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O psicótico – sujeito à deriva na partilha dos sexos: do desencadeamento
à possibilidade de estabilização

 
 

 

Cláudia Mara Oliveira Richa
Psicanalista do Centro de Atenção Psicossocial/CAPS CASAVIVA, Juiz de Fora/MG
Mestre em psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora/MG
claudiamara@oi.com.br

 

Resumo

Este artigo se propõe a investigar as conseqüências da carência simbólica na psicose no tocante ao sexual, principalmente no que se refere ao posicionamento do sujeito na partilha dos sexos, ao corpo, aos encontros com o sexual. Por outro lado, procura-se dimensionar os possíveis recursos e saídas que o sujeito encontra em sua própria condição estrutural, permitindo-lhe suprir tal carência, o que lhe confere a possibilidade de conquistar um apaziguamento de sua errância em relação a sua não inscrição sexual.

Palavras-chave: Psicose, Sexualidade, Foraclusão do Nome do Pai, Empuxo-à-mulher

 

   
 

 

The Psychotic: The subject adrift in the sharing of the sexes - from the outbreak to the possibility of stabilization.

 

Abstract

This article proposes to investigate the consequences of the symbolic lack in psychosis with regards to sexuality, principally with reference to the position of the subject in the sharing of the sexes, in the body and in other engagements with sexuality. On the other hand, this paper seeks to give a dimension to the possible resources and solutions which the subject finds for his own structural condition, allowing him to suppress this lack and to conquer an appeasing feeling in his quest for the errancy in his sexual inscription.

Key-words

Psychosis, Sexuality, Preclusion of the-Name-of-the-Father, woman Push

 

 

 

 

 

 

 

 

Deus criou o homem

O homem criou Deus

O homem é mulher

Mulher é homem

Eu queria tanto governar uma vidinha boa.

(Fragmentos de sessão)

 

A descoberta freudiana nos ensina que não há natureza do masculino ou do feminino. Ser homem ou ser mulher está condicionado à travessia edípica que institui a realização da sexualidade humana pela via simbólica. A inscrição da diferença anatômica entre os sexos deve ser procurada no redimensionamento da posição assumida pelo sujeito diante da evidência da castração instaurada pela da Lei do Pai.

Com Lacan, o Nome-do-Pai, agente da castração, inviabiliza o ideal de plenitude do estágio do espelho ao barrar o gozo da mãe, deslocando a criança do lugar de objeto de seu desejo, condição necessária para a entrada do sujeito na ordem simbólica. O Nome-do-Pai, ao mesmo tempo em que barra o Outro, bancando a castração, possibilita um princípio de resposta, um ponto de apaziguamento frente ao enigma do desejo da mãe. Essa resposta resultante da metáfora paterna é a significação fálica, paradigma de toda a significação, que permite ao sujeito significar a diferença sexual anatômica e se situar na partilha dos sexos como homem ou mulher. Lacan procurou traduzir tal diferença da posição sexual, inscrita pela vertente do falo em termos de "fórmulas da sexuação" (Lacan, 1985, p.108).

Na psicose, a carência simbólica, decorrente da foraclusão do Nome-do-Pai como condição estrutural, determina uma falha na realização da identificação essencial ao posicionamento sexual por inviabilizar o advento da metáfora paterna e de sua resultante: a significação fálica. Em conseqüência, sem esse ponto de identificação, de apaziguamento imaginário, o psicótico é um sujeito solto, errante, sem referência ao seu sexo, à deriva no que se refere à partilha dos sexos.

Porém, este estado de desamparo em relação a uma possível identificação ao tipo ideal do sexo só se torna aparente após o desencadeamento, ou seja, a partir do surto psicótico. Antes do desencadeamento, o sujeito se conduz aparentemente como as demais pessoas, socialmente falando, consegue se adaptar às situações cotidianas sem manifestar maiores dificuldades. Lacan, no Seminário 3 chega pronunciar que "nada se parece tanto com uma sintomatologia neurótica quanto uma sintomatologia pré-psicótica" (1988, p. 219).

No exemplo do caso Schreber (Freud, [1911/1976]) observa-se que o desencadeamento de sua psicose ocorrera somente aos 51 anos, quando aparece todo o transtorno em sua identidade sexual. Antes desta data, sua vida pode ser considerada normal, até mesmo exemplar, pois mantém uma vida conjugal satisfatória, só importunada pelo fato da impossibilidade de ter filhos e sua carreira profissional como jurista é premiada de êxitos, com várias honrarias e promoções, chegando ao ponto culminante de ascensão ao ser nomeado juiz presidente do Tribunal de Apelação de Dresden.

Diante da constatação desta estabilidade do sujeito, em momento anterior à eclosão dos sintomas psicóticos, surgem as questões: quais arranjos, que recursos são utilizados, neste período da vida, para compensar a falha simbólica, na medida em que aquilo que se presentifica desde sempre como condição estrutural na psicose é a foraclusão do Nome-do-Pai? Como o sujeito se sustenta na ausência deste significante primordial que dá acesso ao simbólico e que possibilita a significação da existência humana, dando-lhe referencias para que se situe a partir da norma fálica enquanto homem ou mulher?

Lacan (1988, p. 232) afirma que a função do pai não é simplesmente de gerar, mas de possuir de direito a mãe, instaurando a lei do Édipo, que dá ao filho condição de acesso ao posicionamento sexual. Diante dessa afirmação, interroga: "Que se passa se uma certa falta se produziu na função formadora do pai?"; e responde: "na impossibilidade da realização do significante pai a nível simbólico, resta ao sujeito a imagem a que se reduz a função paterna". (Ibid: p. 233). No entanto, o pai, carecendo de sua função simbólica, é uma imagem que não se inscreve em nenhuma dialética triangular, oferecendo, desta forma, não uma mediação simbólica, mas um modelo de alienação especular. Ainda assim, possibilita ao sujeito um ponto de ancoragem que lhe permite apreender-se no plano imaginário. Desta forma, por falta de referência simbólica, o sujeito se encontra capturado no plano imaginário, onde a relação dual e desmedida com o outro, característica do estágio do espelho, é a tônica.

Lacan, em 1955, nomeia de pré-psicose o momento que antecede o abismo, ou seja, este momento anterior ao desencadeamento, quando o sujeito vai buscar a compensação para a despossessão primitiva do significante que condiciona a virilidade em uma série de identificações com personagens que lhe darão a noção do que fazer para ser um homem. Estas identificações atuam como bengalas imaginárias que possibilitam que certos psicóticos vivam compensados por muito tempo, tendo aparentemente comportamentos comuns, considerados como normalmente viris. O exemplo de um banquinho de três pés é utilizado por Lacan para ilustrar este momento pré-psicótico em que o sujeito se sustenta no apoio imaginário (Ibid., p. 230):

Nem todos os tamboretes têm quatro pés. Há aqueles que ficam em pé com três. Contudo, não há como pensar que venha faltar mais um só senão a coisa vai mal. Pois bem, saibam que os pontos de apoio significantes que sustentam o mundinho dos homenzinhos solitários da multidão moderna são em número muito reduzido. É possível que de saída não haja no tamborete pés suficientes, mas que ele fique firme assim mesmo até certo momento, quando o sujeito em certa encruzilhada de sua história biográfica, é confrontado com este defeito que existe desde sempre. Para designá-lo, contentamo-nos até o presente com o termo Verwerfung. (LACAN, 1988, p. 231).

O mecanismo do "como se", abordado por Hélène Deutsch, que se refere a uma dimensão significativa da sintomatologia dos esquizofrênicos, é estendido por Lacan (1988) à vivência pré-psicótica, a fim de esclarecer a falta de autenticidade característica deste momento. Na pré-psicose, independentemente do acesso do sujeito a algo que possa realizá-lo no tipo viril, por intermédio de uma imitação, de uma colagem imaginária, passa a se comportar "como se" fosse um homem:

A maior parte das observações psicanalíticas deste artigo, trata de estados que comportam uma relação estreita com a despersonalização, mas que diferem da despersonalização, na medida em que eles não são percebidos como perturbação pelos próprios pacientes. A esse tipo especial de perturbação eu dei o nome de "como se". Eu devo insistir no fato de que esse nome não tem nada a ver com o sistema de "ficção" de Vaihinger e a filosofia "como se". Minha única razão para empregar este rótulo tão pouco original para o tipo de seres que eu quero representar é que cada tentativa para compreender a maneira de sentir, de viver desse tipo impõe ao observador a irresistível impressão de que toda a relação do indivíduo à vida tem qualquer coisa em si que falta autenticidade e é, portanto, concebida exteriormente "como se" fosse completo. (Deutsch, 1942 [1970], p. 224-225).

Este mecanismo de "como se" é ilustrado, no Seminário 3 (Lacan, 1988) com um exemplo muito interessante: trata-se de um adolescente que, em período pré-psicótico, tenta conquistar a tipificação de uma posição viril por intermédio de uma imitação, de uma atrelagem a um de seus companheiros. Como este, e nas suas passadas, tornam-se possíveis as primeiras manobras sexuais da puberdade, a masturbação principalmente, passando a se identificar com ele por uma série de exercícios denominados de conquista sobre si mesmo. Como ele, se interessa por uma menina, a qual, como por acaso, é a mesma pela qual seu companheiro se interessara. Todo o seu comportamento em relação ao amigo lhe serve como elemento piloto de sua tentativa de estruturação no momento da puberdade.

A "pré-psicose deve ser tomada ao pé da letra" (Lacan, 1988, p. 230) à medida que representa esse momento limite em que "o sujeito chegou à beira do buraco" e só aí não se precipitou devido ao anteparo das muletas imaginárias. Porém, o que será que, subitamente, torna insuficientes as bengalas imaginárias, determinando que o sujeito transponha o limite do abismo, que ocasiona o descarrilamento, a quebra abrupta das referências existenciais e que determina o desencadeamento de uma psicose?

 

A dissolução imaginária

Como foi desenvolvido acima, antes do surto psicótico a realidade é sustentada devido ao apoio das bengalas imaginárias. O chamado ao Nome-do-Pai, foracluído do simbólico, provocará um abalo nestas referências, acarretando o que Lacan (1988, p. 106) denomina de dissolução imaginária. O desencadeamento da psicose corresponde ao momento em que, frente a determinados acontecimentos e vicissitudes da vida, frente a um chamado do simbólico, o sujeito precisa fazer um apelo ao significante do Nome-do-Pai que jamais adveio no lugar do Outro, e neste momento nada lhe vem ao auxílio. "O que é falho intervêm e interroga" (Ibid., p. 230), os modelos não bastam mais como respostas a tais interrogações e no lugar do simbólico presentifica-se um buraco, um vazio.

Este fato vem revelar a hiância imaginária devido à carência decorrente da foraclusão do Nome-do-Pai (NP0), pois a significação fálica (F), que é a resultante da metáfora paterna, aparece em oposição ao (0). Sendo assim, o Nome-do-Pai corresponde ao mesmo ponto topológico. Daí NP0: F0. Na estrutura psicótica, ao apelo do Nome-do-Pai responde um furo desse próprio significante e, pela carência do efeito metafórico, ocasiona um furo correspondente no lugar da significação fálica (Lacan, 1998: p. 564), ocasionando o descarrilamento da cadeia significante que revelará o desastre imaginário.

Tem-se, então, que os fenômenos de dissolução imaginária, que ocorrem no desencadeamento de uma psicose, são a manifestação desta hiância imaginária decorrente da carência simbólica. Isto faz com que no surto psicótico se revele um duplo furo, que se presentifica do lado do simbólico, e do lado do imaginário como conseqüência do primeiro. Fato que vem revelar a presença da psicose na estrutura.

O saber no qual o psicótico se organizava fora da crise, agora, com a eclosão do surto psicótico, não vale mais e se revela o "Crepúsculo da realidade" (Ibid., p. 234), trazendo a vivência de "fim de mundo", a clareza da morte, a falta de sentido, o encontro com o real devido à ausência do véu resultante da mediação simbólica. Presentifica-se para o sujeito a fragmentação, a deformação da imagem, o despedaçamento do corpo, que se torna invadido, mortificado, à mercê do gozo desenfreado do Outro. Caracteriza-se assim a elisão do falo como terceiro elemento mediador, e a regressão tópica ao estágio do espelho, onde o sujeito passa a operar no registro imaginário, estando sujeitado aí aos caprichos do Outro. Este fenômeno de dissolução imaginária pode ser ilustrado na primeira fase da doença de Schreber, caracterizada como o momento esquizofrênico de sua experiência, sobre o qual este relata a vivência da morte em vida, do despedaçamento da alteridade e da identidade imaginária, com o gozo retornando sobre o seu corpo, sem nenhuma mediação, nem barra.

Sobre esse retorno ao estágio do espelho, característico do momento de desencadeamento da psicose, no qual se presentifica a submissão ao Outro numa relação dual alienante, Lacan comenta:

Esse fenômeno (o assassinato d’almas), que é para Schreber o sinal de entrada na psicose, pode tomar para nós, comentadores – analistas, toda a espécie de significações, mas o único lugar que ele pode ser colocado é no campo imaginário. [...] Há aí uma relação puramente dual, que é a fonte do próprio registro da agressividade [...] e de seu surgimento quando se acha curto-circuitada a relação triangular, edipiana, quando esta é reduzida à sua simplificação dual (Lacan, 1988, p. 343).

De repente, me vi numa estrada que não conhecia e que não me levava a lugar nenhum [...], quando se sabe da morte a vida perde o sentido", revela um paciente ao comunicar o sentimento de descarrilamento vivido com a irrupção da psicose. Esse relato traduz a metáfora de Lacan, quando concebe o significante do Nome-do-Pai como estrada principal, que dá sentido à existência do sujeito. "Como o significante não é nunca solitário, como ele sempre forma alguma coisa de coerente – é a significância mesma do significante - a falta de um significante leva necessariamente o sujeito a reconsiderar o conjunto do significante" (Ibid., p.231). Quando se presentifica a ausência deste significante primordial, desta estrada principal, o sujeito se torna errante, sem destino, sem referências que o orientem. E o que lhe resta? É o defrontar-se, sem anteparo, com o real. O apelo ao significante foracluído do simbólico ecoa no real, põe-se a falar no real, denotando a presença das alucinações auditivas, fenômeno característico deste momento do desencadeamento:

Para levar um pouquinho mais adiante minha metáfora, eu lhes direi - como fazem eles, aqueles que a gente chama os usuários da estrada, quando não há estrada principal, e que se trata de passar por pequenas estradas para ir de um ponto ao outro? Eles seguem os letreiros postos na beira da estrada. Isso quer dizer que, ali onde o significante não funciona, isso me põe a falar sozinho à beira da estrada principal. Ali onde não há a estrada, as palavras escritas aparecem nos letreiros. Talvez seja isso a função das alucinações auditivas verbais de nossas alucinações – são os letreiros na beira do caminho (Ibid., p. 330-331).

Esse momento da dissolução imaginária, também, vai acarretar, para o sujeito, todo um transtorno na sua identidade sexual, revelando seu estado estrutural de errância em relação ao posicionamento na partilha dos sexos, pois, fora da possibilidade de significar seu sexo pelas vias do falo, com o desmoronar de suas referências imaginárias, o sujeito perde sua possibilidade de identificação a um modelo de posição sexual, com o qual se nomeava e se apresentava em seu cotidiano.

Tal acontecimento traz um sentimento de profunda perplexidade, o que, talvez, nos revele o desenho, a seguir, feito por um usuário em uma oficina terapêutica no CAPS Casaviva:

 

FIGURA 2 - Desenho produzido por usuário em oficina de arte – II

FONTE - Oficina de Arte do CAPS Casaviva, 2000.

Na figura, observamos um sujeito assolado pela presentificação do puro enigma, submerso em interrogações, sem nenhum anteparo imaginário, revelando um corpo fragmentado e disforme. Na região dos genitais, vê-se nádegas (abolição da diferença sexual), o que não demonstra a bipartição dos sexos, posto que não denuncia a castração, à medida que esta é revelada a partir da oposição presença-ausência que a diferença sexual anatômica impõe. A tentativa de construir o masculino e o feminino aparece de forma tênue, sem relevância, como está expresso no lado esquerdo inferior do desenho.

Lacan, no Seminário 3, em 1955, reconhece este momento de errância, no caso Schreber, quando ao chamado do simbólico, frente à nomeação para o cargo de juiz presidente do tribunal de Apelação de Desdren, no intervalo entre sua nomeação e posse, é subitamente invadido pela fantasia de que "afinal de contas deveria ser bom ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula" (Freud, [1911/1876], p. 62). Fantasia frente à qual Schreber reage com profunda indignação, pois jamais houvera integrado nenhuma forma de posição feminina (Lacan, 1988, p.102), o que lhe traz a sensação de um estado de "confusão pânica".

Lacan concebe que essa intrusão deste pensamento, até então inconcebível, como a presentificação do puro enigma, ou seja, a emergência no real de uma significação que não se remete a nada, na medida em que não pode ser ligada a nada, posto que jamais entrou no sistema de simbolização do sujeito, que se refere à função feminina em sua função simbólica, ou seja, a significação do desejo da mãe (Ibid., p. 102). O Nome-do-Pai tem a função de metaforizar o significante do desejo da mãe, permitindo que tal desejo seja significado pela significação fálica. Na psicose, a foraclusão do Nome-do-Pai faz com que permaneça enigmático o desejo da mãe, o qual retorna do real, a céu aberto de forma enigmática para o sujeito. "Na relação do sujeito com o símbolo, há a possibilidade de uma Verwerfung primitiva, ou seja, que alguma coisa não seja simbolizada, que vai se manifestar no real" (Ibidem, p. 98), que retorna para o sujeito no real de seu corpo, impondo-lhe uma desvirilização, um estado de feminilização forçada, o que é vivido no primeiro tempo da manifestação doença de Schreber persecutoriamente e com grande repugnância.

André apoiava a sua virilidade em uma identificação com seu avô paterno, o qual considerava um grande homem. Exibia com profundo orgulho o sobrenome que dele herdara. Sua psicose se desencadeia com a morte de seu avô, pois este, enquanto vivo, lhe possibilitou um nome, uma identificação imaginária. Porém, esta identificação com o nome do avô não se constitui na possibilidade de uma nomeação simbólica, em uma herança que lhe outorgasse uma posição, um nome para além da morte. Assim, com a morte do avô, perde-se o nome, perdem-se as referências e sua posição viril é ameaçada. Escuta, por todos os cantos, vozes que o chamam de veado. Sente-se como "uma verdadeira mulherzinha". A sua fragilidade simbólica também inviabiliza a conformidade de uma imagem no espelho. Diz que sua imagem sempre lhe parece estranha, esquisita, deformada. Apesar de dizer que quer namorar, não sabe se portar diante das meninas, fracassando em toda a oportunidade de encontro. Em uma sessão revela: "Com dezoito anos, não sabia o que era masturbação, nunca tinha me masturbado. Os pais é que devem dar sentido destas coisas para a gente. Meus pais sempre foram fracos, meu pai vive deprimido, deitado, tomando remédio. Por isso não sei entender as coisas do mundo. É difícil me relacionar com as mulheres".

Percebe-se que este estado de feminilização forçada, no qual o sujeito se sente abruptamente tomado, como o que fora relatado no caso André, e que se mostra tão evidente na irrupção da psicose de Schreber, vem revelar este estado do sujeito não referido à norma fálica na psicose. Trata-se de um gozo foracluído do simbólico, que retorna do real, não podendo, assim, ser considerado sexual. Dessa forma, diferente do que Freud (1976, p. 62) considerou no estudo do caso Schreber, a teorização lacaniana irá apontar que este estado de feminilização não poderá ser considerado como causa da psicose, mas como efeito do não posicionamento do sujeito na partilha dos sexos.

 

O empuxo-à-mulher

Lacan (1973), em "L’Étourdit" vai denominar como "empuxo-à-mulher" (1973, p. 22) a orientação feminina para o gozo na psicose, ou seja, esta vivência de feminilização que diz de um gozo não referido à norma fálica. O empuxo-à-mulher é o efeito da irrupção de "Um-pai" como sem razão, sentido como forçamento para o campo do Outro, a ser percebido como o mais estranho de todos os sentidos.

Esta irrupção de Um-Pai torna-se desestabilizadora, estranha a todos os sentidos, determinando o efeito do empuxo-à-mulher devido à falha do pai no lugar de exceção. Retomando as fórmulas quânticas da sexuação (Lacan, [(1972/73) 1985, p. 108), elaboradas por Lacan no Seminário 20: Mais Ainda, vê-se que é a exceção paterna, este "ao menos um não referido à norma fálica" ($x Fx), ou seja, este "ao menos um", neste contexto, não castrado, que viabiliza o universal da castração e a orientação de todos os homens pela vertente do falo ("x Fx). A exceção é o que vem, então, confirmar a regra, o universal de todos os homens. A castração é o que limita e induz a posição viril, possibilitando que os homens se identifiquem com a vertente daqueles que têm o falo. A foraclusão do Nome-do-Pai determina a falha na exceção paterna, daí se revelar na psicose a impossibilidade do estabelecimento do universal "todos os homens", ou seja, a impossibilidade do sujeito se localizar como sexuado pela vertente do falo. Schreber já anunciava esta precariedade estrutural quando bem dizia que a raça humana nada mais representava que "imagens de homens feitos às pressas" (Schreber, 1995, p. 99).

Assim, Lacan [(1973), p. 22) vai sustentar que esta irrupção de Um-pai, frente à não existência da exceção paterna na psicose força o sujeito em direção a um gozo fora dos limites fálicos, que é específico do primeiro quantificador, do lado feminino, das fórmulas quânticas da sexuação ($x Φx) determinando o empuxo-à-mulher. Este quantificador do lado feminino afirma a impossibilidade de se dizer o universal das mulheres posto que não existe a exceção, ou seja, não se pode dizer de nenhuma que se exclua da castração, apontando que há algo no gozo feminino que escapa, que não é redutível ao gozo fálico, que diz de um além. Um Outro gozo, "louco", "fora do significante", suplementar que Lacan compara ao gozo místico (1985, p. 103).

Sobre esse gozo "louco" para além do falo, que tem um elo com a loucura e a mulher, Miller comenta:

Schreber nos fala com tanto élan, um gozo que pode ser intolerável, mas que tem um elo com a loucura e a mulher, um elo que se conhece há muito tempo, que conduz a pensar que as mulheres seriam loucas, porque os loucos por um lado são mulheres. Pode-se sempre buscar esse ponto de gozo especial e excessivo, nos loucos. Schreber é o exemplo paradigmático disso e Lacan escreveu o matema: o efeito de empuxo-à-mulher. [...] Um efeito de feminilização do louco e que traduz muito especialmente a foraclusão do Nome-do-Pai (MILLER, J. 1997, p. 70).

Esta solução feminina para o gozo na psicose, devida à elisão do falo, também, pode ser lida no texto lacaniano, em 1958, em "De uma questão preliminar [...]", quinze anos antes do que Lacan formulou em "L’ Étourdit". No texto de 1958 lê-se: "[...] na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens" (1998, p. 572). Ao dever ser o falo, o psicótico é levado a se situar do lado da mulher. O psicótico se encontra aí, como uma mulher, no lugar de objeto. É por não ter, que a mulher deseja ser o falo, se transformando no que ela não tem - o objeto fálico.

Porém, se um paralelo entre o gozo psicótico e o gozo feminino se impõe, podendo ser lidos no mesmo quantificador lógico ($x Fx), caberia aqui perguntar em que diferem. Retomando as fórmulas quânticas da sexuação, Lacan (1985, p. 98) vai fundamentar que no caso das mulheres há uma relação com a fórmula da inexistência da exceção, fazendo com que estas escapem da generalização falocêntrica. No entanto, há uma segunda fórmula, que as submete, apesar de "não-toda", à função fálica ("x Fx) (Ibid., p. 100). O que determina que apesar das mulheres experimentarem um gozo “suplementar", este estará sempre bordejado pelo gozo fálico, que nada tem haver com o gozo ilimitado da psicose que, como vimos, retorna para o sujeito do real como presentificação do puro enigma.

É interessante destacar que o retorno no real deste gozo feminino sem limite, não ancorado pelo simbólico, não se restringe a irrupção de um pensamento, mas traz para o sujeito sensações sinestésicas de transformação do corpo, que se inscreve com a marca de uma desvirilização. Como vimos no caso Schreber, após a fantasia de que deveria ser bom ser uma mulher submetida à cópula, com a deflagração de sua psicose, este passa a ter a sensação de uma verdadeira transformação em mulher (Freud, 1976, p. 62). Schreber chega a solicitar exames médicos para a verificação das mudanças ocorridas em seu corpo, para que se constate sua condição feminina. O que nos revela, como indica Lacan (1998, p. 575), que na psicose o sujeito experimenta um gozo transexual, gozo não fálico, conseqüência da foraclusão do Nome-do-Pai, não podendo, assim, ser confundido com o gozo homossexual.

 

A estabilização: a reconstrução imaginária

Como foi até aqui descrito, o fenômeno do empuxo-à-mulher é a experiência, na psicose, do gozo não limitado pelo falo, que se manifesta diante da dissolução imaginária, devido ao apelo do simbólico, vindo refletir a errância do sujeito na partilha dos sexos. Porém, se é a experiência de feminilização que em um primeiro momento diz dessa passagem abrupta a um estado de disvirilização, é também, pela via do empuxo-à-mulher, que o sujeito pode traçar, por mais paradoxal que possa parecer, a possibilidade de uma solução possível, um limite ao gozo, uma restauração imaginária. A tentativa de compreender este aparente paradoxo é o que aqui pretendo descrever como último ponto de reflexão.

O caso Schreber, [Freud, (1911) 1976, p. 15) pode ser tomado como descrição de um caso paradigmático, no qual se percebe com muita precisão o momento de desencadeamento e o momento de estabilização, onde a questão da feminilização se impõe como ponto central. Nota-se que no desencadeamento, na primeira fase da doença, entre o momento de indignação devido a eviração até sua aceitação, o sujeito se vê aí submetido a um gozo imposto, mortal, que advêm do Outro. Schreber está horrorizado, perplexo frente à vivência de feminilização, sente-se perseguido, julgando ser alvo de uma conspiração de seu médico, que lhe impõe uma condição feminina com fins de abusos sexuais. Vive uma degradação de sua imagem, sente-se morto e em decomposição. Chega a dizer ser "um cadáver leproso que carrega outro cadáver leproso" (Schreber, 1995, p. 91-92), sendo a raça humana considerada como nada mais que homens apressadamente improvisados [Freud,(1911),1976, p. 92). Seu mundo é desinvestido. Freud, considera tal desinvestimento como a retirada da libido dos objetos e do mundo externo e retorno ao eu (Ibid., p. 93). É isso o que corresponde à experiência de "fim de mundo", que nada mais representava senão a "projeção de sua catástrofe interna; que seu mundo subjetivo chegou ao fim" (Ibid., p. 94).

Num primeiro tempo, este gozo do Outro, imposto deletério, em relação às fronteiras do corpo e perturbador de suas funções, está ligada à ameaça de eviração – Entmanung - que conota - não a castração, Lacan insistiu nisto – mas a sua falta, seja a significação de um gozo não fálico que exclui que Schreber seja gozado como homem , e que, mais além do que ele chama sua honra, seja mortal para o sujeito. Um gozo foracluído do simbólico que retorna desde o real , e em si mesmo não é sexual. (Soler, 1991, p. 155).

Em um segundo momento da enfermidade de Schreber, é pela via da aceitação, de uma reconciliação com seu estado de transformação em mulher, que o sujeito pode construir, como Lacan [(1966) 1998, p. 584] assim denomina, a "metáfora delirante" - A mulher de Deus. Neste momento de sua construção delirante, não só aceita a condição feminina, mas a encara como um dever, apoiado em um sistema de crenças, nas quais deve se oferece a Deus como mulher a fim de procriar "uma nova raça de homens" (Freud, (1911) 1976, p. 67). Assim, como Mulher de Deus, Schreber acredita estar cumprindo um papel fundamental para a salvação da humanidade. A sua emasculação não é mais concebida como uma calamidade, uma arbitrariedade, mas "consonante com a Ordem das coisas", instrumento para a recriação da humanidade (Ibid.). Ao aceitar sua nova condição de mulher o sujeito reconquista um estado de estabilização com a restauração imaginária e recomposição de sua realidade com um reinvestimento libidinal de seus objetos.

Assim, no desencadear da psicose o empuxo-à-mulher vem denunciar a falha na exceção paterna, fazendo com que se desvele para o sujeito sua condição estrutural de não vinculação ao universal da norma fálica, o que é vivido com horror em um primeiro momento devido à dissolução das referências imaginárias viris. No entanto, é pela via de uma aceitação, de uma reconciliação com esta condição feminina, ou seja, pela via da própria condição estrutural, que se pode pensar uma solução para a psicose. Pois o empuxo-à-mulher, ao mesmo tempo em que denuncia a falha do pai no lugar da exceção, é a possibilidade de se criar a exceção, ou seja, supri-la.

No empuxo-à-mulher, o sujeito cria a exceção ao encarnar, ao subjetivar a mulher que não existe, ou seja, a “ao menos uma” não submetida à norma fálica, viabilizando, assim, a exceção que vem suprir a exceção paterna foracluída do simbólico. O delírio de Schreber é testemunho do empuxo-à-mulher neste lugar de exceção, pois na posição de "mulher de Deus", torna-se único, detentor de um gozo sem limites, fora da castração. Assim Schreber, por falta do Nome-do-Pai, faz a mulher, inventa a mulher que não existe. Ou seja, na ausência da metáfora paterna, uma outra metáfora se produziu. O advento da metáfora delirante “Mulher de Deus” tem como função suprir o Nome-do-Pai foracluído do simbólico.

Schreber transformou-se em Um, ou antes, em Uma a quem é permitido gozar sem limites. Como dizer mais claramente que a mulher Schreber supre a função do pai? A falta da exceção paterna que, fundando o universal da castração, teria feito Schreber ingressar na ordem da castração para todos, a lógica da estrutura não permite outra alternativa ao sujeito, senão encarar a exceção (Soler, 1991, p. 157).

A Mulher-Schreber, no lugar da exceção, tem função de ponto de basta, que faz limite ao gozo e consente a estabilização da psicose e uma restauração imaginária que permite a recomposição da realidade que, como é observado em Schreber, torna-se a condição para a criação de um universal, ou seja, a criação redentora de uma nova raça humana que doravante era constituída de "homens apressadamente improvisados".

O corpo que na primeira fase da doença se revelava putrefeito, mortificado, fragmentado, adquire consistência e contorno através do investimento na imagem escópica das formas femininas. De fato, esta imagem-reflexo com a qual Schreber cultiva a beleza e a volúpia, da qual ele é o único espectador, veste-o, protege-o, antes de tudo da fragmentação corporal, que o ameaça incessantemente. As preocupações hipocondríacas e os ataques ao corpo são substituídos por uma idealização e reunificação, através de uma prática transexualista em que Schreber, diante do espelho, testemunha sua transformação em mulher. Isto lhe permite tomar uma posição frente ao não posicionamento na partilha dos sexos. Através da imagem refletida do espelho, testemunha uma localização para o gozo que, tendo encontrado sua inscrição como feminino, se liga à imagem e à pulsão escópica, restaurando assim uma versão sexuada para o gozo que, por não ser versão simbólica, não deixa de ser menos regulado. (Ibid., p.156)

Schreber escreve suas “Memórias...” a fim de provar para o mundo a veracidade e a necessidade de sua transformação em Mulher, para que sua construção delirante fosse reconhecida, aceita, tivesse ouvidos, como forma própria, subjetiva de reaver, mesmo que delirantemente, sua realidade e seus laços sociais. Após oito anos de internação psiquiátrica, em 14 de julho de 1902 é considerado curado, consegue alta hospitalar, recupera sua capacidade civil, e a livre disposição de seus bens lhe são devolvidas, volta a viver junto com sua mulher e de uma menina de treze anos que é adotada pelo casal e se reintegra ao trabalho, conservando, porém, com todo seu peso de convicção sua idéia de transformação real em mulher.

A partir de então, escrevi na minha bandeira, com plena consciência, o culto à feminilidade e, à medida que a consideração pelo ambiente o permita, continuarei a fazê-lo, pensem de mim o que quiserem aqueles a quem escapam as razões sobrenaturais. Gostaria de ver qual o homem que tendo que escolher entre tornar-se louco com aparência feminina ou tornar-se mulher e são de espírito, não preferiria a última alternativa. Mas é desse modo e apenas desse modo que a questão se coloca para mim [...]. Sem me preocupar com o julgamento dos outros, permito-me tomar como guia um sadio egoísmo , que me prescreve o culto da feminilidade de modo que depois descreverei mais precisamente Só assim consigo proporcionar ao me corpo durante o dia um estado suportável e à noite, pelo menos em certa medida obter o sono necessário à recuperação dos meus nervos (Schreber, 1995, p. 148, grifos da autora).

 

 

Referências Bibliográficas

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______. L’Étourdit. In: ___. Scilicet 4. Paris: Seuil, 1973.

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SCHEREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Trad. Marilene Carone. RJ: Paz e Terra, 1995.

SOLER, Colette. Artigos clínicos. Trad. Elena Lopes Cólb. Salvador: Fator,