Em 1999, na virada do
século, o enigma dos sexos ainda nos afeta, tal como Machado de Assis o
descreveu, em 1904, em sua crônica “A queda que as mulheres têm para os tolos”[1]. Machado
é nosso contemporâneo, o que atesta a temporalidade do inconsciente quanto às
questões do mal-entendido entre os sexos.
Em 1914, em seu texto “Sobre
o narcisismo: uma introdução”, Freud nos advertira sobre os paradoxos da vida
amorosa: amamos para não adoecer, porém adoecemos quando amamos. Homens e
mulheres se indagam hoje sobre os impasses da vida amorosa com a mesma
insistência com que Freud perguntava sem muito responder: “o que quer uma
mulher?”. Lacan dirá que “a relação sexual não existe”[2],
referindo-se à ausência de um saber sobre a sexualidade. Ele menciona o
desencontro de Aquiles e a tartaruga, como exemplo para ilustrar o desencontro
do gozo do homem com a mulher. Miller, em seu curso de orientação lacaniana do
período compreendido entre 1997/98, inaugura a teoria do parceiro sintoma[3]
para formular que o verdadeiro parceiro do sujeito é a sua forma de gozar.
O texto de Machado de Assis
é, acima de tudo, bem-humorado, evocando as diferenças entre o desejo
masculino e o feminino no que se refere à vida amorosa. Tentarei mostrar
através deste texto algumas questões relativas ao real do encontro com o outro
sexo: como desejo e gozo são distintos na vida amorosa feminina e masculina.
Ele nos ensina que a “boa tolice” é aquela que não erra, pois suporta o que há
de real em jogo. Lacan, justamente, formulou que “os não tolos erram”[4].
A “boa tolice” é vista com
entusiasmo. Machado enaltece o tolo por consentir num saber que lhe escapa,
sobre o desejo e o gozo feminino. Logo, é tolo aquele que é capaz de seduzir e
amar uma mulher, sem ser ameaçado em sua virilidade.
Vejamos então como Machado
fala sobre a questão do desejo dentro da dialética do amor. Machado de Assis
começa seu texto sugerindo treze advertências, em relação ao “homem de
espírito”, para gozar do amor de uma mulher. Enaltece o tolo chamando a
atenção para “a queda que as mulheres têm para os tolos” - “Il est des noeuds
secrets”[5].
“Passa em julgado que as mulheres lêem de cadeira em
matéria de fazendas, pérolas e rendas e que, desde que adotam uma fita,
deve-se crer que a essa escolha presidiram motivos plausíveis”.
“Partindo desse princípio entraram os filósofos a indagar
se elas mantinham o mesmo cuidado na escolha de um amante ou de um marido”.
“Que se um homem lhes agradava, era por ter se apresentado
primeiro que os outros e que, sendo este substituído por outro, não tinha este
senão o mérito de ter chegado antes do terceiro. [...] Veio, a saber, que as
mulheres escolhem com pleno conhecimento do que fazem.”
“Só se decidem por um, depois de verificar nele a preciosa
qualidade que procuram. A toleima!” (Assis,
1904)
Poderíamos neste sentido
pensar, com Lacan, que o homem tolo teria acesso a um saber sobre a demanda de
amor feminina. Demanda que se expressa de forma bastante enigmática. “Peço que
recuses o que te demando, pois não é isto que desejo”[6]. O tema
sobre as condições da vida amorosa masculina nos coloca a questão de como uma
mulher pode ser amada e reconhecida para um homem. Verificamos na psicologia
da vida amorosa que não todas convém a um homem, o que equivale dizer que as
condições do amor para o sexual se inscrevem onde não há relação sexual, ou
seja, não há complementaridade entre os sexos. A virilidade só podendo ser uma
aquisição a partir de uma perda. Lacan[7],
em “A relação de objeto”, enfatiza a decepção que o menino sofre quando
percebe que o amado é apenas uma imagem e que a mãe, para além dele, ama o
falo. Trata-se de subjetivar a falta referida à sua posição de falo imaginário
para aceder à castração como suporte da sua condição viril. Tornar-se um homem
implica, portanto, em um trajeto com relação ao reconhecimento que a mulher é
desde sempre do Outro. E é nesse sentido que no percurso da sexuação masculina
será necessário subjetivar uma perda com relação ao gozo fálico para poder
inscrever o Outro. Assim, Lacan[8]
em seu seminário O Avesso da psicanálise, diz que “é na medida em que
recebe esse efeito feminizante que é o a, que ele reconhece o que
constitui, a causa de seu desejo”[9].
Lacan indica que é justamente através desse objeto feminizante que se poderá
destacar algo do objeto como causa e que constitui o homem como macho.
Verificamos, assim, que as parcerias são sempre sintomáticas. Deduz-se disso o
fato que não há um saber sobre a sexualidade. Se há sintoma, então, não há
relação sexual. O gozo sexual se apresenta sob a forma de um traumatismo, não
preparado para um saber. A questão do amor é assim ligada à do saber”[10].
No amor, a relação com o Outro é mediada pelo sintoma.
Em se tratando de
mulheres..., como diz Machado de Assis: “Il est des sympathies“[11].
O referido autor é contundente quando diz que “é pela adulação que se alcança
as mulheres, bem como se as perde”. Mas elas querem amor, qualquer que seja a
sua natureza. O tolo sabe que o gozo feminino se situa mais do lado do amor,
como se pode verificar clinicamente na superestimação do amor pelas mulheres
com relação ao desejo. Na mulher o desejo passa pelo amor.
Miller, em seu texto “Uma
partilha sexual”[12],
ressalta que a exigência de amor do lado mulher, indica uma estrutura de um
certo “menos.” Depreende-se disso a angústia de castração indicada por Freud,
no que se refere ao estatuto do amor, relativo à perda do amor do outro como
um sintoma tipicamente feminino. Lacan destaca no lado mulher uma relação com
o gozo que não está todo inscrito nesta lógica, acentuando um gozo a mais,
suplementar. Lacan indica que no macho o desejo passa pelo gozo, requer o
mais-de-gozar. Sublinha que há uma diferença entre os sexos em suas formas de
amar e de gozar. Trata-se da condição fetichista no lado macho, e da
erotomania no lado fêmea, segundo as fórmulas lacanianas da sexuação. É neste
sentido que podemos verificar uma relação entre o amor e a castração.[13]
O amor é sem limite assim como o gozo feminino. Deduz-se então que a mulher
não está toda referida à lógica do falo, mas também referida a uma outra
lógica, além do falo, que fala de um gozo em excesso e ilimitado.
O amor, definido por Lacan,
é dar o que não se tem[14]. Nesse
sentido é que ele pode almejar o ser, mais além do ter. As mulheres, neste
sentido, tentam recobrir a falta pelo amor. Há no texto de Machado de Assis
uma indicação quanto ao modo como o tolo se refere a essa questão: “O tolo é
um amante sempre contente e tranqüilo”. Faz uma grande honra à mulher a quem
dedica seus eflúvios. [...] Saboreia a embriaguez da fatuidade”, observa.
Quanto ao homem de espírito,
Machado de Assis demonstra a sua inabilidade com relação à arte de saber lidar
com as mulheres:
“O homem de espírito vê no amor um grande e sério negócio,
suporta tudo daquela que ama sem nada exigir dela. [...] E quando chega a
fazer-se amar, não goza de uma felicidade completa. [...] Assustado com o
vácuo imenso, que deixa no coração uma afeição que se perde, só rompe o laço
que o prende a causa de dilacerações intensas”. (Assis,1904)
As estruturas da sexuação,
formuladas por Lacan, permitem articular o gozo próprio a cada sexo. Na
sexuação masculina, trata-se de uma perda de gozo para aceder à virilidade.
Muitas vezes na clínica verificamos que há obstáculos que impedem o homem de
se relacionar com o outro sexo. O desejo masculino se expressa de uma maneira
fetichista com relação ao desejo assim como esta forma de gozo também enaltece
a face autista do gozo, que não se reporta ao Outro. Para que ele possa gozar,
a mulher vem no lugar do significante fálico, a girl-phallus,
revestindo a castração. Assim, a função do falo se esclarecerá em torno de um
ser e de um ter o falo na intervenção de um parecer. Do lado da mulher, é pelo
que não tem que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo em que amada[15]. Do lado
masculino das fórmulas da sexuação, um dos obstáculos é o intenso apego ao
falo como significante do desejo materno, expressão de um gozo que os impede
de abordar o não-todo que as mulheres encarnam.
Ao se referir ao homem de
espírito, Machado de Assis nos indica o quanto é apegado subjetivamente a um
gozo de ser o falo que viria complementar o outro materno:
“Viver sem ser amado parece-lhe intolerável”.
“Ao abordar uma mulher, pede garantias quanto a esse lugar,
garantias daquelas a quem revelou o segredo do seu coração pois, não a esquece
jamais.
“O tolo está acima destas misérias. Para ele nada há de
terrível numa separação, porque nunca supõe que se possa colocar a vida numa
vida alheia”.
“Em se tratando de correspondência amorosa, o homem de
espírito é o menos hábil para escrever a uma mulher”. Escreve cartas decentes
quando as pedem estúpidas”. (Assis,
1904)
O homem de espírito não é
tolo o suficiente para efetuar o trajeto que separa a mãe e a mulher; daí a
clássica divisão entre o amor e o desejo. O tolo sabe colocar uma mulher como
causa de seu desejo, ainda que ao preço de ela ser também para ele um sintoma.
Sabe que, por não ser toda, uma mulher sempre escapa; sabe também que há um
mistério que as mulheres encarnam para além do que pode ser dito. O que nos
leva a pensar na feminilidade como semblante, pois não há nada que possa
representar a mulher. Há que se inventar um semblante de mulher; já que ela
ex-siste ao campo do desejo, do significante. O gozo feminino não identifica
uma mulher como mulher, o que tem como resultado uma acentuação ao nível da
demanda no amor. Por essa razão, segundo Machado: “O tolo não atrapalha nem
ofusca as mulheres porque longe de se sentirem deslocadas na sua companhia,
elas o procuram porque brilham nele”.
Sim, as mulheres têm uma
queda para os tolos, pois como nos diz Lacan[16] não há
virilidade que não seja consagrada pela castração simbólica, pois para aceder
ao desejo a castração é fundamental. Por isso: “mulher nenhuma jamais resistiu
a um tolo”, segundo Machado.
Isso se dá porque onde o
significante a abandona, o amor que o tolo lhe dedica pode fazer signo. É onde
os tolos triunfam e os homens de espírito fracassam.
Para concluir, mais algumas
frases de Machado:
“As mulheres não são senhoras de si próprias”.
“Querê-las com juízo, penetrantes e sensíveis, é não
conhecê-las”.
“O seu estouvamento atesta-lhes a candura”.
O que sabe um tolo é
exatamente que há um saber que revela a mulher como uma verdade não-toda,
em relação ao real, do qual é preciso ser tolo.
Ainda segundo Machado, uma
última advertência: “É mister ousar tudo para com as mulheres.”
Machado de Assis nos ensina
que a mulher não faz conjunto; ela é o que vem fazer objeção a que haja um
todo e que somente a boa tolice poderá confirmar. O tolo como expressão
daquele que não quer saber sobre “o que quer uma mulher” mas que tem uma certa
arte em transformar a impossibilidade estrutural do mal-entendido entre os
sexos em entusiasmo e ousadia.
Referências Bibliográficas:
[1]
ASSIS, Machado de (1904) “A queda que as mulheres têm para os tolos”. Em:
Obras completas. RJ: Editora Aguilar, 1997.
[2]
Lacan, J.
(1972-73). O Seminário,
livro 20: mais, ainda RJ: JZE, 1982, cap. I.
[3]
Miller, J.-A.
“A teoria do parceiro”, in: Jimenez, S. M. (org.) Os circuitos do desejo
na vida e na análise. RJ: Editora
Contracapa,
2001, p. 153-207.
[4]
Lacan, J.
(1973/74) Les non-dupes errent, notes intégrales du seminaire proferé
à la Faculté de Droit, Paris, Humilitas, 1981
[5]
A referência em francês é do texto de Machado de Assis.
[6]
Lacan, J. (1972-73). Op. Cit.
P. 152.
[7]
______.
(1956-57). O Seminário, livro 4: as relações de objeto. RJ: JZE,
1995, 456p
[8]
______.
O seminário: livro 17: O Avesso da psicanálise.
RJ: JZE, 1992.
[10]
Id.
(1972-73). Op. Cit.,
p. 122.
[11]
Originalmente em francês no texto de Machado de Assis.
[12]
Miller, J.-A. “Uma Partilha
sexual” in: Clique, n° 2. Revista dos Institutos Brasileiros de
Psicanálise do Campo Freudiano. Agosto, 2003, p.18.
[14]
Lacan, J. (1962/63) Le
Seminaire Livre X, L’ Angoisse. Paris: Seuil, 2005.
[15]
______.
“A Significação do falo”. In: Escritos.
RJ: JZE, 1998,
p. 701.
[16]
______.
“Propos directif pour un congrès sur la sexualité feminine”. In: Écrits.
Paris: Seuil, 1966, p. 730.