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Introdução
Uma certa
tradição da sociologia moderna[1]
assinala que já não podemos falar da estabilidade das
identidades contemporâneas, pois já experimentamos a assunção de
todos os modelos de representação e de anti-representação. Hoje
tudo está liberado e agora que disponibilizamos todos os signos,
todas as formas e todos os desejos, só podemos simular. No
esquema atual de nossa cultura, vivemos a patologia dos
simulacros, na qual só há uma espécie de dispersão aleatória dos
signos da diferença. Prolifera o regime das indiferenças em
todos os sentidos, inclusive, do sexual.
Em todos os
domínios, esmaece-se a grande aventura dos seres sexuados, em
proveito de seres assexuados. Parece que o mundo contemporâneo
aspira uma espécie de ideologia erótica que sonha, não mais com
a liberdade sexual, mas com uma liberação do sexual. Nesse sonho
de liberação do sexual, clama-se pelo regime da indiferença
sexual ou das ambigüidades sexuais. Sob o signo nessa nova
erótica, o visual indeterminado dos transgêneros (transexuais e
transvestidos) e dos intersexuados (andróginos e
hermafroditas) aparece como estado ideal. Seja um visual
indefinido pela indeterminação genética nos intersexuados, seja
o visual dos transgêneros cujo travestismo atravessa as regras
do gênero, um visual erótico que exorciza do corpo os signos da
diferença sexual aparece como o novo clamor do sexo.
A vanguarda
das biotecnologias trama em nome de uma erótica clônica, em nome
do fora do sexo, do fora do corpo: é a transexualidade
generalizada. A designação ‘trans’ contamina todos os
acontecimentos: transeconômico, transestético, transliterário,
transexual, transpolítico. Em todos os domínios, fomos
atravessados pela confusão dos gêneros, pela contaminação de
todas as categorias: tudo é político, tudo é estético, tudo é
sexual. Mas quando tudo é sexual, nada mais é sexual. O sexo
perde toda a determinação. O corpo sexuado está entregue hoje ao
destino artificial da transexualidade, ao jogo performático da
comutação dos signos do sexo. O mito da transexualidade seduz em
toda parte. Já não temos mais convicção sexual, somos trânsfugas
do sexo, exorcistas do corpo e do desejo. Ser tornou-se uma
performance efêmera. A liberação de todos os signos do sexual e
de todas as virtualidades do desejo, leva a uma interrogação
inusitada: serei um homem ou serei uma mulher? Qual será a minha
escolha?[2]
Para abordar
clinicamente o fenômeno contemporâneo do transexualismo e de
seus correlatos, a mudança de sexo e a redesignação do assento
de nascimento, faço questão aonde o espírito do tempo tende a
fazer assertiva: Já que o mundo se encaminha para um delirante
estado de coisas, devemos nos encaminhar para um ponto de vista
delirante?
O fenômeno
e suas vicissitudes
O
transexualismo é um fenômeno clínico que atravessa a
contemporaneidade e que pode ser considerado um sintoma atual da
civilização. O transexualista seria um sujeito concernido por
uma absoluta certeza de que sua identidade sexual contradiz seu
sexo anatômico. Nesses casos, o sujeito estaria convicto de que
é prisioneiro num corpo que não condiz com seu ser e, sob o
tormento dessa certeza, é compelido num desejo muito enérgico de
passar, por todos os meios, para o outro sexo.[3]
Graças ao
aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas e das terapias
hormonais, o transexual masculino encontra, entre todos os
meios, possibilidade de redesignar seu sexo cirurgicamente. As
cirurgias de mudança de sexo têm se tornado cada vez mais
freqüentes entre os transexuais e, de forma contundente, esse
procedimento vem sendo afirmado como o único recurso eficaz e
válido nesses casos. Alias, existe mesmo uma militância em favor
dessa técnica para atender ao desejo de passar para o outro
sexo. Sob o enfoque da clínica cirúrgica e endocrinológica, o
transexualismo não é senão um distúrbio bem isolado[4]
para uma técnica bem adaptada e um resultado avaliável.
Na esteira da
crença nessa técnica, pode-se aventar que o transexualismo
promete ser o expoente máximo do que vem sendo anunciado como um
direito humano suplementar: o direito de escolher o próprio
sexo. Seria prudente perceber o quanto a subjetividade
contemporânea está tolamente convencida de que a linha divisória
entre os sexos pode ser franqueada segundo a vontade decidida
dos sujeitos. Na errância dessa crença é que o transexualismo
seduz, obnubila um certo ideário coletivo, uma vez que o
fenômeno parece indicar a possibilidade factual de uma travessia
a partir da mudança cirúrgica do sexo.
A captura
midiática do transexualismo também contribui para fazer o
fenômeno passar como um ícone da vitória cientificista sobre a
sexualidade. São vários os casos de transexualismo masculino que
vêem ganhando visibilidade como prova testemunhal de que mudar
de sexo é um fato possível e crível. Mas, antes de fazer de tais
casos modelo, é prudente interrogar as circunstâncias
particulares em que a terapêutica hormonal e cirúrgica se
inscreveria como solução para esses sujeitos.
A técnica
cirúrgica e a correção ortopédica da demanda
A biologia, ao
se debruçar sobre as respostas de cada sujeito ao real dos sexos
focaliza o organismo como suporte da experiência. Essa ciência
não considera que o corpo é uma experiência subjetiva que não se
confunde com as perspectivas funcionalistas do organismo
biológico. Nessa perspectiva de saber, as formas patológicas que
aparecem no corpo não são consideradas senão sintomas de uma
disfunção orgânica a ser corrigida. Por extensão, as
manifestações subjetivas de perturbação na vivência do corpo não
são outra coisa além de uma demanda de correção. A ciência opera
em nome de uma conformação ortopédica da demanda. O que é pedido
à ciência, ela tem a expectativa de responder com medidas
eficazes e de resultados avaliáveis. Se alguém não dorme, por
exemplo, a ciência intervém para fazê-lo dormir através de um
hipnótico do sono; se alguém está deprimido, a ciência põe fim à
depressão com um catalisador de serotonina; se alguém come em
excesso, a ciência disponibiliza inibidores do apetite ou, até
mesmo, cirurgias redutoras do estômago. No caso dos transexuais
não é diferente - se alguém manifesta seu desejo em passar para
o outro sexo, a ciência leva a termo uma mudança de sexo. E com
respeito às perspectivas no campo da mudança de sexo, a ciência
assinala a crença de que, no futuro, os recursos da cirurgia
plástica, aliados à extensão dos recursos da medicina cosmética,
estarão tão avançados que não haverá limites para as mudanças de
sexo. É assim que na contemporaneidade, o transexual está cada
vez mais entregue ao destino artificial de mudar de sexo em
busca da promessa de felicidade ofertada por essa técnica[5].
A mudança
do sexo e seus efeitos
Na era da
adesividade incondicional aos gadgets ofertados pela
ciência cumpre recuperar a advertência lacaniana quanto ao
problema ético do tratamento da demanda. Responder a uma demanda
de amor com um dispositivo prêt-à-porter de felicidade,
ou ainda, responder à angústia real que mobiliza um desejo muito
enérgico com um procedimento de erradicação prévia da angústia
parece ter se tornado um problema ético apenas para os
psicanalistas de orientação lacaniana que se preocupam com a
hiância existente entre a demanda e o desejo, entre a angústia e
o que seria uma dor de existir.
Especialmente
diante de procedimentos irreversíveis como o de mudança de sexo
é prudente, senão urgente, distinguir a demanda exasperada da
cirurgia de mudança de sexo e o desejo muito enérgico de passar
para o outro sexo. Nesse desejo muito enérgico reside algo que
resulta irredutível à demanda, por mais urgente que seja sua
exigência. Compelido por um desejo muito enérgico de passar ao
outro sexo, o transexualista esta implicado numa demanda
impossível, pois, seu desejo muito enérgico é uma paixão cuja
razão seria a de deixar de ser designado transexual, deixar de
ser incluído no campo do Outro sob a designação do gozo
transexualista.
O cirurgião
padece do erro comum de considerar que o sujeito não foi
designado mulher, por causa de seu órgão. Então, parece que é
disso que se trata nesse desejo, de um pedido para eliminar o
órgão, Entretanto, cortar o órgão e fazer no lugar uma genitália
de mulher, realmente muito parecida com o modelo natural, não é
decididamente mudar o sexo do transexual. Mas como o cirurgião
acredita demais na eficácia da técnica, ele afirma ser capaz de
fazer tal mudança que deixará o transexual livre de seu
tormento, de tal forma que o transexual operado vai, finalmente,
reencontrar sua identidade de mulher, porque o estorvo do órgão
foi eliminado. Mas se esse será o destino do sujeito ou não,
isso é uma contingência previamente foracluída pelo discurso
médico e jurídico em prol da técnica de correção do transtorno
de identidade.
Do ponto de
vista da abordagem psicanalítica de orientação lacaniana, o mais
provável é que a castração do órgão precipite o sujeito num
quadro francamente delirante, pois a cirurgia de mudança de sexo
mutila de forma legal o transexual: castra o órgão, não é capaz
de redesignar a identificação sexual do transexual como tal,
desaloja a paixão de passar ao outro sexo da porção do corpo
onde ela se localizava de forma eletiva; isso não erradica o
tormento do gozo, mas promove o aparecimento de um corpo
protético que, no final, já não é de homem, tampouco de mulher.
Nessas condições, pode surgir a configuração de um ser de
aberração e o extravio do gozo, subordinando o transexual
operado ao ostracismo e à ruptura dos laços que o mantinham
ligado à vida, especialmente porque ao nível das parcerias
particulares que esses sujeitos fazem em suas vidas, é muito
mais provável que a causa do parceiro esteja fundamentada num
gozo perverso disfarçado. Disso, o destino mais funesto do
transexual mineiro Tininha-Nova-York (antes Walter de Freitas)
faz testemunho.
Tininha-Nova-York: uma aberração da natureza
Tininha se
submeteu à cirurgia de mudança de sexo, nos EUA, no afã de que
seu parceiro de muitos anos (um oficial americano com quem vivia
em Nova York) não deixasse de vê-la conforme sua certeza de ser
mulher. Este parceiro, em certo momento, lhe teria dito
inadvertidamente (senão pervertidamente): “se você fosse mulher,
seria perfeita para mim”. Esse enunciado cai sobre o sujeito
desencadeando o valor de verdade do travestismo que sustentava o
sujeito livre de sua loucura. Claudicado o travestismo da
imagem, o sujeito passa ao ato e se submete à cirurgia pela qual
lhe foi cortado o órgão. Aquele parceiro, no entanto, não viu
senão o que realmente tinha sido feito: a castração. Tininha foi
abandonada, em função justamente, da castração realizada no
corpo, que incidiu como mutilação na imagem. Tininha acabou
sendo olhada, na cena, como uma aberração. Pode-se deduzir que
na erótica desse parceiro amoroso, a satisfação estava
comprometida muito mais com a configuração de um travesti
disfarçado de mulher, do que com a certeza do sujeito de ser
mulher prisioneira num corpo de homem. O confronto com esse real
foi desastroso para o sujeito – a imagem perdeu a textura e um
corpo caiu; transformado num ser de aberração, o gozo se
extraviou, e o sujeito se precipitou num quadro francamente
delirante. Tininha encontra-se, atualmente, assolada por
delírios de perseguição, certa de que Deus e o diabo vão lhe
castigar por ter cortado o órgão com o qual nasceu. Segregada do
convívio social (o sujeito foi recolhido pela mãe e a família o
mantém isolado em seu ostracismo), segue se designando “uma
aberração da natureza”.
Essas
circunstâncias piores não são uma raridade no horizonte da
mudança de sexo no transexualismo[6],
pois o gozo transexualista é um pendor típico das psicoses que
implica num efeito de feminização (empuxo-à-mulher)[7]
que pode conduzir até a emasculação.
É justamente a
substância do gozo transexualista e sua razão na estrutura que
não deveria ser desconsiderada, pois se trata de advertir a
propósito do problema ético que jaz na afirmação de que a
cirurgia é sob medida para os transexuais, uma vez que o
diagnóstico do transexualismo enquanto um transtorno de
identidade deixa escamoteado, por um lado, a loucura presente na
paixão transexualista, por outro, os efeitos de mutilação da
cirurgia de mudança de sexo. Ao mesmo tempo, é fundamental
recolher na singularidade de cada solução aquilo que tornaria
possível, ao sujeito, um saber-fazer com o tormento
transexualista de tal sorte que ele poderia passar à revelia dos
efeitos de mutilação da cirurgia, efeitos que seriam os mais
esperados nesses casos.
O que venho
estudando me permite dizer que as melhores soluções não estão
diretamente implicadas na mudança de genitália, no uso dos
hormônios que transformam a aparência e tampouco na mudança
formal dos documentos civis. O transexualismo é uma compleição
ao nível do ser, uma paixão que compele o sujeito na loucura de
mudar de sexo, pois isso é impossível. Para esse tormento que
exaspera o corpo e a vida, que implica o sujeito numa errância
rumo ao pior (a vida desses sujeitos, invariavelmente, foi
marcada por abusos, violações, desespero, maus tratos, até
atrocidades e barbaridades), o tratamento mais eficaz é aquele
que trama em nome de um saber-fazer com o travestismo da
imagem.
As soluções
transexualistas
Espero
explicitar o valor clínico do travestismo da imagem, nesses
casos, como o artifício mais eficaz num tratamento que poderia
reduzir a errância desenfreada desse tormento. Em cada um dos
casos a seguir, o sujeito parece ter passado à revelia dos
efeitos de mutilação da cirurgia na medida em que o travestismo
de sua imagem se inscreveu numa cena de espetáculo.
Na
apresentação desses casos, optei por não disfarçar a pessoa em
questão. Até porque a própria apresentação dessas pessoas já
implica um uso do disfarce singular à função do travestismo
nesses casos. Na pratica do travestismo no transexualismo não se
trata de descortinar um falso semblante, mas de reiterar uma
imagem de mulher que reivindica textura de corpo. Trata-se da
apresentação de um disfarce que se apresenta para ser
apresentado, alcançando assim algo de representativo. O gozo
transexualista implicou o sujeito numa performance
relativa ao jogo das aparências, no qual o uso sintomático do
disfarce ancora o ser numa pantomima. Nas soluções alcançadas, o
ser está configurado por uma imagem que faz signo da criatura
feminina, ou como disse, certa vez, Roberta Close, aspira ser
reconhecida como “mulher-de-verdade”. Como somos uma sociedade
escópica, fomentada pelo desejo de ver, mas também pela
compulsão de olhar, alguns transexualistas têm podido alcançar
uma outra economia de gozo ancorada numa imagem que parece mesmo
mulher que, entretanto, só aparece enquadrada numa cena de
espetáculo, na qual o travestismo da imagem é redobrado entre a
imagem apresentada e a imagem admirada pelo enigma que causa. A
mulher-de-verdade é enredada como paródia. Na paródia, trata-se
de uma imitação burlesca de uma composição literária que é
configurada, por excelência, no jogo da intertextualidade.
Nessas soluções transexualistas, o gozo estaria subordinado à
performance sintomática de uma personagem de mulher.
A paixão
transexualista está animada por uma imagem que padece do lastro
do significante. Trata-se de uma imagem que faz signo de gozo
por seu valor icônico: uma imagem, que seria símbolo de mulher,
o que chamei de “uma imagem vestida de mulher”, pois
parece-ser-mulher. A superfície que se constitui como corpo, na
performance da imagem, padeceria de ser virtual. O ser do
sujeito, compelido por essa paixão, não seria senão presa de uma
imagem performativa, literalmente uma composição. A paixão
transexualista sujeita o ser numa errância relativa ao jogo das
aparências, no qual a cena transexualista não seria senão
pantomima. Os arranjos sintomáticos que tornariam possível algum
tratamento do gozo estão, invariavelmente, enquadrados pela
questão do olhar que incide sobre o travestismo da imagem. São
circunstâncias através das quais seria possível verificar uma
sorte de sintoma relativo à aparição de um ser no espetáculo de
sua imagem, que de forma suplementaria fixaria um quantum
de gozo e promoveria um acontecimento de corpo.
Esse conjunto
de conclusões me foi sugerido a partir do estudo que pude fazer
da biografia de alguns reconhecidos transexuais masculinos da
atualidade: Roberta Close, Amanda Lear, Caroline Cossey e Bibi
Andersen. Esses transexuais estariam situados sintomaticamente
pelo efeito do olhar sobre a imagem que faria dizer que o
sujeito não parece senão uma mulher. Curiosamente, esse efeito
se passa à revelia da cirurgia de mudança de sexo, na medida em
que se configura a partir de um saber-fazer entre duas cenas,
entre as quais o ser teve a sorte de estar implicado no
travestismo de sua imagem.
Caroline
Cossey: ex-girl
Caroline
Cossey antes Barry Kenneth Cossey, também conhecida como o
transexual Tula, seria reconhecida como uma Bond-girl,
uma garota James-Bond, no filme For your eyes only,
(Somente para seus olhos). Barry Cossey nasceu em Brooke,
Inglaterra e, no meio de sua adolescência, tornou-se uma “showgirl”
em Paris e na Itália, bem antes de se submeter à cirurgia de
mudança de sexo no Charing Cross Hospital. A “showgirl”
designa o travesti que se apresenta em espetáculos encenados por
travestis (no Brasil, chamamos "show de bonecas"). Nessa
ocasião sua aparência não deixava de assinalar seu travestismo.
Sua figuração como uma das garotas de James-Bond no filme For
your eyes only, marca o refinamento iconográfico de sua
imagem de mulher que transitaria, desde então, de showgirl
para modelo. A partir daí ela apareceria em um ensaio
fotográfico para a revista Playboy, cuja característica
das fotos retomava a imagem de sua personagem no filme de James
Bond. A imagem de ex-garota James Bond propiciaria uma
redesignação do gozo transexualista em razão da
intertextualidade que se compõe entre a imagem da garota James
Bond e o signo da mulher sexualmente ideal. Subordinada a essa
imagem, ex-garota-James-Bond, o sujeito parecia ser um ideal
sexual de mulher. Sob essa nova designação, o transexual Tula
não pareceria senão mulher sexualmente ideal.
A partir dessa
imagem sua carreira de modelo é promovida e ela chega a se
tornar uma supermodelo. A superposição entre a imagem do
transexual Tula e a imagem que parecia ser a de mulher
sexualmente ideal acabaram sendo exploradas em campanhas
publicitárias. Num anúncio para a vodka Smirnoff, Tula
aparecia sob os dizeres: Well, they said that anything could
happen (Bem, dizem que tudo pode acontecer). Sob a
ironia do slogan que pretendia destacar o produto
anunciado, a imagem de Tula não deixaria de ser ironizada.
Assinalava-se, de todo modo, o que jazia presente de forma
velada na Bond-girl, a saber: que a mulher sexualmente
ideal é uma montagem. Numa outra propaganda de bebida, sua
imagem apareceria sob os dizeres Life is harsh (a vida é
discordante), em que
sua imagem de mulher sexualmente ideal passaria igualmente
denunciada sob o signo da perplexidade. O espetáculo de sua
imagem em torno do signo da mulher sexualmente ideal padeceria,
assim, de fixar o tormento do gozo transexualista, e o sujeito
terminaria por ser compelido a um empuxo-a-escrever apesar do
espetáculo de uma imagem que não seria senão de uma mulher
sexualmente ideal.
Caroline Cossey já escreveu duas autobiografias: I Am A Woman
(1982) e My story, the asthonishing autobiography
of the boy who was born to be a woman (1991).
O empuxo-a-escrever autobiografias sugere que,
sob a nova designação, o sujeito não deixa de ser redesignado
uma ex-girl.
Bibi
Andersen: una-auténtica-maruja
Bibi Andersen
antes Manolo Fernandez (1954- ), transitava no cenário dos
travestis espanhóis como “un portento” ou “una de las
damas más pintonas”, até que chega a aparecer redesignada
sob o disfarce chica-de-Almodóvar. Desde seu trânsito
pelo cenário dos “maricones” espanhóis até o cenário
feminino das “chica-de-Almodóvar”, Bibi Andersen
configuraria, a partir mesmo de seus autênticos dotes artísticos
extraordinários, a solução sintomática de seu gozo
transexualista.
Bibi Andersen
é conhecida como uma atriz transexual, que acompanhou o diretor
espanhol Almodóvar ao longo de sua carreira entre os anos 80 e
início dos anos 90. Antes, conhecido como Manolo Fernandez
obteve, no ano de 1969, o prêmio de melhor soldador do ano pela
Escuela de Formación Professional Generalíssimo Franco, de
Málaga. Muito antes de se tornar uma supervedete e mudar de
gênero, o sujeito era um autêntico artista em sua arte de
soldador. Atualmente é também conhecida como Bibiana Fernández,
ou senhora Asdrúbal Fernández. Bibi casou-se com Fernandez, no
final dos anos 90, numa celebração que foi um espetáculo à parte
na Espanha, uma vez que o noivo era reconhecidamente um
autêntico macho ibérico. Muitas vezes confundida com a
atriz sueca Bibi Andersson, Bibi Andersen começou sua carreira
artística como comediante e, desde cedo, no mundo da
farándula (arte e profissão dos cômicos), era designada
“un portento” (pessoa que tem dotes extraordinários).
Mais tarde,
Bibi Andersen mostraria sua cara em quatro filmes de Almodóvar:
"Matador" (1985/86), como a vendedora de flores, "A lei do
desejo" (La ley del deseo, 1986), como mãe de Ada, "De
salto alto" (Tacones lejanos, 1991), como Chon, e "Kika"
(1993), como Suzana, a formosa desconhecida. Sua consagração
como garota Almodóvar (chica Almodóvar) lhe rendeu a
celebração de sua imagem nesse emblema espanhol de mulher.
Pedro
Almodóvar costumava ser destacado por seu trabalho como diretor
de atrizes que sabia se rodear dos melhores nomes femininos do
cinema espanhol. As “chicas de Almodóvar” se constituíram
como signo de um tipo de mulher que parece ser uma versão mais
natural, mais comum de uma mulher que aparece como um sex
symbol. No universo feminino de Almodóvar se queria mostrar
a realidade do sex symbol numa mulher comum sem a
montagem exagerada de uma Marilyn Monroe. As chicas de
Almodóvar apareciam como um tipo de mulher um pouco esperta,
um pouco sonsa e, nessa mágica e divertida mistura, esse tipo de
mulher se fez emblema de uma feminilidade desejável mesmo sendo
comum, ou seja, uma mulher que seria maravilhosa e desejável
para um homem, mas não para todos. Por ter sido capaz de fazer
essa forma feminina do sex symbol aparecer como acessível
a qualquer uma, Almodóvar foi o culpado do fenômeno pelo qual
todas as jovens queriam se tornar uma garota de Almodóvar. Os
versos do poeta espanhol Joaquim Sabina refletem esse emblema de
feminilidade celebrada em que se constituíram as chicas de
Almodóvar: Yo quiero ser una chica
de Almodóvar, como la Maura, como Victoria Abril, un poco lista,
un poquitin boba, ir con Madona en una limousine.
Bibi Andersen
é o transexual que foi celebrado como “uma garota Almodóvar” e
essa designação virtual funcionou como nome de gozo cunhado
sobre uma imagem que seria de mulher subordinada à imagem da
“garota Almodóvar”.
Bibi Andersen
já era um fulgor imponente na errância de seu gozo
transexualista por cenários de duvidosa categoria. Nesses
cenários em que costumam circular os travestis espanhóis, Bibi
Andersen aparecia como una de las damas más pintonas.
Essa designação é uma expressão do dialeto galego que se refere
a um ser irreverente, debochado, fazedor de graças um pouco
obscenas. Mas também não deixa de designar, ao lado, que uma tal
dama não seria senão um travesti. O galego é um dialeto que
misturou o português e o espanhol; e se no idioma espanhol o
pênis é designado polla, no dialeto galego ele é dito
como em português.
Em janeiro de
1983, por uma contingência do destino, Bibi Andersen estava
presente numa festa de consagração a Andy Warhol, que visitava
Madrid naquele mês. Em procedência dessa celebração. Andy Warhol
pode ser evocado como o emblema dos travestis da estética. Andy
Warhol é considerado o precursor de uma nova estética que faz o
elogio de uma total liberdade estética. Ele dizia: “todas as
obras são belas, não é preciso escolher, todas as obras
contemporâneas se equivalem”, ou ainda, “a arte
está em toda a parte, logo, já não existe, todo mundo é genial,
o mundo tal como é, em sua banalidade, é genial”. Contudo, não
se pode acreditar que o que ele estivesse descrevendo fosse uma
total liberdade estética, pois, na verdade, ele estava
descrevendo a configuração da estética moderna que viria a ser o
modo radical do mundo se ver livre da estética.
Desse encontro
virtual entre o travesti Bibi Andersen e a ideologia estética de
Andy Warhol nasceria uma picaresca intertextualidade entre os
limites do signo uma-garota-de-Almodóvar e a verdade do gozo
transexualista desse sujeito. Uma vez que, do ponto de vista da
estética moderna, todas as obras se equivalem, a imagem
espetacular do transexual Bibi Andersen também poderia passar
como equivalente de uma garota de Almodóvar. Nessa contingência,
se inauguraria o processo de refinamento físico, iconográfico e
profissional que converteria Bibi Andersen em
uma-garota-de-Almodóvar.
No filme
“Matador” (1985/86), o sujeito figuraria como uma vendedora de
flores carregando um filho ao colo que, como uma cigana, leria o
destino funesto do herói nas linhas de sua mão. A montagem da
cena e da personagem aludia, assim, à mais consagrada atriz
espanhola, de fama internacional, Sara Montiel. Sarita Montiel,
como ficou conhecida, apareceu no primeiro filme que a consagrou
como uma vendedora de violetas que era filha de cigana, que
conquista o coração do homem cobiçado por todas as mulheres.
Nesse jogo de intertextos, Bibi Andersen passava pela imagem de
desse ícone feminino dos espanhóis.
Em “A lei do
desejo” (La ley del deseo, 1986), como mãe de Ada, sua
imagem de mulher foi configurada pela elegância discreta típica
de uma mãe espanhola tradicional. Nesse filme, a imagem de Bibi
Andersen aludia a um outro ícone feminino da cultura espanhola,
a maruja. Existe um ditado popular na Espanha que diz que
toda mulher depois que se casa vira maruja, isso
significa que ela assume, desde então, sua verdadeira condição
de mulher; passa a cuidar do marido, da casa, dos filhos, e
adota uma elegância discreta em formas mais avantajadas e
robustas. Na cultura brasileira, teríamos como equivalente da
maruja a “Amélia que era a mulher de verdade”.
“De salto
alto” (Tacones lejanos, 1991), sua personagem Chon
exaltava uma forma exuberante de mulher, com os cabelos louros e
seios fartos que, no entanto, seriam denunciados como uma
montagem. Nesse filme, Bibi personifica um transexual cujo
travestismo faria enigma por sua exuberância A personagem Chon
compõe com a atriz Bibi Andersen, a duplicidade de um mesmo
texto.
Em “Kika”
(1993), como a personagem Suzana, seria a formosa e desconhecida
rival de Kika (Vitoria Abril) no amor de Nikolas (Peter Coyote).
No encontro sexual com Nikolas, Suzana personifica uma mulher
fatal, extremamente bonita e sedutora que, no entanto, não faria
senão a paródia da outra, na medida que a condição
transexualista de Suzana não deixaria de ser denunciada na
seqüência do filme.
Sobre a imagem
una de las damas más pintonas, cujo travestismo anunciava
uma falsa garota, viria se superpor uma imagem vestida pelo
signo uma-garota-de-Almodóvar. Subordinada a esse emblema de
mulher, a errância transexualista se fixaria em uma imagem que
não seria senão de mulher. A notoriedade de sua imagem como
uma-garota-de-Almodóvar garantiu ao sujeito a cena do espetáculo
de si como sex symbol. Bibi Andersen foi capa de várias
revistas na Espanha e seu casamento foi uma celebração que
causou sensação em toda a Madri, pois ela se casaria com um
homem que era cobiçado por quase todas as mulheres espanholas.
A celebração
de sua imagem de mulher-de-verdade seria, contudo, empreendida
mais além, no caminho em direção à formalidade de sua imagem
como senhora Fernández. Bibiana Fernandez faz o tipo mulher
recatada, elegante, discreta e natural – una maruja.
Nessa sorte de solução, o sujeito vem podendo confeccionar a
realidade literal de sua montagem.
Amanda Lear:
uma mulher surrealista
Amanda Lear,
antes Alain Tap, uma cantora da Roxy Music, é redesignada
sob o olhar de admiração de Salvador Dali que a reconhece como
uma montagem surrealista de mulher. Desde esse olhar,
processa-se um refinamento iconográfico da imagem do travesti
conhecido como concubina do rock, e o sujeito é redesignado sob
o signo mulher surrealista, que desde então passa a desmentir
sua transexualidade.
A cantora
alemã Amanda Lear nasceu Alain Tap em 1946 (encontrei outro
registro a propósito de seu nascimento: 1941, em Hong Kong). No
início de sua carreira, sua controversa identidade sexual se
constituía num problema o que a fez se converter numa cantora
secreta, cuja história original passaria a estar envolta em
mentiras e disfarces. Os próprios temas de suas canções eram
relativos ao gosto da mulher poderosamente sexual. Essas canções
lhe conferiram o apelido de queen lear. O codinome
queen lear faz alusão à tragédia de Shakespeare, O rei
Lear (1606), na qual Lear é o rei que faz suas escolhas
preferindo mentiras em lugar de inverdades.
Em razão de
seu estilo de música, ela foi incluída na lista das
“concubinas do rock”, pois sua música era enquadrada na
Roxy Music. A Roxy Music foi um tipo de música nos
anos 70, que pretendia ser um estilo que misturava a forma
genuína do rock e o canto lírico fetichisticamente entoado.
David Bowie é um dos grandes nomes desse estilo surrealista de
rock e de canto lírico.
A lista das
concubinas do rock incluía as cantoras que também eram amantes
secretas dos cantores de rock famosos. Amanda Lear fora amante
de David Bowie. A inclusão de Amanda Lear nessa lista assinalava
que o estilo de música com o qual ela inaugurou sua carreira de
cantora não era genuinamente o rock, e que ela não seria senão
uma amásia do rock. Mas, ao lado dessa crítica, sua imagem
também estaria sendo ironizada com respeito a sua condição de
mulher legítima. O seu segredo viria assim revelado em seus
apelidos: a queen lear não seria senão um transexual.
No início dos
anos 70, Amanda aparecia como a modelo da capa de um disco-cover
para a Roxy Music. Na capa desse disco, em que se
imitava o estilo da Roxy Music, a imagem de Amanda fora
configurada bem de acordo com a proposta da Roxy Music:
uma montagem surrealista, metade mulher, metade cobra, com asas
e o rosto que fazia alusão a uma phoenix. Essa foi a
montagem surrealista que teria chamado a atenção do pintor
Salvador Dali para a imagem de Amanda e, por conseguinte, para
sua história secreta. Em 1965, Salvador Dali se apresentou a
Amanda Lear e, sem preâmbulos, convidou-a para um chá. Eles se
encontraram por mais duas vezes.
A contingência
de ter sido admirada por Salvador Dali propiciou ao sujeito
ultrapassar o olhar de gozo que denunciava a ilegitimidade de
sua imagem de mulher, tal como os apelidos de seu ser de cantora
secretamente tramavam. O tormento do gozo transexualista,
contudo, não deixaria de atordoar sua carreira, não tivesse sido
o encontro com o olhar de admiração de Salvador Dali. O encontro
contingente com esse olhar de admiração do pintor promoveria a
ascensão de sua carreira e ela se tornaria um ícone do rock:
Amanda Lear. A queen lear seria, por sua
própria natureza surrealista, amada. Desde então, sua
imagem seria reconfigurada num formato bem mais feminino e bem
menos ilegítima.
Seria possível
dizer que o fato do pintor ter considerado admirável a
realização de Amanda Lear numa imagem surrealista de mulher,
propiciou uma nova vestimenta para sua imagem de mulher. O
encontro com o gozo do olhar de Salvador Dali promoveria a
superposição da imagem do transexual Amanda Lear com a imagem da
mulher que é vislumbrada como mito. A propósito da admiração do
pintor por sua pessoa, Amanda Lear pôde dizer que ele sempre a
fizera sentir-se como se tivesse um brilho especial,
surrealista.
Da
literalidade desse encontro surrealista com o mito de uma mulher
que seria amada como única, extrai-se a subordinação primeira do
gozo que se decifraria como transexualista: o codinome Amanda
permite vislumbrar o ser extraviado de si que jazia ali: a que
seria amada.
Entretanto,
ainda que o mito veiculado em todo nome fale a verdade do ser,
como em todo mito, sua realidade é alegórica. A configuração do
ser do sujeito como “a que seria amada” designa, na verdade, a
montagem surrealista da mulher que só poderia ser vislumbrada no
espetáculo que deixa passar seu nome de gozo: Amanda Lear.
A contingência
do nome Amanda Lear não deixa de fazer aparecer algo de singular
na história da redesignação desse transexual, na medida em que,
na tragédia shakesperiana, Lear foi o rei que fez suas escolhas
preferindo a mentira no lugar da inverdade. A capa de um de seus
mais recentes discos dá a ver o disfarce que intriga – If I
was a boy.
Roberta
Close: uma-mulher-de-verdade
Roberta
Gambine, é Roberta Close, a mulher-de-verdade que passaria
ao-lado do mais famoso transexual brasileiro, pois ainda que
transexual, parece mulher-de-verdade. Roberta Close, por sua vez
seria a mulher-de-verdade que passaria ao-lado do travesti
Roberta que causava furor no meio gay carioca como um
show-de-boneca. Por sua vez, Roberta, um show-de-boneca seria a
mulher-de-verdade que passaria ao-lado do menino Luiz Roberto
Gambine.
Luiz Roberto
Gambine é o terceiro filho de um casal de classe média carioca.
Desde a maternidade, o corpo do menino é afetado pelo que teria
sido ideal para o Desejo da Mãe, e que desde a infância,
compeliu o sujeito a um gosto mais propriamente de menina: a mãe
sonhou que ia gerar uma menina, no lugar em que veio gerado o
menino Luiz Roberto.
Ainda na
maternidade o casal percebeu que a criança era diferente das
outras. Seu sexo não estava bem formado, parecia que faltava
alguma coisa, mas o médico os tranqüilizou dizendo que com o
tempo aquela má-formação se resolveria. Maria foi para casa com
uma sensação esquisita. Ela sonhara que ia ter uma menina e mais
uma vez não tinha conseguido.(Rito,
1998, p. 44)
A família
morava no bairro de Fátima (RJ), perto do centro e da Lapa
boêmia. O menino cresce atormentado pela androginia de seu modo
de parecer que muito se diferencia do modo dos outros irmãos.
Foi uma criança muito retraída, solitária, tinha preferência
pelas histórias de fadas e adorava brincar de bonecas. Passava
horas no quarto da mãe, se olhando no espelho, vestida com
roupas e sapatos femininos e coberta de bijuterias e maquiagens.
Ali o sujeito se achava.[8]
No primário,
suas tendências femininas começaram a incomodar. Era olhada com
desconfiança, perseguida pelas outras crianças mais velhas que
tentavam agarrá-la. No ginásio, tudo fica mais complicado com a
entrada na adolescência. Sob o tormento do gozo do corpo o
sujeito fica muito perturbado: tomado de horror pela própria
imagem, passa a viver em pânico, com receio de ter que trocar de
roupa na frente de meninos, e experimenta estranhas sensações de
culpa quando olhava as meninas e não se via igual a elas.[9]
Nessa época
passa a fugir da escola para transitar no trecho da praia de
Copacabana freqüentado quase que exclusivamente por homossexuais
e travestis. Nesse ambiente, o sujeito fica fascinado pelo que
vê e, aos 13 anos (1977), se lança numa vida dupla. Ora era o
menino Luiz Roberto, ora era Roberta. Passou a deixar os cabelos
compridos o que acirrou o incomodo do pai com a aparência
andrógina do filho. Certa vez, o pai picotou-lhe os cabelos
enquanto dormia.
Aos 14 anos
(1978), passando na porta do Teatro Brigitte Blair viu um cartaz
com desenhos de garotos despidos, em poses femininas e de
bigodes dizendo: “eles querem abertura”. O cartaz anunciava um
show de bonecas (travestis). A imagem fez signo de gozo e foi
interpretada como um chamado do gozo. O menino Luiz Roberto, que
na infância se ressentia por gostar de bonecas, era compelido a
configurar-se decididamente na boneca Roberta. A imagem fez
signo de gozo e mostrou em que direção Luiz Roberto devia ir,
passando a freqüentar os shows de bonecas, a Lapa, a galeria
Alaska, o Posto 5, o bar Acapulco, ao lado de vários travestis,
vestida de mulher como a boneca Roberta.
Mas Luiz
Roberto não decifrou nessa incidência da imagem, o chamado do
gozo como transexualista, uma vez que ele se confundiu com um
travesti. Foi como travesti que o sujeito encontrou o amor e o
sexo na adolescência. Por um lado, algo tinha sido visto na
imagem que extraviava o sujeito, mas não traduzia a condição do
menino Luiz Roberto como exilado naquela imagem, afinal eram
garotos despidos em poses femininas. No entanto, passou
ao-lado, uma outra incidência do gozo da imagem que ia fazer
toda a diferença. Passou ao-lado a imagem que realmente
fez signo do chamado do gozo transexualista e que se configurou
como matriz do eu ideal, fisgada pelo que se enunciava como
“eles querem abertura”. Passou ao-lado a imagem
show-de-boneca que decifrava a compleição do ser e se
inscreveria como um desejo muito enérgico de passar ao outro
sexo. Luiz Roberto se entregou ao travestismo de sua imagem pelo
uso de hormônios femininos que deveriam dar mais textura à
aparência de mulher da boneca Roberta, de modo a configurá-la
num show-de-boneca. A partir dos 14 anos, a imagem
show-de-boneca colocou o sujeito rumo a um fenômeno de corpo
tramado sob o travestismo da imagem que parecia muito feminina.
Essa aparência
não fixava, contudo, o tormento do gozo, pois ainda era
confundido com um travesti. Na errância do gozo transexualista
foi muitas vezes agredido nas ruas, perseguido e ferido,
enxotado, zombado, e até violentado sexualmente. Numa dessas
violações, preocupou-se tanto em esconder o sexo com as mãos que
facilitou o abuso sexual. Entregou o corpo, mas não rendeu a
imagem.
No seio da
família, sentia o chamado da compleição do ser como vivências de
culpa, sensações de desamparo e injustiça, que o fizeram fugir
para conhecer as bonecas de São Paulo. Resgatado, pela polícia,
a pedido do pai, volta para o Rio e recebe um ultimato do pai:
ou o filho abandonava a aparência de mulher definitivamente, ou
seria deixado num reformatório até aos 18 anos. Expulso de casa,
foi viver com a avó, mas sem poder sair de casa. O tormento
vivido em razão da errância do gozo é marcado, nesse momento,
por uma elação que leva o sujeito a ameaçar fugir de novo, e
desta vez, para nunca mais ser visto. Isso implicou no desespero
de sua mãe. Por ocasião da primeira fuga para São Paulo, a mãe
caiu doente e custou a se recuperar. A nova possibilidade de
nunca mais ver sua cria anunciava um tal sofrimento que a mãe
decide apoiar o sujeito revelando seu desejo: “Decidi aceitá-la
como era - ela era a minha filha querida - e fui bem clara com a
família: no que depender de mim, vou fazer para a minha filha
ser sempre Roberta” (Rito,
1998, p. 72)
O desejo do
Outro assim revelado re-significa o que fez signo do gozo
transexualista na imagem show-de-boneca: Luiz Roberto era
a filha querida que a mãe não queria perder de novo. Naquela
imagem do cartaz, que se configurou como matriz do eu ideal,
passou o que teria sido a prevalência mortífera do gozo do olhar
do Outro materno (na contingência da foraclusão do Nome-do-pai)[10]:
o gozo do corpo passou subordinado ao transitivismo entre duas
imagens - uma imagem que extravia o sujeito e outra, na qual o
sujeito fica exilado.
É bem assim
que as coisas se passam no nascimento do menino Luiz Roberto
quando se registra, na história do sujeito que se inaugura, que
o sexo do bebê estava malformado tanto quanto se registra
de-lado uma outra malformação. A malformação congênita do
sexo do bebê foi registrada libidinalmente por uma outra
malformação. De través se registrou que o Outro Materno se
decepciona por não ter conseguido gerar uma menina. Duas imagens
passam assim, lado-a-lado, fisgando o corpo do menino. De um
lado, o gozo do olhar que se decepciona, em razão da menina que
não foi gerada, faz signo de que gerar uma menina é causa do
desejo do Outro Materno. Do outro lado, o olhar do gozo veio
olhar o sujeito na precariedade mesma de seu organismo
malformado sob a forma do não reconhecimento de que a menina não
foi gerada. O olhar do gozo destituiu a designação do sexo do
menino.
As duas
imagens se registram num eixo assintótico comum, que lança no
infinito a causa implicada no gozo da imagem de menina a ser
gerada. De um lado, essa imagem que se configurou como matriz do
eu ideal, é de natureza virtual porque existe como uma
faculdade, mas sem exercício ou efeito atual. Do outro lado, o
olhar de gozo registrou de través a imagem real que
substancializou um modo de gozo transexualista. A imagem real
fez signo do flagelo do gozo transexualista, pois a menina não
foi gerada ali. Nessa incidência, o chamado do gozo é decifrado
por uma prática transexualista em que o gozo do corpo fica
sempre fisgado de-lado.
No espaço e no
lugar de extração do objeto constituído pelo olhar materno,
surge o afeto impossível de suportar: retorno no corpo de um
gozo que enuncia a problemática relativa ao furo no real da
diferença dos sexos (F0).
As vivências de estranhamento com o corpo que não poderia não
ser de menina captura a angústia infantil entre o pânico e o
pudor, e a culpa nos anos que antecedem a adolescência. Num
testemunho sobre a angustia que nomeia a intrusão do simbólico
no real, o sujeito enuncia o gozo que, desde cedo, afetou o
corpo: “Vivia em pânico com receio de ter que trocar de roupa na
frente dos meninos na hora da ginástica”. Por um lado, o órgão
do corpo é o índice do extravio de si nesse corpo de menino. Por
outro lado - “Olhava as outras garotas da minha idade e me
culpava de não ser igual a elas” - a culpa relativa ao corpo sem
o órgão é o índice do exílio de si no corpo que não poderia ser
senão o de menina.
Aos 17 anos
(1981), o travesti Roberta, que causava furor no meio gay
carioca desde os 13 anos como um show-de-boneca, apareceu
na capa da revista Close, designada pelos dizeres: “desisti de
ser homem aos 14 anos”. Desde ai, passou a ser conhecido como
Roberta-da-Close. A transformação de Roberta, um
show-de-boneca em Roberta-da-Close marcava o início
do refinamento iconográfico de sua imagem feminina que chegaria,
aos 18 anos, a ser transformada no fenômeno do transexual
Roberta-Close.
O close
é uma captura da imagem focada de lado quando um olhar incide no
foco de soslaio. Nesse close, na redesignação Close,
o sujeito reduz a errância do gozo numa imagem, o que
possibilitou desalojar do corpo o gozo transexualista, e
localizá-lo fora do corpo, no gozo do olhar do espectador sobre
o raro espetáculo da imagem que é o transexual Roberta Close.
Roberta Close parece mulher-de-verdade; parece que uma
mulher-de-verdade foi gerada. O significante Close
conseguiu produzir uma redução na metonímia desenfreada do gozo
transexualista, mas compromete o ser do sujeito no gozo dessa
imagem que só aparece em-close.
Nesse caso, o
tormento do gozo transexualista fez um arranjo sintomático em
torno do nome Close. Na errância de seu gozo, o sujeito
foi capaz de fazer do show-de-boneca, com o qual
inaugurou sua imagem feminina, a celebração de sua imagem de
mulher no espetáculo que é Roberta-Close. Em 1984,
Roberta Close é considerada, pela literatura de cordel, um
fenômeno do século XX; cantada por Erasmo Carlos e Roberto
Carlos no Fantástico; celebrada em vários programas de TV;
desfila para Clodovil; ganha o concurso Miss Brasil Gay; vira
capa de revistas femininas, e desfila para Guy Laroche, Jean
Paul Gaultier e Thierry Mügler na Europa, ao lado de Cindy
Crawford, Linda Evangelista e Naomi Campbell. Transforma-se em
assunto internacional: o jornal americano New World News
publica, na primeira página: “A mulher mais bonita do mundo é
homem”, se referindo a Roberta Close, o transexual que parece
mulher-de-verdade. É somente nessa ocasião em que é olhada
ao-lado dessas mulheres, sobre as quais não pairava
nenhuma dúvida sobre a verdade do ser, que o sujeito começa a
pensar na cirurgia.
“Foi a
primeira vez que me senti integralmente mulher. Desfilando ao
lado daquelas top models maravilhosas – que desconheciam por
completo a minha história e me tratavam como igual, eu percebi
que se quisesse podia transformar o meu sonho em realidade. E
comecei seriamente a pensar em me operar para mudar de sexo.” (Rito,
1998, p. 32-33)
A presença
real imiscuída na imagem subordina o sujeito ao extravio de si
no momento em que o travestismo da imagem claudica de seu
transitivismo entre a imagem real (extravio de si) e a imagem
virtual (exílio de si). É exatamente no momento em que o gozo da
imagem é esvaziado de seu desdobramento que a imagem pode perder
a textura e fazer cair um corpo. É esse o instante da irrupção
do delírio ou da passagem ao ato. A angústia, que antes nomeava,
agora desencadeia a passagem ao ato.
A cirurgia de
Roberta Close acontece em 1989, cinco anos após o nome Close
ter fixado o tormento do gozo transexualista. É apenas nessa
circunstância que o sujeito pode passar desviado dos efeitos de
mutilação da castração do órgão. A cirurgia de mudança de sexo,
nesse caso, precisa ser considerada no lugar exato de sua
inscrição no gozo da imagem. Se a transgenitalização não
implicou o extravio do gozo é na medida que suas três
subordinações: a singularidade da história de Luiz Roberto em
que o gozo é sempre fisgado de-lado, passando ao-lado
da contingência do nome Roberta-Close que, lado-a-lado,
se depositaram no espetáculo da cirurgia, pois esta re-colocou
em cena o olhar de gozo, para o qual o sujeito reiterou seu
acontecimento de corpo. O ensaio fotográfico pós-cirurgia ganhou
uma edição especial da revista Playboy, para a satisfação
do gozo do olhar do espectador que entre outras coisas,
procurava averiguar se a castração tinha sido bem realizada, ou
se passou, ao-lado, alguma má formação do novo sexo.
O Close
foi uma contingência na vida de Roberta e uma singularidade na
vida de Luiz Roberto; a acomodação dessas duas subordinações
permitiu dar corpo ao gozo da imagem. O ser extraído nessa
imagem fica, entretanto, subordinado à realidade virtual dessa
nomeação. A instabilidade das identificações imaginárias do
início da existência de Luiz Roberto foi, por uma
contingência, acomodada na existência de Roberta Close. Na
incidência do olhar de gozo ficou destinado um gozo do corpo em
que o ser fica sempre fisgado de-lado. Na redesignação de
Roberta como Roberta Close, o objeto escópico é extraído pelo
gozo do espectador, que assiste ao espetáculo em que se
enquadra, em close, a imagem Roberta Close.
Esse nome de gozo é um sintoma novo do gozo
transexualista nesse caso. Esse nome de gozo mostra sua
consistência sintomática, que é a de ser uma redesignação
imaginária que não chega a redesignar simbolicamente o ser. Esse
nome de gozo é uma performance, pois
Roberta-Close
só aparece
em close.
Roberta-Close
é sintoma de seu próprio
close.
Roberta-Close
permanece sendo a menina que passou
ao-lado
do menino Luiz Roberto. Nesse novo sintoma, a subordinação real
do gozo permanece transexualista.
Luiza-Gambine[11]
é a mulher que tenta se realizar
ao-lado
de
Roberta-Close.
De todo modo, padece ainda de ser transexualista, pois segundo o
próprio sujeito,
“Luiza Gambine
é o nome da alma que cansou de ser Roberta Close”.
Luiza-Gambine
não é senão a identidade privada de
Roberta-Close.
Nessa nova economia de gozo, há algo que não
deixa de se inscrever, a saber, se a captura do gozo
transexualista fixou a errância do sujeito, não substancializou
a redesignação do gozo como sexual. No entanto, isso não
impossibilitou que tivesse lugar uma outra redesignação, o que é
um feito extraordinário nesse caso. Não é possível deixar de
dizer que, seja como
Roberta-Close,
seja como
Luiza-Gambine,
há ali um ser que é extraordinariamente
mulher-de-verdade.
O espetáculo da imagem de mulher que transita entre
Roberta-Close
e
Luiza-Gambine
deixa entrever que há ali um modo de ser que inegavelmente
testemunha efeitos de uma “mulherice” extraordinária na qual a
mulher-de-verdade
é experimentada no trânsito entre uma identidade privada, vivida
na Suíça, e uma identidade pública, vivida no Brasil.
Ao ser concedido o direito a redesignação civil,
Roberta Close opta pela redesignação Roberta Gambine, afinal ela
será sempre a menina que teria passado
ao-lado
do menino Luiz Roberto.
A certeza
sobre identidade e o corpo
Os transexuais
estão envolvidos numa interpretação monolítica de que, desde
muito cedo na vida, estão confinados a uma vocação prematura em
ser conforme o outro sexo. Se o
gozo do sujeito infantil pode exprimir uma tal vocação, isso não
é senão índice de que o sujeito experimenta, desde a infância,
um sentido de corpo do qual se sente extraviado. A interpretação
estereotipada “ser mulher prisioneira num corpo de homem” é uma
invenção de identificação, orientada pelo empuxo-à-mulher que
compele o sujeito na errância de ser exceção, seja reivindicando
ser redesignado mulher conforme o gozo transexualista, o que é
impossível, seja denunciando a ordem do mundo que padece do erro
comum de confundir o órgão e o falo na diferenciação dos sexos.
A identidade de gênero, nesses casos, não é senão um conceito
delirante. Essa invenção de identificação é uma compleição ao
nível do ser que tenta ser configurado num ato de aparência, é
por isso que nesse tipo de identificação, o sujeito está
subordinado ao travestismo da imagem.[12]
Há uma impropriedade quanto ao sentido de corpo que parece
extraviado no travestismo da imagem. É assim que quando o
travestismo claudica em seus propósitos, a cirurgia é reclamada,
numa passagem ao ato.
Toda a
problemática do corpo sem o órgão e da ausência de significação
sexual do órgão encontra refúgio no travestismo da imagem que
enquadra a angústia e o estranhamento de si nessa prática. Esse
é ponto em que o sujeito se ancora. Por isso mesmo é que o
travestismo da imagem exige ser bem tratado a fim de cativá-lo
ao ponto em que, como sintoma, pode ter efeitos surpreendentes
de uma nomeação nova.
Questões
éticas no tratamento do gozo transexualista
O tratamento
psicanalítico possível do transexualismo não visa fazer concluir
que esses sujeitos não devam ser operados. Mas é importante
reiterar que, na diferenciação dos sexos, o órgão não é a causa
do sofrimento nesses casos, o órgão só está em tudo isso como
instrumento, ou seja, como significante. Se um significante
serve a muitas coisas, exatamente como um órgão, isso não
significa que eles possam servir igualmente para as mesmas
coisas. As conseqüências não serão as mesmas se na castração
utiliza-se o órgão em si, no lugar da operação via significante.
A potência maior da cirurgia é a de funcionar como uma variante
legal das práticas de automutilação tão freqüentes nos quadros
psicóticos. Desalojar o gozo transexualista da porção do corpo
na qual este gozo se localizava de forma eletiva não erradica o
tormento do gozo, não promove a redesignação sexual
reivindicada, e implica o extravio do gozo. Nessas
circunstâncias há grandes chances do sujeito ser transformado
num ser de aberração, invadido por fenômenos francamente
delirantes.
Do ponto de
vista da psicanálise, sabe-se que, hoje em dia, esses sujeitos
se farão operar de qualquer forma, entretanto, isso não autoriza
os cirurgiões a operá-los de toda forma. Ainda que a cirurgia de
redesignação sexual tenha se tornado mais um gadget a ser
consumido conforme a paixão de cada um, é preciso não
desconsiderar que esse dispositivo não terá o mesmo efeito em
todos os casos. Não é seguro afirmar que a confecção da
neovagina se inscreverá no travestismo da imagem de qualquer
forma. Especialmente porque na classificação do transexualismo
como disforia de gênero desconhece-se, completamente, que o
fenômeno da certeza sobre identidade é um fenômeno elementar das
psicoses, o que significa a falta de referenciais clínicos
rigorosos para feitura do diagnóstico diferencial. Assim, antes
de procedimentos irreversíveis como a cirurgia, trata-se de
tentar extrair em cada caso, algo que possa sugerir a captura da
satisfação de modo a fixar o flagelo do gozo, de tal forma que o
sujeito possa passar desviado dos efeitos de mutilação da
cirurgia. Na clinica psicanalítica do transexualismo, trata-se
de, subversivamente, investigar a possibilidade de fazer uso da
redesignação sexual em sua função de sintoma, um sintoma no qual
não se crê – não é possível crer na redesignação sexual –, mas
que por isso mesmo abre a chance de dela se servir.
Das transformações cirúrgicas e das redesignações
civis
Em se tratando
da proliferação das indicações de cirurgia de mudança de sexo, é
preciso lembrar que, ao lado do gozo do olhar, passa um outro
gozo, o olhar de gozo, que pode vir apenas para gozar o ser
castrado, nos inúmeros casos em que o sujeito ainda padecia sob
a errância do gozo transexualista.
O pedido legal de redesignação do sexo e de
mudança de nome no assento de nascimento vem se configurando
como uma nova norma sintomática no transexualismo. Como não se
trata de uma questão de litígio, a causa perdida em última
instância poderá ser recolocada
n
vezes, até que algo passe, seja por um deslize nos
procedimentos, seja pelo gozo do Outro da lei jurídica.
Transpassado o empuxo-à-redesignação e a euforia
que daí o sujeito experimenta, surge algo como um resto
irredutível à redesignação. Em alguns casos, esse resto implica
o transexual num empuxo-à-escrever. Outras vezes pode ser o
momento de uma análise. Algumas vezes pode ser o momento do pior
(Tininha-Nova-York). Ou ainda, pode acontecer desse resto
irredutível compelir o sujeito na errância de um delírio crônico
de reivindicação. (O transexual Kim Perez, de Granada, através
de um movimento que reúne os simpatizantes da causa, tem
reivindicado, junto à Igreja Católica, que seja concedido o
direito de casamento aos transexuais operados e, mais ainda,
reivindica a erradicação do preconceito dos homens decididamente
heterossexuais quanto aos transexuais redesignados).
No transexualismo, parece possível dizer que as
melhores soluções estariam do lado da contingência de um
nome-de-gozo que, subordinando o irredutível do gozo fizesse as
vezes de uma de função de gozo. Entretanto, essa nomeação não
vale como modelo de uma função de gozo, ainda que esse nome
possa ser assentado judicialmente. As soluções transexualistas
não servem de modelo para outros transexuais. Que seja sempre
reiterada a advertência de que a redesignação cirúrgica, assim
como a redesignação do nome no assento de nascimento, devem ser
consideradas na singularidade de cada caso, a partir de uma
interpretação que não desconsidere o real do gozo em questão.
A casuística me permite dizer que esse
nome-de-gozo é uma função que, ainda que torne possível uma
modalização da posição do sujeito em relação ao gozo, não
predica o ser. A consistência dessa nomeação fica subordinada,
de forma singular, à figuração da imagem do corpo numa cena, que
não seria a Outra cena do inconsciente, mas um certo mapa
ampliado do campo do exílio de si. Nessa cena, o sujeito atuaria
como ator de seu exílio, à condição de se servir do travestismo
da imagem. Essa cena funcionaria, assim, como um mapa de atuação
restrita à temática que deu origem ao exílio de si do universo
de discurso. Nessa atuação restrita, o sujeito pode aparecer na
intertextualidade de sua performance à condição de que seu nome
se engate numa comunidade de discurso, na qual o
espectador/leitor é convocado a decifrar o enigma dessa nova
forma de fazer com o sexo.
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Teixeira,
Marina Caldas - A mudança de sexo em close: um estudo
sobre o fenômeno contemporâneo do transexualismo a partir da
abordagem lacaniana das psicoses. Dissertação de Mestrado em
Psicologia, área de concentração Estudos Psicanalíticos,
programa de Pós Graduação da UFMG.
Notas:
[2]
Na Alemanha já se discute, nos meios científicos e
jurídicos, com quantos anos uma criança teria o direito de
escolher o próprio sexo.
[3]
O transexualismo elucida sobre o diagnóstico diferencial na
intersecção de uma clínica estrutural e de uma clínica dos
nós. Duas citações de Lacan sobre o transexualismo nos anos
70 assim o testemunham. Em 1971, no seminário D’un
discours qui ne serait pas du semblant, Lacan sublinha o
quanto a forma desses casos, que consiste num desejo muito
enérgico de passar ao outro sexo, se explica facilmente e
logo, quando se tem em conta a guia da foraclusão do
Nome-do-pai. No seminário do ano seguinte, 1972, ...Ou
pire, Lacan relaciona a paixão transexualista com a
loucura de querer se liberar de um erro, o erro comum de que
padece esse sujeito que não vê que o significante é o gozo e
que o falo é apenas o significado do gozo. Nessa segunda
referência, o transexualismo é compreendido em relação à
posição de gozo do sujeito enquanto uma recusa da sexuação,
que termina por compelir na errância de mais um engano, o de
querer forçar o discurso sexual pela cirurgia. Na
intervenção de uma referência sobre a outra é que o fenômeno
do transexualismo pode ser designado uma invenção de
identificação. Desde essa invenção é possível evidenciar os
elementos da identificação que subordinam o modo de gozo,
tanto quanto interrogar sobre o que é preciso tentar extrair
da identificação para tratar o sintoma. Nessa circunstância
explicita-se um arranjo possível entre ser e parecer que
prescinde da significação fálica e que pode ter lugar nas
psicoses
[4]
Disjunção entre sexo e gênero – Transtorno da Identidade de
Gênero ou Disforia de Gênero. (DSM IV)
[5]
O transexualismo é um efeito do discurso da biologia sobre o
enigma da diferença dos sexos. Sem a afirmação do arranjo
multifatorial dos determinantes da diferença dos sexos, sem
o isolamento dos princípios ativos dos hormônios na
diferenciação dos caracteres sexuais secundários, e sem a
técnica cirúrgica de mudança de sexo, nada de transexualismo.
O DSM IV classifica o fenômeno como um transtorno da
identidade de gênero que persiste em disjunção com o sexo. A
propensão a universalizar as respostas de cada sujeito
diante do mal estar com a sexualidade, não deixa de se
constituir em uma oferta de identificação para o sujeito que
lhe obtura a possibilidade de inventar seu próprio sintoma.
Uma organização a partir do transtorno traz em si a redução
do sujeito ao traço que o representa no Outro. Ela objetiva
o sintoma em sua versão de mensagem, um transtorno para o
Outro. É por isso que estes dispositivos são terrenos
férteis para as terapias comportamentais cognitivas e para
as intervenções dos artifícios da técnica: assim, os
transexuais se dirigem agora aos cirurgiões e se adaptam bem
às técnicas de feminização imprimidas nas hormonoterapias.
[6]
O sujeito transexualista padece do erro comum pelo qual
considera que o órgão é a causa de seu tormento de ter sido
designado homem, e não ter sido designado mulher. Sua
empreitada delirante é de ser redesignado mulher pelo
discurso sexual. A loucura é querer se liberar de seu órgão,
para alcançar tal intento, pois o órgão só está em tudo isso
como instrumento, ou seja, como significante. Aquilo de que
o transexualista quer se ver livre não diz respeito
exatamente ao órgão em si, mas à função significante que se
veicula por intermédio do órgão. Se há alguma subtração do
órgão a ser procedida, isso não é senão uma subtração de
natureza simbólica. Na castração real do órgão, o sujeito se
verá livre do órgão sem, no entanto, se ver livre do gozo,
tampouco sem se ver livre de ser significado de acordo com a
lógica fálica. Roberta Close é considerada um transexual que
parece ser mulher de verdade. Mas, a cada vez que a mídia
focaliza Roberta Close, o que está sempre em foco, é o fato
de que enquanto transexual esse sujeito tenha se configurado
impressionantemente numa forma que parece mulher de verdade.
De toda forma, o sujeito não se livra de ser objeto do gozo
do outro que quer ver para crer.
[7]
O empuxo-à-mulher é uma orientação do gozo que pode ocorrer
nas psicoses em resposta à foraclusão do Nome-do-Pai e à
ausência de significação fálica. Essa orientação dita
empuxo-à-mulher é o modo como Lacan vai ler o termo
assintótico de Freud: gozo que se abre ao infinito. O
empuxo-à-mulher exprime uma tendência freqüente de
interpretar o gozo nas psicoses rumo à feminização. Nesses
casos, tipicamente de paranóia, verifica-se que o sujeito
padece de uma identificação precoce e massiva com a mãe.
Nessa orientação feminina do gozo, verifica-se a prevalência
do registro especular, há uma relação disjunta entre a
imagem do corpo e sua matriz. Mas o empuxo-à-mulher não é só
uma interpretação de gozo, por sua exigência perpétua de
satisfação, é uma tendência da pulsão específica à psicose.
Entretanto, o empuxo-à-mulher não é um conceito que permite
subsumir todos os casos de psicose e fazer o todo da
psicose. Podem ser substitutos do Nome-do-Pai que faltou, o
álcool, a droga, a escritura, as matemáticas, as práticas
perversas, a abstinência, identidades sexuais.
[8]
“Sempre fui uma criança solitária. Em casa não recebia
ninguém e o que mais gostava de fazer era ir ao quarto da
minha mãe. Passava horas me olhando no espelho, vestida com
as suas roupas e sapatos e me achava linda. Eram os momentos
mais felizes do meu dia. Ficar mexendo nas suas bijuterias,
na sua maquiagem, experimentando os sapatos de salto e as
sandálias femininas. Aqueles objetos tinham mais importância
para mim do que as bolas e os carrinhos dos meus irmãos que
não me diziam nada. Odiava usar os shorts e as camisetas, e
não me sentia à vontade com os meus irmãos. Era muito
oprimida em casa. Meu pai nunca aceitou a minha imagem
andrógina e ficava fora de si quando me via com um brinquedo
de menina. Ele me batia, dizia que eu tinha que ser como os
meus irmãos”. (Rito,
1998, p. 45)
[9]
“Olhava as outras garotas da minha idade e me culpava de não
ser igual a elas” (Id., p. 66).
[10]
Foraclusão é um conceito lacaniano para designar a não
inclusão de algo no campo das representações psíquicas. Esse
algo que não foi, digamos traduzido, mesmo ficando de fora,
no entanto, não deixa de existir, pois o que está foracluído
do simbólico retorna no real. Esse termo foi tomado por
Lacan do âmbito jurídico, no qual diz de um processo sobre o
qual não se pode apelar, recorrer, por se ter perdido o
prazo legal. O termo indica a exclusão de uma faculdade que
não foi utilizada em tempo útil. O Significante do
Nome-do-Pai é esse algo foracluído, nas psicoses, que
retorna no real, por exemplo, nas alucinações, nos fenômenos
de automatismo corporal. A foraclusão do Nome-do-Pai implica
a não travessia da epopéia edipiana, uma vez que o sujeito
não é submetido à castração simbólica, não tendo, portanto,
possibilidade de ter acesso à significação fálica do gozo.
Por não ter acesso a essa significação, o psicótico se
encontra desalojado da partilha sexual, ou seja, o psicótico
é um sujeito fora-do-sexo.
[11]
Antes da redesignação civil, que acontece em 2005, Roberta
Close anunciava sua opção pelo nome que usava na Suíça -
Luiza Gambine.
[12]
Trata-se, antes de tudo de uma invenção de identificação que
é índice de um retorno tópico à dinâmica perturbada do
estádio do espelho[12],
na qual o sujeito ficou exilado de se reconhecer na miragem
que é o eu ideal. No momento em que o estado nativo do
sujeito deveria se reconhecer numa imagem de corpo no
estádio do espelho, o sujeito ficou exilado desse
reconhecimento de si na imagem especular, e assim, o corpo
aparece invadido por um Outro gozo. Lacan assinalou que se
pode haver um parentesco consistente entre ser e parecer,
isso está condicionado a que as identificações estejam
organizadas em razão do semblante fálico (Lacan:
1972). Imaginário e Simbólico se articulam em torno da
inscrição do falo, ao mesmo tempo em que o gozo do corpo é
distribuído em três efeitos de gozo: mais-de-gozar, gozo
fálico e gozo feminino, donde três sentidos de corpo se
organizam: corpo simbólico, corpo imaginário e corpo real.
No início de seu ensino, essa operação, designada
ponto-de-basta, é função do Nome-do-Pai que subordina o
desejo àquilo que o Outro Materno, enquanto incompleto,
deseja. Desse ponto em que o Outro aparece em falta é
deduzida a consistência lógica do objeto a como causa
de desejo. O objeto a assinala um lugar vazio em
torno do qual a estrutura se enlaça, condição prévia
necessária para que o objeto seja introjetado por um
investimento narcísico. (Lacan:
1963). Encoberto por uma vestimenta narcísica esse objeto
passa a ser suportado por uma imagem, i(a), que é
equivalente ao desejo do Outro enquanto falta. A cobertura
imaginária do objeto a, cria um eixo na superfície
mediante o qual o sujeito poderá se espelhar para ser. A
imagem especular, eu-ideal, é o canal pelo qual se dá a
transfusão da libido do corpo para o objeto, dando passagem
a que o sujeito se separe da incidência mortífera do gozo do
Outro, se alienando no desejo do Outro. A alienação do
sujeito faz com que o ser apareça, pois o falo vem se
assentar sob o resto do investimento libidinal na imagem.
Por essa manobra o Outro libera os significantes da
identificação. A partir de 1975, Lacan passa a designar essa
operação como aquela pela qual a neurose faz do Nome-do-pai
um sintoma. Desde então, assinala que o Nome-do-pai é uma
das formas de amarrar real, simbólico e imaginário. A
consistência sintomática desse nó tem como razão a
identificação fálica, e os elementos da identificação dão
passagem à inscrição do sintoma na estrutura. No
transexualismo, a elisão do falo tornou impossível a
extração do objeto a na passagem entre a imagem e o
significante. Nesses casos, o imaginário não está enlaçado
ao simbólico e há algo de real imiscuído na imagem que
assombra o sujeito, que desde muito cedo na vida, testemunha
o exílio de si no gozo da imagem que subordina o sujeito ao
travestismo de sua imagem.
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