. Mostra, pelo eixo simbólico, que o sujeito recebe do
Outro sua própria mensagem de modo invertido e que essa
mensagem, deformada e desconhecida pelo sujeito, intercepta a
relação imaginária situada no eixo a-a’
(1956-57, p. 10-11). O Outro, lugar da estrutura e de todas as
determinações do sujeito, é o terceiro que impede a ambivalência
e a indiferenciação dos termos que formam esse par. Sem o
Outro, o sujeito não consegue sustentar sua posição de
Narciso (1998, p. 557).
O Esquema R, por sua vez, mostra como o falo intervém enquanto
significante privilegiado que dá a razão, isto é, a medida,
ao desejo sexual, em relação ao qual o sujeito só tem acesso
através do Outro (1998, p. 700). Para Lacan (p. 693), os fatos
clínicos comprovam que o sujeito estabelece uma relação com o
falo antes de ser necessário considerar a diferença anatômica
entre os sexos. Isso permite afirmar que, mesmo antes que o
complexo de castração se faça presente, o narcisismo se
relaciona ao falo uma vez que este desempenha o papel de
significante. Ou seja, a mãe, por meio de sua presença e de
sua ausência, eleva o objeto da necessidade à dimensão simbólica
do dom. Portanto, para que se estabeleça algo entre o Outro
como lugar da fala e o que se apresenta fenomenicamente como seu
desejo é preciso que, no Outro, alguma coisa modifique a sua
natureza e explique o aspecto perverso do desejo humano. O falo
(F)
é o significante que institui essa modificação, deslocando-o
de ser apenas o lugar da fala, e situando-o como também
implicado na dialética do desejo que se localiza na relação
com o objeto. (Lacan,
1957-58, p. 325-329).
A presença-ausência da mãe eleva o objeto da necessidade à
dignidade do dom. O dom implica todo o ciclo das trocas no qual
o sujeito é introduzido de partida, implica portanto a ordem
simbólica como prévia à subjetividade como tal. “A função
simbólica constitui um universo no interior do qual tudo o que
é humano tem de ordenar-se” (Lacan,
1956-57, p. 44). Nesse universo, o dom surge a partir de um mais
além da relação objetal, pois supõe, a reboque, toda a ordem
da troca na qual a criança ingressou. Ele surge com um caráter
que o constitui como simbólico, ou seja, para que algo se
caracterize como dom é preciso que ele se constitua por meio do
“ato que, previamente, o anulou ou revogou. É sobre um
fundo de revogação que o dom surge, é sobre esse fundo, e
como signo de amor, inicialmente anulado para ressurgir em
seguida como pura presença, que o dom se dá ou não ao
apelo” (Lacan,
1956-57, p. 185).
“Há troca. Mas como pôde a troca começar?”
“Foi preciso que num dado momento algo entrasse na roda
da troca. Era preciso, portanto, que a troca já estivesse
estabelecida. Isto equivale a dizer que, no final das contas, se
está sempre pagando o copinho [do licor bebido] com um doce que
não se pagou” (1954-55, p. 294)
O fato de que o homem fala implica um desvio no plano da necessidade,
que deve se assujeitar aos caminhos da demanda. Das
necessidades, o que é alienado constitui-se como Urverdrängung
porque não pode se articular na demanda. No entanto, aparece no
desejo. O que se demanda é sempre uma presença ou uma ausência
que se manifesta na relação primordial com a mãe e que a
constitui como um Outro privilegiado. Ela pode satisfazer ou não
as necessidades, pode privar o suposto campo das necessidades
daquilo que as satisfaria (Lacan,
1998, p. 697-698). Desse modo, o falo surge como significante do
desejo do Outro e instaura um problema para o sujeito: ser ou não
ser o falo. “O sujeito quer ser o que é o desejo da mãe”
(1957-58, p. 466).
É preciso, então, que a criança localize algo relativo ao desejo
materno para que se ponha em ação um trabalho de unificação
pulsional que a localize enquanto ego ideal, como objeto amado
pela mãe. A criança situa-se aí em diferentes posições por
meio das quais é levada a tapear este desejo da mãe,
oferecendo o falo em si mesma.
“A criança se apresenta à mãe como lhe oferecendo o
falo nela mesma, em graus e posições diversos. Ela pode se
identificar com a mãe, se identificar com o falo, ou
apresentar-se como portadora de falo. Existe aí um grau
elevado, não de abstração, mas de generalização da relação
imaginária que chamo de tapeadora, pela qual a criança atesta
à mãe que pode satisfazê-la, não somente como criança, mas
também quanto ao desejo e, para dizer tudo, quanto àquilo que
lhe falta. Esta situação é decerto estruturante [...]” (Lacan,
1956-57, p. 230).
É assim que entendemos a afirmação de Freud de que o homem fixa
“um ideal em si mesmo, pelo qual mede seu ego real” (1914,
p. 111). Esse ego ideal,
imbuído de toda perfeição e valor fálico,
é, desde então, a imagem alvo do amor de si. É em direção a
ele que as pulsões auto-eróticas convergem. Mas o
desenvolvimento do ego implica um afastamento do sujeito em relação
ao narcisismo primário ao mesmo tempo em que engendra um enorme
esforço para recuperá-lo. O afastamento decorre da influência
das exigências do mundo externo e da capacidade de ajuizamento
despertada no indivíduo. Como conseqüência, a libido se
desloca em direção a um ideal do ego imposto do exterior. O
plano da satisfação pulsional passa a resultar da realização
desse ideal do ego como modo de recuperação do narcisismo do
ego ideal. “O que ele [o ser humano] projeta diante de si como
sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância
na qual ele era o seu próprio ideal” (1914, p. 111).
Freud instaura assim uma tensão entre o ego ideal e o ideal do ego,
tensão que se origina de um déficit entre ambos, impossível
de recobrir e responsável por manter o movimento pulsional como
exigência de trabalho. Ao projetar o plano narcísico sobre o
esquema dos dois espelhos Lacan (1953-54, p. 163) dá ênfase à
tensão entre as duas imagens do ego - a real, produzida pelo
espelho côncavo, e a virtual, pelo espelho plano – para
mostrar a função do outro na constituição subjetiva e na
adequação do imaginário e do real. A função do falo alça o
outro da presença e da ausência à posição de Outro, lugar
das trocas simbólicas, da linguagem, da alteridade e da lei.
Mostra que é a relação simbólica que situa os sujeitos uns
em relação aos outros, demarca a posição do sujeito como
aquele que vê e define seu maior ou menor grau de perfeição e
completude imaginárias referindo-o ao ideal do ego, comandante
do jogo do sujeito em relação ao outro (p. 165).
“O Ich-Ideal,o
ideal do eu, é o outro enquanto falante, o outro enquanto tem
comigo uma relação simbólica, sublimada, que no nosso manejo
dinâmico é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente da libido
imaginária. A troca simbólica é o que liga os seres humanos
entre si, ou seja, a palavra, e que permite identificar o
sujeito. [...]”
O Ich-Ideal [...]
pode vir a situar-se no mundo dos objetos no nível do Ideal-Ich,
ou seja, ao nível em que se pode produzir essa captação narcísica
com que Freud nos martela os ouvidos ao longo desse texto” (Lacan,
1953-54, p. 166).
No intervalo entre o ego ideal e o ideal de ego se aloja o desejo como
desejo do Outro. Por ele circulam os objetos que a libido
investe. Lacan chama de investimento libidinal àquilo através
de que um objeto se torna desejável na medida em que se
confunde com a própria imagem (1953-54, p. 165). Para ele, a
teoria freudiana da libido “é feita da conservação
progressiva de um certo número de pulsões parciais, que
conseguem ou não [...] chegar a um desejo amadurecido” (p.
174). O investimento libidinal progride da satisfação oral à
fálica (p. 176).
Que influências externas são capazes de promover, no plano egóico, a
cisão ego ideal e ideal de ego?
O
complexo de castração: motor do narcisismo secundário
Partimos de duas observações encontradas na introdução ao estudo do
narcisismo (1914). A primeira é a de que Freud já isola ali
tanto a angústia em relação ao pênis nos meninos quanto a
inveja nas meninas para afirmar o
complexo de castração como sendo a parte mais importante
relativa aos destinos do narcisismo original (p. 109). A
segunda é o fato de que muito antes de se retratar quanto à
impossibilidade do complexo de Édipo ser vivido de forma
“unissex” em função dos distintos efeitos do complexo de
castração sobre a diferença anatômica entre os sexos (1925),
bem como de valorizar a fase pré-edipiana nas meninas (1931),
Freud observa algo que julgamos importante ressaltar novamente
aqui. No lugar de alcançar o amor objetal do tipo anaclítico
ou de ligação, a mulher intensifica seu narcisismo original.
Correlacionadas a partir dos avanços posteriores, estas duas
observações podem ser tomadas como índices que já apontam
uma dissimetria referida aos efeitos da incidência do complexo
de castração sobre o complexo edipiano em meninos e em
meninas. Elas indicam, no caso específico da sexualidade das
meninas, a precariedade da sua relação com a operação
identificatória paterna. Essa precariedade traz empecilhos à
relação do sujeito com o desejo e impossibilita a substituição
do objeto de amor primordial por outro, heterogêneo, capaz de
se ligar ao primeiro por algum traço em comum, como os meninos
conseguem fazer.
Sendo do tipo narcisista, a escolha feminina evidencia o obstáculo a
ser vencido para que a menina ultrapasse a fase pré-edípica,
alcance um lugar sexuado e chegue a uma escolha objetal: há
nelas uma certa dose de inacessibilidade devida ao narcisismo
intensificado. Elas são aparentemente frias em sua atitude para
com os homens (Freud,
1914, p. 106). O caráter civilizador do amor não parece
atingir aqui o objetivo de transformar o egoísmo em altruísmo,
tal como Freud afirmou em 1921. Trata-se, como já demonstramos,
de um amor que não se mostra passível de incluir a dimensão
civilizatória, que decorre, segundo Lacan, da incidência do
Nome-do-Pai como organizador do campo do Outro.
Freud deparou-se com o narcisismo feminino - ou seja, com a maior
necessidade de ser amada
do que de amar - na escolha do parceiro amoroso da mulher. Por
detrás da figura do marido, exatamente no lugar onde esperava
encontrar os traços da ligação libidinal da menina com o pai,
Freud descobriu um gozo mortífero relativo à vida pulsional pré-edípica
da menina com a mãe. Trata-se de uma fixação em um tipo de
satisfação pulsional na qual, conforme já afirmamos, o
sujeito não encontra existência separadamente em relação ao
objeto primordial de amor. Se o parceiro sexual da mulher
substitui a mãe, ao contrário de substituir a relação da
menina com o pai, isso se deve, segundo Freud, ao fato de que a
vida erótica da menina não é acrescida posteriormente de
nenhum aspecto novo (1931, p. 259-260). Dizer isso é afirmar
que ela não alcança a esfera anaclítica da escolha de objeto,
isto é, ela não chega a abrir mão de parte do seu narcisismo
original para constituir-se como sujeito, ascender ao campo das
identificações secundárias recalcando o gozo incestuoso com o
objeto, tal como se passa com a sexualidade do menino.
Já afirmamos que, para Freud, o caminho que pode levar a mulher ao
amor objetal completo é o advento de um filho (1914, p.
105-106). A criança seria o substituto do falo/pênis que ela não
recebeu, permitindo à mulher o acesso ao plano fálico por meio
da equação falo/pênis/filho. Desse modo, ela poderia
localizar alguma coisa relativa ao ideal do ego. No entanto, o
próprio Freud apontou que esse caminho não só não é
simples, como tampouco resolve o problema da feminilidade. Além
de toda a sexualidade infantil estar fadada ao fracasso, a saída
pela via da maternidade não esclarece a questão do continente
negro da feminilidade que, enquanto impasse ao tratamento analítico,
foi conceituado como “repúdio à feminilidade” (1937).
Para que a maternidade pudesse se situar como solução edípica
feminina seria preciso que a mulher conseguisse trocar de
objeto, isto é, trocar a mãe pelo pai e, posteriormente, este
por um homem. No entanto, como afirmamos acima, em referência
à expectativa de Freud de que a relação da mulher com o pai
fosse tão intensa quanto a do menino com a mãe, a experiência
analítica mostrou que essa ligação encobria outra, tão ou
mais intensa e apaixonada que aquela, na qual o objeto em questão
era a mãe, e não o pai. A maternidade como solução edípica
inclui a via fálica, mas para alcançá-la, a menina precisa
solucionar a sua ligação pré-edípica, ou seja, o que se
situa aquém do falo, a sua história de amor com sua mãe, o
“precipitado de catexias objetais abandonadas” (1923) que
nunca alcançaram unificação.
Para Coelho dos Santos (2006d), o ponto axial da sexuação feminina é
o consentimento à castração. Dar lugar à castração é
condição para que, depois
de localizar o significante fálico no corpo do pai, se
instale na menina o desejo
receber dele algo que seja capaz de proporcionar a ela algum
efeito identificatório. Ou seja, na mulher, o plano identificatório
requer a passagem pelo corpo de um homem no qual ela pode
encontrar o significante do seu desejo. É através de um homem
que a situe como causa do seu desejo que o amor feminino pode
alcançar o plano civilizatório pela via de um filho. Portanto,
a posição de objeto, à qual se refere a escolha anaclítica
conceituada por Freud, é uma posição que lhe é endereçada
por um homem (Lacan,
1974-75, aula de 21/01/1975). É preciso que ela consinta em
ocupar esta posição para que a relação amorosa com o filho
seja do tipo anaclítica, uma vez que o filho estará conectado
a uma falta e poderá advir como dom de amor de um homem.
Fazer a reivindicação por um filho passar pelo endereçamento de uma
demanda de amor àquele que porta no próprio corpo o
significante do desejo dela é o caminho pelo qual uma mulher
poderá dar estatuto de desejo ao que, de outro modo, comparece
apenas como reivindicação sem limite, como excesso pulsional.
Por este caminho, convergem sobre o mesmo objeto tanto uma
experiência de amor, que priva a mulher no campo do ideal
daquilo que o homem lhe dá, quanto um desejo, que ali encontra
seu significante (Lacan,
1998, p. 701-702).
Coelho dos Santos (2006d) esclarece que a via do parceiro sexual
permite à mulher localizar o significante ideal que torna possível
para ela algum efeito de identificação, no sentido de uma
localização do ideal. Quando isso não ocorre, o que acontece
do ponto de vista pulsional é que os filhos advêm como
resultado de uma fixação, pois no âmbito do complexo de Édipo
a relação sexual é sempre incestuosa, portanto, proibida. Ao
afirmar isso queremos dizer que, no caso da menina, ela se mantém
enredada e indiferenciada em um amor que, conforme demonstramos,
não se diferencia do ódio. Esse “amoródio” se dirige à mãe
tomada como Outra mulher, rival (em cuja imagem ela própria se
confunde) sempre pronta a levar a melhor em relação ao pai e,
por deslocamento, aos outros homens. Além disso, torna-se presa
do Penisneid, ou seja,
da inveja que a projeta em uma reivindicação impossível de um
filho/falo/signo-de-amor proveniente do pai. Sem o consentimento
à castração, a reivindicação por um filho não alcança o
estatuto do desejo. Ela se conserva no registro do incesto e
comparece sempre como excesso pulsional.
Ao afirmar, em 1914, que a escolha de objeto feita pela mulher é do
tipo narcísica, Freud forneceu os primeiros indícios do que só
poderá afirmar um pouco mais tardiamente: o Édipo não alcança
dissolução no caso da menina. Em função disso, a mulher não
desenvolve o supereu das identificações secundárias.
Portanto, o que resta do processo identificatório é sempre
muito precário. Nos anos trinta, sendo ainda mais radical, ele
apostará que o germe da paranóia posterior nas mulheres se
encontra na dependência da relação primordial da menina com
sua mãe (1931, p. 261).
A leitura lacaniana do auto-erotismo e do narcisismo a partir do
encontro com a diferença sexual implica colocar o complexo de
castração como eixo a partir do qual se dá uma resposta
subjetiva. A via edípica evidencia o investimento libidinal de
ambos os sexos na mãe como objeto primordial e também o
impasse distinto de cada um deles quando esse investimento se
coordena ao complexo de castração. O plano do funcionamento
pulsional, por sua vez, introduz o que efetivamente importa no
que se refere ao gozo. Uma vez que só um corpo vivo pode gozar,
as propriedades do corpo vivo, sexuado, distinguem-se, segundo
Lacan (1972-73), do lado masculino, pela sexualidade fálica e,
do lado feminino, pelo Outro gozo, ou pelo gozo não-todo
limitado pela lógica fálica.
A
sexualidade fálica
No caso do menino, o surgimento dos desejos sexuais dirigidos à mãe
faz com que ele passe a perceber o pai como obstáculo, dando
ensejo, assim, ao complexo de Édipo. A identificação
primordial ao pai assume, então, uma coloração hostil.
Transforma-se em desejo de livrar-se dele. Este fato torna claro
o caráter estrutural ambivalente da identificação ao pai,
presente desde sempre, bem como o caráter amoroso da relação
da criança com a mãe. O complexo de castração associado à
visão do órgão genital feminino precipita o menino para fora
do Édipo porque todas as advertências sofridas até ali em
relação ao objeto proibido ganham o caráter de ameaça. A
castração materna sempre abre diante da criança uma hiância
capaz de devorá-la12 (Lacan,
1956-57, p. 233).
Miller (1997-98) afirma que a comparação imaginária dos corpos
masculino e feminino é a pedra de toque para que as conseqüências
psíquicas se organizem distintamente, conforme o sexo. Diante
da comparação do seu corpo com o corpo daquele ser castrado, o
menino prefere preservar o único pedaço de carne passível de
ancorar sua identificação ao modelo paterno - o pênis - e
renunciar ao objeto amoroso. Segundo Freud (1923), esvaziado
pela renúncia, o lugar da catexia objetal primitiva deve ser
preenchido. A intensificação da identificação ao pai
castrador tomado como exceção, ou seja, a alienação, é o único
modo que permite ao menino manter sua relação afetuosa com a mãe,
porque a localiza como objeto do pai. Isso situa o excesso
pulsional e limita o gozo do menino em relação àquele objeto,
razão pela qual a catexia objetal com a mãe pode se manter no
nível afetuoso. Simultaneamente, insere-o no campo do desejo
marcado pela proibição. A via do desejo alimenta o
investimento erótico do objeto, agora apenas no campo fantasmático.
Por esta via, a dissolução do Édipo consolida no menino o seu
caráter masculino.
Enquanto a identificação modifica o ego segundo os ideais que ela
carrega consigo, a libido narcísica é transformada em libido
objetal13, pondo fim ao narcisismo primário. A
manutenção do traço do objeto no nível fantasmático é a
condição de sua reedição posterior, quando da escolha de um
parceiro sexual propriamente dito. A saída do narcisismo primário
depende de que, em Nome-do-Pai, o sujeito abra mão de uma cota
do seu próprio narcisismo – ser
amado - para amar, ou seja, para investir essa parte de libido perdida no objeto
com o qual comporá a fantasia inconsciente.
Lacan conceituou inicialmente o objeto a como resto da indiferenciação do sujeito no campo do Outro. A
partir do Seminário 11,
passou a incluir o gozo pulsional no conceito de inconsciente.
Por isso o objeto a se
tornou efeito da operação de separação entre o sujeito e o
Outro. À alienação simbólica, entendida como operação
identificatória, corresponde uma outra operação, a de separação,
tomada como resposta real de gozo que implica o recalque. O
objeto a é um
elemento de gozo recalcado, complemento libidinal do sujeito ($)
mortificado pela identificação ao pai como exceção (Coelho
dos Santos, 2006a).
O menino sucumbe à ameaça de castração e submete sua sexualidade à
interdição e ao recalque. Identifica-se ao traço ideal pelo
qual o pai se torna símbolo da exceção que funda o conjunto
no qual o menino ingressa. Se, por um lado a identificação ao
ideal, ou seja, a alienação, não tem sucesso absoluto porque
ela não recobre totalmente o pedaço da realidade perdido, por
outro, permite a extração do objeto que complementará a perda
narcísica no campo da fantasia. Desse modo, “o que ele
projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do
narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio
ideal” (Freud,
1914, p. 111).
Ao correlacionar o campo da pulsão ao da linguagem, Lacan demonstra
que este objeto é extraído sob o signo da mais valia, fato que
o localiza como causa do desejo e faz dele um objeto fetiche. A
formação do superego marca o sucesso da identificação com a
instância parental, instaurando simultaneamente uma instância
crítica.
Pela operação da metáfora paterna, o traço identificatório ideal
toma corpo. Ele se ancora no pênis, pedaço de carne real que o
menino possui diferentemente da menina. No entanto, como
dissemos, esta operação identificatória deixa um resto: um
objeto auto-erótico que, por estar ligado ao funcionamento do
circuito pulsional pré-genital, não se coordena à hegemonia
da imagem do corpo como um todo. Trata-se de um resto de gozo, o
objeto a.
A clínica masculina ensina que o parceiro sexual do homem torna-se o
depositário do objeto a
que, no auto-erotismo, era tributário de um amor sexualmente
indiferenciado. A lógica fálica acoplada à ameaça de castração
leva o menino à passagem do gozo narcísico primário,
indiferenciado, à diferença sexual, na qual o parceiro encarna
esse efeito de gozo elementarizado, contabilizado, resultante da
separação entre o sujeito e o Outro primordial. É através do
objeto a que o homem
se relaciona à cadeia simbólica e orienta o gozo. Segundo
Coelho dos Santos (2006e), enquanto objeto a,
a mulher localiza o excesso da pulsão de morte, encarna o real
sem lei da pulsão. A esfera do amor se governa pela justa
medida do falo e se limita pela prudência (Miller, 1997-98). Assim, o homem pode alcançar o campo do
gozo sem se ocupar com o discurso amoroso que, para ele, faz
obstáculo ao gozo sexual em função da disjunção existente
entre o amor e o desejo. Foi o que Freud apontou em 191014.
Se, por um lado, o homem consegue manter a corrente afetuosa pela mãe
separada da esfera do desejo em função do recalque das moções
pulsionais desejantes proibidas, que eram dirigidas a ela na infância,
por outro, o retorno do recalcado traz em seu bojo a contaminação
que o objeto primordial faz incidir sobre a mulher, parceira
escolhida como objeto de desejo. Deste modo, torna difícil a
tarefa de fazer coincidir sobre um mesmo objeto as correntes
amorosa e desejante (Solano-Suárez,
2006).
A
sexualidade não-toda fálica
Para Freud, o destino civilizatório do amor requer a incidência da
castração sobre o complexo de Édipo. O Édipo é o núcleo
das neuroses, mas é o complexo de castração que permite que o
pênis seja confundido com o falo quando este é alinhado à
diferença sexual. o pênis, tomado como falo, introduz a
primazia fálica e produz a oposição fálico X castrado necessária
à partilha dos sexos. A ameaça de castração é o móvel da
renúncia ao narcisismo pelo menino (Coelho dos Santos, 2005).
Ele escolhe a posse do órgão em detrimento do amor narcísico
primário. A parte da libido do boj à qual o ego renuncia
retorna ao ego e se transforma em libido objetal. O que resta da
relação pré-edípica do menino com a mãe é localizado através
do objeto na fantasia, ou seja, está dentro da lógica edípica
ou fálica. Portanto, o objeto (anaclítico) é abrangido pelo
falo. A escolha objetal anaclítica está referida ao falo. O
menino regula o que resta do narcisismo primário a partir da lógica
fálica.
Se a instalação da lógica fálica depende de que o falo, confundido
com o pênis, seja localizado no pedaço de carne real, as
meninas não têm como passar por esta operação, identificatória,
que produziria um resto que a própria operação reintroduziria
enquadrada pelo fantasma. Deste modo, a renúncia ao narcisismo
torna-se impossível para elas, fato que torna precária a sua
relação com o falo. Freud apontará a maternidade como uma das
possíveis saídas para o Édipo feminino. Por esta via, o
desejo de falo – equivalente ao desejo de pênis – poderá
ser substituído por um bebê dado pelo pai. No entanto,
desacompanhado da identificação viril, o que é da ordem do
falo emerge nelas sob a forma de uma demanda desmesurada,
deslocalizada. Se a reivindicação mostra a presença do falo,
o excesso pelo qual comparece dá provas de sua desregulação.
Mostra que ele já se encontra presente na relação mãe-bebê,
fato que comprova que esta relação não é dual.
O que se passa, então, quando se pensa não ter nada a perder? A sexuação
feminina é fruto de um julgamento e de uma decisão. Ela vê o
pênis, conclui que não o tem e decide que o quer. No lugar de
resolver o drama edípico, a castração o aprofunda. Por julgar
que a ameaça não lhe concerne, a menina não passa à etapa
posterior pela qual abre mão de parte de seu narcisismo
original em nome de uma identificação e de um investimento
fantasmático no objeto perdido. Nas palavras de Freud (1925, p.
319), depois do complexo de castração ter produzido o efeito
de forçar a criança à situação do complexo de Édipo, fica
faltando às meninas o motivo para sua demolição porque elas
acreditam não ter o que perder. Neste ponto há uma
encruzilhada em relação à qual a saída para a menina se
torna muito mais complexa.
Decidir que quer um pênis porque não o recebeu, leva a menina a
demandá-lo ao pai. Porém, como já afirmamos, se este passo não
se coordena a um consentimento relativo à existência da castração,
ela se perde pelos labirintos da reivindicação desmedida sem
conseguir alcançar o plano identificatório secundário porque
este supõe “a instalação, no sujeito, de uma posição
inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o
tipo ideal de seu sexo [...]” (Lacan,
1998, p. 692). Todo o problema em questão na histeria pode ser
resumido na condição reivindicatória amorosa e ilimitada -
nesse sentido, erotômana - dirigida ao pai pelo sujeito
feminino às voltas com a castração. Se, para a menina, a
castração se apresenta no ponto de partida, sua entrada no
drama edípico já se conecta diretamente com a castração
localizada no campo do Outro15. Isso tem como efeito
a obtenção de um certo saber acerca do valor de semblante
embutido na posição de exceção com a qual o menino se
identifica enquanto ideal de seu sexo. Este saber abala sua crença
na medida instituída pelo falo como significante do desejo
sexual16. Sem uma medida real reguladora, nada se
mostra à altura do que é reivindicado e tudo é semblante. A
insatisfação no plano do desejo estará sempre garantida pelo
caráter metonímico da satisfação auto-erótica em jogo no
circuito pulsional.
O problema que se coloca aqui, segundo Lacan, é que o pai não tem
como fornecer uma medida ideal que sirva de identificação para
o sexo feminino. Tampouco a mãe. Não há no campo do Outro um
significante que possa fundar o conjunto das mulheres. Ora,
Freud sempre nos lembra que o campo pulsional é conservador,
que ele trabalha em silêncio porque sua meta é restabelecer um
estado anterior de coisas. Portanto, na impossibilidade da
identificação e conseqüente extração de um objeto, a pulsão
regride às fixações libidinais primitivas. No lugar de perder
parte do narcisismo original, o ego assume as características
do objeto e força o id a tê-lo como objeto de amor, na
tentativa de compensá-lo pela perda sofrida com a descoberta da
castração materna pelo sujeito (Freud,
1923).
Como vimos anteriormente, sem a justa medida do falo acoplada à
diferença sexual, a via amorosa é sempre contingencial, escapa
ao cálculo, à regulação e precipita a menina num campo
confuso no que se refere aos objetivos sexuais. É por esta razão
que Freud afirma que a vida erótica da menina não é acrescida
de nenhum aspecto novo (1931, p. 259-260) e que, nela,“a formação
do superego deve sofrer um prejuízo; não consegue atingir a
intensidade e a independência [...]” (1933 [1932], p. 159).
A forte ancoragem do simbólico no pedaço de corpo, no caso do menino,
regula a relação amorosa primitiva, ou seja, localiza-a
disjunta do objeto de gozo incluído no fantasma. A operação
de alienação oferece o que regula a esfera do amor de modo
separado daquilo que regula o desejo sexual em função do
recalque sofrido por este último. No caso da menina, o campo
identificatório é sempre precário. O caráter do ego - um
precipitado de diversas catexias objetais abandonadas - tem como
efeito que o laço amoroso comporte sempre uma certa ambivalência
entre o amor e o ódio, além de uma devastação estrutural,
que será menor ou maior dependendo da qualidade da vida erótica
da mãe junto a um homem, ou seja, depende do fato dele
funcionar ou não funcionar para a mãe como regulador fálico
de seu gozo. Se a resposta for negativa, a possibilidade da
menina se oferecer como tampão para a insatisfação materna
torna-se a porta de entrada para o que Lacan nomeia como devastação.
Para Coelho dos Santos (2006d), “[...] a vertigem de se
oferecer como suplência à insatisfação amorosa da outra
mulher, que é sua mãe”, é o verdadeiro obstáculo à análise
das mulheres. É o que pode ser chamado de uma erotomania normal
nas mulheres (Miller,
1997-98).
A teoria do narcisismo iluminada pelo complexo de castração distingue
a importância da operação paterna sobre um sexo e outro. Por
um lado, o pai agencia a castração, interdita, identifica e
torna o menino capaz de amar. Por outro, não faz nada disso. É
apenas detentor do pênis/falo, podendo dá-lo sob a forma de um
filho (Coelho dos Santos,
2006e). Assim, constitui a menina como precisando ser amada,
posição que coincide com o ego ideal. Em ambos os casos - amar
e ser amado -, o amor forma uma borda que protege,
distintamente, todos os sujeitos contra a invasão da pulsão de
morte. Ao mesmo tempo, é um ponto de fixação, que contém a
história da ligação primitiva do sujeito com o genitor do
mesmo sexo, na qual a pregnância imaginária é sempre muito
intensa. Esses aspectos tornam o narcisismo estrutural, razão
pela qual Freud (1937) nomeou o repúdio à feminilidade – ou
seja, a sexuação como homem ou como mulher - como resto
intransponível de uma análise. O rochedo da castração se
refere ao caráter da ligação primordial do sujeito com a
sexualidade do seu genitor do mesmo sexo (Coelho
dos Santos, 2006e).
Na comparação imaginária dos corpos a inquietude da ameaça de
castração faz com que o menino fantasie sobre o que há de
real em seu pênis (Miller,
1997-97, p. 15). O amor narcísico passa a se coordenar pelo traço
do objeto que supre a falta-a-ser do sujeito e condiciona seu
desejo sexual, permitindo a ascensão ao campo da diferença
sexual. No entanto, se a identificação não encontra um pedaço
de carne real para se ancorar no corpo, como acontece no caso da
menina, o amor (sob a forma de ser amada) é constante fonte de
devastação. Não conseguindo se constituir como uma unidade
sustentada por um traço identificatório, o ego é
constantemente ameaçado pela invasão da pulsão de morte. Como
já afirmamos, o ponto de partida na castração tem o efeito de
fornecer à menina um saber sobre o caráter de semblante
presente nas identificações. Assim, todo o valor fálico é
caracterizado como semblante, resultando que não haja real em
lugar algum. Ao mesmo tempo, é pelo corpo de um homem que o
falo pode ser localizado, permitindo à mulher ascender ao plano
dos ideais. Essa dupla matriz torna urgente, mas sempre problemática,
a aquisição de um parceiro sexual para a mulher. Sem um
consentimento à castração, sem o limite da lei, o objeto
nunca se coordena ao desejo, mas ao gozo.
Coelho dos Santos (2206d), propõe a seguinte alternativa para
interpretar o enigma nomeado por Freud (1926) como continente
negro da feminilidade: “ou bem uma mulher escolhe a identificação
ao sinthoma, isto é, ao objeto fetiche causa do desejo de um
homem, ou bem é aspirada pela identificação a um objeto
parcial auto-erótico, que funcionaria como suplência ao gozo
da Outra mulher”.
Um
fragmento clínico
Dora é filha da relação de uma mulher solteira com um homem casado.
A situação de ele ter uma outra família não era conhecida
pela paciente a princípio. Ela só sabia que ele tinha três
filhos mais velhos do que ela. Até os dez anos, mais ou menos,
seus pais não viviam juntos, não tinham uma vida dita
conjugal, mas namoravam. Ele comparecia como homem da mãe e
como pai dela. Amparava-as financeiramente e acompanhava ambas
às festas familiares na casa da avó materna, onde os três
dormiam juntos no mesmo quarto.
Esse quadro constituía, mesmo que precariamente, a localização de
Dora enquanto filha pela via da suposição da mãe como objeto
de desejo do pai. Seu lugar de filha se equacionava ao lugar da
mãe como mulher para aquele homem. A equação mãe-mulher-filha
é quebrada quando seu pai resolve reconhecer a paternidade
legalmente. Até ali, Dora usava apenas o sobrenome paterno da mãe.
Ao mesmo tempo em que entrou com o processo judicial para o
reconhecimento daquela filiação, ele e a mãe contaram à Dora
sobre a existência da outra família. Ela descobriu, então,
que o pai sempre esteve casado com a primeira mulher. Entendeu
porque nunca pôde conhecer os “irmãos” e porque não
poderia comentar sobre o reconhecimento da paternidade. O pai
temia o escândalo e a separação. Dora passou dez anos sem o
reconhecimento legal da paternidade, agora que o pai lhe dava o
sobrenome, ela deveria esquecer que o recebeu17.
Ela, que sempre foi uma aluna mediana, viu seu desempenho cair a partir
deste momento. Entrou na adolescência tentando, segundo ela,
“cobrir um buracão”, querendo suprir alguma coisa através
dos amigos e dos namorados. A aluna comportada tornou-se
impertinente, respondona, intriguenta, “barraqueira” como a
mãe. Perdeu amigos e foi convidada a mudar de escola.
Sua vida amorosa mal começava e era já um desastre. Apaixonava-se
perdidamente pelos meninos e não media esforços para estar com
eles, que “não estavam nem aí” para ela. Nunca se sentia
suficientemente amada por eles, embora fizesse tudo para obter
amor. Ao contrário das amigas, ela não transava com eles. Era
assim que ela respondia à “insuficiência” deles. Sua vida
amorosa e social era intensa. Não perdia uma comemoração,
cigarro, muita bebida, noites na praia... Não tinha hora para
chegar em casa e tampouco alguém que a obrigasse a ter. Quando
sozinha, chorava e sentia uma grande tristeza, que ela chamava
de depressão. Nesses momentos, fazia pequenos cortes com gilete
no pulso e ficava olhado o sangue escorrer enquanto pensava que,
se morresse, ninguém choraria sua morte.
Ao completar dezoito anos conheceu um rapaz estrangeiro cujo visto no
Brasil estava expirando. Ele estava em vias de se casar com uma
moça para obter a permanência legal. Teria sido um casamento
comprado se a moça não houvesse desistido na hora de dar
entrada nos papéis. Dora sabia pouco sobre ele – europeu,
vinte e poucos anos, ex-voluntário em uma das guerras do leste
da Europa, havia estado também em outros países, agora
trabalhava aqui e, mesmo falando muito mal o português, queria
permanecer. Apenas alguns dias após tê-lo conhecido, Dora
decidiu ajudá-lo. Apaixonou-se por ele e apostava que aquilo
seria um casamento. Ela “jamais repetiria a história da mãe
de ser a outra na vida de um homem”. Contou à mãe sobre suas
intenções e esta não se opôs ao casamento, muito pelo contrário.
Desse modo, sua filha teria um passaporte europeu. Ambas
combinaram não contar nada ao pai de Dora “para que ele não
cortasse a mesada”. Deram entrada nos papéis para o casamento
civil. Poucos dias depois, Dora e o estrangeiro começaram a
“ficar” e, durante uma conversa na praia, ele lhe disse
muito irritado, em um tom que a fez tremer de medo, que
“mataria a mulher se fosse traído”. Diante do pavor sentido
pela paciente em função do tom da voz dele, a analista deu à
palavra “matar” um peso inequívoco: ou Dora contaria a seus
pais sobre essa ameaça ou eu mesma o faria por julgá-la em
risco. Este gesto fez com que o rapaz viesse com ela a uma sessão
na qual o significante “matar” como ameaça real à vida de
Dora foi tratado com todo o seu peso sexual. Não havia equívoco
translinguístico a ser considerado nesse caso. Matar é matar
em qualquer idioma. Ele se desculpou, reconheceu a gravidade do
problema que criou, falou um pouco de sua situação pessoal,
permitindo que a sessão prosseguisse tendo o significante
“casamento” como pivô. Ele afirmou ali que Dora não
deveria ter esperanças de que aquele fosse um casamento de
verdade, pois, para ele, casamento de verdade era outra coisa.
Dora chorou. Disse que sempre soube disso, mas esteve tentando
se enganar. Essa retificação não impediu o casamento, mas
trouxe algumas mudanças. Dora pôde elaborar um pouco da sua
relação com a história da mãe. Sua análise foi interrompida
alguns meses após o “casamento”. Eles haviam começado a
namorar e decidiram morar juntos. Mais uma vez, como já
advertia Freud (1914, p. 119), o tratamento amoroso pode surgir
como impedimento ao tratamento analítico.
Do
fragmento à teoria
Vejamos
o que mostra o drama de Dora. Há desde o início uma
precariedade em jogo no campo identificatório: os pais não
moram juntos e ela não tem o sobrenome do pai na certidão de
nascimento. Até o reconhecimento da paternidade, seu
desenvolvimento sexual parecia caminhar sem maiores impasses. Se
a união dos pais era precária e se ele já “havia tido”
outro relacionamento antes, do qual resultaram três filhos que
ela não conhecia, isso não parecia tornar Dora menos filha ou
menos valiosa para o pai porque ela se ancorava na equação mãe-mulher,
ou seja, tomava a via do suposto desejo do pai pela mãe. Este
fato assegurava, mesmo que precariamente, a ilusão de que Dora
tivesse vindo ao mundo como dom de amor do pai à sua mãe.
Receber o sobrenome do pai poderia ter endossado esse lugar fálico.
No entanto, ao impedir que a filha comentasse sobre o
reconhecimento legal da paternidade, ele tentava anular aquele
ato público. Situava seu gesto no registro da culpa e não mais
no do desejo, como ela pensava até então. Dora era testemunha
da traição dele à sua mulher. Com a culpa seu pai revelava
que a mãe dela não significava nada para ele e, por
conseguinte, também Dora. Ao não querer arcar com a conseqüência
de seu ato, ou seja, arriscar a relação marital em nome do
reconhecimento do valor fálico da filha, ele a nomeou como
bastarda, rompeu seu frágil revestimento fálico e desvelou o
lugar que a mãe dela ocupou para ele. Não o de objeto do seu
desejo, mas o de puro objeto de gozo, objeto degradado.
O
reconhecimento da paternidade pelo pai biológico somado ao
pedido, endossado pela mãe, de que a filha escondesse o ato público,
teve como conseqüência o abalo de todas as identificações de
Dora, portanto, a debilidade do mental e a inconseqüência.
Tornar-se “barraqueira como a mãe” evidenciava o rompimento
do tênue véu do amor e mostrava seus efeitos: a destruição
dos precários pilares identificatórios paternos que poderiam
sustentá-la como desejante e permitir a substituição do pai
por um homem em quem também pudesse encontrar uma localização
fálica pela identificação à causa do desejo dele. Sem disso,
Dora foi aspirada pela face devastadora da erotomania, que a
fixou à posição de objeto em sua expressão mais degradada.
Além de não valer muito como mulher para os homens, tal como a
mãe em relação ao pai, Dora tornou-se a única entre os
filhos dele que não tinha sucesso na escola e, por isso, não
conseguiria ingressar na universidade. Assim como a mãe,
pararia no segundo grau.
A
posição de dejeto de Dora, sua deriva e autodestruição
configuram-se como uma modalidade erotômana. Chamamos aqui de
erotomania ao comparecimento do excesso pulsional não-todo
regulado pela lógica fálica, excesso que, como pudemos
demonstrar remonta às experiências primitivas da menina com
sua mãe. Partindo do princípio freudiano de que a escolha
objetal da mulher é narcísica, de que ela não desenvolve o
supereu das identificações secundárias, o que resta do
processo identificatório é sempre muito precário.
Lembremo-nos de que o ponto de fixação aqui é relação primária,
pré-edípica, onde o sujeito e o objeto estão indiferenciados.
A elevação do objeto à dignidade de causa do desejo requer
uma extração, ou seja, uma separação entre o sujeito e o
objeto operada pela renúncia a uma parte da libido narcísica.
O campo do desejo não se dá sem a instauração da Lei, mas as
meninas não acreditam na ameaça de castração. Com isso, não
conseguem fazer uma verdadeira separação em relação ao
objeto primordial de amor. Do ponto de vista pulsional,
portanto, elas se mantêm presas a uma certa oscilação, a uma
ambivalência relativa à relação com a mãe, na qual o
sujeito é objeto da mãe. No Seminário
1018, Lacan afirma que o supereu das identificações
secundárias participa da função do objeto como causa. Uma vez
que nas mulheres ele não se constitui para manter a distância
entre o objeto da identificação e o do amor, a reversão
pulsional faz com que o objeto reste privilegiadamente em sua
função masoquista de dejeto e não como causa de desejo. As
etapas pré-genitais da libido, no que se refere à identificação
e à relação de objeto, têm uma relação estrutural com a
erotomania. Esse é o mecanismo em Freud que pode ser colocado
como topologicamente homólogo à lógica do não-todo em Lacan.
Estamos
propondo uma outra modalidade de abordagem para a erotomania, a
partir da vertente que Freud (1931; 1933 [1932]) desenvolveu
sobre a feminilidade ao situá-la no âmbito das relações da
menina com a mãe. O que Freud chama de feminilidade e de relação
primitiva da menina com a mãe é homólogo às etapas pré-genitais
da libido e correspondem, do ponto de vista topológico, à
erotomania, ao Outro gozo que Lacan conceitua no Seminário 20. O Outro gozo relaciona-se, portanto, à fixação do
sujeito feminino naquilo que resta fora da operação edípica
quando atrelada ao complexo de castração, ou seja, ao que fica
fora da operação paterna.
No
caso em questão, a impossibilidade de significar a indignação
relativa à irresponsabilidade dos pais rompeu a precária borda
do amor e Dora foi aspirada pelo gozo ilimitado da pulsão de
morte. A devastação se apresenta porque seu pai falta enquanto
homem para sua mãe, que é cúmplice disso. A precariedade do
campo identificatório torna também precária a constituição
do amor que permitiria a passagem do egoísmo ao altruísmo.
Como conseqüência, produz-se uma regressão pulsional a um
modo de satisfação adquirido na infância que, como já
sabemos é impossível de fazer desaparecer19.
Trata-se do gozo pulsional desfrutado na fase pré-edípica.
Enquanto
mulher, Dora é não-toda submetida à organização fálica. O
efeito da vacilação do campo dos ideais é o de que o sujeito
não consegue mais se diferenciar do objeto, o amor não se
distingue do ódio e não faz o menor sentido tentar
discriminar, do ponto de vista pulsional, se os efeitos sobre o
objeto são de dano, aniquilamento ou de exaltação. O sujeito
passa ao acting out, passa a agir o que não consegue rememorar. Dora encarna
uma burrice que sintomatiza a “burrada materna” - ou seja,
seu nascimento havia sido um acting out
de sua mãe - e põe em cena uma questão: por que razão
minha mãe se envolveu com um homem impossível? Alienada à
posição de objeto do gozo materno, Dora respondia a essa
pergunta escolhendo pagar o preço do fracasso.
Este
caso mostra que a vacilação identificatória lança a mulher
em um estado de emergência
amorosa e exemplifica como a queda da estrutura familiar
torna urgente para ela a localização do gozo no parceiro
sexual tomado como ideal. É o que se explica pela busca
desesperada de Dora por cobrir com um amor, com um “casamento
de verdade”, o buracão aberto pela atitude paterna. A escolha
pela via da paixão amorosa implica a realização das condições
de amor infantis decorrentes da fase pré-edípica. A paixão
amorosa tem o poder de suspender recalques, restaurar perversões
e elevar o objeto sexual à condição de ideal sexual. Dessa forma, segundo Freud, tem uma função de ajuda
ao ideal do ego (1914, p. 118), precário na mulher. Nossa
interpretação é a de que, na medida em que o ideal sexual
permite conjugar falo e pênis, ele possibilita para a mulher a
recuperação das qualidades fálicas perdidas ou que parecem
inalcançáveis ao seu ego, proporcionando “um efeito de
identificação e de regulação do excesso pulsional” próprio
à sexualidade feminina (Coelho
dos Santos, 2006e). Mas isso não pode ser confundido com
um tratamento para a feminilidade.
Freud
afirma que, de um modo geral, o sujeito não pode acreditar em
outro mecanismo de cura senão pelo amor. Por esta razão, as
expectativas amorosas são trazidas para o âmbito do tratamento
analítico e direcionadas para a pessoa do analista. Se, por um
lado, o tratamento consegue libertar o sujeito de alguns
recalques, por outro, pode dar lugar a resultados involuntários,
como, por exemplo, ser interrompido para ser continuado junto da
pessoa amada (1914, p. 119). No entanto, no caso da mulher, o
que se refere ao amor tem repercussões mais estruturais. Em seu
último ensino, Lacan (1972-73) homologou o gozo feminino à
fala de amor que o parceiro sexual endereça à mulher. Segundo
Freud (1914), a saída pelo amor poderia ser satisfatória se não
trouxesse o perigo de uma dependência opressiva com a pessoa
salvadora. Já para Lacan, o impasse da sexualidade reside na
dissimetria dos gozos: um é tecido pela via do discurso amoroso
e o outro, pela abordagem silenciosa do objeto fantasmático. O
tratamento pela via do amor fora da análise dificilmente conduz
à nova ética desenvolvida por Lacan no Seminário
23, a da responsabilidade sexual (Coelho
dos Santos, 2006e).20
Notas
1.
Esse
trabalho integra a pesquisa de doutoramento sobre o tema do
desejo do analista, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em Teoria Psicanalítica da UFRJ, sob orientação da Profa.
Tania Coelho dos Santos, com o apoio financeiro da CAPES.
2.
Não
desconhecemos que neste momento Freud ainda não havia
estabelecido uma teoria das pulsões, tampouco desconhecemos que
o uso que ele faz do termo Trieb
nessa época (como, por exemplo, em “Projeto para uma
psicologia científica”, 1895, p. 421) não poderia ser tomado
como sinônimo de pulsão enquanto conceito, tal como proposto
em 1915. No entanto, para facilitar nossa exposição,
esclarecemos que tomamos, de partida, o “plano pulsional”
como sendo o fundo sobre o qual se sustenta tudo o que se pode
conceber como atividade psíquica.
3.
A
qualidade sexual não se justifica senão por sua origem no
mundo externo.
4.
Sob
o termo neurose Freud englobava a histeria, a neurose obsessiva
e a paranóia (1892-99).
5.
O
termo identificação aqui não tem o status de conceito. A
identificação como conceito por meio do qual Freud elucida a lógica
da vida amorosa ainda precisará aguardar quase vinte anos de
trabalho para ser formulada. Referimo-nos ao texto de 1921,
“Psicologia de grupo e análise do ego”.
6.
A
introdução do ego como objeto privilegiado de convergência
pulsional só virá em 1914, com a postulação do conceito de
narcisismo.
7.
“As
próprias crianças se comportam, desde cedo, como se sua afeição
pelas pessoas que a assistem fosse da natureza do amor sexual. A
angústia das crianças não é, originariamente, nada além da
expressão da falta que sentem da pessoa amada; por isso elas se
angustiam diante de qualquer estranho; temem a escuridão
porque, nesta, não vêem a pessoa amada, e se deixam acalmar
quando podem segurar-lhe a mão na obscuridade. [...] a criança
porta-se como o adulto, na medida em que transforma sua libido
em angústia quando não pode satisfazê-la; e inversamente, o
adulto neurotizado pela libido insatisfeita comporta-se como uma
criança em sua angústia [...]” (Freud,
1905, p. 230-231).
8.
O
raciocínio que subjaz aqui tem como pano de fundo anotações
pessoais de aulas sobre o tema ministradas pela profa. Tania
Coelho dos Santos. Estas aulas foram gravadas e transcritas, mas
ainda constituem um material inédito.
9.
“[...]
uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo
desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos
auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início,
sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao
auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de
provocar o narcisismo” (Freud,
1914, p. 93).
10.
Freud,
1915, p. 160, grifo nosso.
11. Para
Miller (2006, p. 18), o amor ao mesmo, do qual trata o amor narcísico
freudiano, está situado no eixo imaginário, enquanto o amor
anaclítico, “no eixo simbólico, onde está em jogo a questão
da castração”.
12. Tal
hiância é sinônima de uma experiência de desligamento entre
o sujeito e o objeto, coisa que, como dissemos, é objetada
pelas fixações. Nestas situações, segundo Freud (1914,
1923), o sujeito desiste de sua relação com a realidade traumática.
No entanto, não corta suas relações eróticas porque a pulsão
regride em direção às expressões psíquicas já adquiridas
em etapas anteriores de seu desenvolvimento. Neste caso, à fase
oral.
13. No
Seminário 11, Lacan conceitua uma nova definição para a libido:
faz dela um órgão, objeto perdido, matriz de todos os objetos
perdidos (Coelho dos
Santos, 2004).
14.
Trata-se
dos textos freudianos que compõem as “Contribuições à
psicologia do amor I e II” (1910): “Um tipo especial de
escolha de objeto feita pelos homens” e “Sobre a tendência
universal à depreciação na esfera do amor”. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, vol. XI.
15.Trata-se
aqui do “Outro que não existe” (
) que, na concepção de Coelho dos Santos (2004) é um
deslizamento lacaniano do termo castração.
O Outro que não
existe é um deslizamento no uso do termo castração. Em
Freud, a castração, que aparece primeiramente articulada ao Édipo
e à função paterna, tem sua ênfase deslocada para a diferença
sexual. Em Lacan, ela se desloca para a própria linguagem. Ora,
a castração proveniente da linguagem é a que aponta que o
“Outro não existe”, pela dupla vertente do sujeito: ele não
tem o objeto do gozo, nem o significante que o represente.
Guarda ainda uma correspondência com a castração sexual
porque o sexo da mulher é aquele que ninguém consegue
positivar. Há um sexo masculino, mas não há o Outro sexo, o
que promove uma articulação entre o feminino e o furo na
linguagem, ou seja a falta de um objeto último na linguagem”
(Coelho dos Santos,
2004).
16. Tivemos
a oportunidade de trabalhar um pouco melhor essa característica
feminina, que na ocasião coordenamos ao cinismo, tomando como
referência a novela de Raymond Queneau, Zazie
no metrô (Lopes, 2005, p. 80-81).
17.
É
importante observar que, na época em que essa paciente nasceu,
era impossível registrar um filho de uma relação adulterina.
Foi necessário esperar por uma mudança no código civil para
que um homem legalmente casado com uma mulher com a qual tivesse
uma família pudesse registrar uma filha de uma relação
extraconjugal.
18.
Lacan,
1962-63, cap. VIII.
19.
“[...]
como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez
aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação
de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à
perfeição narcisista de sua infância [...]” (Freud,
1914, p. 111).
20.
Agradeço
à profa. Tania Coelho dos Santos pelas pontuações precisas
que me ajudaram a esclarecer teoricamente a questão da
erotomania vinculada à organização pré-genital feminina, lançando
também luz sobre a elucidação deste caso em particular.
Agradeço também à Sandra Grostein, debatedora na conversação
clínica onde este caso foi originalmente apresentado durante o
III Simpósio do Núcleo Sephora, pela elucidação de certos
aspectos deste caso coordenando-os à forma como se estruturam
os sintomas contemporâneos.
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