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Nosso tema é a
repetição, o real, e a clínica psicanalítica, tema que
exploramos com base no Seminário 11, de Jacques Lacan, e
que vamos avançar incluindo algumas reflexões baseadas na
leitura do Seminário 23 intitulado Le Sinthome
(1975-1976). Seria tentador tomar como tema deste trabalho o
real, tão importante para nós que consta do título de nossa
dissertação; escolhemos tomar por assunto a repetição.
Esse tema precisou ser modulado ou permaneceria demasiado amplo
para nossos propósitos. Vamos tratar, neste trabalho, das
relações entre a repetição e o sexual. Para sua realização, ao
longo da qual estaremos referidos constantemente à distinção
entre tyché e automaton, introduzida por Lacan no
seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964/1993), percorreremos inicialmente a obra
de Freud, de modo que possamos estabelecer alguns pontos
centrais desta articulação e, em seguida, iremos nos referir a
Lacan, buscando escandir alguns momentos em seus seminários e
escritos que nos possibilitem discernir diferentes enfoques da
repetição em sua relação com o sexual, em especial no caráter
que este sempre reteve de real enquanto impossível. Tentaremos
discernir como Lacan trata este impossível em distintos momentos
do seu ensino. A partir deste trajeto pretendemos, finalmente,
tecer alguns comentários sobre a novidade introduzida por Lacan
através do conceito de sinthoma.
Apesar de ter
sofrido uma série de alterações, o conceito de repetição se faz
presente - mesmo que por vezes de modo não explícito - ao longo
de toda a obra de Freud, tomando por vezes a forma de algo da
ordem de um retorno ou de reprodução. A introdução de algo que
se repete, insiste, que não cessa em buscar se fazer dizer
deriva de uma apreensão da questão da temporalidade que difere
da introduzida por Descartes em seu cogito -
temporalidade composta por instantes independentes e sucessivos
(Descartes,
1641/1999, p. 285). Ora, desde o início de seu percurso clínico,
Freud se depara com manifestações que não são redutíveis a um
dado instante. Sua entrada no trabalho clínico, através da
escuta das histéricas, defronta-o com manifestações cujo sentido
exigia a referência a um momento outro, anterior, como causa de
seus sintomas. Desta maneira, Freud é levado a, juntamente com
Breuer, postular a ocorrência de uma cena traumática. A
impossibilidade de suas pacientes de reagirem adequadamente a
essas cenas engendraria seus sintomas que, de outro modo,
permaneceriam inexplicáveis. A idéia de uma cena traumática é
bastante indicativa desta temporalidade introduzida por Freud, o
que se evidencia ainda mais se confrontada à noção de Charcot de
agent provocateur:
"Mas a relação
causal entre o trauma psíquico determinante e o fenômeno
histérico não é de natureza a implicar que o trauma atue como
mero agent provocateur na liberação do sintoma, que passa
então a levar uma existência independente. Devemos assumir que o
trauma psíquico - ou, mais precisamente, a lembrança do trauma -
age como um corpo estranho que, muito depois de sua entrada,
deve ser considerado como um agente que ainda está em ação" (Breuer
& Freud, 1893/1996, p. 42).
Dito de outra
forma, o agent provocateur, para Charcot, deflagra
efeitos que lhe são extrínsecos. A concepção de trauma psíquico,
por sua vez, introduz a idéia de uma persistência de efeitos
oriundos de uma situação passada, porém ainda atuante - o que
enseja a famosa formulação de Freud e Breuer: “os histéricos
sofrem principalmente de reminiscências” (Breuer
& Freud, 1893/1996, p. 43). Os eventos que antecedem o
desencadeamento da histeria têm estatutos bastante diferentes:
em Charcot, uma antecedência processual; e em Freud, um caráter
irresoluto que os mantém em estado de suspensão.
Nesta
brevíssima incursão pelos “Estudos sobre a histeria” (1895/1996)
podemos extrair dois elementos que julgamos serem
característicos da implícita repetição[1]
freudiana anterior a 1914, quando de sua conceituação explícita
em Recordar, repetir e elaborar (1914/1996): a idéia de
uma persistência de algo do passado que não encontra seu
caminho em direção à consciência e que permanece em suspenso.
Esse caráter de insistência de algo irresoluto que, em sua
insistência em se fazer dizer, manifesta-se através do sintoma,
é o que estamos chamando aqui de repetição, visto que traz à
baila, ainda que de modo cifrado, uma situação ou contingência
do passado. Ainda no âmbito dos “Estudos sobre a histeria”,
podemos encontrar outro exemplo que se insere em nosso conceito
ampliado de repetição: a transferência, naquele momento definida
como incidência da representação patogênica recalcada nas
relações travadas entre médico e paciente, de modo que as
representações aflitivas tocadas no curso do trabalho
associativo de rememoração seriam transferidas para a figura do
médico. Em seguida, os conteúdos recalcados eram atualizados no
seio da relação médico-paciente sob a forma de pensamentos e
desejos dirigidos ao médico. Esta transferência será pensada,
neste momento, como uma 'falsa ligação'; falsa porque une um
afeto a uma representação que não lhe corresponde. Podemos
novamente afirmar que, ainda de modo lato, encontra-se aí
presente algo da ordem da repetição, visto que esta ligação
falsa reproduz – mesmo que não conscientemente - afetos,
atitudes e comportamentos para com o médico idênticos ou
análogos aos referidos à cena traumática.
Apesar do
abandono do método catártico e da introdução, em “A
interpretação dos sonhos” (1900/1996), de um sofisticado modelo
de psiquismo, o binômio que destacamos - suspensão e
persistência - perdurará nas concepções desenvolvidas por
Freud nos anos seguintes, articulado a diferentes - ainda que
não contraditórias - formulações. Podemos citar a analogia entre
sonho e sintoma neurótico em “A Interpretação dos sonhos”
(1900/1996), onde ambos são considerados realizações de desejos
infantis inconscientes, intimamente ligados ao que será
posteriormente chamado complexo de Édipo; também nos “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1996), onde
os sintomas são ditos a atividade sexual dos neuróticos, sendo a
sexualidade infantil recalcada marcada por um certo fracasso que
enceta isto que estamos chamando de suspensão. Freud o destaca
irônica e sutilmente, dizendo que "a normalidade da vida sexual
só é assegurada pela exata convergência das duas correntes
dirigidas ao objeto sexual e à meta sexual: a de ternura e a
sensual [...]. É como a travessia de um túnel perfurado desde
ambas as extremidades" (1905/1996, p. 196), identificando a
primeira ao que resta da sexualidade infantil, e a segunda a um
produto das transformações da puberdade. Ora, esta enunciação de
Freud expõe-nos - ainda que não claramente - o caráter falho,
manco, do sexual, visto que não é comum a perfuração de túneis a
partir das extremidades opostas de uma montanha. E não é difícil
perceber porquê; a probabilidade das perfurações se encontrarem
perfeitamente é muito, muito reduzida. Assim como o é, portanto,
a normalidade da vida sexual. Podemos, portanto, depreender daí
que há um resto que permanece disto que é da ordem do sexual.
Desejos introduzidos no seio da relação médico
paciente; desejos realizados no sonho e no sintoma; sintoma
consumando a vida sexual; um resto no sexual. Os exemplos que
demos até agora, tentando delimitar isto que chamamos de um
conceito ampliado de repetição, envolvem, em sua totalidade,
alguma referência ao sexual. O que temos, até aqui, é que algo
da ordem do sexual mantém-se em suspensão, num estado de
irresolução, insistindo em se fazer dizer, ainda que de modo
sempre falho e não-sintético - através do sonho, do sintoma.
Poderíamos afirmar que a repetição, em Freud, encontra-se sempre
em conexão com o sexual; seremos cautelosos, no entanto, e não o
afirmaremos tão categoricamente ainda. Nossa reserva se
justifica pelo fato de estarmos trabalhando com uma hipótese
nossa, e não com um conceito freudiano consagrado.
Nossa hipótese
se fortalece, contudo, ao referirmo-nos ao texto onde Freud fala
mais claramente sobre algo da ordem da repetição, ainda que não
a conceituando diretamente. Em “A dinâmica da transferência”
(1912/1996), Freud define a transferência como direção para a
figura do analista de investimentos libidinais insatisfeitos,
investimentos estes que recorrem a protótipos estereotípicos.
Estes, por sua vez, são moldes para um método específico de se
conduzir na vida amorosa, sendo constantemente repetidos no
decorrer da vida da pessoa. Temos que aqui, portanto, a
transferência é conceituada a partir da repetição, sendo esta
última tomada da mesma maneira que em nossa definição ampliada.
Além disso, podemos notar que repetição e transferência aparecem
em íntima articulação com o sexual, sendo ambas um efeito da
insatisfação libidinal.
Será apenas em
“Recordar, repetir e elaborar” (1914) que o conceito de
repetição será introduzido de forma autônoma, mais precisamente
sob o nome de compulsão à repetição. A repetição, agora,
dirá respeito à expressão, através da atuação, do que foi
esquecido, recalcado. Em outras palavras, aquilo que não é
admitido à consciência como lembrança, através da palavra, faz
valer sua força, mas através da atuação, dirigida ao analista -
o que explicita sua articulação à transferência. Assim, Freud
define a transferência como um fragmento da repetição, e a
repetição como "uma transferência do passado esquecido, não
apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos
da situação atual" (1914/1996, p. 166). Vemos, portanto, que
apesar de a repetição ser conceituada a princípio sem qualquer
referência à temporalidade - visto que sua característica mais
enfatizada é sua pertinência à esfera da atuação - é
posteriormente nela inscrita, através de sua definição como uma
posta em jogo do recalcado, dentro do campo da transferência.
Em 1920,
contudo, Freud propõe uma nova conceituação para a repetição.
Mais uma vez, sua motivação é eminentemente clínica. Como
dissemos anteriormente, a repetição era pensada como a
insistência do recalcado em se fazer expressar, cujo acesso à
consciência era barrado pelo recalque. Dissemos que isto se
devia à observância do princípio de prazer, uma vez que a
satisfação visada seria também sentida como desprazer, de modo
que o que fosse prazer para o sistema inconsciente ingressaria,
simultaneamente, na consciência como desprazer.
Freud se dá
conta, todavia, que sua prática clínica não mais chancela esta
posição, ao menos não integralmente. Sonhos que repetem
situações traumáticas; compulsões que conduzem imperativamente a
atividades que nunca levaram ao prazer, como a fracassada vida
sexual infantil, apontam para situações que não podem ser
compreendidas como submetidas ao princípio de prazer, nem mesmo
levando-se em conta a cisão do psiquismo. Ora, a equação
prazer/desprazer não dá conta do que não está relacionado ao
prazer, mesmo que este prazer não seja consciente. A partir
deste impasse, portanto, Freud empreende uma elaboração de seu
modelo de psiquismo com o intuito de dar conta destes fenômenos
até o momento enigmáticos.
Suas
investigações se iniciam através de algumas especulações sobre
algumas características do sistema perceptivo-consciente – ou
Pcpt.-Cs. Em primeiro lugar, afirma a necessidade de
situá-lo na linha fronteiriça entre o interior e o exterior, de
maneira a estar em contato com ambos, postulando em seguida que,
por causa da recepção dos estímulos externos, sua “face” que
para aí se volta deve ter uma certa resistência, de modo a não
ser avassalado pelas quantidades de estímulo.
As excitações
que por conta de sua suficiente intensidade sejam capazes de
atravessar este escudo protetor são ditas traumáticas. Por conta
do trauma, o princípio de prazer é colocado, ainda que
momentaneamente, fora de ação, pois a finalidade dos processos
disparados não é mais a de evitar o aumento de energia – batalha
já perdida – mas sim “dominar as quantidades de estímulo que
irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico, a fim de que
delas se possa então desvencilhar” (Freud,
1920/1996, p.40). Partindo desta hipótese, Freud busca explicar
o sonho traumático; sua insistência dever-se-ia ao fato de uma
grande soma de excitação afluir ao psiquismo, que por sua vez
não estaria preparado, através da angústia, para vincular
quantidades suficientes de excitação. Esta espécie de sonho
seria, conseqüentemente, uma tentativa de sujeitar
retrospectivamente o estímulo, despertando a angústia cuja
ausência abriu caminho para o desenvolvimento da neurose
traumática. Temos assim um exemplo de funcionamento do psiquismo
que não se submete ao princípio de prazer, ainda que não o
contradiga.
O resguardo
propiciado pela resistência da face externa do sistema Pcpt.-Cs.,
contudo, não é eficiente no que tange os estímulos provindos do
interior, de modo que as excitações internas atingem-no
diretamente e em quantidade não reduzida, dando origem a
sentimentos da série prazer-desprazer. Detenhamo-nos nos
desenvolvimentos acerca das excitações provindas do interior.
Nesta obra, Freud retoma uma antiga concepção de Breuer,
enunciada nos “Estudos sobre a Histeria” (1895), que
distingue dois tipos de estado no qual podem se encontrar as
excitações psíquicas: o investimento livremente móvel e o
investimento vinculado ou tônico. O primeiro, como seu nome
indica, flui livremente pelo psiquismo, pressionando no sentido
da descarga, e é característico do processo primário; o segundo,
por sua vez, decorre da ligação do primeiro a representações,
consistindo tal modificação na marca da ação do processo
secundário.
Dissemos,
anteriormente, que as excitações provenientes do interior
atingem o sistema Pcpt.-Cs. diretamente e em quantidades
não mitigadas, pelo fato de não se interpor entre eles um escudo
protetor, ao contrário do que ocorre no limiar entre o sistema
Pcpt.-Cs e os estímulos externos. Por este motivo, segundo
Freud, é lícito supor que as excitações provindas do interior
possuam “preponderância em importância econômica e amiúde
ocasionem distúrbios econômicos comparáveis às neuroses
traumáticas” (1920/1996, p. 45). Conseqüentemente, concerniria
aos estratos mais elevados do psiquismo – ou seja, àqueles
regulados pelo processo secundário – a tarefa de vincular as
excitações que atingem o processo primário. O fracasso em
vincular as excitações provocaria um distúrbio análogo a uma
neurose traumática, vinculação esta que é condição prévia para a
dominância do princípio de prazer, que não diz respeito à
sujeição de excitações.
O traumático,
a causa do desprazer, portanto, não mais se reduz a desejos
insatisfeitos que ecoam no inconsciente, nem a representações
que são inconciliáveis com o eu, nem tampouco a uma satisfação
perdida que se busca reencontrar – o próprio manancial de
excitações, ou seja, o pulsional, é traumático, afirmação esta
que não refuta as anteriores acerca deste tópico. Desta maneira,
a repetição se apresenta para nós como uma tentativa retroativa
de sujeitar isto que é inassimilável, irredutível à
representação, e que por isso mesmo não pode ser postulado como
da ordem do sentido. Temos assim uma repetição que se refere a
algo que está para além de qualquer significação possível, que
insiste, clamando por vinculação, mas que espicaça qualquer
arranjo simbólico sujeitado pelo processo secundário. Vemos,
portanto, reiteradas nossas hipóteses acerca da repetição em
Freud; em 1920, mantém-se presente a insistência, bem como uma
articulação com algo do sexual que permanece em suspenso. Agora,
todavia, Freud radicaliza esta suspensão, afirmando este resto
do sexual como irredutível. Não é por outro motivo, diga-se,
que, anos mais tarde, em “Análise terminável e interminável”
(1937/1996) Freud estabelecerá a atitude para com o complexo de
castração como obstáculo maior ao fim de análise.
De Freud a Lacan: a repetição, o sexual e o real
Podemos
afirmar que, ao longo dos escritos e seminários de Lacan, o
sexual comparece de dois modos: como desejo e como gozo. Lacan,
leitor de Freud, não deixa de, desde o início, articular
precisamente a repetição e o sexual; todavia, tal como em Freud,
a repetição passará por diferentes momentos e estatutos em sua
obra.
Levando em
consideração aquilo que Lacan estabeleceu como seu ensino - ou
seja, a partir de 1953 - podemos dizer que até 1959 o sexual de
que se trata em Lacan é o desejo. Neste momento, destacaremos
quatro textos de maior relevância para nossa articulação
específica: os escritos “A Instância da letra no inconsciente ou
a razão desde Freud” (1957/1998) e o “Seminário sobre A Carta
Roubada” (1955/1998), bem como duas aulas do seminário O eu
na teoria de Freud e na técnica da psicanálise
(1954-55/1985).
Em 1953, a
proposta de Lacan é a de restituir à psicanálise seu campo
específico - a linguagem. Lacan é categórico ao afirmar que os
conceitos psicanalíticos só adquirem pleno sentido ao “se
orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da
fala” (1953/1998, p. 247). Nesta época, Lacan já havia
introduzido a noção dos três registros, de modo que sua aposta
na fala é solidária de uma distinção entre simbólico - a
linguagem - e o imaginário - noções desenvolvimentistas,
adaptativas, o inefável das cargas afetivas. Não é por outro
motivo, portanto, que as primeiras intervenções de Lacan no que
tange a repetição concentrem-se em distinguir uma repetição
estrutural, simbólica, inconsciente, que não se confunda com o
imaginário, com relações intersubjetivas, com uma espécie de
voluntarismo.
Desta forma,
tencionando evidenciar a faceta simbólica da repetição, Lacan
lança mão d'A carta roubada, conto de Edgar Alan Poe, no
qual o detetive Dupin discorre sobre um menino que sempre
derrotava seus oponentes num jogo de adivinhação onde deveria
dizer se seu oponente escondia um número par ou ímpar de pedras
na mão. A explicação para sua seqüência de vitórias era simples:
o rapaz dizia que lhe bastava colocar-se no lugar de seus
adversários, tentando raciocinar como eles, de modo a antever
sua seqüência de jogadas. Este modo de jogar fundamenta-se na
aposta numa intersubjetividade, uma vez que se baseia em
raciocinar como o outro, assumindo que o outro pensa, sente e
age como si mesmo. Dizer isso, contudo, não implica nenhuma
crítica; a intersubjetividade não constitui falta moral. Possui,
todavia, seus limites; e Lacan expõe uma situação na qual esta
estratégia não é de nenhuma valia: um jogo contra uma máquina
capaz de jogá-lo. A intersubjetividade deve dar lugar ao que
Lacan chama de caminho logicizante - que passa pela combinatória
das respostas possíveis da máquina, ou seja, a linguagem.
A combinatória
das respostas da máquina, contudo, pressupõe a análise das
probabilidades de suas respostas, que por sua vez, diz-nos
Lacan, possui como antecedente lógico a introdução de um símbolo
no real – pois do ponto de vista deste último, em cada lance
pode-se igualmente ganhar ou perder, de modo que nem o lance que
o precedeu nem o que o sucedeu guardam quaisquer ligações com o
resultado obtido. Logo, ganhar várias vezes seguidas, perder o
mesmo número de partidas, ou ganhar e perder alternadamente,
tudo isto é indiferente se não tomarmos os lances como uma
espécie de ordenação encadeada. A amarração dos lances entre si,
por conseqüência, pressupõe a intervenção do simbólico. Ou seja,
é a partir daí que consideraremos que as chances de ganhar ou
perder num dado lance são de 50%, mas que essas não são as
chances de ganhar ou perder três, quatro ou mais vezes seguidas;
cremos que a cada lance que adicionamos, a chance de ganharmos –
em seqüência – diminuirá.
Diremos, pois,
que a ação do simbólico sobre o real consiste em marcar uma
escansão na continuidade do real. O jogo da máquina, nos dirá
Lacan, não ocorre por acaso, tampouco consiste em traçar um
perfil psicológico de seu oponente – o que nos remeteria à
intersubjetividade. Ele se baseia no agrupamento dos lances em
três tipos: (1) seqüência de três jogadas do mesmo tipo; (2)
seqüência de duas jogadas do mesmo tipo; ou (3) alternância de
jogadas (Lacan, 1954-55/1985, p. 243). Ora, podemos ver que já aí,
operando por esta lógica, há uma determinada padronização de
jogadas. Pois após uma seqüência tipo (1) não poderá vir uma do
tipo (3), e vice-versa, uma vez que esta última pressupõe uma
alternância de resultados inexistente na seqüência de três
resultados iguais. Cumpre lembrarmos que os resultados não
precisam ser tomados por seu valor de face; 'par' e 'ímpar'
poderiam ser quaisquer outras variáveis que se opusessem,
podendo ser facilmente traduzidas pela oposição de sinais (+) e
(-).
Pensando na
constituição subjetiva a partir da linguagem em relações com os
três registros – simbólico, imaginário e real – temos aqui
expresso que a enunciação segue leis de possibilidade e
impossibilidade que são intrínsecas à sua estruturação, não
estando submetida à volição consciente. Tomando o par (+) (-)
como o par presença e ausência estabelecido pela oposição
Fort-da, podemos articular estas sucessões à cadeia
significante. Assim, podemos dizer que a repetição, neste
momento, se situa do lado do simbólico, engendrada pelas
escansões que este produz no real, nada tendo a ver com as
coordenadas egóicas do imaginário. Cumpre ainda notarmos uma
certa dimensão de perda estabelecida pela ação do simbólico
sobre o real, visto que as escansões introduzem uma
descontinuidade no que anteriormente havia sido pura
continuidade.
Lacan
continuará seu comentário do conto de Poe explicitando como cada
um dos personagens que entram na posse da carta que dá título à
narrativa tem sua posição subjetiva determinada pela posse da
carta/letra (lettre). Eles poderiam, em vez de serem
enumerados - Dupin, o Rei, a Rainha, etc. - ser definidos a
partir da determinação da necessidade do encadeamento simbólico,
o que adquire pleno sentido ao pensarmos as duas cenas de A
Carta Roubada como constituintes de uma repetição. Lacan,
neste momento, associa esta à insistência da cadeia
significante. Em outras palavras, a posição dos personagens do
conto não será regida por seus dons inatos, por sua posição
social, mas sim pelo percurso de um significante, a carta/letra
- tal como o é para o sujeito em sua relação com o inconsciente.
Deste modo, vemos como Lacan busca introduzir uma distinção
entre o outro semelhante, das relações intersubjetivas e
imaginárias, de um Outro simbólico, aqui descrito como absoluto
(1954-55/1985, p. 223). A referência ao esquema L põe em jogo,
por sua vez, o que está em jogo na repetição simbólica: a
posição subjetiva frente ao desejo do Outro, em sua demanda de
reconhecimento a este último. Temos, portanto, que a inércia
simbólica está subordinada ao desejo.
Cumpre
destacarmos, ainda, um desenvolvimento posterior da idéia de
inércia simbólica: o conceito de metonímia, tomado de empréstimo
a Roman Jakobson, e que designa um dos modos de articulações, o
outro sendo a metáfora. A metonímia está ligada à idéia de um
deslizamento de sentido entre significantes, numa conexão de
palavra a palavra, num funcionamento associado ao constante
fluir do desejo. A metonímia, segundo Lacan, estende eternamente
seus trilhos para o desejo de outra coisa (Lacan,
1957/1998, p. 522).
Desta maneira,
o que impede o advento de uma significação última é o desejo,
pois sua característica é a de ser sempre desejo de outra coisa.
Frente à equivocidade da linguagem – ou seja, ao fato de ela
sempre poder expressar algo completamente diverso do que diz -
cumpre indicar o lugar do sujeito na busca da verdade
(1957/1998, p. 508), verdade esta que deve ser entendida como
efeitos de verdade produzidos pela letra, e não verdades
interiores do espírito do homem. Esta dimensão da verdade já era
destacada desde o comentário à Carta Roubada, no qual
afirma que a posição e destino dos personagens do conto de Poe
não se constituem por suas particularidades individuais, nem por
seus percursos na existência – são, antes, definidos em relação
à carta/letra (lettre) (1954-55/1985, p. 247-248). Apesar
de não haver referência direta à repetição em “A instância da
letra no inconsciente”, julgamos lícita nossa articulação, uma
vez que o deslizamento metonímico não é aleatório, devendo
obedecer às mesmas leis estruturantes de possibilidade e
impossibilidade por nós destacadas no comentário de Lacan à
Carta roubada.
Vimos, nestes
dois exemplos, como a repetição é articulada ao desejo,
manifestando-se no funcionamento da cadeia significante. Aqui, o
impossível do sexual manifesta-se analogamente ao eterno
deslizar metonímico; em outras palavras, o impossível está do
lado de significá-lo em sua integralidade, pois há sempre algo
que escapa à significação. De certa maneira, e não sem ousadia,
podemos dizer que o impossível do sexual, neste momento,
situa-se antes do lado de um excesso, que sempre escapa de ser
sujeitado numa significação última, deslizando incessantemente
pelos significantes que compõem a cadeia.
Em 1959,
contudo, Lacan introduzirá algo que faz barra a este puro fluir,
bem como ao desejo. Para tanto, irá buscar no “Projeto para uma
Psicologia Científica” (1895/1996), de Freud, um conceito que
jamais tornou a aparecer, especialmente sob este nome, na obra
publicada deste último: o conceito de das Ding.
Das Ding,
no “Projeto”, aparece como um componente do complexo perceptivo,
uma parte constante – em oposição aos atributos, cambiantes –
inassimilável e incompreensível (Freud,
1895/1996, p. 380, 421, 439). Lacan, no seminário sobre A
Ética da Psicanálise, trabalhará a posição de das Ding
em relação ao par de representações estabelecidos no artigo de
Freud “O Inconsciente” (1915/1996): a representação de coisa (Sachvorstellung)
e a representação de palavra (Wortvorstellung). Neste
artigo, Freud situa a representação de palavra no lado do
sistema pré-consciente, situando a representação da coisa no
inconsciente (p. 206). Ou seja, para haver a representação
consciente, seria necessário abranger tanto a representação de
coisa quanto a de palavra. Deste modo, podemos ver como, segundo
Lacan, palavra e coisa (Sache) formam um par; a coisa é o
produto da ação humana enquanto governada pela linguagem, o que
quer dizer que é a palavra que a destaca e a faz nascer (Lacan,
1959-60/1997, p.61). Das Ding, contudo, se situa em outro
lugar.
Retomando os
termos do “Projeto”, temos que o processo perceptivo não tem,
primordialmente, qualquer função de produção de conhecimento em
si, mas sim a de verificar as condições – ou seja, distinguir
percepção de lembrança – para dar início ou não à descarga
energética, visando o prazer e a evitação do desprazer (Freud,
1895/1996, p. 377-380). Deste modo, a parte variável do complexo
perceptivo constituirá as representações em torno das quais
poderá operar o jogo do prazer e do desprazer. Como podemos
observar, das Ding não toma parte nesta dinâmica; pois,
enquanto componente inassimilável e que não pode ser apreendido,
não ingressa no psiquismo sob forma de representação.
Lacan dirá que
das Ding é o fora-do-significado, é o que, lógica e
cronologicamente, “se apresenta, e se isola, como o termo de
estranho em torno do qual gira todo o movimento da
Vorstellung, que Freud nos mostra governado por um princípio
regulador, o dito princípio do prazer” (1959-60/1997, p. 76),
uma função primordial que engendra a gravitação das
Vorstellungen (representações) inconscientes.
O que das
Ding vem instaurar, dentro das propostas de Lacan, é a idéia
de que a cadeia significante – ou a estrutura de linguagem – não
é toda significante; há algo que está do lado de um impossível,
impossível de saber, de dizer, mas que ao mesmo tempo não se
reduz ao infindo fluir metonímico de significante a
significante. Das Ding, portanto, introduz propriamente a
questão do real como impossível de apreender, de significar,
ressaltando a dimensão de que há algo que, como linguagem, falta
à própria estrutura da linguagem. O impossível se faz presente
não mais pelo lado do excesso, mas pela via da falta: esta
ausência primordial em torno da qual orbitam os significantes.
Ora, se o
desejo se articula ao fluir da cadeia significante, parece
estabelecer-se uma incompatibilidade entre sua dinâmica e o
vazio fundamental de das Ding; a barreira à significação
se caracteriza não somente por um excesso, como dissemos antes,
mas também por uma falta, por algo que não é significável. Em
outras palavras, o conceito de desejo não mais dá conta,
sozinho, disto que é da ordem do sexual.
Estas são as
exigências que conduzem Lacan a formular o conceito de gozo.
Neste momento, o gozo é articulado por Lacan à transgressão, e
das Ding, estando à parte do circuito do desejo e
ocupando posição central no tocante ao gozo, é dito o bem
supremo, a mãe, um bem proibido (1959-60/1997, p. 90). A
transgressão, portanto, traveste-se de meio de gozo, mas não é
um acesso a ele, não enquanto gozo do objeto incestuoso. Temos
aqui, portanto, uma apresentação do gozo que o estabelece de
modo monolítico, hermético.
Fizemos este
pequeno desvio em nosso tema para tratar, em largas linhas, da
introdução do conceito de gozo na obra de Lacan. Retomaremos o
fio da meada tratando do seminário sobre Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise (1964/1993), no qual Lacan
desenvolve este conceito em articulação à repetição. Como vimos,
nos seminários sobre O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise (1954-55/1985) e A carta roubada
(1955/1998), Lacan define a repetição como insistência da cadeia
significante, o que articulamos ao caráter metonímico do desejo.
Neste seminário, esta concepção é complexificada, de modo que a
repetição vem a ser dividida em autômaton e tiquê.
O autômaton estaria bem próximo de suas teorizações
iniciais, concernindo à repetição dos significantes, ou seja, o
automatismo de repetição, “o retorno, a volta, a insistência dos
signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio de prazer”
(1964/1993, p. 56). O autômaton, portanto, está em íntima
ligação com a cadeia significante, situando-se do lado do
simbólico ou dito de outra forma, do sentido e da significação.
De modo a
podermos explicitar adequadamente a novidade introduzida pela
noção de tiquê, nos estenderemos um pouco mais na questão
da repetição significante e do sentido. Para tanto, lançaremos
mão do conceito de alienação desenvolvido neste mesmo
seminário.
Logo nas
primeiras frases da aula dedicada à alienação, Lacan faz-nos
saber que em relação à entrada do inconsciente opõem-se dois
campos, o do sujeito e o do Outro. Dando um passo a mais,
afirma: “o Outro é o lugar em que se situa a cadeia do
significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do
sujeito” (1964/1993, p. 193-194). Isto nos remete a uma outra
questão central no ensino de Lacan. Em “Subversão do sujeito e
dialética do desejo no inconsciente freudiano”, Lacan nos
fornece a tese de que o significante representa o sujeito para
outro significante (1960/1998, p. 833); o que nos apresenta o
fato de que o sujeito não pode se fazer representar diretamente
no campo do Outro, somente por intermédio de um significante.
Ora, como vimos, o Outro é onde se encontra a cadeia
significante, da qual depende o sujeito para se fazer
representar; estabelece-se aqui então uma falta “pelo fato de
que o sujeito depende do significante e de que o significante
está primeiro no campo do Outro” (1964/1993, p. 194-195). Ou
seja, o sujeito em sua representação está sempre em falta; pois
sempre há um resto que não é representado no campo do Outro.
Lacan nos
chama a atenção para o fato de que o significante, ao surgir no
campo do Outro, faz surgir o sujeito de sua significação.
Notemos, pois, que Lacan não toma o sujeito como algo dado, que
possa se equiparar ao vivo; além disso, é preciso tirar daí a
conseqüência de que o sujeito, assim pensado, torna-se
desprovido de substância, dependendo do significante para ser
representado – em outras palavras, o sujeito só pode advir no
campo do Outro, lugar onde não pode se fazer representar em seu
ser. Há aí, contudo, ainda mais a se dizer em relação ao
estatuto do sujeito assim representado: pois ao fazer-se
representar no campo do Outro por um significante, o sujeito
fica reduzido ao significante, petrificado nisto que o
representa, que pode ser articulado ao fechamento do
inconsciente – ou seja, sua obturação pelo a. A isto
Lacan, tomando de empréstimo um termo de Jones, chamará de
afânise, ou fading, do sujeito, o apagamento de seu ser.
Em outras
palavras, o sujeito não se faz representar sem uma perda; pois,
se de um lado se representa através do significante, no campo do
Outro, como sentido, por outro aparece como afânise – ou seja,
se o ser é escolhido, o sujeito desaparece, caindo no não-senso;
por outro lado, se o sentido é escolhido, “o sentido só subsiste
decepado dessa parte de não-senso que é [...] o que constitui na
realização do sujeito, o inconsciente” (1964/1993, p.200). Temos
portanto evidenciada a relação entre a repetição significante -
o autômaton - e o sentido; pois a insistência da cadeia
significante, no que é veículo para representar o sujeito para
outro significante, não pode fazê-lo senão por essa via -
forçado a se fazer representar por um significante-mestre
designado pelo Outro.
Dito de outra
maneira, o sujeito, para constituir-se propriamente enquanto
tal, é levado à escolha forçada do sentido em detrimento do ser,
sentido este recebido do Outro sob a forma de um outro
significante (S2) que incide sob o significante que o
representa, o significante mestre (S1). Pois o Outro,
apesar de ser o lugar do tesouro dos significantes, o campo do
saber, também a ele falta alguma coisa, que o barra – e que,
portanto, engendra a emergência do desejo do Outro, desejo que
demarca dois níveis da linguagem: o enunciado e a enunciação, o
que se diz e o que se quer dizer. Mais precisamente, podemos
escandir estes dois níveis em enunciado – significante provindo
do Outro – e enunciação – desejo do Outro. Esta escansão é o que
permite a pergunta, que se encontra para além do sentido puro:
“ele me diz isso, mas o que é que ele quer?” (1964/1993, p.
203).
Como dissemos,
o sujeito não se faz representar sem um resto - que Lacan chama
de não-senso, ou seja, aquilo que não se faz representar pelo
sentido. Deste modo, estabelece-se uma perda para o sujeito, de
natureza sexual, constituindo aquilo de sexual que não pode se
representar no Outro. Esse resto, não-significantizável, dito
uma falta real (1964/1993, p. 195), Lacan já o havia enunciado
em seu seminário do ano anterior (1962-63/2005): é o objeto a.
A partir dessa referência, podemos compreender melhor as
afirmações de Lacan a respeito da tiquê: é o reencontro
do real, com um real que sempre escapa, posto que não pode ser
apreendido nem reduzido ao sentido. Ou seja, o que se repete é
este quê de não-senso, que resiste à representação subjetiva via
significante. Destaca-se assim a distinção do objeto a
metonímico e agalmático do seminário sobre A transferência
(1960-61/1992) e o objeto a causa de desejo do seminário
A angústia (1962-63/2005); podemos falar agora do objeto
a como articulação do simbólico e do real, como
condensador de um gozo possível. Temos, assim, que autômaton
e tiquê não se encontram em contigüidade, mas se
imbricam agudamente. Talvez pudéssemos mesmo dizer que a
tiquê floresce dos restos do autômaton - sem que nos
fosse facultado, contudo, estabelecer antecedência lógica ou
cronológica a qualquer um dos dois.
A partir da
introdução do objeto a como causa de desejo, e de sua
inscrição no sexual sob diferentes rubricas - o olhar, a voz, o
seio, as fezes, o nada - temos uma certa elementarização do
gozo, em contraste ao gozo total interdito exposto no seminário
sobre a Ética da psicanálise (1959-60/1997). O impossível
do sexual não se trata mais apenas da inadequação metonímica
entre desejo e objeto visado, tampouco do objeto interdito
impossível; o impossível é o do próprio gozo, tão somente
parcial, como as próprias pulsões, que não se unificam numa
totalidade coerente. Logo, a tiquê, a insistência do que
não é representável, significável, nem traduzível em saber,
aponta para esta faceta do sexual que participa das mesmas
características e, portanto, não se articula no plano da
dialética do desejo, apesar de não lhe ser externo.
Mostramos, na
seção anterior, a distinção introduzida por Lacan entre tiquê
e autômaton, situando o gozo do lado da primeira, e o
desejo do lado da segunda. Além disso, expusemos a íntima
conexão entre o autômaton e o significante, afirmando
ainda que a tiquê diria respeito a uma repetição que
estaria relacionada ao objeto caído da articulação significante
- o objeto a. Ao procedermos desta maneira, estabelecemos
uma separação bastante distinta entre gozo e significante,
situando aquele no fora do significante, naquilo de que o
significante não dá conta. Anos depois, em O Avesso da
psicanálise (1969-70/1992), Lacan retornará ao tema da
repetição, articulando-o diretamente ao significante. De início,
Lacan exclui qualquer possibilidade de um "dualismo de
repetição" ao afirmar categoricamente: é o gozo que necessita da
repetição. Adiciona, ainda, algo relevante: que na repetição
produz-se algo que é defeito, fracasso. E este é, diz Lacan, o
pano de fundo da repetição; pois "em função de ser expressamente
- e como tal - repetido, de ser marcado pela repetição, o que se
repete não poderia estar de outro modo, em relação ao que se
repete, senão em perda" (1969-70/1992, p. 44). Em outras
palavras: na própria repetição há um desperdício de gozo.
Neste sentido,
podemos articular o gozo ao objeto perdido, conforme proposto
por Freud; e as tentativas do sujeito de reencontrá-lo são
marcadas por uma falha, uma falta, uma vez que o objeto
reencontrado é sempre distinto do buscado. Dito de outra forma,
nunca se encontra o que se procura - o que nos remete à já
mencionada parcialidade do gozo, mediado pelo objeto a.
Lacan já havia
adiantado, contudo, que gozo e saber se relacionam, colocando o
primeiro como limite do segundo - o que não podemos deixar de
relacionar à concepção do sexual como aquilo que não se faz
representar como sentido pelo significante. O saber, neste
seminário, é definido como bateria significante (S2)
estruturada como saber. O S1 subtraído a esta rede de
significantes, operação que torna a representação do sujeito
possível, estabelece, como diz Lacan, uma "irrupção de gozo"
(1969-70/1992, p. 73). A subtração do S1 da bateria
organizada S2 - que é outra maneira de designar o
traço unário - é, portanto, um momento inaugural, da irrupção do
gozo.
A repetição,
portanto, é marcada por sua relação com este momento inaugural
e, como sabemos, também por uma perda, um desperdício. Assim, no
lugar dessa perda, surge o objeto a, de modo que o saber
trabalhando produz uma entropia, o que pode ser traduzido como a
quantidade de desordem num sistema. Ou seja, na relação entre
traço unário e saber, produz-se um resto que não se coaduna com
suas leis, que não tende à homeostase. Logo, a operação
discursiva - operação significante por excelência - enceta o
gozo, e seu próprio desequilíbrio, visto que gera este resto
inassimilável e irredutível.
Que haja
repetição, contudo, nos dá testemunho de algo mais: de que há um
gozo possível, que se goza do significante, mas que há um gozo a
se recuperar - que Lacan chama mais-de-gozar. E daremos nosso
próximo passo orientados nestas duas proposições: a de que há um
mais-de-gozar a se recuperar, e a de que se goza da repetição
significante - repetição no discurso - e que esta constitui uma
tentativa de recuperação do mais-de-gozar.
Até aqui
falamos de diversas maneiras sobre a articulação entre a
repetição e o impossível do sexual, sob diferentes maneiras -
pelo viés do desejo que não pode ser satisfeito, pelo gozo cujo
objeto é interdito, pela impossibilidade de representação do
sexual na representação do sujeito. No entanto, o fato de se
gozar da repetição significante e a tentativa de recuperação do
mais-de-gozar nos levam a uma outra tese de Lacan: a de que
não há relação sexual. Neste momento, o impossível do sexual
não se reduz mais a algo do sujeito que não se faça representar
junto ao Outro; o impossível agora inclui o impossível da
relação sexual, fundada numa dissimetria profunda entre homem e
uma mulher - tanto mais radical quanto lembremos que "não exista
a mulher, a mulher não é toda" (1972-73/1985,
p.15). Esta inexistência da relação, por sua vez, é o que nos
faz "falar como papagaios, a cantar o discursocorrente, a
fazer girar o disco, esse disco que gira porque não há
relação sexual" (p. 49). Podemos articular esta frase a
nossas conclusões precedentes e concluir que o que está em jogo
na repetição, o mais-de-gozar a recuperar, passa pela
inexistência da relação sexual.
Apesar de não
invalidar as formulações anteriores sobre o impossível do
sexual, o estabelecimento de que não há relação sexual demanda
modificações em alguns aspectos da obra de Lacan, bem como a
construção de novos conceitos. Talvez o principal deles, e do
qual falaremos agora, seja o conceito de sinthoma. O
sinthoma, diz-nos Lacan, se engendra a partir da
não-naturalidade da relação sexual, o que demanda uma nomeação.
Assim, o sinthoma se forja a partir da carência da
relação sexual, sob uma forma que não é qualquer uma. O
impossível do sexual procede também da dissimetria dos corpos,
do gozo fálico - masculino - e o gozo feminino, que não pode ser
modalizado, uma vez que não existe exceção identificatória para
cerni-lo. Vemos, assim, que o sexual como impossibilidade
imanente ao sujeito não é abandonado; mas mesmo este é
complexificado pela colocação em jogo da diferença sexual.
Desta maneira,
dirá Lacan, o Nome-do-Pai é uma maneira de nomear a diferença
sexual; e, neste sentido, dirá que o pai é um sinthoma.
Recordando “De uma questão preliminar a todo tratamento possível
da psicose” (1957-58/1998), temos que o Nome-do-Pai barra a
relação entre o simbólico e o imaginário, dando origem à
significação fálica. Como sinthoma, sua função permanece
similar, mas complexificada: o sinthoma, agora, é o quarto nó,
que vem enodar borromeanamente real, simbólico e imaginário.
Para além do Nome-do-Pai, não se estende somente o horizonte da
carência: é isto que Lacan argumenta, debruçando-se sobre os
escritos de Joyce, para quem a escrita servia como sinthoma.
Assim, Joyce, encarregado do pai, é Pai de seu nome, ao nomear a
diferença sexual, em vez de ser nomeado pelo Pai (como ocorreria
no caso da operação do Nome-do-Pai e da identificação ao Pai).
Podemos, por
esta via, desdobrarmos mais um aspecto do impacto da introdução
no sintoma na relação do sexual e do corpo; pois se até então a
consistência do corpo era imaginária – tributária da imagem do
corpo, de um corpo como “saco de órgãos” – neste novo contexto
Lacan apontará a possibilidade de o sinthoma, através do
enodamento borromeano, vir dar uma consistência não-imaginária
ao corpo. Cumpre ressaltarmos, portanto, que a inclusão do corpo
enquanto suporte da diferença sexual não implica numa
naturalização da questão sexual, no sentido em que há eco do
significante no corpo, e que o próprio sinthoma possui um
caráter artificioso.
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23: o sinthoma. Transcrição não-oficial.
Notas:
[1]
Como um apoio provisório, lançaremos mão das noções
vernaculares de repetição que, como muitos dos conceitos
construídos por Freud, apóia-se num termo extraído da
linguagem corrente (Wiederholung, em alemão) e
que, portanto, evoca espontaneamente uma série de imagens a
seu respeito que, se certamente não são totalmente
enganosas, não dão conta da especificidade do conceito -
especificidade esta que, como veremos, é por si só um tema
espinhoso. À guisa de introdução, citaremos duas definições
dicionarizadas do termo, ressaltando que, em ambas as
fontes, o verbete repetição obtém seu significado em grande
parte por remissão a repetir. As definições deste último,
retiradas do Dicionário Aurélio (Ferreira,
1999, p. 1745) e do Wahrig deutsches Wörterbuch
(edição eletrônica), são quase idênticas: neste, dizer ou
fazer novamente (noch einmal sagen oder tun); e
naquele, tornar a fazer (ou a dizer, a usar, etc.). Partindo
daí, tomaremos a repetição como 'aquilo que se faz (ou se
diz) novamente', 'aquilo que se torna a fazer (ou dizer, ou
usar, etc.).
|