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Deus
criou o homem
O homem
criou Deus
O homem
é mulher
Mulher
é homem
Eu
queria tanto governar uma vidinha boa.
(Fragmentos de sessão)
A descoberta
freudiana nos ensina que não há natureza do masculino ou do
feminino. Ser homem ou ser mulher está condicionado à travessia
edípica que institui a realização da sexualidade humana pela via
simbólica. A inscrição da diferença anatômica entre os sexos
deve ser procurada no redimensionamento da posição assumida pelo
sujeito diante da evidência da castração instaurada pela da Lei
do Pai.
Com Lacan, o
Nome-do-Pai, agente da castração, inviabiliza o ideal de
plenitude do estágio do espelho ao barrar o gozo da mãe,
deslocando a criança do lugar de objeto de seu desejo, condição
necessária para a entrada do sujeito na ordem simbólica. O
Nome-do-Pai, ao mesmo tempo em que barra o Outro, bancando a
castração, possibilita um princípio de resposta, um ponto de
apaziguamento frente ao enigma do desejo da mãe. Essa resposta
resultante da metáfora paterna é a significação fálica,
paradigma de toda a significação, que permite ao sujeito
significar a diferença sexual anatômica e se situar na partilha
dos sexos como homem ou mulher. Lacan procurou traduzir tal
diferença da posição sexual, inscrita pela vertente do falo em
termos de "fórmulas da sexuação" (Lacan,
1985, p.108).
Na psicose, a
carência simbólica, decorrente da foraclusão do Nome-do-Pai como
condição estrutural, determina uma falha na realização da
identificação essencial ao posicionamento sexual por
inviabilizar o advento da metáfora paterna e de sua resultante:
a significação fálica. Em conseqüência, sem esse ponto de
identificação, de apaziguamento imaginário, o psicótico é um
sujeito solto, errante, sem referência ao seu sexo, à deriva no
que se refere à partilha dos sexos.
Porém, este
estado de desamparo em relação a uma possível identificação ao
tipo ideal do sexo só se torna aparente após o desencadeamento,
ou seja, a partir do surto psicótico. Antes do desencadeamento,
o sujeito se conduz aparentemente como as demais pessoas,
socialmente falando, consegue se adaptar às situações cotidianas
sem manifestar maiores dificuldades. Lacan, no Seminário 3
chega pronunciar que "nada se parece tanto com uma
sintomatologia neurótica quanto uma sintomatologia
pré-psicótica" (1988, p. 219).
No exemplo do
caso Schreber (Freud,
[1911/1976]) observa-se que o desencadeamento de sua psicose
ocorrera somente aos 51 anos, quando aparece todo o transtorno
em sua identidade sexual. Antes desta data, sua vida pode ser
considerada normal, até mesmo exemplar, pois mantém uma vida
conjugal satisfatória, só importunada pelo fato da
impossibilidade de ter filhos e sua carreira profissional como
jurista é premiada de êxitos, com várias honrarias e promoções,
chegando ao ponto culminante de ascensão ao ser nomeado juiz
presidente do Tribunal de Apelação de Dresden.
Diante da
constatação desta estabilidade do sujeito, em momento anterior à
eclosão dos sintomas psicóticos, surgem as questões: quais
arranjos, que recursos são utilizados, neste período da vida,
para compensar a falha simbólica, na medida em que aquilo que se
presentifica desde sempre como condição estrutural na psicose é
a foraclusão do Nome-do-Pai? Como o sujeito se sustenta na
ausência deste significante primordial que dá acesso ao
simbólico e que possibilita a significação da existência humana,
dando-lhe referencias para que se situe a partir da norma fálica
enquanto homem ou mulher?
Lacan (1988,
p. 232) afirma que a função do pai não é simplesmente de gerar,
mas de possuir de direito a mãe, instaurando a lei do Édipo, que
dá ao filho condição de acesso ao posicionamento sexual. Diante
dessa afirmação, interroga: "Que se passa se uma certa falta se
produziu na função formadora do pai?"; e responde: "na
impossibilidade da realização do significante pai a nível
simbólico, resta ao sujeito a imagem a que se reduz a função
paterna". (Ibid: p.
233). No entanto, o pai, carecendo de sua função simbólica, é
uma imagem que não se inscreve em nenhuma dialética triangular,
oferecendo, desta forma, não uma mediação simbólica, mas um
modelo de alienação especular. Ainda assim, possibilita ao
sujeito um ponto de ancoragem que lhe permite apreender-se no
plano imaginário. Desta forma, por falta de referência
simbólica, o sujeito se encontra capturado no plano imaginário,
onde a relação dual e desmedida com o outro, característica do
estágio do espelho, é a tônica.
Lacan, em
1955, nomeia de pré-psicose o momento que antecede o abismo, ou
seja, este momento anterior ao desencadeamento, quando o sujeito
vai buscar a compensação para a despossessão primitiva do
significante que condiciona a virilidade em uma série de
identificações com personagens que lhe darão a noção do que
fazer para ser um homem. Estas identificações atuam como
bengalas imaginárias que possibilitam que certos psicóticos
vivam compensados por muito tempo, tendo aparentemente
comportamentos comuns, considerados como normalmente viris. O
exemplo de um banquinho de três pés é utilizado por Lacan para
ilustrar este momento pré-psicótico em que o sujeito se sustenta
no apoio imaginário (Ibid.,
p. 230):
Nem todos
os tamboretes têm quatro pés. Há aqueles que ficam em pé com
três. Contudo, não há como pensar que venha faltar mais um só
senão a coisa vai mal. Pois bem, saibam que os pontos de apoio
significantes que sustentam o mundinho dos homenzinhos
solitários da multidão moderna são em número muito reduzido. É
possível que de saída não haja no tamborete pés suficientes, mas
que ele fique firme assim mesmo até certo momento, quando o
sujeito em certa encruzilhada de sua história biográfica, é
confrontado com este defeito que existe desde sempre. Para
designá-lo, contentamo-nos até o presente com o termo
Verwerfung. (LACAN, 1988, p. 231).
O mecanismo do
"como se", abordado por Hélène Deutsch, que se refere a uma
dimensão significativa da sintomatologia dos esquizofrênicos, é
estendido por Lacan (1988) à vivência pré-psicótica, a fim de
esclarecer a falta de autenticidade característica deste
momento. Na pré-psicose, independentemente do acesso do sujeito
a algo que possa realizá-lo no tipo viril, por intermédio de uma
imitação, de uma colagem imaginária, passa a se comportar "como
se" fosse um homem:
A maior
parte das observações psicanalíticas deste artigo, trata de
estados que comportam uma relação estreita com a
despersonalização, mas que diferem da despersonalização, na
medida em que eles não são percebidos como perturbação pelos
próprios pacientes. A esse tipo especial de perturbação eu dei o
nome de "como se". Eu devo insistir no fato de que esse nome não
tem nada a ver com o sistema de "ficção" de Vaihinger e a
filosofia "como se". Minha única razão para empregar este rótulo
tão pouco original para o tipo de seres que eu quero representar
é que cada tentativa para compreender a maneira de sentir, de
viver desse tipo impõe ao observador a irresistível impressão de
que toda a relação do indivíduo à vida tem qualquer coisa em si
que falta autenticidade e é, portanto, concebida exteriormente
"como se" fosse completo. (Deutsch,
1942 [1970], p. 224-225).
Este mecanismo
de "como se" é ilustrado, no Seminário 3 (Lacan,
1988) com um exemplo muito interessante: trata-se de um
adolescente que, em período pré-psicótico, tenta conquistar a
tipificação de uma posição viril por intermédio de uma imitação,
de uma atrelagem a um de seus companheiros. Como este, e nas
suas passadas, tornam-se possíveis as primeiras manobras sexuais
da puberdade, a masturbação principalmente, passando a se
identificar com ele por uma série de exercícios denominados de
conquista sobre si mesmo. Como ele, se interessa por uma menina,
a qual, como por acaso, é a mesma pela qual seu companheiro se
interessara. Todo o seu comportamento em relação ao amigo lhe
serve como elemento piloto de sua tentativa de estruturação no
momento da puberdade.
A "pré-psicose
deve ser tomada ao pé da letra" (Lacan,
1988, p. 230) à medida que representa esse momento limite em que
"o sujeito chegou à beira do buraco" e só aí não se precipitou
devido ao anteparo das muletas imaginárias. Porém, o que será
que, subitamente, torna insuficientes as bengalas imaginárias,
determinando que o sujeito transponha o limite do abismo, que
ocasiona o descarrilamento, a quebra abrupta das referências
existenciais e que determina o desencadeamento de uma psicose?
A
dissolução imaginária
Como foi
desenvolvido acima, antes do surto psicótico a realidade é
sustentada devido ao apoio das bengalas imaginárias. O chamado
ao Nome-do-Pai, foracluído do simbólico, provocará um abalo
nestas referências, acarretando o que Lacan (1988, p. 106)
denomina de dissolução imaginária. O desencadeamento da psicose
corresponde ao momento em que, frente a determinados
acontecimentos e vicissitudes da vida, frente a um chamado do
simbólico, o sujeito precisa fazer um apelo ao significante do
Nome-do-Pai que jamais adveio no lugar do Outro, e neste momento
nada lhe vem ao auxílio. "O que é falho intervêm e interroga" (Ibid.,
p. 230), os modelos não bastam mais como respostas a tais
interrogações e no lugar do simbólico presentifica-se um buraco,
um vazio.
Este fato vem
revelar a hiância imaginária devido à carência decorrente da
foraclusão do Nome-do-Pai (NP0), pois a significação
fálica (F), que é a resultante da metáfora paterna, aparece em
oposição ao (0). Sendo assim, o Nome-do-Pai
corresponde ao mesmo ponto topológico. Daí NP0: F0.
Na estrutura psicótica, ao apelo do Nome-do-Pai responde um furo
desse próprio significante e, pela carência do efeito
metafórico, ocasiona um furo correspondente no lugar da
significação fálica (Lacan,
1998: p. 564), ocasionando o descarrilamento da cadeia
significante que revelará o desastre imaginário.
Tem-se, então,
que os fenômenos de dissolução imaginária, que ocorrem no
desencadeamento de uma psicose, são a manifestação desta hiância
imaginária decorrente da carência simbólica. Isto faz com que no
surto psicótico se revele um duplo furo, que se presentifica do
lado do simbólico, e do lado do imaginário como conseqüência do
primeiro. Fato que vem revelar a presença da psicose na
estrutura.
O saber no
qual o psicótico se organizava fora da crise, agora, com a
eclosão do surto psicótico, não vale mais e se revela o
"Crepúsculo da realidade" (Ibid.,
p. 234), trazendo a vivência de "fim de mundo", a clareza da
morte, a falta de sentido, o encontro com o real devido à
ausência do véu resultante da mediação simbólica.
Presentifica-se para o sujeito a fragmentação, a deformação da
imagem, o despedaçamento do corpo, que se torna invadido,
mortificado, à mercê do gozo desenfreado do Outro.
Caracteriza-se assim a elisão do falo como terceiro elemento
mediador, e a regressão tópica ao estágio do espelho, onde o
sujeito passa a operar no registro imaginário, estando sujeitado
aí aos caprichos do Outro. Este fenômeno de dissolução
imaginária pode ser ilustrado na primeira fase da doença de
Schreber, caracterizada como o momento esquizofrênico de sua
experiência, sobre o qual este relata a vivência da morte em
vida, do despedaçamento da alteridade e da identidade
imaginária, com o gozo retornando sobre o seu corpo, sem nenhuma
mediação, nem barra.
Sobre esse
retorno ao estágio do espelho, característico do momento de
desencadeamento da psicose, no qual se presentifica a submissão
ao Outro numa relação dual alienante, Lacan comenta:
Esse
fenômeno (o assassinato d’almas), que é para Schreber o
sinal de entrada na psicose, pode tomar para nós, comentadores –
analistas, toda a espécie de significações, mas o único lugar
que ele pode ser colocado é no campo imaginário. [...] Há aí uma
relação puramente dual, que é a fonte do próprio registro da
agressividade [...] e de seu surgimento quando se acha
curto-circuitada a relação triangular, edipiana, quando esta é
reduzida à sua simplificação dual (Lacan,
1988, p. 343).
De repente, me
vi numa estrada que não conhecia e que não me levava a lugar
nenhum [...], quando se sabe da morte a vida perde o sentido",
revela um paciente ao comunicar o sentimento de descarrilamento
vivido com a irrupção da psicose. Esse relato traduz a metáfora
de Lacan, quando concebe o significante do Nome-do-Pai como
estrada principal, que dá sentido à existência do sujeito. "Como
o significante não é nunca solitário, como ele sempre forma
alguma coisa de coerente – é a significância mesma do
significante - a falta de um significante leva necessariamente o
sujeito a reconsiderar o conjunto do significante" (Ibid.,
p.231). Quando se presentifica a ausência deste significante
primordial, desta estrada principal, o sujeito se torna errante,
sem destino, sem referências que o orientem. E o que lhe resta?
É o defrontar-se, sem anteparo, com o real. O apelo ao
significante foracluído do simbólico ecoa no real, põe-se a
falar no real, denotando a presença das alucinações auditivas,
fenômeno característico deste momento do desencadeamento:
Para levar
um pouquinho mais adiante minha metáfora, eu lhes direi - como
fazem eles, aqueles que a gente chama os usuários da estrada,
quando não há estrada principal, e que se trata de passar por
pequenas estradas para ir de um ponto ao outro? Eles seguem os
letreiros postos na beira da estrada. Isso quer dizer que, ali
onde o significante não funciona, isso me põe a falar sozinho à
beira da estrada principal. Ali onde não há a estrada, as
palavras escritas aparecem nos letreiros. Talvez seja isso a
função das alucinações auditivas verbais de nossas alucinações –
são os letreiros na beira do caminho (Ibid.,
p. 330-331).
Esse momento
da dissolução imaginária, também, vai acarretar, para o sujeito,
todo um transtorno na sua identidade sexual, revelando seu
estado estrutural de errância em relação ao posicionamento na
partilha dos sexos, pois, fora da possibilidade de significar
seu sexo pelas vias do falo, com o desmoronar de suas
referências imaginárias, o sujeito perde sua possibilidade de
identificação a um modelo de posição sexual, com o qual se
nomeava e se apresentava em seu cotidiano.
Tal
acontecimento traz um sentimento de profunda perplexidade, o
que, talvez, nos revele o desenho, a seguir, feito por um
usuário em uma oficina terapêutica no CAPS Casaviva:
FIGURA 2 -
Desenho produzido por usuário em oficina de arte – II
FONTE -
Oficina de Arte do CAPS Casaviva, 2000.
Na figura,
observamos um sujeito assolado pela presentificação do puro
enigma, submerso em interrogações, sem nenhum anteparo
imaginário, revelando um corpo fragmentado e disforme. Na região
dos genitais, vê-se nádegas (abolição da diferença sexual), o
que não demonstra a bipartição dos sexos, posto que não denuncia
a castração, à medida que esta é revelada a partir da oposição
presença-ausência que a diferença sexual anatômica impõe. A
tentativa de construir o masculino e o feminino aparece de forma
tênue, sem relevância, como está expresso no lado esquerdo
inferior do desenho.
Lacan, no
Seminário 3, em 1955, reconhece este momento de errância, no
caso Schreber, quando ao chamado do simbólico, frente à nomeação
para o cargo de juiz presidente do tribunal de Apelação de
Desdren, no intervalo entre sua nomeação e posse, é subitamente
invadido pela fantasia de que "afinal de contas deveria ser bom
ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula" (Freud,
[1911/1876], p. 62). Fantasia frente à qual Schreber reage com
profunda indignação, pois jamais houvera integrado nenhuma forma
de posição feminina (Lacan,
1988, p.102), o que lhe traz a sensação de um estado de
"confusão pânica".
Lacan concebe
que essa intrusão deste pensamento, até então inconcebível, como
a presentificação do puro enigma, ou seja, a emergência no real
de uma significação que não se remete a nada, na medida em que
não pode ser ligada a nada, posto que jamais entrou no sistema
de simbolização do sujeito, que se refere à função feminina em
sua função simbólica, ou seja, a significação do desejo da mãe (Ibid., p. 102). O Nome-do-Pai tem a função de metaforizar o
significante do desejo da mãe, permitindo que tal desejo seja
significado pela significação fálica. Na psicose, a foraclusão
do Nome-do-Pai faz com que permaneça enigmático o desejo da mãe,
o qual retorna do real, a céu aberto de forma enigmática para o
sujeito. "Na relação do sujeito com o símbolo, há a
possibilidade de uma Verwerfung primitiva, ou seja, que
alguma coisa não seja simbolizada, que vai se manifestar no
real" (Ibidem, p.
98), que retorna para o sujeito no real de seu corpo,
impondo-lhe uma desvirilização, um estado de feminilização
forçada, o que é vivido no primeiro tempo da manifestação doença
de Schreber persecutoriamente e com grande repugnância.
André apoiava
a sua virilidade em uma identificação com seu avô paterno, o
qual considerava um grande homem. Exibia com profundo orgulho o
sobrenome que dele herdara. Sua psicose se desencadeia com a
morte de seu avô, pois este, enquanto vivo, lhe possibilitou um
nome, uma identificação imaginária. Porém, esta identificação
com o nome do avô não se constitui na possibilidade de uma
nomeação simbólica, em uma herança que lhe outorgasse uma
posição, um nome para além da morte. Assim, com a morte do avô,
perde-se o nome, perdem-se as referências e sua posição viril é
ameaçada. Escuta, por todos os cantos, vozes que o chamam de
veado. Sente-se como "uma verdadeira mulherzinha". A sua
fragilidade simbólica também inviabiliza a conformidade de uma
imagem no espelho. Diz que sua imagem sempre lhe parece
estranha, esquisita, deformada. Apesar de dizer que quer
namorar, não sabe se portar diante das meninas, fracassando em
toda a oportunidade de encontro. Em uma sessão revela: "Com
dezoito anos, não sabia o que era masturbação, nunca tinha me
masturbado. Os pais é que devem dar sentido destas coisas para a
gente. Meus pais sempre foram fracos, meu pai vive
deprimido, deitado, tomando remédio. Por isso não sei entender
as coisas do mundo. É difícil me relacionar com as mulheres".
Percebe-se que
este estado de feminilização forçada, no qual o sujeito se sente
abruptamente tomado, como o que fora relatado no caso André, e
que se mostra tão evidente na irrupção da psicose de Schreber,
vem revelar este estado do sujeito não referido à norma fálica
na psicose. Trata-se de um gozo foracluído do simbólico, que
retorna do real, não podendo, assim, ser considerado sexual.
Dessa forma, diferente do que Freud (1976, p. 62) considerou no
estudo do caso Schreber, a teorização lacaniana irá apontar que
este estado de feminilização não poderá ser considerado como
causa da psicose, mas como efeito do não posicionamento do
sujeito na partilha dos sexos.
O
empuxo-à-mulher
Lacan (1973),
em "L’Étourdit" vai denominar como "empuxo-à-mulher" (1973, p.
22) a orientação feminina para o gozo na psicose, ou seja, esta
vivência de feminilização que diz de um gozo não referido à
norma fálica. O empuxo-à-mulher é o efeito da irrupção de "Um-pai"
como sem razão, sentido como forçamento para o campo do Outro, a
ser percebido como o mais estranho de todos os sentidos.
Esta
irrupção de Um-Pai torna-se desestabilizadora, estranha a todos
os sentidos, determinando o efeito do empuxo-à-mulher devido à
falha do pai no lugar de exceção. Retomando as fórmulas
quânticas da sexuação (Lacan,
[(1972/73) 1985, p. 108), elaboradas por Lacan no Seminário
20: Mais Ainda, vê-se que é a exceção paterna, este "ao
menos um não referido à norma fálica" ($x Fx), ou seja, este "ao
menos um", neste contexto, não castrado, que viabiliza o
universal da castração e a orientação de todos os homens pela
vertente do falo ("x Fx). A exceção é o que vem, então,
confirmar a regra, o universal de todos os homens. A castração é
o que limita e induz a posição viril, possibilitando que os
homens se identifiquem com a vertente daqueles que têm o falo. A
foraclusão do Nome-do-Pai determina a falha na exceção paterna,
daí se revelar na psicose a impossibilidade do estabelecimento
do universal "todos os homens", ou seja, a impossibilidade do
sujeito se localizar como sexuado pela vertente do falo.
Schreber já anunciava esta precariedade estrutural quando bem
dizia que a raça humana nada mais representava que "imagens de
homens feitos às pressas" (Schreber,
1995, p. 99).
Assim,
Lacan [(1973), p. 22) vai sustentar que esta irrupção de Um-pai,
frente à não existência da exceção paterna na psicose força o
sujeito em direção a um gozo fora dos limites fálicos, que é
específico do primeiro quantificador, do lado feminino, das
fórmulas quânticas da sexuação
($x
Φx)
determinando o empuxo-à-mulher. Este quantificador do lado
feminino afirma a impossibilidade de se dizer o universal das
mulheres posto que não existe a exceção, ou seja, não se pode
dizer de nenhuma que se exclua da castração, apontando que há
algo no gozo feminino que escapa, que não é redutível ao gozo
fálico, que diz de um além. Um Outro gozo, "louco", "fora do
significante", suplementar que Lacan compara ao gozo místico
(1985, p. 103).
Sobre esse
gozo "louco" para além do falo, que tem um elo com a loucura e a
mulher, Miller comenta:
Schreber
nos fala com tanto élan, um gozo que pode ser intolerável, mas
que tem um elo com a loucura e a mulher, um elo que se conhece
há muito tempo, que conduz a pensar que as mulheres seriam
loucas, porque os loucos por um lado são mulheres. Pode-se
sempre buscar esse ponto de gozo especial e excessivo, nos
loucos. Schreber é o exemplo paradigmático disso e Lacan
escreveu o matema: o efeito de empuxo-à-mulher. [...] Um efeito
de feminilização do louco e que traduz muito especialmente a
foraclusão do Nome-do-Pai (MILLER, J. 1997, p. 70).
Esta solução
feminina para o gozo na psicose, devida à elisão do falo,
também, pode ser lida no texto lacaniano, em 1958, em "De uma
questão preliminar [...]", quinze anos antes do que Lacan
formulou em "L’ Étourdit". No texto de 1958 lê-se: "[...] na
impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a
solução de ser a mulher que falta aos homens" (1998, p. 572). Ao
dever ser o falo, o psicótico é levado a se situar do lado da
mulher. O psicótico se encontra aí, como uma mulher, no lugar de
objeto. É por não ter, que a mulher deseja ser o falo, se
transformando no que ela não tem - o objeto fálico.
Porém,
se um paralelo entre o gozo psicótico e o gozo feminino se
impõe, podendo ser lidos no mesmo quantificador lógico ($x Fx),
caberia aqui perguntar em que diferem. Retomando as fórmulas
quânticas da sexuação, Lacan (1985, p. 98) vai fundamentar que
no caso das mulheres há uma relação com a fórmula da
inexistência da exceção, fazendo com que estas escapem da
generalização falocêntrica. No entanto, há uma segunda fórmula,
que as submete, apesar de "não-toda", à função fálica ("x Fx) (Ibid.,
p. 100). O que determina que apesar das mulheres experimentarem
um gozo “suplementar", este estará sempre bordejado pelo gozo
fálico, que nada tem haver com o gozo ilimitado da psicose que,
como vimos, retorna para o sujeito do real como presentificação
do puro enigma.
É interessante
destacar que o retorno no real deste gozo feminino sem limite,
não ancorado pelo simbólico, não se restringe a irrupção de um
pensamento, mas traz para o sujeito sensações sinestésicas de
transformação do corpo, que se inscreve com a marca de uma
desvirilização. Como vimos no caso Schreber, após a fantasia de
que deveria ser bom ser uma mulher submetida à cópula, com a
deflagração de sua psicose, este passa a ter a sensação de uma
verdadeira transformação em mulher (Freud, 1976, p. 62). Schreber chega a solicitar exames
médicos para a verificação das mudanças ocorridas em seu corpo,
para que se constate sua condição feminina. O que nos revela,
como indica Lacan (1998, p. 575), que na psicose o sujeito
experimenta um gozo transexual, gozo não fálico, conseqüência da
foraclusão do Nome-do-Pai, não podendo, assim, ser confundido
com o gozo homossexual.
A
estabilização: a reconstrução imaginária
Como foi até
aqui descrito, o fenômeno do empuxo-à-mulher é a experiência, na
psicose, do gozo não limitado pelo falo, que se manifesta diante
da dissolução imaginária, devido ao apelo do simbólico, vindo
refletir a errância do sujeito na partilha dos sexos. Porém, se
é a experiência de feminilização que em um primeiro momento diz
dessa passagem abrupta a um estado de disvirilização, é também,
pela via do empuxo-à-mulher, que o sujeito pode traçar, por mais
paradoxal que possa parecer, a possibilidade de uma solução
possível, um limite ao gozo, uma restauração imaginária. A
tentativa de compreender este aparente paradoxo é o que aqui
pretendo descrever como último ponto de reflexão.
O caso
Schreber, [Freud,
(1911) 1976, p. 15) pode ser tomado como descrição de um caso
paradigmático, no qual se percebe com muita precisão o momento
de desencadeamento e o momento de estabilização, onde a questão
da feminilização se impõe como ponto central. Nota-se que no
desencadeamento, na primeira fase da doença, entre o momento de
indignação devido a eviração até sua aceitação, o sujeito se vê
aí submetido a um gozo imposto, mortal, que advêm do Outro.
Schreber está horrorizado, perplexo frente à vivência de
feminilização, sente-se perseguido, julgando ser alvo de uma
conspiração de seu médico, que lhe impõe uma condição feminina
com fins de abusos sexuais. Vive uma degradação de sua imagem,
sente-se morto e em decomposição. Chega a dizer ser "um cadáver
leproso que carrega outro cadáver leproso" (Schreber,
1995, p. 91-92), sendo a raça humana considerada como nada mais
que homens apressadamente improvisados [Freud,(1911),1976,
p. 92). Seu mundo é desinvestido. Freud, considera tal
desinvestimento como a retirada da libido dos objetos e do mundo
externo e retorno ao eu (Ibid.,
p. 93). É isso o que corresponde à experiência de "fim de
mundo", que nada mais representava senão a "projeção de sua
catástrofe interna; que seu mundo subjetivo chegou ao fim" (Ibid.,
p. 94).
Num
primeiro tempo, este gozo do Outro, imposto deletério, em
relação às fronteiras do corpo e perturbador de suas funções,
está ligada à ameaça de eviração – Entmanung - que conota
- não a castração, Lacan insistiu nisto – mas a sua falta, seja
a significação de um gozo não fálico que exclui que Schreber
seja gozado como homem , e que, mais além do que ele chama sua
honra, seja mortal para o sujeito. Um gozo foracluído do
simbólico que retorna desde o real , e em si mesmo não é sexual.
(Soler, 1991, p.
155).
Em um segundo
momento da enfermidade de Schreber, é pela via da aceitação, de
uma reconciliação com seu estado de transformação em mulher, que
o sujeito pode construir, como Lacan [(1966) 1998, p. 584] assim
denomina, a "metáfora delirante" - A mulher de Deus. Neste
momento de sua construção delirante, não só aceita a condição
feminina, mas a encara como um dever, apoiado em um sistema de
crenças, nas quais deve se oferece a Deus como mulher a fim de
procriar "uma nova raça de homens" (Freud,
(1911) 1976, p. 67). Assim, como Mulher de Deus, Schreber
acredita estar cumprindo um papel fundamental para a salvação da
humanidade. A sua emasculação não é mais concebida como uma
calamidade, uma arbitrariedade, mas "consonante com a Ordem das
coisas", instrumento para a recriação da humanidade (Ibid.).
Ao aceitar sua nova condição de mulher o sujeito reconquista um
estado de estabilização com a restauração imaginária e
recomposição de sua realidade com um reinvestimento libidinal de
seus objetos.
Assim, no
desencadear da psicose o empuxo-à-mulher vem denunciar a falha
na exceção paterna, fazendo com que se desvele para o sujeito
sua condição estrutural de não vinculação ao universal da norma
fálica, o que é vivido com horror em um primeiro momento devido
à dissolução das referências imaginárias viris. No entanto, é
pela via de uma aceitação, de uma reconciliação com esta
condição feminina, ou seja, pela via da própria condição
estrutural, que se pode pensar uma solução para a psicose. Pois
o empuxo-à-mulher, ao mesmo tempo em que denuncia a falha do pai
no lugar da exceção, é a possibilidade de se criar a exceção, ou
seja, supri-la.
No
empuxo-à-mulher, o sujeito cria a exceção ao encarnar, ao
subjetivar a mulher que não existe, ou seja, a “ao menos uma”
não submetida à norma fálica, viabilizando, assim, a exceção que
vem suprir a exceção paterna foracluída do simbólico. O delírio
de Schreber é testemunho do empuxo-à-mulher neste lugar de
exceção, pois na posição de "mulher de Deus", torna-se único,
detentor de um gozo sem limites, fora da castração. Assim
Schreber, por falta do Nome-do-Pai, faz a mulher, inventa a
mulher que não existe. Ou seja, na ausência da metáfora paterna,
uma outra metáfora se produziu. O advento da metáfora delirante
“Mulher de Deus” tem como função suprir o Nome-do-Pai foracluído
do simbólico.
Schreber
transformou-se em Um, ou antes, em Uma a quem é permitido gozar
sem limites. Como dizer mais claramente que a mulher Schreber
supre a função do pai? A falta da exceção paterna que, fundando
o universal da castração, teria feito Schreber ingressar na
ordem da castração para todos, a lógica da estrutura não permite
outra alternativa ao sujeito, senão encarar a exceção (Soler,
1991, p. 157).
A
Mulher-Schreber, no lugar da exceção, tem função de ponto de
basta, que faz limite ao gozo e consente a estabilização da
psicose e uma restauração imaginária que permite a recomposição
da realidade que, como é observado em Schreber, torna-se a
condição para a criação de um universal, ou seja, a criação
redentora de uma nova raça humana que doravante era constituída
de "homens apressadamente improvisados".
O corpo que na
primeira fase da doença se revelava putrefeito, mortificado,
fragmentado, adquire consistência e contorno através do
investimento na imagem escópica das formas femininas. De fato,
esta imagem-reflexo com a qual Schreber cultiva a beleza e a
volúpia, da qual ele é o único espectador, veste-o, protege-o,
antes de tudo da fragmentação corporal, que o ameaça
incessantemente. As preocupações hipocondríacas e os ataques ao
corpo são substituídos por uma idealização e reunificação,
através de uma prática transexualista em que Schreber, diante do
espelho, testemunha sua transformação em mulher. Isto lhe
permite tomar uma posição frente ao não posicionamento na
partilha dos sexos. Através da imagem refletida do espelho,
testemunha uma localização para o gozo que, tendo encontrado sua
inscrição como feminino, se liga à imagem e à pulsão escópica,
restaurando assim uma versão sexuada para o gozo que, por não
ser versão simbólica, não deixa de ser menos regulado. (Ibid.,
p.156)
Schreber
escreve suas “Memórias...” a fim de provar para o mundo a
veracidade e a necessidade de sua transformação em Mulher, para
que sua construção delirante fosse reconhecida, aceita, tivesse
ouvidos, como forma própria, subjetiva de reaver, mesmo que
delirantemente, sua realidade e seus laços sociais. Após oito
anos de internação psiquiátrica, em 14 de julho de 1902 é
considerado curado, consegue alta hospitalar, recupera sua
capacidade civil, e a livre disposição de seus bens lhe são
devolvidas, volta a viver junto com sua mulher e de uma menina
de treze anos que é adotada pelo casal e se reintegra ao
trabalho, conservando, porém, com todo seu peso de convicção sua
idéia de transformação real em mulher.
A partir
de então, escrevi na minha bandeira, com plena consciência, o
culto à feminilidade e, à medida que a consideração pelo
ambiente o permita, continuarei a fazê-lo, pensem de mim o que
quiserem aqueles a quem escapam as razões sobrenaturais.
Gostaria de ver qual o homem que tendo que escolher entre
tornar-se louco com aparência feminina ou
tornar-se mulher e são de espírito, não preferiria a última
alternativa. Mas é desse modo e apenas desse modo que a
questão se coloca para mim [...]. Sem me preocupar com o
julgamento dos outros, permito-me tomar como guia um sadio
egoísmo , que me prescreve o culto da feminilidade de modo que
depois descreverei mais precisamente Só assim consigo
proporcionar ao me corpo durante o dia um estado suportável e à
noite, pelo menos em certa medida obter o sono necessário à
recuperação dos meus nervos (Schreber,
1995, p. 148, grifos da autora).
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