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 O REAL, A REPETIÇÃO E O SEXUAL

 
 

 

Marcos Eichler de Almeida Silva
Curso de Psicologia na UFF
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ
marcoseichler@gmail.com.br

 

Resumo

Nossa proposta consiste em articular a repetição e o sexual, no que concerne ao real como impossível. Destacaremos o caráter problemático – e muitas vezes paradoxal e aporético – do sexual, visto que, estando este no centro de toda análise, seus desdobramentos incidirão diretamente sobre a clínica possível. Cumpre ressaltarmos, portanto, que a inclusão do corpo enquanto suporte da diferença sexual não implica numa naturalização da questão sexual, no sentido em que há eco do significante no corpo, e que o próprio sinthoma possui um caráter artificioso.

Palavras chave: repetição, sexual, real, sintoma

 

   
 

 

The real, the repetition and the sexual

 

Abstract

Our purpose is to articulate the sexual and the repetition, in relation to the real as the impossible dimension. We will highlight the contradictory and problematical aspect of the sexual dimension, which are at the center of the psychoanalytical process, and their developments are related to any possible clinical results. It is worth highlighting that including the body as a support for the sexual difference does not imply in a naturalization of the sexual matter, as there is an echo of the significant on the body and the symptom itself has an artificial nature.

Keywords: repetition, sexual, real, symptom

 

 

Nosso tema é a repetição, o real, e a clínica psicanalítica, tema que exploramos com base no Seminário 11, de Jacques Lacan, e que vamos avançar incluindo algumas reflexões baseadas na leitura do Seminário 23 intitulado Le Sinthome (1975-1976). Seria tentador tomar como tema deste trabalho o real, tão importante para nós que consta do título de nossa dissertação; escolhemos tomar por assunto a repetição. Esse tema precisou ser modulado ou permaneceria demasiado amplo para nossos propósitos. Vamos tratar, neste trabalho, das relações entre a repetição e o sexual. Para sua realização, ao longo da qual estaremos referidos constantemente à distinção entre tyché e automaton, introduzida por Lacan no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1993), percorreremos inicialmente a obra de Freud, de modo que possamos estabelecer alguns pontos centrais desta articulação e, em seguida, iremos nos referir a Lacan, buscando escandir alguns momentos em seus seminários e escritos que nos possibilitem discernir diferentes enfoques da repetição em sua relação com o sexual, em especial no caráter que este sempre reteve de real enquanto impossível. Tentaremos discernir como Lacan trata este impossível em distintos momentos do seu ensino. A partir deste trajeto pretendemos, finalmente, tecer alguns comentários sobre a novidade introduzida por Lacan através do conceito de sinthoma.

 

Apesar de ter sofrido uma série de alterações, o conceito de repetição se faz presente - mesmo que por vezes de modo não explícito - ao longo de toda a obra de Freud, tomando por vezes a forma de algo da ordem de um retorno ou de reprodução. A introdução de algo que se repete, insiste, que não cessa em buscar se fazer dizer deriva de uma apreensão da questão da temporalidade que difere da introduzida por Descartes em seu cogito - temporalidade composta por instantes independentes e sucessivos (Descartes, 1641/1999, p. 285). Ora, desde o início de seu percurso clínico, Freud se depara com manifestações que não são redutíveis a um dado instante. Sua entrada no trabalho clínico, através da escuta das histéricas, defronta-o com manifestações cujo sentido exigia a referência a um momento outro, anterior, como causa de seus sintomas. Desta maneira, Freud é levado a, juntamente com Breuer, postular a ocorrência de uma cena traumática. A impossibilidade de suas pacientes de reagirem adequadamente a essas cenas engendraria seus sintomas que, de outro modo, permaneceriam inexplicáveis. A idéia de uma cena traumática é bastante indicativa desta temporalidade introduzida por Freud, o que se evidencia ainda mais se confrontada à noção de Charcot de agent provocateur:

"Mas a relação causal entre o trauma psíquico determinante e o fenômeno histérico não é de natureza a implicar que o trauma atue como mero agent provocateur na liberação do sintoma, que passa então a levar uma existência independente. Devemos assumir que o trauma psíquico - ou, mais precisamente, a lembrança do trauma - age como um corpo estranho que, muito depois de sua entrada, deve ser considerado como um agente que ainda está em ação" (Breuer & Freud, 1893/1996, p. 42).

Dito de outra forma, o agent provocateur, para Charcot, deflagra efeitos que lhe são extrínsecos. A concepção de trauma psíquico, por sua vez, introduz a idéia de uma persistência de efeitos oriundos de uma situação passada, porém ainda atuante - o que enseja a famosa formulação de Freud e Breuer: “os histéricos sofrem principalmente de reminiscências” (Breuer & Freud, 1893/1996, p. 43). Os eventos que antecedem o desencadeamento da histeria têm estatutos bastante diferentes: em Charcot, uma antecedência processual; e em Freud, um caráter irresoluto que os mantém em estado de suspensão.

Nesta brevíssima incursão pelos “Estudos sobre a histeria” (1895/1996) podemos extrair dois elementos que julgamos serem característicos da implícita repetição[1] freudiana anterior a 1914, quando de sua conceituação explícita em Recordar, repetir e elaborar (1914/1996): a idéia de uma persistência de algo do passado que não encontra seu caminho em direção à consciência e que permanece em suspenso. Esse caráter de insistência de algo irresoluto que, em sua insistência em se fazer dizer, manifesta-se através do sintoma, é o que estamos chamando aqui de repetição, visto que traz à baila, ainda que de modo cifrado, uma situação ou contingência do passado. Ainda no âmbito dos “Estudos sobre a histeria”, podemos encontrar outro exemplo que se insere em nosso conceito ampliado de repetição: a transferência, naquele momento definida como incidência da representação patogênica recalcada nas relações travadas entre médico e paciente, de modo que as representações aflitivas tocadas no curso do trabalho associativo de rememoração seriam transferidas para a figura do médico. Em seguida, os conteúdos recalcados eram atualizados no seio da relação médico-paciente sob a forma de pensamentos e desejos dirigidos ao médico. Esta transferência será pensada, neste momento, como uma 'falsa ligação'; falsa porque une um afeto a uma representação que não lhe corresponde. Podemos novamente afirmar que, ainda de modo lato, encontra-se aí presente algo da ordem da repetição, visto que esta ligação falsa reproduz – mesmo que não conscientemente - afetos, atitudes e comportamentos para com o médico idênticos ou análogos aos referidos à cena traumática.

Apesar do abandono do método catártico e da introdução, em “A interpretação dos sonhos” (1900/1996), de um sofisticado modelo de psiquismo, o binômio que destacamos - suspensão e persistência - perdurará nas concepções desenvolvidas por Freud nos anos seguintes, articulado a diferentes - ainda que não contraditórias - formulações. Podemos citar a analogia entre sonho e sintoma neurótico em “A Interpretação dos sonhos” (1900/1996), onde ambos são considerados realizações de desejos infantis inconscientes, intimamente ligados ao que será posteriormente chamado complexo de Édipo; também nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1996), onde os sintomas são ditos a atividade sexual dos neuróticos, sendo a sexualidade infantil recalcada marcada por um certo fracasso que enceta isto que estamos chamando de suspensão. Freud o destaca irônica e sutilmente, dizendo que "a normalidade da vida sexual só é assegurada pela exata convergência das duas correntes dirigidas ao objeto sexual e à meta sexual: a de ternura e a sensual [...]. É como a travessia de um túnel perfurado desde ambas as extremidades" (1905/1996, p. 196), identificando a primeira ao que resta da sexualidade infantil, e a segunda a um produto das transformações da puberdade. Ora, esta enunciação de Freud expõe-nos - ainda que não claramente - o caráter falho, manco, do sexual, visto que não é comum a perfuração de túneis a partir das extremidades opostas de uma montanha. E não é difícil perceber porquê; a probabilidade das perfurações se encontrarem perfeitamente é muito, muito reduzida. Assim como o é, portanto, a normalidade da vida sexual. Podemos, portanto, depreender daí que há um resto que permanece disto que é da ordem do sexual.

Desejos introduzidos no seio da relação médico paciente; desejos realizados no sonho e no sintoma; sintoma consumando a vida sexual; um resto no sexual. Os exemplos que demos até agora, tentando delimitar isto que chamamos de um conceito ampliado de repetição, envolvem, em sua totalidade, alguma referência ao sexual. O que temos, até aqui, é que algo da ordem do sexual mantém-se em suspensão, num estado de irresolução, insistindo em se fazer dizer, ainda que de modo sempre falho e não-sintético - através do sonho, do sintoma. Poderíamos afirmar que a repetição, em Freud, encontra-se sempre em conexão com o sexual; seremos cautelosos, no entanto, e não o afirmaremos tão categoricamente ainda. Nossa reserva se justifica pelo fato de estarmos trabalhando com uma hipótese nossa, e não com um conceito freudiano consagrado.

Nossa hipótese se fortalece, contudo, ao referirmo-nos ao texto onde Freud fala mais claramente sobre algo da ordem da repetição, ainda que não a conceituando diretamente. Em “A dinâmica da transferência” (1912/1996), Freud define a transferência como direção para a figura do analista de investimentos libidinais insatisfeitos, investimentos estes que recorrem a protótipos estereotípicos. Estes, por sua vez, são moldes para um método específico de se conduzir na vida amorosa, sendo constantemente repetidos no decorrer da vida da pessoa. Temos que aqui, portanto, a transferência é conceituada a partir da repetição, sendo esta última tomada da mesma maneira que em nossa definição ampliada. Além disso, podemos notar que repetição e transferência aparecem em íntima articulação com o sexual, sendo ambas um efeito da insatisfação libidinal.

Será apenas em “Recordar, repetir e elaborar” (1914) que o conceito de repetição será introduzido de forma autônoma, mais precisamente sob o nome de compulsão à repetição. A repetição, agora, dirá respeito à expressão, através da atuação, do que foi esquecido, recalcado. Em outras palavras, aquilo que não é admitido à consciência como lembrança, através da palavra, faz valer sua força, mas através da atuação, dirigida ao analista - o que explicita sua articulação à transferência. Assim, Freud define a transferência como um fragmento da repetição, e a repetição como "uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual" (1914/1996, p. 166). Vemos, portanto, que apesar de a repetição ser conceituada a princípio sem qualquer referência à temporalidade - visto que sua característica mais enfatizada é sua pertinência à esfera da atuação - é posteriormente nela inscrita, através de sua definição como uma posta em jogo do recalcado, dentro do campo da transferência.

Em 1920, contudo, Freud propõe uma nova conceituação para a repetição. Mais uma vez, sua motivação é eminentemente clínica. Como dissemos anteriormente, a repetição era pensada como a insistência do recalcado em se fazer expressar, cujo acesso à consciência era barrado pelo recalque. Dissemos que isto se devia à observância do princípio de prazer, uma vez que a satisfação visada seria também sentida como desprazer, de modo que o que fosse prazer para o sistema inconsciente ingressaria, simultaneamente, na consciência como desprazer.

Freud se dá conta, todavia, que sua prática clínica não mais chancela esta posição, ao menos não integralmente. Sonhos que repetem situações traumáticas; compulsões que conduzem imperativamente a atividades que nunca levaram ao prazer, como a fracassada vida sexual infantil, apontam para situações que não podem ser compreendidas como submetidas ao princípio de prazer, nem mesmo levando-se em conta a cisão do psiquismo. Ora, a equação prazer/desprazer não dá conta do que não está relacionado ao prazer, mesmo que este prazer não seja consciente. A partir deste impasse, portanto, Freud empreende uma elaboração de seu modelo de psiquismo com o intuito de dar conta destes fenômenos até o momento enigmáticos.

Suas investigações se iniciam através de algumas especulações sobre algumas características do sistema perceptivo-consciente – ou Pcpt.-Cs. Em primeiro lugar, afirma a necessidade de situá-lo na linha fronteiriça entre o interior e o exterior, de maneira a estar em contato com ambos, postulando em seguida que, por causa da recepção dos estímulos externos, sua “face” que para aí se volta deve ter uma certa resistência, de modo a não ser avassalado pelas quantidades de estímulo.

As excitações que por conta de sua suficiente intensidade sejam capazes de atravessar este escudo protetor são ditas traumáticas. Por conta do trauma, o princípio de prazer é colocado, ainda que momentaneamente, fora de ação, pois a finalidade dos processos disparados não é mais a de evitar o aumento de energia – batalha já perdida – mas sim “dominar as quantidades de estímulo que irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar” (Freud, 1920/1996, p.40). Partindo desta hipótese, Freud busca explicar o sonho traumático; sua insistência dever-se-ia ao fato de uma grande soma de excitação afluir ao psiquismo, que por sua vez não estaria preparado, através da angústia, para vincular quantidades suficientes de excitação. Esta espécie de sonho seria, conseqüentemente, uma tentativa de sujeitar retrospectivamente o estímulo, despertando a angústia cuja ausência abriu caminho para o desenvolvimento da neurose traumática. Temos assim um exemplo de funcionamento do psiquismo que não se submete ao princípio de prazer, ainda que não o contradiga.

O resguardo propiciado pela resistência da face externa do sistema Pcpt.-Cs., contudo, não é eficiente no que tange os estímulos provindos do interior, de modo que as excitações internas atingem-no diretamente e em quantidade não reduzida, dando origem a sentimentos da série prazer-desprazer. Detenhamo-nos nos desenvolvimentos acerca das excitações provindas do interior. Nesta obra, Freud retoma uma antiga concepção de Breuer, enunciada nos “Estudos sobre a Histeria” (1895), que distingue dois tipos de estado no qual podem se encontrar as excitações psíquicas: o investimento livremente móvel e o investimento vinculado ou tônico. O primeiro, como seu nome indica, flui livremente pelo psiquismo, pressionando no sentido da descarga, e é característico do processo primário; o segundo, por sua vez, decorre da ligação do primeiro a representações, consistindo tal modificação na marca da ação do processo secundário.

Dissemos, anteriormente, que as excitações provenientes do interior atingem o sistema Pcpt.-Cs. diretamente e em quantidades não mitigadas, pelo fato de não se interpor entre eles um escudo protetor, ao contrário do que ocorre no limiar entre o sistema Pcpt.-Cs e os estímulos externos. Por este motivo, segundo Freud, é lícito supor que as excitações provindas do interior possuam “preponderância em importância econômica e amiúde ocasionem distúrbios econômicos comparáveis às neuroses traumáticas” (1920/1996, p. 45). Conseqüentemente, concerniria aos estratos mais elevados do psiquismo – ou seja, àqueles regulados pelo processo secundário – a tarefa de vincular as excitações que atingem o processo primário. O fracasso em vincular as excitações provocaria um distúrbio análogo a uma neurose traumática, vinculação esta que é condição prévia para a dominância do princípio de prazer, que não diz respeito à sujeição de excitações.

O traumático, a causa do desprazer, portanto, não mais se reduz a desejos insatisfeitos que ecoam no inconsciente, nem a representações que são inconciliáveis com o eu, nem tampouco a uma satisfação perdida que se busca reencontrar – o próprio manancial de excitações, ou seja, o pulsional, é traumático, afirmação esta que não refuta as anteriores acerca deste tópico. Desta maneira, a repetição se apresenta para nós como uma tentativa retroativa de sujeitar isto que é inassimilável, irredutível à representação, e que por isso mesmo não pode ser postulado como da ordem do sentido. Temos assim uma repetição que se refere a algo que está para além de qualquer significação possível, que insiste, clamando por vinculação, mas que espicaça qualquer arranjo simbólico sujeitado pelo processo secundário. Vemos, portanto, reiteradas nossas hipóteses acerca da repetição em Freud; em 1920, mantém-se presente a insistência, bem como uma articulação com algo do sexual que permanece em suspenso. Agora, todavia, Freud radicaliza esta suspensão, afirmando este resto do sexual como irredutível. Não é por outro motivo, diga-se, que, anos mais tarde, em “Análise terminável e interminável” (1937/1996) Freud estabelecerá a atitude para com o complexo de castração como obstáculo maior ao fim de análise.

 

De Freud a Lacan: a repetição, o sexual e o real

Podemos afirmar que, ao longo dos escritos e seminários de Lacan, o sexual comparece de dois modos: como desejo e como gozo. Lacan, leitor de Freud, não deixa de, desde o início, articular precisamente a repetição e o sexual; todavia, tal como em Freud, a repetição passará por diferentes momentos e estatutos em sua obra.

Levando em consideração aquilo que Lacan estabeleceu como seu ensino - ou seja, a partir de 1953 - podemos dizer que até 1959 o sexual de que se trata em Lacan é o desejo. Neste momento, destacaremos quatro textos de maior relevância para nossa articulação específica: os escritos “A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957/1998) e o “Seminário sobre A Carta Roubada” (1955/1998), bem como duas aulas do seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-55/1985).

Em 1953, a proposta de Lacan é a de restituir à psicanálise seu campo específico - a linguagem. Lacan é categórico ao afirmar que os conceitos psicanalíticos só adquirem pleno sentido ao “se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala” (1953/1998, p. 247). Nesta época, Lacan já havia introduzido a noção dos três registros, de modo que sua aposta na fala é solidária de uma distinção entre simbólico - a linguagem - e o imaginário - noções desenvolvimentistas, adaptativas, o inefável das cargas afetivas. Não é por outro motivo, portanto, que as primeiras intervenções de Lacan no que tange a repetição concentrem-se em distinguir uma repetição estrutural, simbólica, inconsciente, que não se confunda com o imaginário, com relações intersubjetivas, com uma espécie de voluntarismo.

Desta forma, tencionando evidenciar a faceta simbólica da repetição, Lacan lança mão d'A carta roubada, conto de Edgar Alan Poe, no qual o detetive Dupin discorre sobre um menino que sempre derrotava seus oponentes num jogo de adivinhação onde deveria dizer se seu oponente escondia um número par ou ímpar de pedras na mão. A explicação para sua seqüência de vitórias era simples: o rapaz dizia que lhe bastava colocar-se no lugar de seus adversários, tentando raciocinar como eles, de modo a antever sua seqüência de jogadas. Este modo de jogar fundamenta-se na aposta numa intersubjetividade, uma vez que se baseia em raciocinar como o outro, assumindo que o outro pensa, sente e age como si mesmo. Dizer isso, contudo, não implica nenhuma crítica; a intersubjetividade não constitui falta moral. Possui, todavia, seus limites; e Lacan expõe uma situação na qual esta estratégia não é de nenhuma valia: um jogo contra uma máquina capaz de jogá-lo. A intersubjetividade deve dar lugar ao que Lacan chama de caminho logicizante - que passa pela combinatória das respostas possíveis da máquina, ou seja, a linguagem.

A combinatória das respostas da máquina, contudo, pressupõe a análise das probabilidades de suas respostas, que por sua vez, diz-nos Lacan, possui como antecedente lógico a introdução de um símbolo no real – pois do ponto de vista deste último, em cada lance pode-se igualmente ganhar ou perder, de modo que nem o lance que o precedeu nem o que o sucedeu guardam quaisquer ligações com o resultado obtido. Logo, ganhar várias vezes seguidas, perder o mesmo número de partidas, ou ganhar e perder alternadamente, tudo isto é indiferente se não tomarmos os lances como uma espécie de ordenação encadeada. A amarração dos lances entre si, por conseqüência, pressupõe a intervenção do simbólico. Ou seja, é a partir daí que consideraremos que as chances de ganhar ou perder num dado lance são de 50%, mas que essas não são as chances de ganhar ou perder três, quatro ou mais vezes seguidas; cremos que a cada lance que adicionamos, a chance de ganharmos – em seqüência – diminuirá.

Diremos, pois, que a ação do simbólico sobre o real consiste em marcar uma escansão na continuidade do real. O jogo da máquina, nos dirá Lacan, não ocorre por acaso, tampouco consiste em traçar um perfil psicológico de seu oponente – o que nos remeteria à intersubjetividade. Ele se baseia no agrupamento dos lances em três tipos: (1) seqüência de três jogadas do mesmo tipo; (2) seqüência de duas jogadas do mesmo tipo; ou (3) alternância de jogadas (Lacan, 1954-55/1985, p. 243). Ora, podemos ver que já aí, operando por esta lógica, há uma determinada padronização de jogadas. Pois após uma seqüência tipo (1) não poderá vir uma do tipo (3), e vice-versa, uma vez que esta última pressupõe uma alternância de resultados inexistente na seqüência de três resultados iguais. Cumpre lembrarmos que os resultados não precisam ser tomados por seu valor de face; 'par' e 'ímpar' poderiam ser quaisquer outras variáveis que se opusessem, podendo ser facilmente traduzidas pela oposição de sinais (+) e (-).

Pensando na constituição subjetiva a partir da linguagem em relações com os três registros – simbólico, imaginário e real – temos aqui expresso que a enunciação segue leis de possibilidade e impossibilidade que são intrínsecas à sua estruturação, não estando submetida à volição consciente. Tomando o par (+) (-) como o par presença e ausência estabelecido pela oposição Fort-da, podemos articular estas sucessões à cadeia significante. Assim, podemos dizer que a repetição, neste momento, se situa do lado do simbólico, engendrada pelas escansões que este produz no real, nada tendo a ver com as coordenadas egóicas do imaginário. Cumpre ainda notarmos uma certa dimensão de perda estabelecida pela ação do simbólico sobre o real, visto que as escansões introduzem uma descontinuidade no que anteriormente havia sido pura continuidade.

Lacan continuará seu comentário do conto de Poe explicitando como cada um dos personagens que entram na posse da carta que dá título à narrativa tem sua posição subjetiva determinada pela posse da carta/letra (lettre). Eles poderiam, em vez de serem enumerados - Dupin, o Rei, a Rainha, etc. - ser definidos a partir da determinação da necessidade do encadeamento simbólico, o que adquire pleno sentido ao pensarmos as duas cenas de A Carta Roubada como constituintes de uma repetição. Lacan, neste momento, associa esta à insistência da cadeia significante. Em outras palavras, a posição dos personagens do conto não será regida por seus dons inatos, por sua posição social, mas sim pelo percurso de um significante, a carta/letra - tal como o é para o sujeito em sua relação com o inconsciente. Deste modo, vemos como Lacan busca introduzir uma distinção entre o outro semelhante, das relações intersubjetivas e imaginárias, de um Outro simbólico, aqui descrito como absoluto (1954-55/1985, p. 223). A referência ao esquema L põe em jogo, por sua vez, o que está em jogo na repetição simbólica: a posição subjetiva frente ao desejo do Outro, em sua demanda de reconhecimento a este último. Temos, portanto, que a inércia simbólica está subordinada ao desejo.

Cumpre destacarmos, ainda, um desenvolvimento posterior da idéia de inércia simbólica: o conceito de metonímia, tomado de empréstimo a Roman Jakobson, e que designa um dos modos de articulações, o outro sendo a metáfora. A metonímia está ligada à idéia de um deslizamento de sentido entre significantes, numa conexão de palavra a palavra, num funcionamento associado ao constante fluir do desejo. A metonímia, segundo Lacan, estende eternamente seus trilhos para o desejo de outra coisa (Lacan, 1957/1998, p. 522).

Desta maneira, o que impede o advento de uma significação última é o desejo, pois sua característica é a de ser sempre desejo de outra coisa. Frente à equivocidade da linguagem – ou seja, ao fato de ela sempre poder expressar algo completamente diverso do que diz - cumpre indicar o lugar do sujeito na busca da verdade (1957/1998, p. 508), verdade esta que deve ser entendida como efeitos de verdade produzidos pela letra, e não verdades interiores do espírito do homem. Esta dimensão da verdade já era destacada desde o comentário à Carta Roubada, no qual afirma que a posição e destino dos personagens do conto de Poe não se constituem por suas particularidades individuais, nem por seus percursos na existência – são, antes, definidos em relação à carta/letra (lettre) (1954-55/1985, p. 247-248). Apesar de não haver referência direta à repetição em “A instância da letra no inconsciente”, julgamos lícita nossa articulação, uma vez que o deslizamento metonímico não é aleatório, devendo obedecer às mesmas leis estruturantes de possibilidade e impossibilidade por nós destacadas no comentário de Lacan à Carta roubada.

Vimos, nestes dois exemplos, como a repetição é articulada ao desejo, manifestando-se no funcionamento da cadeia significante. Aqui, o impossível do sexual manifesta-se analogamente ao eterno deslizar metonímico; em outras palavras, o impossível está do lado de significá-lo em sua integralidade, pois há sempre algo que escapa à significação. De certa maneira, e não sem ousadia, podemos dizer que o impossível do sexual, neste momento, situa-se antes do lado de um excesso, que sempre escapa de ser sujeitado numa significação última, deslizando incessantemente pelos significantes que compõem a cadeia.

Em 1959, contudo, Lacan introduzirá algo que faz barra a este puro fluir, bem como ao desejo. Para tanto, irá buscar no “Projeto para uma Psicologia Científica” (1895/1996), de Freud, um conceito que jamais tornou a aparecer, especialmente sob este nome, na obra publicada deste último: o conceito de das Ding.

Das Ding, no “Projeto”, aparece como um componente do complexo perceptivo, uma parte constante – em oposição aos atributos, cambiantes – inassimilável e incompreensível (Freud, 1895/1996, p. 380, 421, 439). Lacan, no seminário sobre A Ética da Psicanálise, trabalhará a posição de das Ding em relação ao par de representações estabelecidos no artigo de Freud “O Inconsciente” (1915/1996): a representação de coisa (Sachvorstellung) e a representação de palavra (Wortvorstellung). Neste artigo, Freud situa a representação de palavra no lado do sistema pré-consciente, situando a representação da coisa no inconsciente (p. 206). Ou seja, para haver a representação consciente, seria necessário abranger tanto a representação de coisa quanto a de palavra. Deste modo, podemos ver como, segundo Lacan, palavra e coisa (Sache) formam um par; a coisa é o produto da ação humana enquanto governada pela linguagem, o que quer dizer que é a palavra que a destaca e a faz nascer (Lacan, 1959-60/1997, p.61). Das Ding, contudo, se situa em outro lugar.

Retomando os termos do “Projeto”, temos que o processo perceptivo não tem, primordialmente, qualquer função de produção de conhecimento em si, mas sim a de verificar as condições – ou seja, distinguir percepção de lembrança – para dar início ou não à descarga energética, visando o prazer e a evitação do desprazer (Freud, 1895/1996, p. 377-380). Deste modo, a parte variável do complexo perceptivo constituirá as representações em torno das quais poderá operar o jogo do prazer e do desprazer. Como podemos observar, das Ding não toma parte nesta dinâmica; pois, enquanto componente inassimilável e que não pode ser apreendido, não ingressa no psiquismo sob forma de representação.

Lacan dirá que das Ding é o fora-do-significado, é o que, lógica e cronologicamente, “se apresenta, e se isola, como o termo de estranho em torno do qual gira todo o movimento da Vorstellung, que Freud nos mostra governado por um princípio regulador, o dito princípio do prazer” (1959-60/1997, p. 76), uma função primordial que engendra a gravitação das Vorstellungen (representações) inconscientes.

O que das Ding vem instaurar, dentro das propostas de Lacan, é a idéia de que a cadeia significante – ou a estrutura de linguagem – não é toda significante; há algo que está do lado de um impossível, impossível de saber, de dizer, mas que ao mesmo tempo não se reduz ao infindo fluir metonímico de significante a significante. Das Ding, portanto, introduz propriamente a questão do real como impossível de apreender, de significar, ressaltando a dimensão de que há algo que, como linguagem, falta à própria estrutura da linguagem. O impossível se faz presente não mais pelo lado do excesso, mas pela via da falta: esta ausência primordial em torno da qual orbitam os significantes.

Ora, se o desejo se articula ao fluir da cadeia significante, parece estabelecer-se uma incompatibilidade entre sua dinâmica e o vazio fundamental de das Ding; a barreira à significação se caracteriza não somente por um excesso, como dissemos antes, mas também por uma falta, por algo que não é significável. Em outras palavras, o conceito de desejo não mais dá conta, sozinho, disto que é da ordem do sexual.

Estas são as exigências que conduzem Lacan a formular o conceito de gozo. Neste momento, o gozo é articulado por Lacan à transgressão, e das Ding, estando à parte do circuito do desejo e ocupando posição central no tocante ao gozo, é dito o bem supremo, a mãe, um bem proibido (1959-60/1997, p. 90). A transgressão, portanto, traveste-se de meio de gozo, mas não é um acesso a ele, não enquanto gozo do objeto incestuoso. Temos aqui, portanto, uma apresentação do gozo que o estabelece de modo monolítico, hermético.

Fizemos este pequeno desvio em nosso tema para tratar, em largas linhas, da introdução do conceito de gozo na obra de Lacan. Retomaremos o fio da meada tratando do seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1993), no qual Lacan desenvolve este conceito em articulação à repetição. Como vimos, nos seminários sobre O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-55/1985) e A carta roubada (1955/1998), Lacan define a repetição como insistência da cadeia significante, o que articulamos ao caráter metonímico do desejo. Neste seminário, esta concepção é complexificada, de modo que a repetição vem a ser dividida em autômaton e tiquê. O autômaton estaria bem próximo de suas teorizações iniciais, concernindo à repetição dos significantes, ou seja, o automatismo de repetição, “o retorno, a volta, a insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio de prazer” (1964/1993, p. 56). O autômaton, portanto, está em íntima ligação com a cadeia significante, situando-se do lado do simbólico ou dito de outra forma, do sentido e da significação.

De modo a podermos explicitar adequadamente a novidade introduzida pela noção de tiquê, nos estenderemos um pouco mais na questão da repetição significante e do sentido. Para tanto, lançaremos mão do conceito de alienação desenvolvido neste mesmo seminário.

Logo nas primeiras frases da aula dedicada à alienação, Lacan faz-nos saber que em relação à entrada do inconsciente opõem-se dois campos, o do sujeito e o do Outro. Dando um passo a mais, afirma: “o Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito” (1964/1993, p. 193-194). Isto nos remete a uma outra questão central no ensino de Lacan. Em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, Lacan nos fornece a tese de que o significante representa o sujeito para outro significante (1960/1998, p. 833); o que nos apresenta o fato de que o sujeito não pode se fazer representar diretamente no campo do Outro, somente por intermédio de um significante. Ora, como vimos, o Outro é onde se encontra a cadeia significante, da qual depende o sujeito para se fazer representar; estabelece-se aqui então uma falta “pelo fato de que o sujeito depende do significante e de que o significante está primeiro no campo do Outro” (1964/1993, p. 194-195). Ou seja, o sujeito em sua representação está sempre em falta; pois sempre há um resto que não é representado no campo do Outro.

Lacan nos chama a atenção para o fato de que o significante, ao surgir no campo do Outro, faz surgir o sujeito de sua significação. Notemos, pois, que Lacan não toma o sujeito como algo dado, que possa se equiparar ao vivo; além disso, é preciso tirar daí a conseqüência de que o sujeito, assim pensado, torna-se desprovido de substância, dependendo do significante para ser representado – em outras palavras, o sujeito só pode advir no campo do Outro, lugar onde não pode se fazer representar em seu ser. Há aí, contudo, ainda mais a se dizer em relação ao estatuto do sujeito assim representado: pois ao fazer-se representar no campo do Outro por um significante, o sujeito fica reduzido ao significante, petrificado nisto que o representa, que pode ser articulado ao fechamento do inconsciente – ou seja, sua obturação pelo a. A isto Lacan, tomando de empréstimo um termo de Jones, chamará de afânise, ou fading, do sujeito, o apagamento de seu ser.

Em outras palavras, o sujeito não se faz representar sem uma perda; pois, se de um lado se representa através do significante, no campo do Outro, como sentido, por outro aparece como afânise – ou seja, se o ser é escolhido, o sujeito desaparece, caindo no não-senso; por outro lado, se o sentido é escolhido, “o sentido só subsiste decepado dessa parte de não-senso que é [...] o que constitui na realização do sujeito, o inconsciente” (1964/1993, p.200). Temos portanto evidenciada a relação entre a repetição significante - o autômaton - e o sentido; pois a insistência da cadeia significante, no que é veículo para representar o sujeito para outro significante, não pode fazê-lo senão por essa via - forçado a se fazer representar por um significante-mestre designado pelo Outro.

Dito de outra maneira, o sujeito, para constituir-se propriamente enquanto tal, é levado à escolha forçada do sentido em detrimento do ser, sentido este recebido do Outro sob a forma de um outro significante (S2) que incide sob o significante que o representa, o significante mestre (S1). Pois o Outro, apesar de ser o lugar do tesouro dos significantes, o campo do saber, também a ele falta alguma coisa, que o barra – e que, portanto, engendra a emergência do desejo do Outro, desejo que demarca dois níveis da linguagem: o enunciado e a enunciação, o que se diz e o que se quer dizer. Mais precisamente, podemos escandir estes dois níveis em enunciado – significante provindo do Outro – e enunciação – desejo do Outro. Esta escansão é o que permite a pergunta, que se encontra para além do sentido puro: “ele me diz isso, mas o que é que ele quer?” (1964/1993, p. 203).

Como dissemos, o sujeito não se faz representar sem um resto - que Lacan chama de não-senso, ou seja, aquilo que não se faz representar pelo sentido. Deste modo, estabelece-se uma perda para o sujeito, de natureza sexual, constituindo aquilo de sexual que não pode se representar no Outro. Esse resto, não-significantizável, dito uma falta real (1964/1993, p. 195), Lacan já o havia enunciado em seu seminário do ano anterior (1962-63/2005): é o objeto a. A partir dessa referência, podemos compreender melhor as afirmações de Lacan a respeito da tiquê: é o reencontro do real, com um real que sempre escapa, posto que não pode ser apreendido nem reduzido ao sentido. Ou seja, o que se repete é este quê de não-senso, que resiste à representação subjetiva via significante. Destaca-se assim a distinção do objeto a metonímico e agalmático do seminário sobre A transferência (1960-61/1992) e o objeto a causa de desejo do seminário A angústia (1962-63/2005); podemos falar agora do objeto a como articulação do simbólico e do real, como condensador de um gozo possível. Temos, assim, que autômaton e tiquê não se encontram em contigüidade, mas se imbricam agudamente. Talvez pudéssemos mesmo dizer que a tiquê floresce dos restos do autômaton - sem que nos fosse facultado, contudo, estabelecer antecedência lógica ou cronológica a qualquer um dos dois.

A partir da introdução do objeto a como causa de desejo, e de sua inscrição no sexual sob diferentes rubricas - o olhar, a voz, o seio, as fezes, o nada - temos uma certa elementarização do gozo, em contraste ao gozo total interdito exposto no seminário sobre a Ética da psicanálise (1959-60/1997). O impossível do sexual não se trata mais apenas da inadequação metonímica entre desejo e objeto visado, tampouco do objeto interdito impossível; o impossível é o do próprio gozo, tão somente parcial, como as próprias pulsões, que não se unificam numa totalidade coerente. Logo, a tiquê, a insistência do que não é representável, significável, nem traduzível em saber, aponta para esta faceta do sexual que participa das mesmas características e, portanto, não se articula no plano da dialética do desejo, apesar de não lhe ser externo.

Mostramos, na seção anterior, a distinção introduzida por Lacan entre tiquê e autômaton, situando o gozo do lado da primeira, e o desejo do lado da segunda. Além disso, expusemos a íntima conexão entre o autômaton e o significante, afirmando ainda que a tiquê diria respeito a uma repetição que estaria relacionada ao objeto caído da articulação significante - o objeto a. Ao procedermos desta maneira, estabelecemos uma separação bastante distinta entre gozo e significante, situando aquele no fora do significante, naquilo de que o significante não dá conta. Anos depois, em O Avesso da psicanálise (1969-70/1992), Lacan retornará ao tema da repetição, articulando-o diretamente ao significante. De início, Lacan exclui qualquer possibilidade de um "dualismo de repetição" ao afirmar categoricamente: é o gozo que necessita da repetição. Adiciona, ainda, algo relevante: que na repetição produz-se algo que é defeito, fracasso. E este é, diz Lacan, o pano de fundo da repetição; pois "em função de ser expressamente - e como tal - repetido, de ser marcado pela repetição, o que se repete não poderia estar de outro modo, em relação ao que se repete, senão em perda" (1969-70/1992, p. 44). Em outras palavras: na própria repetição há um desperdício de gozo.

Neste sentido, podemos articular o gozo ao objeto perdido, conforme proposto por Freud; e as tentativas do sujeito de reencontrá-lo são marcadas por uma falha, uma falta, uma vez que o objeto reencontrado é sempre distinto do buscado. Dito de outra forma, nunca se encontra o que se procura - o que nos remete à já mencionada parcialidade do gozo, mediado pelo objeto a.

Lacan já havia adiantado, contudo, que gozo e saber se relacionam, colocando o primeiro como limite do segundo - o que não podemos deixar de relacionar à concepção do sexual como aquilo que não se faz representar como sentido pelo significante. O saber, neste seminário, é definido como bateria significante (S2) estruturada como saber. O S1 subtraído a esta rede de significantes, operação que torna a representação do sujeito possível, estabelece, como diz Lacan, uma "irrupção de gozo" (1969-70/1992, p. 73). A subtração do S1 da bateria organizada S2 - que é outra maneira de designar o traço unário - é, portanto, um momento inaugural, da irrupção do gozo.

A repetição, portanto, é marcada por sua relação com este momento inaugural e, como sabemos, também por uma perda, um desperdício. Assim, no lugar dessa perda, surge o objeto a, de modo que o saber trabalhando produz uma entropia, o que pode ser traduzido como a quantidade de desordem num sistema. Ou seja, na relação entre traço unário e saber, produz-se um resto que não se coaduna com suas leis, que não tende à homeostase. Logo, a operação discursiva - operação significante por excelência - enceta o gozo, e seu próprio desequilíbrio, visto que gera este resto inassimilável e irredutível.

Que haja repetição, contudo, nos dá testemunho de algo mais: de que há um gozo possível, que se goza do significante, mas que há um gozo a se recuperar - que Lacan chama mais-de-gozar. E daremos nosso próximo passo orientados nestas duas proposições: a de que há um mais-de-gozar a se recuperar, e a de que se goza da repetição significante - repetição no discurso - e que esta constitui uma tentativa de recuperação do mais-de-gozar.

Até aqui falamos de diversas maneiras sobre a articulação entre a repetição e o impossível do sexual, sob diferentes maneiras - pelo viés do desejo que não pode ser satisfeito, pelo gozo cujo objeto é interdito, pela impossibilidade de representação do sexual na representação do sujeito. No entanto, o fato de se gozar da repetição significante e a tentativa de recuperação do mais-de-gozar nos levam a uma outra tese de Lacan: a de que não há relação sexual. Neste momento, o impossível do sexual não se reduz mais a algo do sujeito que não se faça representar junto ao Outro; o impossível agora inclui o impossível da relação sexual, fundada numa dissimetria profunda entre homem e uma mulher - tanto mais radical quanto lembremos que "não exista a mulher, a mulher não é toda" (1972-73/1985, p.15). Esta inexistência da relação, por sua vez, é o que nos faz "falar como papagaios, a cantar o discursocorrente, a fazer girar o disco, esse disco que gira porque não há relação sexual" (p. 49). Podemos articular esta frase a nossas conclusões precedentes e concluir que o que está em jogo na repetição, o mais-de-gozar a recuperar, passa pela inexistência da relação sexual.

Apesar de não invalidar as formulações anteriores sobre o impossível do sexual, o estabelecimento de que não há relação sexual demanda modificações em alguns aspectos da obra de Lacan, bem como a construção de novos conceitos. Talvez o principal deles, e do qual falaremos agora, seja o conceito de sinthoma. O sinthoma, diz-nos Lacan, se engendra a partir da não-naturalidade da relação sexual, o que demanda uma nomeação. Assim, o sinthoma se forja a partir da carência da relação sexual, sob uma forma que não é qualquer uma. O impossível do sexual procede também da dissimetria dos corpos, do gozo fálico - masculino - e o gozo feminino, que não pode ser modalizado, uma vez que não existe exceção identificatória para cerni-lo. Vemos, assim, que o sexual como impossibilidade imanente ao sujeito não é abandonado; mas mesmo este é complexificado pela colocação em jogo da diferença sexual.

Desta maneira, dirá Lacan, o Nome-do-Pai é uma maneira de nomear a diferença sexual; e, neste sentido, dirá que o pai é um sinthoma. Recordando “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1957-58/1998), temos que o Nome-do-Pai barra a relação entre o simbólico e o imaginário, dando origem à significação fálica. Como sinthoma, sua função permanece similar, mas complexificada: o sinthoma, agora, é o quarto nó, que vem enodar borromeanamente real, simbólico e imaginário. Para além do Nome-do-Pai, não se estende somente o horizonte da carência: é isto que Lacan argumenta, debruçando-se sobre os escritos de Joyce, para quem a escrita servia como sinthoma. Assim, Joyce, encarregado do pai, é Pai de seu nome, ao nomear a diferença sexual, em vez de ser nomeado pelo Pai (como ocorreria no caso da operação do Nome-do-Pai e da identificação ao Pai).

Podemos, por esta via, desdobrarmos mais um aspecto do impacto da introdução no sintoma na relação do sexual e do corpo; pois se até então a consistência do corpo era imaginária – tributária da imagem do corpo, de um corpo como “saco de órgãos” – neste novo contexto Lacan apontará a possibilidade de o sinthoma, através do enodamento borromeano, vir dar uma consistência não-imaginária ao corpo. Cumpre ressaltarmos, portanto, que a inclusão do corpo enquanto suporte da diferença sexual não implica numa naturalização da questão sexual, no sentido em que há eco do significante no corpo, e que o próprio sinthoma possui um caráter artificioso.

 

Referências Bibliográficas

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______. (1975-1976) O seminário, livro 23: o sinthoma. Transcrição não-oficial.

 

Notas:


[1] Como um apoio provisório, lançaremos mão das noções vernaculares de repetição que, como muitos dos conceitos construídos por Freud, apóia-se num termo extraído da linguagem corrente (Wiederholung, em alemão) e que, portanto, evoca espontaneamente uma série de imagens a seu respeito que, se certamente não são totalmente enganosas, não dão conta da especificidade do conceito - especificidade esta que, como veremos, é por si só um tema espinhoso. À guisa de introdução, citaremos duas definições dicionarizadas do termo, ressaltando que, em ambas as fontes, o verbete repetição obtém seu significado em grande parte por remissão a repetir. As definições deste último, retiradas do Dicionário Aurélio (Ferreira, 1999, p. 1745) e do Wahrig deutsches Wörterbuch (edição eletrônica), são quase idênticas: neste, dizer ou fazer novamente (noch einmal sagen oder tun); e naquele, tornar a fazer (ou a dizer, a usar, etc.). Partindo daí, tomaremos a repetição como 'aquilo que se faz (ou se diz) novamente', 'aquilo que se torna a fazer (ou dizer, ou usar, etc.).