Tanto na experiência
traumática da infância quanto na fantasia da adolescência, M. revela-se como
objeto de uso e fruição, indicando também aí o seu lugar de gozo, ou seja, de
um sujeito que, colocando-se em posição de objeto, goza numa relação de sexo
com os homens, conforme a experiência relatada, e de carinho com as mulheres,
tal como configura na sua fantasia de garota de programa. Para Lacan, este
modo de gozo diz respeito à contingência de uma história particular que não
cessa de não se escrever. No Seminário 20, ele diz que o gozo é aquilo
de que fala o Direito, evocando a noção de usufruto como aquela que reúne o
uso e a fruição.[3] O Direito promulga
que gozar de uma coisa é poder usá-la até o abuso. Tem-se ai uma noção ampla do
que seja o gozo, no interior da qual se pode pensar a noção mais estrita de
gozo sexual.
Pensando o gozo, na sua
amplitude, numa relação dialética com o gozo sexual, podemos fazer uma
equivalência entre a relação dialética ser e significante, chegando, com
Lacan, à conclusão de que é o significante que introduz a dimensão do sexual
no ser humano. Isso é fruto de uma elaboração do conceito de Outro.
Nos relatos de M., quando
admitia que não denunciava os seus assediadores na infância, por considerar a
prática notadamente prazerosa, destacou-se um significante “porca”. O valor
que este significante adquiriu para M., a coloca diante de uma contingência,
ou seja, diante de alguma coisa que poderia ser de outro modo, mas que nesse
nível só pôde ser assim.
Dizer que o significante
introduz a dimensão do sexual no ser humano, implica em pensar que o ser é
produzido pelo significante. Isto quer dizer que a linguagem não deve ser
considerada como uma superestrutura que viria se depositar sobre o ser e sim
como uma aparelhagem que o modela e o determina. É bem isso que M. nos faz ver
quando, depois de um certo tempo, começam a aparecer dúvidas com relação à
posição sexual e a partir do relato de um envolvimento com uma colega, surge o
enunciado que escolhemos como título para este trabalho: “sou ou não sou
homossexual?”
Trata-se de um
enunciado que alude ao ser e, assim sendo, comporta um gozo não
totalmente sexual. Nesse sentido, esse gozo suporta o “eu sou”
da fantasia, na medida em que não seja inteiramente simbolizado
pelo “ eu penso”. Tal gozo, nos diz Serge André[4], é quase
inacessível pois, não correspondendo a desejo algum do sujeito,
resiste a toda apreensão e a todo raciocínio significante. Então
nos perguntamos, com Miller[5],
até que ponto tudo que diz respeito ao gozo do ser humano é
verdadeiramente aberto ao encontro?
As primeiras elaborações
sobre a dialética de dois gozos, datam dos anos 60 no ensino de Lacan[6]
e recebem um desenvolvimento teórico mais avançado no
Seminário 20[7], o que
vai servir de fundamento à problemática do feminino. É esse o ponto que nos
interessa discutir. E a esse propósito recortamos uma outra frase de M.,
subseqüente ao comentário sobre o envolvimento sexual com a colega: “Tudo o
que eu queria saber é o que uma mulher sente quando se relaciona com outra
mulher. Mas sei que para resolver a questão da homossexualidade é preciso
superar o passado”. Neste recorte, M parece nos dar uma nítida idéia dos dois
gozos, tal como Lacan desenvolveu no Seminário 20, ou seja,
inicialmente ela diz que quer saber sobre um gozo do qual não se consegue
falar; apenas experimentar. Trata-se do gozo do Outro, anteriormente referido
como o gozo do ser, designado como um gozo fora da linguagem, que escapa ao
domínio do significante e é atribuído ao feminino. Mas na verdade, o que está
posto aí é a questão de M sobre o enigma do gozo feminino e seu modo
particular de interrogá-lo, que não é do lugar de objeto causa de desejo de um
homem, mas sim fazendo de uma mulher objeto de sua fantasia.
Na segunda parte do seu
enunciado, M. se refere a um tipo de gozo bem determinado pela linguagem e,
portanto, tributário do significante fálico, ao aludir às experiências sexuais
vivenciadas quando criança. Este gozo, em oposição ao do Outro, parte da
falta-a-ser e se refere a certas partes do corpo que podem funcionar como
equivalentes ao órgão sexual. Como se vê, a referência ao corpo não é
eliminável e cabe dizer que a experiência da infância, descrita por M., dizia
respeito à prática do sexo oral. Seguindo a linha de partes do corpo
falicizadas M. traz, através de um sonho, uma visualização, no espelho, de uma
parte de seu corpo atacada de alergia, como se fosse um couro de jacaré. Tem a
sensação de estar se vendo meio bicho meio gente e começa a gritar. Este
discurso desliza para uma informação acerca do seu nome, que tem origem na
história de uma moça, chamada M., que apareceu suja e rasgada na porta de
alguém. A mãe da analisante em questão acha bonito esse nome e dá à própria na
filha. Por conseguinte, a analisanda se coloca como mulher, pobre e
homossexual, o que introduz uma nova problemática. Em princípio, podemos
verificar que a posição feminina consiste em se fazer marcar com todas as
insígnias da deficiência. De acordo o último ensino de Lacan[8], esta é uma falsa
posição pois, ao conceber a mulher como não-toda, não é nas insígnias da
deficiência ou incompletude que ele vai se basear mas sim na estrutura do
infinito. Não se trata, então, de uma amputação do todo mas de uma
impossibilidade de formar o todo, o que lhe confere um caráter de
inconsistência.
Podemos também fazer uma
leitura de que o significante, porca, parece ser um deslizamento dos
significantes suja e rasgada, representando o seu nome próprio; o que nos
remete à concepção de Lacan de que o ser é produzido pelo significante,
evidenciando o que pode ser a redução simbólica.
Acrescentamos ainda que, ao
mesmo tempo em que o nome de M. é referido numa cadeia de significantes
femininos, há um apelido configurado por um significante masculino, pelo qual
ela é chamada em casa. Colocamos, então, em cena, o sujeito masculino para
dizer que o ser falante não é senão um significado introduzido pelo
significante e cada realidade se funda e se define por um discurso. A
realidade da prática masturbatória em M. se define por um discurso
fantasístico, no qual ela dizia atuar da mesma forma que o amigo da família em
relação a ela - portanto numa posição masculina – enquanto se pensava objeto
de desejo de vários homens – posição feminina. Aí já se descortina uma outra
questão.
O fato de pretender situar a
posição feminina como correlata a um gozo que não aquele dito sexual, liga-se
à maneira pela qual Lacan interpreta a noção freudiana de bissexualidade para
reformular a diferença entre a posição masculina e a posição feminina, a
respeito do sexo. Nessa ordem das coisas a feminilidade ainda se encontra
exaltada por traços de falta. E no prosseguimento da análise escutamos M dizer
que pela primeira vez conseguiu ter uma relação sexual completa. Foi com uma
mulher, pela qual diz nada ter sentido afetivamente. Mas era preciso que isso
acontecesse, para ela provar a si mesma que era homossexual; o que pode ser
tomado na dimensão de um acting out, sinalizando um modo possível de
dar conta do impossível de dizer.
Vale ressaltar que essa
necessidade de se provar homossexual tem mais a ver com a divisão do sujeito
do que com a “completude” da relação, sendo a escolha um ato determinado no
próprio discurso.
É interessante notar que na
prática de um ato, através do qual M. tem o objetivo de provar a si mesma que é
homossexual, surge um significante, “vulgar”, que assume no seu discurso, duas
direções: primeiro, lembra as palavras que ela ouvia na infância dos homens
que a assediavam; segundo, remete à “garota de programa”. Duas direções,
portanto, que convergem para a mesma posição: histérica.
A feminilidade se revela
como dividida diante da castração pois, o que se vê é que sob o significante
“mulher” um sujeito se desdobra mais do que se significa, evidenciando não
atingir o apanágio do macho, ou seja, a posse legítima daquilo que lhe cabe.
M., depois de praticar uma relação para se provar homossexual, enuncia numa
sessão de análise: “eu gosto de ser mulher”. Tudo isso pode se traduzir pelo
fato de que a mulher, em sua sexualidade, tem relação tanto com o significante
fálico que um homem pode encarnar para ela, quanto com o significante do
Outro, aquele que não existe ao nível do gozo. Mas a análise se encontra sob
impasse enquanto este sujeito não ceder ao gozo que poderia restar fixado à
repetição em ato e ao significante.
Esta divisão da posição
feminina não exerce apenas sua determinação no plano da identidade, mas também
no plano do gozo. Neste plano M. formula uma questão: Sou ou não sou
homossexual? Conforme o último ensino de Lacan, o modo de gozar próprio do ser
masculino é o sintoma e do ser feminino é a devastação pois esta, tanto quanto
o amor, é regida pelo princípio do não todo, no sentido do sem limite. No
plano da identidade, M. encarna uma possibilidade de resposta calcada numa
vacuidade que torna o ser feminino disponível a receber a sua identidade a
partir da fantasia do homem, no nível de objeto. Assim, a questão que se
coloca traz como resposta um sujeito que, numa posição histérica, indaga sobre
o enigma do gozo feminino, contingencialmente inscrito na inicial de seu nome:
um M. de mulher.
Referências Bibliográficas
[1]
Freud, S. “Sexualidade
feminina” (1925) e “Feminilidade” (1931) In: ESB - Obras Completas.
Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
[2]
Lacan, J. (1972/73) O
Seminário. livro 20: Mais Ainda. RJ: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 87 a 120.
[4]
André, S. O que quer uma
mulher? RJ: JZE, 1987, p. 213.
[5]
Miller, J.-A. O osso de uma
análise – número especial do Agente. Revista da Escola Brasileira de
Psicanálise/Bahia; 1998, p. 68.
[6]
Lacan, J. “Subversão do sujeito
e dialética do desejo no inconsciente freudiano” In: Escritos. RJ:
Jorge Zahar Editor, 1998. p. 807-842.
[7]
_____. (1972/73) Op. Cit., p. 87-104.
[8]
Miller, J.-A. “Uma partilha
sexual”. Em: Clique, Revista dos Institutos Brasileiros de
Psicanálise do Campo Freudiano. Belo Horizonte, no. 2, p. 20.
Bibliografia:
_______. Seminário 19: Ou Pior. Salvador (BA): Comissão de
publicação do Espaço Moebuis, 2003.
_______.”Seminário 23: O Sinthoma”. Texto estabelecido por
Jacques-Alain Miller. Em: Ornicar? (numero 6 ao 11). Tradução de
Mario Almeida. Salvador (BA), 2003.
CALMON SANTOS, A. S. – “Experiência de discurso e ato analítico”. Em:
Fernandes, A. H. e Calmon Santos A S. Questões Cruciais para a
Psicanálise. Salvador; Ed. UFBA, 2005.