topo_index
titulo_esq_interno titulo_interno_artigos

  

invenção e responsabilidade na psicanálise aplicada ao judiciário

 
 

 

Maria José Gontijo Salum

Professora do Instituto de Psicologia/PUC-MG

Mestre em Psicologia/Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMG

Doutoranda em Teoria Psicanalítica PPGTP/UFRJ

Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais

mgontijo.bhe@terra.com.br

 

 

Resumo

Este artigo baseia-se na experiência de trabalho com a psicanálise aplicada nas instituições jurídicas e pretende abordar a clínica com sujeitos que se encontram às voltas com a justiça por terem praticado atos infracionais. A abordagem freudiana em relação à lei, estruturada em torno do complexo de Édipo e da culpa pelo parricídio decorrente dele, tornou-se uma teorização difícil de ser sustentada nos dias de hoje. Com Lacan, o paradigma não se coloca em torno do sentimento de culpa, mas da responsabilidade.

Palavras-chave: Psicanálise aplicada, instituições judiciais, infrações, responsabilidade.

 

   
 

 

Invention and responsibility in applied psychoanalysis to the judiciary system

 

Abstract

This paper is based on the working experience with applied psychoanalysis at legal institutions and it intends to study the clinic through subjects who have been brought to justice, due to crimes they have committed. The Freudian approach in regard to law, as structured around the Oedipus complex and its consequent parricide guilt has made theorizing a very difficult task. The Lacanian paradigm, however, is not based on the feeling of guilt but on responsibility.

Keywords: Applied psychoanalysis, judicial institutions, infractions, responsability.

 

 

Nas sociedades democráticas, o poder judiciário tem a função de dirimir os conflitos entre os homens. Há poucos séculos, no mundo ocidental, a justiça passou a ser a encarregada de estabelecer os limites para manter a ordem pública, e ela o faz através da lei. O direito penal classifica o que é proibido nomeando como crime e quem o comete está sujeito à punição prevista pelo Estado.

Dentre as formas de punição que existem, o aprisionamento, a exclusão da liberdade, tem sido a mais utilizada. A prisão foi um dispositivo criado para o cumprimento da pena de reclusão. Ao ser idealizada, no século XVIII, por Jeremy Bentham, ela tinha como objetivo, não somente punir os infratores da lei penal, mas também prevenir novos crimes através do exemplo; era este o ideal de Bentham. Em última instância, a prisão pode ser vista como um dispositivo utilizado pela justiça também para conter a violência entre os homens.

O direito penal foi instituído considerando a existência de um sujeito responsável por seus atos, por isso pode-lhe ser imputada uma pena. Todos os que cometem crimes podem ser penalizados, salvo algumas exceções. Dentre elas, encontramos os portadores de doença mental, considerados inimputáveis pela justiça. As exceções à legislação colocam na cena jurídica outros saberes que não os tradicionais. Assim, além de outras disciplinas, a psicanálise, cada vez mais, tem sido chamada a operar neste campo que, antes, cabia somente aos operadores do direito e à polícia.

Vários psicanalistas têm se dedicado, não somente à aplicação da psicanálise no contexto jurídico, mas, também têm participado da construção de políticas públicas e execução de programas que visam o tratamento da violência e do crime nos mais diversos espaços – penitenciárias, cumprimento de medidas sócio-educativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, projetos comunitários, acompanhamento de medidas judiciais para pacientes psicóticos infratores, dentre outras. Por isso, interessa-nos precisar qual o encaminhamento que a psicanálise de orientação lacaniana tem adotado nestes espaços.

 

 

A psicanálise aplicada ao contexto jurídico

A aplicação da psicanálise no contexto jurídico já acontece há alguns anos no Brasil. A possibilidade de fazer operar o discurso psicanalítico nesse campo traz alguns problemas e várias questões. Este artigo baseia-se na experiência de trabalho com a psicanálise nessas instituições e pretende abordar a clínica com sujeitos que se encontram às voltas com a justiça por terem praticado atos infracionais.

Tanto Freud quanto Lacan se interessaram pela interlocução entre o direito e a psicanálise. Contudo, há diferenças entre os dois na maneira de abordá-la. Freud, apesar de vislumbrar a prática psicanalítica no campo jurídico, não chegou a formalizar as coordenadas para que isso se efetivasse. Ele recorreu em diversos momentos da sua obra ao campo do direito, principalmente, no que diz respeito aos delitos, já que ele outorgava, como causa da lei, os crimes do parricídio e incesto. Lacan, por sua vez, nos indicou alguns caminhos para que o discurso psicanalítico pudesse operar no campo jurídico.

 

 

Freud e o crime edipiano

Em toda a obra freudiana, vemos a importância do crime. A teoria do recalque - pedra angular da psicanálise, nas palavras de seu fundador - é decorrente de um crime, o edipiano. Para Freud, os dois crimes primordiais – parricídio e incesto – deram origem à própria civilização humana. O mito do parricídio expresso em “Totem e tabu” destaca a existência de uma violência estrutural na história da humanidade - houve um crime.

Para a psicanálise freudiana, o laço social pôde existir em decorrência desse crime primordial e da instauração da lei que foi conseqüência dele; foi isso o que, para Freud, determinou a passagem da horda para a cultura humana. Após a morte do chamado pai primevo não houve acordo entre os irmãos, foi preciso instituir uma nova lei - “não matarás”. Para Freud, este crime primordial deu origem a uma lei universal. O mito do Édipo foi, para ele, uma tentativa de formalizar a inscrição da violência na subjetividade de cada um; através desse mito, a violência passa a ser um crime cometido não somente pelos irmãos da horda; este crime é reeditado por cada sujeito neurótico.

Em outras ocasiões1, tivemos a oportunidade de trabalhar a concepção freudiana em relação à lei e os problemas que ela acarreta, já que leva em consideração o sentimento de culpa. A abordagem freudiana, estruturada em torno do complexo de Édipo e da culpa pelo parricídio decorrente dele, tornou-se uma teorização difícil de ser sustentada nos dias de hoje.

Freud desenvolveu a psicanálise em um mundo no qual era possível ver os indicativos de uma crença na autoridade da lei. O Édipo freudiano foi uma demonstração dessa crença. O sujeito neurótico - histérico ou obsessivo - mostrava através do seu sintoma que a lei do pai funcionava porque este falhava e, desta forma, transmitia-se a castração. O que era sentido como mal-estar era o retorno da falha do pai sobre o sujeito, produzindo sintomas.

Contudo, temos visto atualmente na clínica que, quando o ponto de referência outrora representado pela lei edipiana vacila, o mal-estar retorna, não apenas simbolicamente, através dos sintomas, mas em atuações, e, em grande parte dos casos, em atos violentos que são configurados como crimes.

O pensamento freudiano que se estrutura em torno da culpa está muito bem assimilado pelas instituições judiciais. De certa forma, ele está de acordo com os ideais preconizados por estas instituições. Mudar este paradigma acarreta em um desafio para o trabalho com a psicanálise nestes lugares.

Em nossos dias, as atuações criminosas já não nos deixam ver a estrutura edípica e, por conseguinte, o sentimento de culpa. Pensar uma clínica com sujeitos que praticaram atos infracionais a partir da referência do Édipo conduzia a uma lógica específica da direção do tratamento. Implicava em fazer valer um tipo de resposta sobre o ato que tinha na culpa sua coordenada. Com Lacan, o paradigma não se coloca em torno do sentimento de culpa, mas da responsabilidade.

 

 

Lacan e a criminologia

Lacan, ao fazer a releitura do Édipo freudiano a partir da noção de lei, privilegiou como cada um se coloca frente à lei do pai. Ele afirmou, em seu texto sobre criminologia, que não existe sociedade na qual não se constitua uma lei, seja ela de costume ou de direito. Contudo, da mesma forma que há lei, há transgressão. Tal como São Paulo considerava que a lei fazia o pecado, Lacan considera que a lei faz o crime. O trabalho da justiça, ao longo da modernidade, foi regular as relações entre os homens a partir do que não se podia fazer. Tudo pode ser permitido, menos o que está explícito como uma proibição. Por isso o crime, para Lacan, não pode ser pensado fora da relação do sujeito à lei, da conexão do sujeito ao campo do Outro.

Toda sociedade demonstra a relação do crime à lei através dos castigos. O castigo, uma punição, é a responsabilidade. Para Lacan, punir é responsabilizar e ser responsabilizado. A obediência à lei se dá através da crença de que se pode responder frente a ela. Crer na lei é o que permite advir, como resposta, um sujeito responsável.

 

 

Responsabilidade e Nome-do-Pai

A responsabilidade em psicanálise não diz respeito somente ao cumprimento da norma jurídica, ela está relacionada aos modos de resposta subjetiva, pois, para Lacan, o sujeito é considerado uma resposta do real. Portanto, na clínica, é preciso verificar as formas como o sujeito aparece, os modos como responde à emergência do real. O sujeito pode responder conectado ao campo do Outro, ou pode desconsiderá-lo. É isso que deverá ser levado em conta na noção de responsabilidade, já que, para Lacan, o homem só é reconhecido “por seus semelhantes através dos atos cuja responsabilidade ele assume” (Lacan, 1950, p. 127-131).

Levando em consideração o último ensino de Lacan, como orienta Jacques-Alain Miller, a responsabilidade, tal como Lacan a formula inicialmente, torna-se problemática. A princípio, ela estava referida ao campo do Outro, ao Nome-do–Pai que condicionava toda experiência do sujeito, simbolicamente determinada. Porém, a formulação sobre o Outro sofre modificações e desdobramentos ao longo da história da psicanálise de orientação lacaniana. Segundo Miller (1996-97), estamos na época do Outro que não existe. Essa afirmação nos indica que estamos diante de mudanças, não somente na forma dos sintomas, como nos mostra Miller, mas, também na configuração do crime e, por conseguinte, da possibilidade de responder diante do Outro da lei.

O Complexo de Édipo foi a maneira que Freud encontrou para falar da instauração da lei para o sujeito. A lei do pai instaurava a subjetividade como determinada pelo campo do Outro. A função paterna, neste sentido, é crucial para a psicanálise, mas há diferenças em Freud e Lacan na maneira de abordá-la. Na perspectiva freudiana o pai opera a renúncia pulsional exigida pela cultura através da ameaça de castração. Pela função paterna o incesto ficava proibido.

A partir de Freud, Lacan formulou a função paterna edificada não no edipianismo, mas no significante do Nome–do-Pai. Através da instauração da metáfora paterna, a criança poderá ter acesso à significação fálica, permitindo uma ordenação do desejo. Desde Os complexos familiares, o pai era considerado por Lacan um obstáculo para a sexualidade da criança, mas, também, a possibilidade de sua realização.

No Seminário 5: As formações do inconsciente, fica explícito que o pai é aquele que, além de dizer não, diz sim. A instauração da lei legaliza o desejo. Lacan toma a estrutura do Witz para abordar a função paterna. Por isso, neste Seminário, antes de ser um representante automático da lei, o pai é um transgressor. A lei do pai não é a regra automática e cega, ela admite exceções, levando em conta o particular.

No Seminário 10: A Angústia, Lacan prepara a pluralização do Nome-do-Pai. Ele passará a falar, não do Nome–do–Pai, mas dos Nomes-do-pai. Trata-se de privilegiar, não o falo e a castração, mas a constituição do objeto a. A função do pai não será a de representar a lei, mas a de unir o desejo à lei. A lei do pai traça o caminho do desejo do filho através do desejo do pai como desejo do Outro.

No Seminário 17: O avesso da psicanálise, Lacan retira do pai o imaginário mitológico freudiano de ser castrador e tirânico. Não é o pai que determina a castração, mas a linguagem. O pai, ele mesmo é castrado e, por isso, pode transmiti-la ao filho. Neste seminário, Lacan começa a precisar melhor a vertente real do pai.

A função paterna, no sentido lacaniano, será complexificada a partir dos registros distintos – o real, o simbólico e o imaginário. O pai simbólico e o imaginário são leituras do Édipo freudiano. O pai simbólico se exerce por meio da operação do Nome–do–Pai na metáfora paterna e, por sua incidência, se inscreve a proibição. O pai imaginário tem por função privar a mãe da criança, e, através do pai real, se pode estabilizar a posição sexual.

As primeiras formulações lacanianas sobre a função paterna consideravam a primazia do registro simbólico e tinham como conseqüência classificar a psicose como uma estrutura deficitária em relação à neurose. Devido à foraclusão do significante do Nome-do-Pai, o psicótico não tem acesso a uma significação fálica. O psicótico, dessa forma, estaria forcluído da lei do pai e isso traz conseqüências, não somente para o acesso ao objeto, mas, também, no que diz respeito à responsabilidade para os que cometeram crimes.

 

A responsabilidade e a nomeação

Eric Laurent (2006), ao abordar as transformações dos Nomes-do-pai, observa que estamos assistindo a uma série de remanejamentos sem limites do uso dos nomes. Lembrando que Lacan reconsiderou a primazia do registro simbólico, ele situa o Nome–do–Pai entre o realismo e o nominalismo.

A discussão sobre realismo e nominalismo vem de longa data na filosofia2. Segundo a concepção filosófica, o realismo quer dizer que existem categorias que são universais. Esta é uma lógica que aborda o regime do “para todos”. O nominalismo, por outro lado, trabalha com a lógica de que existe o “um a um”, os indivíduos.

Considerar o Nome-do-Pai entre realismo e nominalismo quer dizer que, diante do universal da função paterna, vários nomes podem ser usados para fazer funcionar esta função. Laurent (2005), vai nos dizer que mesmo que se fizesse uma lista nominal dos casos, isso não impediria o surgimento do universal do Nome–do–Pai. Há um realismo na função paterna: ela define um impossível. Portanto, a instância do real está privilegiada nesta concepção. Há o real do gozo que, cada sujeito, caso a caso, deverá nomear. O Nome – do – Pai consiste, então, na nomeação, por cada um do encontro com o impossível.

Através de um comentário de um caso de um sujeito psicótico que se encontra às voltas com a justiça, tentaremos precisar que uso ele pôde fazer de um nome, para limitar o real do gozo excessivo. Trata-se de um sujeito psicótico acompanhado pelo Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAI-PJ, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. O PAI-PJ é um programa que segue a psicanálise de orientação lacaniana na condução de seus casos e em sua concepção. Foi concebido e é coordenado pela psicanalista Fernanda Otoni de Barros, que me convidou para trabalhar, juntamente com a equipe do Programa, a construção dos casos clínicos que se encontram vinculados ao sistema penitenciário. O PAI-PJ visa, na condução dos casos, buscar a responsabilização em liberdade, já que foi criado pelo Tribunal de Justiça como uma nova ficção jurídica em substituição aos manicômios judiciários.

O caso foi discutido na construção de caso clínico, ele é acompanhado por Nívia Pimentel Teixeira, do setor de psicologia do PAI-PJ e por Janaína Beneti do jurídico.

 

 

De Mumu a Carlos, o poeta3

Mumu, portador de sofrimento mental, era considerado um delinqüente de alta periculosidade. Aparecia nos jornais de sua cidade como estuprador e tinha vários processos por atentado violento ao pudor, roubo e furto. Não subjetivava nenhum desses atos como seus. Segundo ele, isso tudo foi inventado para prejudicá-lo.

O Outro o persegue, é o todo poderoso, tem tudo, e lhe resta, no máximo, ficar na posição de objeto querelante, ou passar ao ato. Ele próprio vai afirmar, para a sua tratadora – é assim que ele passa a chamar Nívia - que não tem acesso às mulheres.

Logo no início dos atendimentos, Mumu pede a Nívia que ela lhe arrume um emprego. Perguntado sobre o porquê de querer um emprego, ele explica que era para ter acesso a uma mulher solteira. Se Nívia o ajudasse, seria recompensada, ela poderia ficar com o primeiro salário dele. Ele explica que faz esta oferta porque sabe que nada é de graça, que para se obter algo é preciso pagar. Por isso, Nívea intervém dizendo que ele tem razão, que ela está ali por ser funcionária do Tribunal de Justiça, que paga a ela por seu trabalho. Essa intervenção marca a entrada do PAI-PJ no caso, ele sorri e diz que a doutora havia entendido.

Mumu queria conseguir no campo do Outro o que está colocado para qualquer um:

  • um ponto de Ideal, a legitimidade para adquirir seus próprios bens através de um trabalho.

  • a possibilidade de gozar de um objeto, uma mulher.

Para todos, o efeito da função paterna no lugar de exceção é possibilitar o acesso à ordem fálica: fazer sintoma, legalizar o desejo. Cada um toma sua herança e faz dela uma coisa sua. Mas, para Mumu, isso não é possível. Por se tratar de um caso de psicose, ele não entra nesta lógica do discurso comum.

Mumu fala de suas opções de trabalho, poderia ser caseiro, ajudante de pedreiro, ajudante de pintor. Mas existe ainda um trabalho que ele chama de particular, ser poeta. Ele poderia ditar as poesias e um escritor as escreveria. Ele conta que herdou de seu xará e conterrâneo, Carlos Drumonnd de Andrade, “a inteligência do poético”.

Ele fala que houve um tempo, tal como o filho pródigo, em que dilapidou sua herança; se entregou ao gozo das festas no parque de exposição e jogou sua atividade de inteligência para fora dele “como se fosse um ser humano colocando uma coisa no lixo”. Porém, ele diz da possibilidade de fazer uso de sua herança: começa a ditar sua poesia e a assiná-la. Mumu passa a ter um nome, seu nome passa a ser Carlos, o poeta.

Por isso, esse fragmento de caso pode nos dar indicações da vertente nominalista do Nome-do-Pai e seu uso na psicose. Principalmente, porque somente a partir da assinatura do nome, ele poderá se responder por seus atos.

Ram Mandil, trabalhando o Seminário 23, de Lacan, sobre Joyce vem nos lembrar que um nome é sempre dado pelo Outro. O nome marca, é o emblema de uma herança simbólica. Por ser exterior a nós, somos forçados a habitá-lo. O nome tem, sobretudo, um caráter de ficção de linguagem, por isso, pode ser carregado como um bem ou um fardo. No Seminário 23, Lacan afirma que houve uma demissão paterna em Joyce, por isso ele teve que fazer um nome que lhe fosse próprio como uma forma de compensação.

A vertente nominalista do pai diz respeito às diversas formas de ser pai, mas há uma versão real do pai. Ao propor passar do Nome-do-Pai aos Nomes-do-Pai, Lacan pluraliza o nome, mas não o pai. Embora haja o caso a caso, há uma dimensão do pai que é universal. Não se pode dispensar o realismo da função paterna, o ponto de impossível. Isso é o universal do Nome-do-Pai. Há uma tensão entre o universal da função e o particular da experiência que o sujeito tem de um pai. Por isso, a relação entre o realismo e o nominalismo é fundada sobre a disfunção, sobre o fracasso para aquele que vem se nomear pai em satisfazer as exigências da função. Trata-se de um impossível. Pode-se fazer uma lista de todas as instâncias em que um pai seja nomeado. Essa lista não impediria o surgimento do universal do Nome-do-Pai.

Ao propor falar de Nomes-do-Pai, Lacan está se referindo à pluralização que rodeia a função universal. De acordo com Laurent (2005), os nomes são instrumentos para que o sujeito deles se sirva para se virar na vida, por isso, quando esses instrumentos não funcionam, o sentimento da vida encontra-se atingido. O nome recobre um vazio e, através dele, é possível fazer uma transposição do gozo para a experiência sexuada. O Desejo da Mãe é o enigma que o Nome-do-Pai irá nomear. Ao ser nomeado como falo pela metáfora paterna, a relação do sujeito com o gozo será apaziguada. O pai mostra como se pode viver com a lei ao humanizar o acesso sexual.

A função paterna se relaciona a uma articulação sexuada entre o pai e a mãe. O pai se torna suportável, amável, através de uma mulher que apresente seu nome de uma boa maneira. O pai não pode ser modelo da função a não ser que realize o tipo da perversão paterna e esta perversão salva o sujeito da psicose.

A tese de Lacan, no Seminário 23, é que um sintoma pode ocupar o lugar de nome, podendo, dessa forma, ocupar o lugar do Nome do Pai. Podemos dizer que Carlos, o poeta, é um nome que passa a designar um ser que agora vive, no lugar de um nome que antes lhe caíra do pai.

Miller (2003), dirá que o psicótico está fadado a inventar. Mas sua invenção tem algo distinto da ficção do neurótico. No caso da neurose, adota-se soluções típicas para lidar com o corpo e com o Outro. Soluções fálicas que possibilitam e, ao mesmo tempo impedem de gozar completamente do corpo do outro. O discurso estabelecido aponta o que é um bom ou um mau uso, e também um abuso. Sem o recurso dos discursos estabelecidos, o psicótico é obrigado a inventar.

Para todos o Outro não existe, e o sujeito deverá advir como inventor. Ou ele recebe a invenção, como uma ficção, do discurso estabelecido, ou inventa. Miller (2003), considera que o discurso estabelecido é um delírio normal e que toda ficção pode ser uma forma de delírio. Os psicóticos têm que fazer um esforço para resolverem um problema que, para o neurótico, é resolvido pela adoção do discurso estabelecido, a entrada na ordem fálica.

Carlos, diferentemente de um neurótico, precisou inventar recursos para se ligar ao Outro, para ter acesso ao campo do Outro. No caso dele, foi preciso o uso de uma solução delirante. Não a construção de uma metáfora delirante, pois desse modo seria um tratamento que localizaria o gozo no lugar do Outro da significação. Sua tratadora acolheu a solução que ele próprio inventou - ele herdou de Carlos Drumonnd de Andrade a inteligência do poético. Fazer uso dessa herança foi a forma que conseguiu para fazer laço com o Outro.

Na psicose, como a carência do pai é Verwerfung, há que se criar a partir da ausência. Miller (2003), considera que a escrita é a verdadeira invenção, porque falar implica o corpo, o inconsciente e o objeto a. Isso não seria possível para Carlos, o que torna importante, no caso dele, o tratamento pela escrita. A partir de suas cartas, Carlos faz laço com sua tratadora. Ele conta para ela um sonho. Ela lhe disse: “vou colocar seu nome aí, mas você não pode cometer nenhum erro”. Escutando este relato, Nívia lhe pergunta: “erros?” E ele começa a falar de seus atos. Conta que molestou um adolescente e que furtou uma bicicleta. Ele ficava vendo crianças nuas, pois todas as vezes que tentou ter acesso a uma mulher, elas o repeliam, o achavam feio. Conta também do excesso de masturbação e da fala de um médico que lhe disse que isso causava doença mental. Ele diz que se o juiz permitisse sua saída, ele não cometeria mais erros.

A responsabilidade pelos atos tornou-se possível a partir de sua assinatura. Não mais Mumu, o estuprador, mas o filho de Carlos Drumonnd de Andrade, herdeiro de sua inteligência do poético. Sua poesia é seu instrumento. De início, ele ditava cartas para sua tratadora, pedia que ela escrevesse “assinatura” e assinava: Carlos. Estas cartas eram, em geral, pedidos de emprego, de objetos diversos. Dizia que não poderia escrever, pois cometeria muitos erros. Depois do relato do sonho, Carlos, ele próprio, passa a escrever as cartas, assim como “paga” sua tratadora com poesia. Um dia ele lhe agradece por estar lhe ajudando e diz que precisa dar-lhe um presente. Pede lápis e papel e escreve uma poesia.

O tratamento do gozo em Carlos se opera a partir do próprio gozo, tomando apoio sobre a escrita. É a partir dessa invenção que esse sujeito pode constituir um laço social inédito. As ficções jurídicas existentes são estilhaçadas neste caso. O direito terá que ser inventado, já que a responsabilidade, para a psicanálise, não é da ordem do ideal, mas se coloca para cada um.

A conseqüência de ter um nome é que Carlos solicita ser ouvido pelo juiz, ele quer conversar, saber, como ele diz “a significação de seu juízo”. Atualmente, a equipe do PAI–PJ está tentando marcar uma audiência com o juiz e acreditamos que esta audiência é uma possibilidade de articulação entre a psicanálise e o direito no que diz respeito ao tratamento do gozo.

Esse caso nos mostra que, na relação do direito com a psicanálise, onde o primeiro visa o universal da responsabilidade, é pela solução particular que podemos construir a possibilidade de uma resposta. Neste caso, a partir de uma invenção nominalista.

Este sujeito encontrou uma solução nominalista, quer dizer, particular, mas que não se articula com o universal da função. Por isso Lacan disse no Seminário 23 que a solução psicótica não é uma boa solução. E não é uma boa solução exatamente por não cotejar a vertente realista do Nome-do-Pai. Contudo, foi a solução que lhe tornou possível, pelo menos por enquanto, responder, minimamente, ao campo do Outro.

 

Notas

1.       No artigo “Freud e a culpa: a culpabilidade antecede o crime”, abordo a teorização de Freud sobre a culpabilidade e o sentimento de culpa (In: Curinga n. 17. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise/MG. Belo Horizonte: EBP-MG, nov. 2001).

No texto “Uma questão à prática lacaniana nas instituições judiciais: sobre a modalidade patológica do assentimento subjetivo” discuto as distintas abordagens de Freud e Lacan no trabalho no campo jurídico (In: Revista Opção Lacaniana n. 37, São Paulo: edições Eólia, setembro de 2003).

2.       No dia 6 de março de 2006, tivemos o seminário “Psicanálise e Direito – entre o nominalismo e o realismo” com apresentação de Ernesto Perini Santos, professor de filosofia da UFMG e Sérgio Laia como debatedor. As considerações aqui apresentadas sobre o tema são reflexos deste evento.

3.       Fizemos a discussão deste caso, Nívia e eu, no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, na Seção clínica do dia 20 de março de 2006. Minhas considerações teóricas foram feitas a partir do estudo de caso de Nívia, intitulado “Sou um poeta”.

 

Referências Bibliográficas:

FREUD, S. (1912). “Totem e tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud (ESB). Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.

_______. (1906) “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos”. In: Op. Cit., vol. IX.

GARCIA, C. Clínica do social. Dissertação de mestrado em Psicologia/IP/UFMG. Belo Horizonte, 1997.

LACAN, J. (1950) “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 1998.

_______.(1950) “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2003.

_______. (1962-63) O Seminário: livro 10 A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005

_______. (1969-70) O seminário: livro 17 O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1992.

_______. (1973) “Televisão”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

_______ (1975-76). Le Séminaire: livre XXIII Le sinthome. Paris: éditions du Seuil. 2005.

Laurent, É. (2006) “De Tel Aviv à Rome, entre ombres et lumières”, In: Quarto, Revue de psychanalyse n. 87. École de La Cause Freudienne – ACF en Belgique, juin, 2006. p. 19-24.

_______. (2005) “O Nome do Pai entre realismo e nominalismo”, In: Opção lacaniana n. 44. São Paulo: edições Eólia, novembro de 2005.

_______. (2004) “Como recompor o Nome-do-Pai”, In: Curinga n. 20, Belo Horizonte: EBP-MG, 2004.

MANDIL, R. Os efeitos da letra – Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Contra Capa., 2003.

MAZZUCA, R. “Nome do Pai – O pai freudiano e o nosso”. In: Scilicet dos Nomes-do-Pai. Textos preparatórios para o Congresso de Roma da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), 2006.

MILLER, J.-A “Uma fantasia”, In: Opção Lacaniana n. 42, São Paulo: edições Eólia, fevereiro, 2005.

_______. (1996-97). El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005

_______. (2003) “A invenção psicótica”, In: Opção Lacaniana n. 36. São Paulo: edições Eólia, maio de 2003.

SALUM, M.J.G (2001) A psicanálise e a lei: uma elaboração das relações entre o crime e o castigo. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós–Graduação da Faculdade de Psicologia da UFMG. Junho de 2001. Mimeo.

_______. (2005) “A violência e a civilização psicanalítica”. In: Opção lacaniana n. 44. São Paulo: edições Eólia, novembro, 2005.

COELHO DOS SANTOS, T. Quem precisa de análise hoje? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

SILVA, T. T. da (org.) O panóptico. Belo Horizonte: ed. Autêntica. 2000.

TEIXEIRA, M. C. Modelo e Identificação. Agenda da Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais. Belo Horizonte: 1º semestre de 2006.

Anotações pessoais a partir das aulas da profa. Tânia Coelho dos Santos no Programa de Pós – graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.