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O arrebatamento e a mulher escrita

 
 


Ana Lúcia Lutterbach Holk

Psicóloga
Mestre em Filosofia/UFMG
Doutora em Teoria Psicanalítica/UFRJ
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
Membro da Associação Mundial de Psicanálise
         bacholck@infolink.com.br

 

Resumo

Neste texto pretendemos identificar em O Arrebatamento de Lol V. Stein, de Marguerite Duras (1964), a lógica feminina do não-todo e, quase um século antes, em Anna Karenina, de Tolstoï (1875), o mesmo arrebatamento, mas regido pela lógica edipiana freudiana.

Palavras chave: lógica feminina, inconsistência, arrebatamento, não todo.

 

   
 

 

The experience of ecstasy and the written woman

 

Abstract

In this text we would like to identify in The Experience of Ecstasy of Lol V. Stein, by Margherite Duras (1964), the feminine logic of the not-whole and, almost a century earlier, in Anna Karenina, by Tolstoï (1875), the same experience of ecstasy conducted by the freudian oedipian logic.

Keywords: feminine logic, non-consistence, ecstasy experience, not-whole.

 

   

“A única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição é a de se lembrar com Freud que em sua matéria o artista sempre o precede, portanto, ele não tem que bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho” (Lacan, 1965/2003, p. 200).
 

Em seu curso A natureza dos semblantes, Miller (1991) nos diz que a incompletude do ser feminino, em Freud, é tomada em Lacan como uma inconsistência que designa uma estrutura lógica positiva — o espaço não-todo — um conjunto aberto definido pela impossibilidade de circunscrever uma totalidade. Miller faz, assim, uma distinção entre  a lógica edipiana freudiana condicionada pelo regime do Um-todo, que se funda com o pai como exceção e a lógica lacaniana da inexistência do Outro e do não-todo generalizado.

Neste texto pretendemos identificar em O Arrebatamento de Lol V. Stein de Marguerite Duras (1964) a lógica feminina do não-todo e, quase um século antes, em Anna Karenina de Tolstoï (1875), o mesmo arrebatamento mas regido pela lógica edipiana freudiana.

 

Do Um-Todo ao não-todo
 

A fórmula «para todo sujeito funciona a função fálica, ou, todo homem está submetido à castração» indica que é pela função fálica que o homem como todo se inscreve, exceto que essa função encontra seu limite na existência de um ponto fora, através do qual a função é negada.

A lógica masculina é a lógica da totalização, que se constitui pela exceção como termo que a nega integralmente. Ou seja, para se fazer o todo, sejam quais forem os elementos, é necessário sempre um a mais, que esteja fora.

Do lado feminino, o modo de se submeter à lei do falo, à castração, não é postulando a universalidade da lei, pois como não-toda ela pode se colocar do lado do falo ou não. Na fórmula «não há nenhuma mulher que não esteja submetida à castração» não há exceção: nenhuma mulher está fora da castração, não existe a figura fundadora de um conjunto de mulheres, logo, não há «nem uma» que não esteja submetida à castração.

Não existe, portanto, a condição necessária para que se estabeleça o universal. O todo não se constitui, logo, a mulher é não-toda submetida à castração. As fórmulas do lado feminino indicam que a mulher não se inscreve da mesma maneira que o homem, mas ao mesmo tempo, não prescinde da lei do falo. Ela não está fora, mas também, não está inteiramente submetida à lei simbólica.

O falo e a identificação fálica designam um regime da libido, simbolizada, limitada. Na lógica do não-todo, o que está em questão não é a falta. O não-todo não indica o que descompleta o Outro, mas a série ilimitada que não é universalizável, nem incompleta, nem fluida. O gozo feminino infinito, dito não-todo, designa algo mais frouxo que fluido, um ata e desata, que nunca se deixa amarrar inteiramente.

Nessa lógica, o falo não é mais o mediador entre os sexos, introduzindo neste espaço uma relação ao infinito específica para cada sexo. Não é a função fálica que faz a diferença entre os dois sexos, mas a posição pela qual cada sujeito se declara submetido a ela.

Em seu curso A natureza dos semblantes, Miller (1991) nos diz que em Freud, o furo, a perda e a castração só são pensáveis no regime do Um em oposição ao Outro, como o Um unificante que faz um todo de todos, ou seja, a relação entre a falta e aquilo que a tampona está condicionada na lógica edipiana freudiana pelo do regime do Um-Todo.

A época de Freud corresponderia ao reino do Nome-do-Pai, cuja estrutura está esboçada em Totem e tabu, a universalização que se funda com o pai como exceção. A época lacaniana da psicanálise é a época da inexistência do Outro, do não-todo generalizado, onde o Nome-do-Pai é pulverizado, e a subjetividade passa a ser caracterizada pela fuga do sentido, pelo paradoxo da fusão dos gozos, pela segregação e isolamento.

A estrutura que responde ao Outro que não existe não se inscreve na universalização. É o não-todo generalizado: não no sentido do para todos, mas por toda parte, para todos os lados, não há universal, não se pode formar o espaço fechado do «para todo x» (Miller,1996-1997). Para Miller, o fundamento do gozo no individualismo moderno tem essa estrutura do «não-todo por toda parte».

 

A mulher escrita:
 

Para cingir o não-todo no Arrebatamento de Lol V. Stein (Duras, 1964), tomamos uma outra experiência literária, distante quase um século da primeira: Anna Karenina (Tolstoï,1875).

O texto de Duras foi exaustivamente comentado pelos analistas, e o termo arrebatamento (ravissement) ganhou quase o estatuto de conceito depois do artigo de Lacan (1965/2004) em homenagem a Duras.  A escolha de Anna Karenina deveu-se ao fato de que encontramos ali, casual e curiosamente, e com detalhes, a mesma cena do baile que se repete em todo Ravissement, mas orientada por uma lógica inteiramente diversa. Temos a impressão de que Duras arrancou a cena do baile de Tolstoï, rasgou, fez cortes, e, com quase nada, fez Lol.

Nessa distância entre as experiências, encontramos soluções diferentes para a falta de um significante da mulher ou de uma essência da mulher. Lol está sem o pai, sem o Outro — solta do todo e de todo —, é uma mulher realizando-se só. Em Tolstoï, o Outro existe, consiste em uma cultura que faz sentido e garante o exercício da função do pai como suplência para as duas personagens femininas: a arrebatadora Anna Karenina, em sua trajetória trágica e, seu avesso, Kitty, com uma problemática edipiana semelhante à de Dora, de Freud.

Enquanto em Anna Karenina há uma extensa narrativa, com dados biográficos precisos e detalhes do cotidiano, o texto de Lol é duro, enxuto,  feito de informações esparsas, que só constituem uma vida com muito esforço do leitor.

A história de Lol não será contada, mas inventada pelo narrador Jacques Hold, a partir de rumores que não se distinguem de algumas informações esparsas da única testemunha da cena do baile, Tatiana[1],
amante de Hold e amiga de adolescência de Lol. Sua primeira descoberta foi que "nada saber de Lol era já conhecê-la". Ele não acredita em nada do que ouve: "Eu não acredito em nada do que diz Tatiana, não estou convencido de nada".

Apesar de se tornar amante de Lol também, o fascínio de Hold e seu interesse por ela, Lol, não é o de um amante: ele diz que vai em seu encalço para tentar apreendê-la, para compreendê-la, mas na verdade, ele oferece-lhe sua subjetividade, colocando-se a serviço da fantasia dela, para que Lol dela se sirva, para se reinventar:

Eu [Hold] amo acreditar como eu amo, que se Lol é silenciosa na vida é porque ela acreditou, no espaço de um raio, que esta palavra poderia existir. Na falta de sua existência, ela se cala. Essa teria sido uma palavra-ausente, uma palavra-buraco, furado em seu centro com um buraco, desse buraco onde todas as outras palavras teriam sido enterradas. (Duras, 1964, p.48) 

Ela, doce mas indiferente, nunca parecia sofrer, afligir-se ou derramar uma lágrima. Quando alguém no colégio tentava apreendê-la, ela escorria por entre os dedos das mãos, como água. Em um instante estava longe de todos, imersa não em sonhos adolescentes, mas, segundo sua amiga Tatiana, no nada. Conheceu nas férias escolares, aos 19 anos, Michael Richardson, o noivo que será raptado no baile. Ela não tinha existência antes do baile, mas depois ela torna-se um deserto, «no qual uma faculdade nômade a havia lançado na busca interminável de que? Não se sabia. Ela não respondia» (Duras,1964, p.24).

S. Tahla, a cidade onde nasceu Lol, não está no mapa; enquanto a Moscou de Tolstoï está situada no mapa, e, naquela época, bem situada, na Rússia antes da revolução, da cortina de ferro, da construção do muro e de sua queda, antes da «paixão do real»[2] do século XX. Século XIX, século dos projetos e ideais utópicos ou científicos, dos planos para o futuro.

A escrita do romance vai absorver Tolstoï de 1873 a 1877. Sua questão é a mesma de Freud, gira em torno da mulher: “o que ela deseja?”. Esse enigma é formulado pelo escritor ao procurar as motivações da infidelidade de uma mulher, o que o deixa, inicialmente, oscilante entre as posições femininas tradicionais: diabólica ou santa? Depois, o espaço entre-duas transforma-se, e as posições antagonistas da personagem separam-se em duas mulheres.

Em uma primeira versão, com apenas três personagens, a heroína Tatiana é uma mulher diabólica, infiel e vulgar, que chocaria a sociedade por sua conduta indecente, seus decotes, exageros e falta de pudor.

No entanto, com o desenrolar da escrita, Tatiana — quase uma ninfomaníaca, para quem ele utilizara as palavras «diabólica», «demônio» — transforma-se em Anna Karenina, uma jovem infiel, mas ao mesmo tempo, equilibrada, culta, dotada de uma finura toda feminina; tendo como único índice de um equilíbrio instável «uma animação contida», «um transbordamento de alguma coisa» no olhar, que se esforça para «atenuar o fogo». Ocorrem, portanto, alguns movimentos de transformação durante o trabalho de escrita de Tolstoï: a divisão torna-se separação; a adúltera vulgar torna-se uma heroína trágica; e esta de arrebatadora passa a arrebatada.

 

O arrebatamento
 

O Baile: há na cena do baile, nos dois textos, um duplo arrebatamento, o rapto dele, e o aniquilamento dela. Ele é raptado por uma mulher madura, vestida de preto, cheia de mistério, brilho e sedução, que chega subitamente. Eles dançam e se colam arrebatados. A jovem solta de seu noivo; cai no arrebatamento, completamente aniquilada. Lacan resume assim: «A cena é o arrebatamento de dois numa dança que os solda, sob o olhar de uma terceira, com todo o baile, sofrendo aí o rapto de seu noivo por aquela que só precisou aparecer subitamente» (Lacan, 1965/2003: 199).

 

A chegada súbita da Mulher:

«Por que via misteriosa [Anne-Marie Stratter] tinha vindo ao que se apresentava como um pessimismo alegre, brilhante, uma sorridente indolência da leveza de uma nuance, de uma cinza? Uma audácia penetrada dela mesma parecia ser a única coisa que a mantinha em pé».

«Nada poderia acontecer a essa mulher, pensa Tatiana, mais nada, nada. Só o seu fim, pensava ela». (Duras, p.16)

«[Kitty] via o esplendor trêmulo que brilhava nos olhos da jovem mulher [Anna Karenina], o sorriso de felicidade e de beatitude que desabrochava sobre os lábios e a graça particular, plena de seriedade e de elegância dos movimentos.

Por que tudo isso se pergunta [Kitty], para todos ou para um só?

[Kitty] Observava Anna e seu coração se fechava mais e mais». (Tolstoï, p.114).

 

O brilho do vestido preto, que veste e reveste uma, deixa a outra despida do envoltório que a fazia ser, e quando desinvestida mostra o brilho da nudez: «O vestido é suporte, tecido, mas o corpo que o porta aspira o sujeito e troca seu estatuto» (Laurent, 2000:19): 

 

«... [Anne-Marie Stratter] com um vestido preto com duplo forro de tule, igualmente preto, muito decotado. Ela se queria assim feita e vestida, e ela estava como queria, irrevogavelmente.

A ossatura admirável de seu corpo e de seu rosto se adivinhava» (Duras, p.16).

 

«Kitty compreende que o charme de Anna consistia precisamente em manter-se sempre independente de sua toalete, que os adereços não contavam para ela,e que o vestido preto com a rica renda só a enquadrava, mas só se via ela, simples, natural, elegante, ainda que alegre e plena de animação» (Tolstoï, p .112).

«[Anna Karenina] estava arrebatadora (ravissante) em seu vestido preto, muito decotado, [...] tudo nela era charmoso; mas havia qualquer coisa de terrível e cruel neste charme» (Id., p.116).



O olhar: o arrebatamento de dois numa dança que os solda (nas palavras de Lacan), sob o olhar de Lol, uma terceira.
 


 

O termo ravissement já foi exaustivamente comentado pelos psicanalistas depois do artigo de Lacan, chegando quase a estatuto de conceito quando em 2001 houve no Instituto do Campo Freudiano em Paris uma «Journée du ravissement». A tradução do termo em português para «arrebatamento» também já foi consagrada pela tradução de Outros Escritos (Lacan, 1965/2003:198).

Durante o curso de Miller «Les us du laps» (1999-2000, p.397), Laurent animado pelo comentário de Miller sobre «O Tempo lógico e a asserção da certeza antecipada» (Lacan, 1998), descreveu os três tempos no romance de Duras, relacionando a estrutura do romance com a estrutura do sofisma descrito por Lacan, onde ele nos apresenta uma breve pesquisa sobre o termo «ravissement»:
 

“[...] no recente e notável "Dictionnaire historique de la langue française", podemos ler que ravissement,  introduzido no fim do século XII, «exprimia até a época clássica o fato de tirar a força, hoje realizado pela palavra «rapto» (da mesma família) e correntemente, por enlèvement (retirada/remoção). No vocabulário místico, a palavra designa uma forma de êxtase na qual a alma se sente tomada por Deus como por uma força superior à qual ela não pode resistir. Ela se difundiu no uso comum com o sentido fraco de «estado de uma pessoa transportada de admiração, de alegria» (1553). A própria evolução do sentido da palavra conserva o trajeto que descreve Lacan «evoca-se a alma, é a beleza que opera”.
 

“[...] Ele [Lacan] fará do arrebatamento da alma, da psique, não um símbolo mas uma operação lógica, subjetiva e temporal que permite situar as relações do sujeito com o corpo”. (Laurent, p.17)[3].

 

«A noite avançando, parecia que as chances que [Lol] teria de sofrer estavam rarefeitas, que o sofrimento não tinha encontrado nela onde se introduzir, ela havia esquecido a velha álgebra das penas de amor». (Duras, p.19)

Lol, sem dúvida, não tinha se dado conta de seu fim junto com o dia». (Duras, p.20)

«Este instante preciso de seu fim, quando chega a aurora com uma brutalidade inaudível e a separa do par que formavam Michael Richardson e Anne-Marie Stratter, para sempre, sempre». (Id., p.46)

 «Só naquele instante ela compreendeu que um fim se desenhava mas confusamente, sem distinguir ainda nitidamente qual seria. A tela da mãe entre eles e ela era o sinal de um presságio».

«Lol os seguia com os olhos através dos jardins e quando não os viu mais caiu por terra, desmaiada». (Id., p.22)

«Kitty, em sua perturbação, via tudo como através de um nevoeiro: o baile, os convidados, tudo era confuso para ela, e era preciso todo o poder de sua educação para sustentá-la e forçá-la a agir como convinha, isto é, dançar, responder às perguntas, falar, mesmo sorrir.

Mas antes de começar a dança [...] a jovem [Kitty] foi tomada de um desespero. ... Ela queria ter dito à sua mãe que estava sofrendo e voltar para casa, mas ela não tinha coragem. Ela se sentia aniquilada.

Ela se dirigiu para o fundo do pequeno salão e se deixou cair numa cadeira. (Tolstoï, p.115)

 

Todos os sentidos de "arrebatar" estão presentes na cena: arrancar, raptar, encantar, extasiar, enfurecer, conquistar. Arrebatamento pode ser o efeito da presença daquela que faz A Mulher, para os olhos de outra que acredita que só ela não é ou não tem. Arrebatamento é também quando a nãotoda perde seus enlaces e, sem nó, perde o sentido, seu norte. Arrebatamento é quando a mulher perde o amor de um homem, e este era o único nó que a enlaçava.

 

A fantasia e a inexistência do Outro:
 

Em Tolstoï, a cena do baile descortina a dinâmica de uma fantasia em sua função de tela que deixa desejar. Depois do baile, Kitty se apaixona por outro homem, e reencontra, no mesmo lugar, tudo o que a realizava: o amor, a família, a vida comum. Anna Karenina refugia-se numa vida incomum, deixando prevalecer a paixão; passa de arrebatadora a arrebatada; e, ao final, dá fim ao insuportável, realizando em ato o atropelamento que sofreu pela paixão trágica, irrealizável nesse mundo.

Apesar dos destinos diferentes das duas mulheres, e do fim trágico de Karenina, a extensa narrativa de Tolstoi, ao dar existência ao Outro, torna-se apropriada para fazer contraponto ao Arrebatamento de Lol V. Stein, porque quando existe o Outro, há um universo onde o amor faz sentido, mesmo para a infelicidade. Em Duras, o Outro não existe, não há universo nem sentido, Lol está solta no in-mundo. Viver não é narrável, em nenhuma época, mas na escrita de cada uma, o tratamento dado ao impossível é diferente. Na escrita contemporânea, parece que a prevalência do real, na amarração entre os registros, deixa mais exposto o inarrável do viver.

Passado o baile, depois de algumas semanas, Lol “parece” voltar a fazer outros laços: casa-se, tem filhos e uma rotina estável, uma vida comum.  No entanto, ao contrário do que ocorre em Anna Karenina, são apenas gestos, sua alma estava irrevogavelmente perdida: "Só sobra daquele minuto seu tempo puro, de uma brancura de osso" (Duras, 1964, p. 47), que se repete ainda e sempre.

É novamente de sua amiga, essa pequena outra, ao lado de seu amante, que ela se serve, agora para se revestir com a fantasia.

Depois de perambular por anos, encontra a cena, através da qual ela se realiza só. Com a arrebatadora Anne Stratter — "A" mulher, a «Outra» realizada —, ela se aniquilou; com Tatiana — a «outra» —, ela recompõe sua fantasia, realiza-se. Fora da cena, deitada num campo de centeio, ela olha, emoldurados pela janela, Tatiana nua com seu amante, envolta apenas nos cabelos, que, por serem pretos, vestiam bem a fantasia de Lol. Ela não está do lado de dentro da janela, recusando-se a ver o tempo passar; ela está fora, a vida passa, e se realiza na fantasia emoldurada pela janela. Lol «é realizada porque torna-se a mancha no espetáculo. Ela não é o voyeur, ela é a mancha». (Laurent, 2000, p.21) Neste caso, não é a dinâmica da fantasia, mas sua estática, que a deixa petrificada na cena, e precariamente a sustenta.

A "punção" (à) entre o sujeito ($) e o objeto a, na fórmula da fantasia ($àa), indica a função de uma borda que circunscreve um vazio; é a moldura da fantasia que limita e ordena a realidade, uma realidade preponderantemente visual. A moldura da realidade é o que a constitui como tal; é o que na realidade, sendo visual, não se vê; é um limite que opera mediante subtração do objeto a, e que organiza o campo do que vemos.

A fantasia vela a subtração do objeto a, o que por estrutura não pode ser visto; e, por outro lado, é tela, superfície que suporta o que se projeta sobre ela, sem a qual o desejo é vivido como o abismo da angústia. A dinâmica da fantasia é o cálculo, estratégia que deixa desejar e, de forma despercebida, determina o sujeito. Lol não se realiza com a fantasia, nem a realiza, só, ela é realizada pela fantasia. Para construí-la, busca em ato, com a ajuda de Hold, cuidadosamente, cada um dos personagens e a moldura para enquadrar a cena, que reinveste seu desejo.

Ela não encontra classificação nas estruturas tradicionais; ela é exemplar da clínica atual, porque nela a função da fantasia não passa despercebida, não funciona em sua dinâmica, mas como estática a fantasia é cena em ato, que, precariamente, a sustenta, petrificada Lol (stain) é mancha, e desaparece no espetáculo.

 

Referências bibliográficas

BADIOU, A.(2005) Le Siècle. Paris: Ed.Seuil.

BORGOMANO, M. (1997) Le Ravissement de Lol V. Stein de Marguerite Duras.

Paris: Gallimard.

BRANCO, L.C. (1989) & Ruth Silviano Brandão. A Mulher escrita. RJ: Lamparina, 2004.

DURAS, M. (1950) Un Barrage contre le Pacifique. Paris: Gallimard.

______. (1964) Le ravissement de Lol V. Stein. Paris: Gallimard

FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio: Imago, 1976.

______. (1933) Novas conferências introdutórias: A Feminilidade. Vol. XXII.

LACAN, J. (1959-60) O Seminário Livro 7. A Ética da Psicanálise. Rio: JZE, 1988.

______. (1971) Le Séminaire. D'Un Discours qui ne serait pas du semblant. (inédito)

______. (1972-73) O Seminário Livro 20. Mais, ainda. Rio: JZE, 1982.

______. (1965) Homenagem a Marguerite Duras pelo Arrebatamento de Lol V. Stein. In: Outros Escritos. Rio: JZE, 2003 p.198.

LAURENT, E. (2000) Un sophisme de L'amour courtois. In: Revue da Psychanalyse de la Cause Freudienne, no 46. p. 17.

MILLER, J-A. (1991-1992) De la naturaleza de los semblants. Buenos Aires: Paidós, 2002, 304p.

______. (1995-96) La Fuite de sens. (Curso inédito)

______. (1996-97). El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005, 466p.

______. (1998-1999) 1998-99). La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003, 416p.

______. (1999-2000) Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2004, 520p.

______. (2001) (direção) Documents préparatoires du Journée du ravissement. Institut du Champ freudien. Paris.

TOLSTOÏ, L. (1877/1972) Anna Karénine. Librarie Général Française – Livre de poche, Paris.

Notas

[1] Coincidentemente, Tatiana é também o nome de Anna Karenina, na primeira versão de Tolstoï.

[2]Termo de Badiou, em Le Siècle (2005), e para designar a presença do real no século XX.

[3] Em português, encontramos o mesmo sentido para "arrebatamento": tirar com violência ou força; arrancar. Levar, desprender, de um ímpeto: raptar. Impelir, conduzir. Encantar, enlevar, extasiar. Levar à ira, à cólera; irar, enfurecer, encolerizar. Conquistar, ganhar. Tirar por força ou violência; arrancar. Apossar-se por força ou violência; roubar. Provocar, suscitar; arrancar. Extasiar-se, maravilhar-se, entusiasmar-se. Enfurecer-se, irar-se, encolerizar-se. Transportar-se em êxtase místico, religioso, etc. (Dicionário Aurélio, 2000).