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O fracasso escolar em meninos: como se servir do pai quando este é dispensado como homem? [1]

 
 

 

Marcela Decourt
Psicanalista,
Membro Correspondente da EBP-RJ
Doutora em Teoria Psicanalítica/PPGTP/UFRJ
Coordenadora do Projeto de Extensão “Psicanálise e Educação”/Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo/UFRJ
Psicanalista responsável pelo Serviço de Orientação Educacional do Colégio don Quixote/RJ
mdecourt@fdecourt.com.br

 

Resumo

Este artigo apresenta o relato de uma experiência onde a psicanálise foi convocada a verificar a sua aplicabilidade ao campo da educação. A partir de entrevistas realizadas com alunos e suas respectivas famílias, estamos analisando a gênese do fracasso escolar em cada um destes casos, com o objetivo de verificar o que há em comum entre eles, bem como os efeitos terapêuticos que podem ser extraídos a partir da realização destas entrevistas.

Palavras-chave: Psicanálise aplicada, educação, sexuação, função paterna, conjugalidade.

 

   
 

 

School failure and boys: how can we make use of the father when he’s been released from manhood?

 

Abstract

This paper tells the story of an experience where psychoanalysis was summoned to check its applicability in the education field. Starting from interviews with learners and their families, we are analyzing the genesis of school failure in each case, with the objective of checking their commonalities and the therapeutical effects derived from these interviews.

Key words: Applied psychoanalysis, education, sexuation, father function, conjugality.

 

 

Introdução

Freud, em 1925, anunciava que nenhuma das aplicações da psicanálise excitou tanto interesse quanto o seu emprego na teoria e na prática da educação.

O principal objetivo deste trabalho é apresentar o relato de uma experiência onde a psicanálise foi convocada a intervir em uma instituição escolar, se vendo, portanto, intimada a rever a sua aplicabilidade sem perder de vista os seus princípios.

Sabemos que as novas formas de sofrimento psíquico têm exigido dos psicanalistas um esforço a mais na contemporaneidade. A psicanálise tem sido constantemente solicitada a responder por fenômenos clínicos que surpreendem cada vez mais pais, educadores, pediatras, enfim, todos aqueles que não ignoram as mudanças de nossa época, ou seja, que não ignoram os efeitos do declínio da função paterna na educação, na família e na cultura. É preciso que nós, psicanalistas, tenhamos a exata noção dos limites da psicanálise aplicada para que possamos, de fato, nos incluir no laço social sem abrir mão dos pilares fundamentais da psicanálise. Penso que é desta forma que devemos nos lançar nesta aventura tão arriscada que é a psicanálise aplicada.

Cottet (2005) ao promover uma atualização da aplicabilidade da psicanálise na contemporaneidade, propõe algumas questões que considero essenciais para a compreensão deste projeto de extensão. São elas: Será que um ato psicanalítico é possível num espaço que não seja psicanalítico?, há condições ideais para o ato analítico?, qual o limite entre a deformação e a degradação na aplicação da psicanálise, no nosso caso, à educação?, qual seria, portanto, o limite entre a extensão da psicanálise e a sua degradação?. Mais do que isso, Cottet se pergunta sobre qual seria o manejo da escuta necessário para se estar à altura do laço social.

Como podemos perceber, tais questionamentos trazem à tona uma discussão não menos importante e que diz respeito justamente à formação dos analistas. Faz-se indispensável que os psicanalistas se perguntem sobre o que há de rigorosamente psicanalítico em suas práticas institucionais já que é preciso garantir os parâmetros que fundamentam estas práticas, ou seja, os princípios que as orientam e que, conseqüentemente, as diferenciam radicalmente das práticas psicoterápicas, por exemplo.

Diante das novas formas de sofrimento psíquico, destaco o fracasso escolar, considerando-o como o sintoma infantil contemporâneo por excelência. Estamos interessados em analisar como este sintoma acomete de maneira particular os meninos, nos dando pistas de que talvez este seja um sintoma, de fato, tipicamente masculino. Por que será que meninos lideram os levantamentos dos fracassados escolares? Por que são eles que, na passagem da quarta para a quinta série, por exemplo, decantam como verdadeiros resíduos em relação à turma, como se sucumbissem à aprendizagem?

O grande desafio deste projeto de pesquisa, portanto, é o seguinte: como estender ou como aplicar a psicanálise fora do dispositivo analítico clássico sem que isso implique na sua degradação? Neste sentido, o principal objetivo deste relato que se segue é justamente fomentar uma discussão acerca da pertinência e dos limites da psicanálise aplicada ao campo da educação, já que não podemos supor que a psicanálise nada tenha a dizer e a acrescentar em relação aos sintomas que proliferam nas salas de aulas e que deixam professores, orientadores e diretores muitas vezes embaraçados.

 

A pesquisa

Antes de apresentar as etapas do projeto propriamente dito, é fundamental destacar que este trabalho tem um objetivo bastante preciso: escutar a particularidade de cada caso, procurando extrair o que cada um deles apresenta de típico, ou seja, o que há em comum entre eles. Acredito que é apenas neste esforço de extração do universal a partir do particular que podemos falar de pesquisa em psicanálise.

Orientada por este objetivo, me lancei no desafio de analisar os casos de fracasso escolar em um colégio situado em Jacarepaguá. No início deste ano fiz uma análise do rendimento escolar de alunos de quinta série até o terceiro ano do Ensino Médio a fim de identificar os sujeitos de nossa pesquisa. Curiosamente, logo de saída já nos deparamos com a seguinte realidade: são os meninos que lideram o ranking dos fracassados escolares. São eles que, em sua maioria, têm boletins repletos de notas insuficientes e parecem não responder às intervenções promovidas pela Escola, tais como: aulas de apoio, conversas com os pais, exercícios extras, recuperação paralela, provas diferenciadas... Como podemos perceber, já na primeira etapa desta pesquisa o fenômeno fracasso escolar apareceu como um sintoma tipicamente masculino.

Outro aspecto também típico e que chamou bastante a atenção é que estes alunos são considerados pela equipe pedagógica como absolutamente “inertes”, “parece que não saem do lugar”, “fazem tudo apenas para se livrar da tarefa”, “parecem não se interessar por nada”, “falta vontade de aprender”, além de “descompromissados”, “imaturos” e “empacados”. Interessante destacar também que estes alunos, de fato, pouco se incomodam com a possibilidade de uma reprovação. Comportam-se de maneira “indiferente” como se a castração realmente passasse ao largo deles. Diante de todas estas formulações destaco duas delas : “eles não estão nem aí!” e “eles não querem nada!”

Após a identificação destes alunos, tracei um plano de intervenção que consiste na realização de entrevistas de anamnese com os responsáveis e entrevistas com os próprios alunos. Nosso objetivo com este procedimento é o estabelecimento de um diagnóstico das dificuldades apresentadas, visando à identificação dos impasses destes alunos com a aprendizagem de modo a analisar o que, de fato, tem relação com o aspecto pedagógico-conceitual e o que está diretamente associado à economia psíquica deles. A partir daí, será possível estabelecer uma direção para cada um dos casos (acompanhamento na própria escola visando apenas efeitos terapêuticos rápidos ou encaminhamento do caso). Com esta estratégia foi inaugurado um novo dispositivo dentro daquele colégio, dispositivo este que visa desempenhar o papel das entrevistas preliminares em psicanálise. Ou seja, foram realizados alguns encontros com os pais destes alunos e outros com o próprio aluno, buscando identificar a gênese deste fracasso em cada um destes sujeitos.

É importante ressaltar que nosso objetivo com este ciclo de entrevistas não é curar os sujeitos, mas oferecer-lhes uma escuta que promova a experiência do inconsciente em cada um deles. Como relembra Coelho dos Santos (2006b), o principal objetivo das entrevistas preliminares não é necessariamente o alívio da angústia, mas a introdução da hipótese do inconsciente, ou seja, a fundação do inconsciente para um sujeito. Isto significa dizer que os efeitos terapêuticos alcançados pelo sujeito advêm como conseqüência das próprias entrevistas preliminares, onde o ele é convocado a falar de si.

 

O Caso

O relato que se segue refere-se ao material obtido em algumas entrevistas realizadas com um menino. Estas entrevistas ainda estão em andamento.

Pedro Henrique é filho único. Tem 12 anos. Em relação ao seu rendimento escolar, ele diz que o pai acompanha a sua vida escolar, até vê o boletim, mas “não faz nada”. A mãe depois que recebe o boletim não o deixa fazer “mais nada”. E como ele mesmo afirma, ele próprio “não quer nada.”

A sua mãe é quem mantém financeiramente a família, apesar de ter perdido recentemente o seu emprego. O pai tem um nível de instrução inferior ao da mãe que, em algumas situações, chega a redigir textos para que o marido copie (declarações, procurações...). Este casal está permanentemente em crise conjugal, sempre à beira da separação que já há algum tempo vem sendo adiada. Atualmente, a separação está “em suspenso” em função da decadente situação financeira da família. A mãe parece bastante aflita e tem feito malabarismos para honrar os seus compromissos financeiros enquanto o pai “deita, vê TV, come, reclama da comida e fica mandando a cachorra para o quarto”. “Ronca e dorme”, segundo Pedro Henrique.

Pelo que pudemos reconhecer até o momento, estamos diante de um casal parental que parece dispensar o registro da conjugalidade, Se por um lado, o esvaziamento da potência do desejo de seu pai enquanto homem para a sua mulher, mãe de Pedro Henrique, a reduz radicalmente à sua vertente materna. Por outro, sua mãe ao recusar-se como objeto causa de desejo de seu marido, aponta que a sua satisfação está em outro lugar: em Pedro Henrique. E, como sabemos, quando o pai não se apresenta como desejante em relação a uma mulher, ele deixa o filho impossibilitado de extrair a sua posição de homem, de homem humanizado por seu desejo referido a uma mulher.

Pedro Henrique tem certeza que é tudo para a sua mãe, que a sua mãe se satisfaz nele e que seu pai é um “nada”. O que ele não sabe ainda é como sair dessa, como se desvencilhar desta posição de objeto do gozo da mãe. Talvez seja por isso que ele se apresente como aquele que não quer nada, aquele que passa ao largo da castração e, conseqüentemente, do desejo.

Estamos dando continuidade a estas entrevistas com Pedro Henrique para identificarmos qual a direção mais apropriada a ser dada em seu caso. Se uma demanda de análise, de fato, emergir, ele terá condições de ser encaminhado para um atendimento psicanalítico propriamente dito. Caso contrário, seguiremos pelo caminho de um acompanhamento curto visando apenas efeitos terapêuticos.

 

Do caso à teoria

Desde Freud sabemos que a constituição subjetiva não se faz pelos mesmos caminhos para meninos e meninas. A própria diferença anatômica entre os sexos tem efeitos diferentes na constituição subjetiva de cada um deles. Do lado das meninas tudo indica que, tendo sido privadas do pênis, só lhes resta a inveja dele e um certo ar de quem, de fato, não tem muito mais a perder. Como dizia Freud: “A menina (...) faz seu juízo e toma sua decisão num instante. Ela o viu, sabe que não o tem e quer tê-lo” (1925, p. 314). Já para os meninos, possuidores do tão cobiçado objeto, é preciso prudência já que a ameaça da castração não lhes dará sossego para o resto da vida. Como conclui Freud:

“A diferença entre o desenvolvimento sexual dos indivíduos dos sexos masculino e feminino [...] é uma conseqüência inteligível da distinção anatômica entre seus órgãos genitais e da situação psíquica aí envolvida; corresponde à diferença entre uma castração que foi executada e outra que simplesmente foi ameaçada.” (1925, p.319)

Coelho dos Santos (2006a) sublinha a importância distintiva que um pai tem para um e para outro sexo. Para os meninos ele é o agente imaginário da castração na medida em que interdita o objeto incestuoso e se torna um traço na identificação constitutiva do supereu. Para as meninas, entretanto, o filho aparecerá como um substituto do falo e deste modo, o pai nem interdita propriamente o objeto incestuoso, nem se faz um traço de identificação.

Lacan, em seu primeiro movimento de retorno a Freud, formaliza o complexo edipiano, fazendo do pai uma metáfora. Ao elevar este conceito à sua dimensão mais simbólica, Lacan, na realidade, reduz o pai a uma função, acentuando a mortificação do ser vivo. Acreditamos que a difusão desta formalização do pai em Lacan trouxe uma série de impasses para os psicanalistas que passaram a dispensar o pai imaginário em nome de uma função simbólica. Com isso, o pai de família foi esvaziado de sua função e a paternidade passou a ser definida como uma metáfora cuja função é promover a substituição de um significante por outro. Nesta etapa, portanto, Lacan parece privilegiar a função paterna em sua vertente simbólica, ou seja, a função de interdição que o pai tem para um filho.

Mais tarde, no último tempo de seu ensino, Lacan promove uma inversão de perspectiva. No Seminário 20, Mais ainda, ele situa a diferença sexual no coração da psicanálise, conferindo à diferença entre as sexualidades masculina e feminina uma posição inédita. Ele inicia este percurso de promoção da diferença sexual no próprio Seminário 20: ao introduzir o gozo como propriedade do corpo vivo e, mais adiante, no Seminário 22: RSI, sublinha esta inversão de perspectiva privilegiando as funções homem e mulher, que tomam a cena das antigas formulações que privilegiavam as funções do pai e da mãe.

Neste seminário, então, ele destaca o papel do gozo do pai como condição da operatividade de sua função. Ele faz intervir o desejo e o gozo do pai como única garantia de sua função, que ele diz ser real e ter como modelo a posição de um homem que tomou uma mulher como causa de desejo e a fez mãe dos seus filhos. É neste seminário que Lacan afirma: “Um pai não tem direito ao respeito, nem ao amor, se o dito amor, o dito respeito, não for, vocês não vão crer em suas orelhas, père(pai)-versamente orientado, quer dizer feito de uma mulher, objeto a que causa seu desejo [...]”.

Trata-se da percepção de que para além do pai está o homem. Desse modo, para que um homem seja capaz de encarnar a função de pai, é preciso que ele seja, antes, capaz de amar uma mulher. É preciso que ele faça da sua própria castração a condição de possibilidade da aquisição da função paterna (Decourt, 2000).

Como podemos perceber, neste momento Lacan humaniza a figura do pai, oferecendo-lhe uma versão mais justa, sexuada, ou seja, a sua vertente de homem, de homem vivo. Trata-se, portanto, de um pai castrado que deseja uma mulher. Um pai vivo que não tem o gozo absoluto sob a sua guarda, tal como nos propunha Freud a partir de seus mitos sobre a função do pai, mas, ao contrário, um pai que sofre os efeitos da castração. É para uma mulher que ele deve se fazer homem para que possa então advir como pai de um filho.

Penso que algumas questões merecem destaque nesta virada teórica de Lacan, não apenas por serem delicadas, mas também por exigirem dos psicanalistas um esforço a mais no sentido de refletirem sobre as suas intervenções clínicas diante das novas configurações familiares. São elas: O que define e, conseqüentemente, habilita as funções pai e mãe em uma família? Qual a estrutura mínima que constitui um laço familiar? Mais do que isso é preciso que os psicanalistas se perguntem: do que uma família deve de fato se encarregar? O que cabe a ela, e somente a ela, transmitir aos seus filhos?

Sabemos, desde 1938 com Lacan, que a família tem um papel primordial na transmissão da cultura, pois além de “presidir os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, também transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência” (1938, p. 13).

O que verificamos no caso apresentado é que o sujeito, ao desconhecer o exercício da castração no interior da própria família, apresenta dificuldades na subjetivação da castração, principalmente no que diz respeito à diferença sexual e geracional. Se a lei do desejo é que funda a conjugalidade e se é daí que a parentalidade advém, então, qual o lugar deste sujeito diante da partilha sexual?

Daremos prosseguimento a estas entrevistas com Pedro Henrique procurando analisar nele a incidência da sexualidade de seus pais, pois acreditamos que esta é a única possibilidade que um sujeito tem de dispensar o pai sabendo dele se servir[2]. Nosso grande desafio será, então, colocar o significante “nada” em operação para verificarmos se esta intervenção possibilita que Pedro Henrique demande uma nova posição subjetiva que permita que ele funcione de fato como filho para que possa, futuramente, funcionar de fato como homem.

De qualquer forma, a questão que retorna e que orienta a pesquisa a partir de agora é: que saídas os meninos terão que buscar para tornarem-se homens e conseqüentemente pais já que parecem especialmente entregues à maternagem generalizada dos novos tempos? Será que o fracasso escolar em meninos não pode ser entendido como uma resposta (também fracassada) do sujeito ao mal estar na sexualidade? Como é possível um menino se servir do pai quando este é dispensado com homem?

 

Notas

[1] Anotações pessoais do seminário proferido por Tania Coelho dos Santos no Programa de Teoria Psicanalítica da UFRJ. 2006/2

[2] Ref.: “L’hypothèse de l’inconscient, Freud le souligne, ne peut tenir qu’à supposer de Nom-du-Père. Supposer le Nom-du-Père, certes, c’est Dieu. C’est en cela que la psychanalyse, de réussir, prouve que le Nom—du-Père, on peu aussi bien s’en passer. On peut aussi bien s’en passer à codition de s’en servir” (Lacan, 1975-76, p. 136)

 

Referências bibliográficas

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COTTET, S. “Efeitos terapêuticos na clínica psicanalítica hoje” In: Coelho dos Santos, T. (Org.) Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada, Rio de Janeiro: Contracapa, 2005.

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