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Nas sociedades democráticas, o poder judiciário tem a função
de dirimir os conflitos entre os homens. Há poucos séculos, no
mundo ocidental, a justiça passou a ser a encarregada de
estabelecer os limites para manter a ordem pública, e ela o faz
através da lei. O direito penal classifica o que é proibido
nomeando como crime e quem o comete está sujeito à punição
prevista pelo Estado.
Dentre as formas de punição que existem, o
aprisionamento, a exclusão da liberdade, tem sido a mais
utilizada. A prisão foi um dispositivo criado para o
cumprimento da pena de reclusão. Ao ser idealizada, no século
XVIII, por Jeremy Bentham, ela tinha como objetivo, não somente
punir os infratores da lei penal, mas também prevenir novos
crimes através do exemplo; era este o ideal de Bentham. Em última
instância, a prisão pode ser vista como um dispositivo
utilizado pela justiça também para conter a violência entre
os homens.
O direito penal foi instituído considerando a existência
de um sujeito responsável por seus atos, por isso pode-lhe ser
imputada uma pena. Todos os que cometem crimes podem ser
penalizados, salvo algumas exceções. Dentre elas, encontramos
os portadores de doença mental, considerados inimputáveis pela
justiça. As exceções à legislação colocam na cena jurídica
outros saberes que não os tradicionais. Assim, além de outras
disciplinas, a psicanálise, cada vez mais, tem sido chamada a
operar neste campo que, antes, cabia somente aos operadores do
direito e à polícia.
Vários psicanalistas têm se dedicado, não somente à aplicação da
psicanálise no contexto jurídico, mas, também têm
participado da construção de políticas públicas e execução
de programas que visam o tratamento da violência e do crime nos
mais diversos espaços – penitenciárias, cumprimento de
medidas sócio-educativas previstas pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente, projetos comunitários, acompanhamento de
medidas judiciais para pacientes psicóticos infratores, dentre
outras. Por isso, interessa-nos precisar qual o encaminhamento
que a psicanálise de orientação lacaniana tem adotado nestes
espaços.
A psicanálise aplicada ao contexto jurídico
A aplicação da psicanálise no contexto jurídico já
acontece há alguns anos no Brasil. A possibilidade de fazer
operar o discurso psicanalítico nesse campo traz alguns
problemas e várias questões. Este artigo baseia-se na experiência
de trabalho com a psicanálise nessas instituições e pretende
abordar a clínica com sujeitos que se encontram às voltas com
a justiça por terem praticado atos infracionais.
Tanto Freud quanto Lacan se interessaram pela interlocução
entre o direito e a psicanálise. Contudo, há diferenças entre
os dois na maneira de abordá-la. Freud, apesar de vislumbrar a
prática psicanalítica no campo jurídico, não chegou a
formalizar as coordenadas para que isso se efetivasse. Ele
recorreu em diversos momentos da sua obra ao campo do direito,
principalmente, no que diz respeito aos delitos, já que ele
outorgava, como causa da lei, os crimes do parricídio e
incesto. Lacan, por sua vez, nos indicou alguns caminhos para
que o discurso psicanalítico pudesse operar no campo jurídico.
Freud e o crime edipiano
Em toda a obra freudiana, vemos a importância do crime. A teoria do
recalque - pedra angular da psicanálise, nas palavras de seu
fundador - é decorrente de um crime, o edipiano. Para Freud, os
dois crimes primordiais – parricídio e incesto – deram
origem à própria civilização humana. O mito do parricídio
expresso em “Totem e tabu” destaca a existência de uma violência
estrutural na história da humanidade - houve um crime.
Para a psicanálise freudiana, o laço social pôde existir em decorrência
desse crime primordial e da instauração da lei que foi conseqüência
dele; foi isso o que, para Freud, determinou a passagem da horda
para a cultura humana. Após a morte do chamado pai primevo não
houve acordo entre os irmãos, foi preciso instituir uma nova
lei - “não matarás”. Para Freud, este crime primordial deu
origem a uma lei universal. O mito do Édipo foi, para ele, uma
tentativa de formalizar a inscrição da violência na
subjetividade de cada um; através desse mito, a violência
passa a ser um crime cometido não somente pelos irmãos da
horda; este crime é reeditado por cada sujeito neurótico.
Em outras ocasiões1, tivemos a oportunidade de
trabalhar a concepção freudiana em relação à lei e os
problemas que ela acarreta, já que leva em consideração o
sentimento de culpa. A abordagem freudiana, estruturada em torno
do complexo de Édipo e da culpa pelo parricídio decorrente
dele, tornou-se uma teorização difícil de ser sustentada nos
dias de hoje.
Freud desenvolveu a psicanálise em um mundo no qual era
possível ver os indicativos de uma crença na autoridade da
lei. O Édipo freudiano foi uma demonstração dessa crença. O
sujeito neurótico - histérico ou obsessivo - mostrava através
do seu sintoma que a lei do pai funcionava porque este falhava
e, desta forma, transmitia-se a castração. O que era sentido
como mal-estar era o retorno da falha do pai sobre o sujeito,
produzindo sintomas.
Contudo, temos visto atualmente na clínica que, quando o ponto de
referência outrora representado pela lei edipiana vacila, o
mal-estar retorna, não apenas simbolicamente, através dos
sintomas, mas em atuações, e, em grande parte dos casos, em
atos violentos que são configurados como crimes.
O pensamento freudiano que se estrutura em torno da culpa
está muito bem assimilado pelas instituições judiciais. De
certa forma, ele está de acordo com os ideais preconizados por
estas instituições. Mudar este paradigma acarreta em um
desafio para o trabalho com a psicanálise nestes lugares.
Em nossos dias, as atuações criminosas já não nos
deixam ver a estrutura edípica e, por conseguinte, o sentimento
de culpa. Pensar uma clínica com sujeitos que praticaram atos
infracionais a partir da referência do Édipo conduzia a uma lógica
específica da direção do tratamento. Implicava em fazer valer
um tipo de resposta sobre o ato que tinha na culpa sua
coordenada. Com Lacan, o paradigma não se coloca em torno do
sentimento de culpa, mas da responsabilidade.
Lacan e a criminologia
Lacan, ao fazer a releitura do Édipo freudiano a partir da noção de
lei, privilegiou como cada um se coloca frente à lei do pai.
Ele afirmou, em seu texto sobre criminologia, que não existe
sociedade na qual não se constitua uma lei, seja ela de costume
ou de direito. Contudo, da mesma forma que há lei, há
transgressão. Tal como São Paulo considerava que a lei fazia o
pecado, Lacan considera que a lei faz o crime. O trabalho
da justiça, ao longo da modernidade, foi regular as relações
entre os homens a partir do que não se podia fazer. Tudo pode
ser permitido, menos o que está explícito como uma proibição.
Por isso o crime, para Lacan, não pode ser pensado fora da relação
do sujeito à lei, da conexão do sujeito ao campo do Outro.
Toda sociedade demonstra a relação do crime à lei através dos
castigos. O castigo, uma punição, é a responsabilidade. Para
Lacan, punir é responsabilizar e ser responsabilizado. A obediência
à lei se dá através da crença de que se pode responder
frente a ela. Crer na lei é o que permite advir, como resposta,
um sujeito responsável.
Responsabilidade e Nome-do-Pai
A responsabilidade em psicanálise não diz respeito somente ao
cumprimento da norma jurídica, ela está relacionada aos modos
de resposta subjetiva, pois, para Lacan, o sujeito é
considerado uma resposta do real. Portanto, na clínica, é
preciso verificar as formas como o sujeito aparece, os modos
como responde à emergência do real. O sujeito pode responder
conectado ao campo do Outro, ou pode desconsiderá-lo. É isso
que deverá ser levado em conta na noção de responsabilidade,
já que, para Lacan, o homem só é reconhecido “por seus
semelhantes através dos atos cuja responsabilidade ele
assume” (Lacan,
1950, p. 127-131).
Levando em consideração o último ensino de Lacan, como orienta
Jacques-Alain Miller, a responsabilidade, tal como Lacan a
formula inicialmente, torna-se problemática. A princípio, ela
estava referida ao campo do Outro, ao Nome-do–Pai que
condicionava toda experiência do sujeito, simbolicamente
determinada. Porém, a formulação sobre o Outro sofre modificações
e desdobramentos ao longo da história da psicanálise de
orientação lacaniana. Segundo Miller (1996-97), estamos na época
do Outro que não existe. Essa afirmação nos indica que
estamos diante de mudanças, não somente na forma dos sintomas,
como nos mostra Miller, mas, também na configuração do crime
e, por conseguinte, da possibilidade de responder diante do
Outro da lei.
O Complexo de Édipo foi a maneira que Freud encontrou para falar da
instauração da lei para o sujeito. A lei do pai instaurava a
subjetividade como determinada pelo campo do Outro. A função
paterna, neste sentido, é crucial para a psicanálise, mas há
diferenças em Freud e Lacan na maneira de abordá-la. Na
perspectiva freudiana o pai opera a renúncia pulsional exigida
pela cultura através da ameaça de castração. Pela função
paterna o incesto ficava proibido.
A partir de Freud, Lacan formulou a função paterna edificada não no
edipianismo, mas no significante do Nome–do-Pai. Através da
instauração da metáfora paterna, a criança poderá ter
acesso à significação fálica, permitindo uma ordenação do
desejo. Desde Os complexos familiares, o pai era
considerado por Lacan um obstáculo para a sexualidade da criança,
mas, também, a possibilidade de sua realização.
No Seminário 5: As formações do inconsciente, fica explícito
que o pai é aquele que, além de dizer não, diz sim. A
instauração da lei legaliza o desejo. Lacan toma a estrutura
do Witz para abordar a função paterna. Por isso, neste Seminário,
antes de ser um representante automático da lei, o pai é
um transgressor. A lei do pai não é a regra automática e
cega, ela admite exceções, levando em conta o particular.
No Seminário 10: A Angústia, Lacan prepara a pluralização do
Nome-do-Pai. Ele passará a falar, não do Nome–do–Pai, mas
dos Nomes-do-pai. Trata-se de privilegiar, não o falo e a
castração, mas a constituição do objeto a. A função
do pai não será a de representar a lei, mas a de unir o desejo
à lei. A lei do pai traça o caminho do desejo do filho através
do desejo do pai como desejo do Outro.
No Seminário 17: O avesso da psicanálise, Lacan retira do pai
o imaginário mitológico freudiano de ser castrador e tirânico.
Não é o pai que determina a castração, mas a linguagem. O
pai, ele mesmo é castrado e, por isso, pode transmiti-la ao
filho. Neste seminário, Lacan começa a precisar melhor
a vertente real do pai.
A função paterna, no sentido lacaniano, será complexificada a partir
dos registros distintos – o real, o simbólico e o imaginário.
O pai simbólico e o imaginário são leituras do Édipo
freudiano. O pai simbólico se exerce por meio da operação do
Nome–do–Pai na metáfora paterna e, por sua incidência, se
inscreve a proibição. O pai imaginário tem por função
privar a mãe da criança, e, através do pai real, se pode
estabilizar a posição sexual.
As primeiras formulações lacanianas sobre a função paterna
consideravam a primazia do registro simbólico e tinham como
conseqüência classificar a psicose como uma estrutura deficitária
em relação à neurose. Devido à foraclusão do significante
do Nome-do-Pai, o psicótico não tem acesso a uma significação
fálica. O psicótico, dessa forma, estaria forcluído da lei do
pai e isso traz conseqüências, não somente para o acesso ao
objeto, mas, também, no que diz respeito à responsabilidade
para os que cometeram crimes.
A responsabilidade e a nomeação
Eric Laurent (2006), ao abordar as transformações dos Nomes-do-pai,
observa que estamos assistindo a uma série de remanejamentos
sem limites do uso dos nomes. Lembrando que Lacan reconsiderou a
primazia do registro simbólico, ele situa o Nome–do–Pai
entre o realismo e o nominalismo.
A discussão sobre realismo e nominalismo vem de longa data na
filosofia2. Segundo a concepção filosófica, o
realismo quer dizer que existem categorias que são universais.
Esta é uma lógica que aborda o regime do “para todos”. O
nominalismo, por outro lado, trabalha com a lógica de que
existe o “um a um”, os indivíduos.
Considerar o Nome-do-Pai entre realismo e nominalismo quer dizer que,
diante do universal da função paterna, vários nomes podem ser
usados para fazer funcionar esta função. Laurent (2005),
vai nos dizer que mesmo que se fizesse uma lista nominal
dos casos, isso não impediria o surgimento do universal do
Nome–do–Pai. Há um realismo na função paterna: ela define
um impossível. Portanto, a instância do real está
privilegiada nesta concepção. Há o real do gozo que, cada
sujeito, caso a caso, deverá nomear. O Nome – do – Pai
consiste, então, na nomeação, por cada um do encontro com o
impossível.
Através de um comentário de um caso de um sujeito psicótico que se
encontra às voltas com a justiça, tentaremos precisar que uso
ele pôde fazer de um nome, para limitar o real do gozo
excessivo. Trata-se de um sujeito psicótico acompanhado pelo
Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário –
PAI-PJ, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. O
PAI-PJ é um programa que segue a psicanálise de orientação
lacaniana na condução de seus casos e em sua concepção. Foi
concebido e é coordenado pela psicanalista Fernanda Otoni de
Barros, que me convidou para trabalhar, juntamente com a equipe
do Programa, a construção dos casos clínicos que se encontram
vinculados ao sistema penitenciário. O PAI-PJ visa, na condução
dos casos, buscar a responsabilização em liberdade, já que
foi criado pelo Tribunal de Justiça como uma nova ficção jurídica
em substituição aos manicômios judiciários.
O caso foi discutido na construção de caso clínico, ele é
acompanhado por Nívia Pimentel Teixeira, do setor de psicologia
do PAI-PJ e por Janaína Beneti do jurídico.
De Mumu a Carlos, o poeta3
Mumu, portador de sofrimento mental, era considerado um delinqüente de
alta periculosidade. Aparecia nos jornais de sua cidade como
estuprador e tinha vários processos por atentado violento ao
pudor, roubo e furto. Não subjetivava nenhum desses atos como
seus. Segundo ele, isso tudo foi inventado para prejudicá-lo.
O Outro o persegue, é o todo poderoso, tem tudo, e lhe resta, no máximo,
ficar na posição de objeto querelante, ou passar ao ato. Ele
próprio vai afirmar, para a sua tratadora – é assim que ele
passa a chamar Nívia - que não tem acesso às mulheres.
Logo no início dos atendimentos, Mumu pede a Nívia que ela lhe arrume
um emprego. Perguntado sobre o porquê de querer um emprego, ele
explica que era para ter acesso a uma mulher solteira. Se Nívia
o ajudasse, seria recompensada, ela poderia ficar com o primeiro
salário dele. Ele explica que faz esta oferta porque sabe que
nada é de graça, que para se obter algo é preciso pagar. Por
isso, Nívea intervém dizendo que ele tem razão, que ela está
ali por ser funcionária do Tribunal de Justiça, que paga a ela
por seu trabalho. Essa intervenção marca a entrada do PAI-PJ
no caso, ele sorri e diz que a doutora havia entendido.
Mumu queria conseguir no campo do Outro o que está colocado para
qualquer um:
-
um
ponto de Ideal, a legitimidade para adquirir seus próprios
bens através de um trabalho.
-
a
possibilidade de gozar de um objeto, uma mulher.
Para todos, o efeito da função paterna no lugar de exceção é
possibilitar o acesso à ordem fálica: fazer sintoma, legalizar
o desejo. Cada um toma sua herança e faz dela uma coisa sua.
Mas, para Mumu, isso não é possível. Por se tratar de um caso
de psicose, ele não entra nesta lógica do discurso comum.
Mumu fala de suas opções de trabalho, poderia ser caseiro, ajudante
de pedreiro, ajudante de pintor. Mas existe ainda um trabalho
que ele chama de particular, ser poeta. Ele poderia ditar as
poesias e um escritor as escreveria. Ele conta que herdou de seu
xará e conterrâneo, Carlos Drumonnd de Andrade, “a inteligência
do poético”.
Ele fala que houve um tempo, tal como o filho pródigo, em que
dilapidou sua herança; se entregou ao gozo das festas no parque
de exposição e jogou sua atividade de inteligência para fora
dele “como se fosse um ser humano colocando uma coisa no
lixo”. Porém, ele diz da possibilidade de fazer uso de sua
herança: começa a ditar sua poesia e a assiná-la. Mumu passa
a ter um nome, seu nome passa a ser Carlos, o poeta.
Por isso, esse fragmento de caso pode nos dar indicações da vertente
nominalista do Nome-do-Pai e seu uso na psicose. Principalmente,
porque somente a partir da assinatura do nome, ele poderá se
responder por seus atos.
Ram Mandil, trabalhando o Seminário 23, de Lacan, sobre Joyce
vem nos lembrar que um nome é sempre dado pelo Outro. O nome
marca, é o emblema de uma herança simbólica. Por ser exterior
a nós, somos forçados a habitá-lo. O nome tem, sobretudo, um
caráter de ficção de linguagem, por isso, pode ser carregado
como um bem ou um fardo. No Seminário 23, Lacan afirma
que houve uma demissão paterna em Joyce, por isso ele teve que
fazer um nome que lhe fosse próprio como uma forma de compensação.
A vertente nominalista do pai diz respeito às diversas formas de ser
pai, mas há uma versão real do pai. Ao propor passar do
Nome-do-Pai aos Nomes-do-Pai, Lacan pluraliza o nome, mas não o
pai. Embora haja o caso a caso, há uma dimensão do pai que é
universal. Não se pode dispensar o realismo da função
paterna, o ponto de impossível. Isso é o universal do
Nome-do-Pai. Há uma tensão entre o universal da função e o
particular da experiência que o sujeito tem de um pai. Por
isso, a relação entre o realismo e o nominalismo é fundada
sobre a disfunção, sobre o fracasso para aquele que vem se
nomear pai em satisfazer as exigências da função. Trata-se de
um impossível. Pode-se fazer uma lista de todas as instâncias
em que um pai seja nomeado. Essa lista não impediria o
surgimento do universal do Nome-do-Pai.
Ao propor falar de Nomes-do-Pai, Lacan está se referindo à pluralização
que rodeia a função universal. De acordo com Laurent (2005),
os nomes são instrumentos para que o sujeito deles se sirva
para se virar na vida, por isso, quando esses instrumentos não
funcionam, o sentimento da vida encontra-se atingido. O nome
recobre um vazio e, através dele, é possível fazer uma
transposição do gozo para a experiência sexuada. O Desejo da
Mãe é o enigma que o Nome-do-Pai irá nomear. Ao ser nomeado
como falo pela metáfora paterna, a relação do sujeito com o
gozo será apaziguada. O pai mostra como se pode viver com a lei
ao humanizar o acesso sexual.
A função paterna se relaciona a uma articulação sexuada entre o pai
e a mãe. O pai se torna suportável, amável, através de uma
mulher que apresente seu nome de uma boa maneira. O pai não
pode ser modelo da função a não ser que realize o tipo da
perversão paterna e esta perversão salva o sujeito da psicose.
A tese de Lacan, no Seminário 23, é que um sintoma pode ocupar
o lugar de nome, podendo, dessa forma, ocupar o lugar do Nome do
Pai. Podemos dizer que Carlos, o poeta, é um nome que passa a
designar um ser que agora vive, no lugar de um nome que antes
lhe caíra do pai.
Miller (2003), dirá que o psicótico está fadado a inventar. Mas sua
invenção tem algo distinto da ficção do neurótico. No caso
da neurose, adota-se soluções típicas para lidar com o corpo
e com o Outro. Soluções fálicas que possibilitam e, ao mesmo
tempo impedem de gozar completamente do corpo do outro. O
discurso estabelecido aponta o que é um bom ou um mau uso, e
também um abuso. Sem o recurso dos discursos estabelecidos, o
psicótico é obrigado a inventar.
Para todos o Outro não existe, e o sujeito deverá advir como
inventor. Ou ele recebe a invenção, como uma ficção, do
discurso estabelecido, ou inventa. Miller (2003), considera que
o discurso estabelecido é um delírio normal e que toda ficção
pode ser uma forma de delírio. Os psicóticos têm que fazer um
esforço para resolverem um problema que, para o neurótico, é
resolvido pela adoção do discurso estabelecido, a entrada na
ordem fálica.
Carlos, diferentemente de um neurótico, precisou inventar recursos
para se ligar ao Outro, para ter acesso ao campo do Outro. No
caso dele, foi preciso o uso de uma solução delirante. Não a
construção de uma metáfora delirante, pois desse modo seria
um tratamento que localizaria o gozo no lugar do Outro da
significação. Sua tratadora acolheu a solução que ele próprio
inventou - ele herdou de Carlos Drumonnd de Andrade a inteligência
do poético. Fazer uso dessa herança foi a forma que conseguiu
para fazer laço com o Outro.
Na psicose, como a carência do pai é Verwerfung, há que se
criar a partir da ausência. Miller (2003),
considera que a escrita é a verdadeira invenção,
porque falar implica o corpo, o inconsciente e o objeto a.
Isso não seria possível para Carlos, o que torna importante,
no caso dele, o tratamento pela escrita. A partir de suas
cartas, Carlos faz laço com sua tratadora. Ele conta para ela
um sonho. Ela lhe disse: “vou colocar seu nome aí, mas você
não pode cometer nenhum erro”. Escutando este relato, Nívia
lhe pergunta: “erros?” E ele começa a falar de seus atos.
Conta que molestou um adolescente e que furtou uma bicicleta.
Ele ficava vendo crianças nuas, pois todas as vezes que tentou
ter acesso a uma mulher, elas o repeliam, o achavam feio. Conta
também do excesso de masturbação e da fala de um médico que
lhe disse que isso causava doença mental. Ele diz que se o juiz
permitisse sua saída, ele não cometeria mais erros.
A responsabilidade pelos atos tornou-se possível a partir de sua
assinatura. Não mais Mumu, o estuprador, mas o filho de Carlos
Drumonnd de Andrade, herdeiro de sua inteligência do poético.
Sua poesia é seu instrumento. De início, ele ditava cartas
para sua tratadora, pedia que ela escrevesse “assinatura” e
assinava: Carlos. Estas cartas eram, em geral, pedidos de
emprego, de objetos diversos. Dizia que não poderia escrever,
pois cometeria muitos erros. Depois do relato do sonho, Carlos,
ele próprio, passa a escrever as cartas, assim como “paga”
sua tratadora com poesia. Um dia ele lhe agradece por estar lhe
ajudando e diz que precisa dar-lhe um presente. Pede lápis e
papel e escreve uma poesia.
O tratamento do gozo em Carlos se opera a partir do próprio gozo,
tomando apoio sobre a escrita. É a partir dessa invenção que
esse sujeito pode constituir um laço social inédito. As ficções
jurídicas existentes são estilhaçadas neste caso. O direito
terá que ser inventado, já que a responsabilidade, para a
psicanálise, não é da ordem do ideal, mas se coloca para cada
um.
A conseqüência de ter um nome é que Carlos solicita ser ouvido pelo
juiz, ele quer conversar, saber, como ele diz “a significação
de seu juízo”. Atualmente, a equipe do PAI–PJ está
tentando marcar uma audiência com o juiz e acreditamos que esta
audiência é uma possibilidade de articulação entre a psicanálise
e o direito no que diz respeito ao tratamento do gozo.
Esse caso nos mostra que, na relação do direito com a psicanálise,
onde o primeiro visa o universal da responsabilidade, é pela
solução particular que podemos construir a possibilidade de
uma resposta. Neste caso, a partir de uma invenção
nominalista.
Este sujeito encontrou uma solução nominalista, quer dizer,
particular, mas que não se articula com o universal da função.
Por isso Lacan disse no Seminário 23 que a solução
psicótica não é uma boa solução. E não é uma boa solução
exatamente por não cotejar a vertente realista do Nome-do-Pai.
Contudo, foi a solução que lhe tornou possível, pelo menos
por enquanto, responder, minimamente, ao campo do Outro.
Notas
1.
No artigo “Freud e a culpa: a culpabilidade antecede o
crime”, abordo a teorização de Freud sobre a culpabilidade e
o sentimento de culpa (In: Curinga n. 17. Revista da
Escola Brasileira de Psicanálise/MG. Belo Horizonte: EBP-MG,
nov. 2001).
No texto “Uma questão à prática lacaniana nas instituições
judiciais: sobre a modalidade patológica do assentimento
subjetivo” discuto as distintas abordagens de Freud e Lacan no
trabalho no campo jurídico (In: Revista Opção Lacaniana
n. 37, São Paulo: edições Eólia, setembro de 2003).
2.
No dia 6 de março de 2006, tivemos o seminário
“Psicanálise e Direito – entre o nominalismo e o
realismo” com apresentação de Ernesto Perini Santos,
professor de filosofia da UFMG e Sérgio Laia como debatedor. As
considerações aqui apresentadas sobre o tema são reflexos
deste evento.
3.
Fizemos a discussão deste caso, Nívia e eu, no Núcleo
de Pesquisa em Psicanálise e Direito do Instituto de Psicanálise
e Saúde Mental de Minas Gerais, na Seção clínica do dia 20
de março de 2006. Minhas
considerações teóricas foram feitas a partir do estudo de
caso de Nívia, intitulado “Sou um poeta”.
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Anotações pessoais a partir das aulas da profa. Tânia Coelho dos
Santos no Programa de Pós – graduação em Teoria Psicanalítica
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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