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Mais uma vez,
a nossa época esbarra com a emergência de um futuro nada
promissor para as relações entre os sexos. Um exemplo maior
desse diagnóstico é o fato incontestável de que a instituição do
casamento se vê afetada por transformações, até bem pouco tempo,
inesperadas[1].
Chega-se a pensar que apenas as mulheres acreditam no casamento,
sendo que esta crença é levada a tal ponto que o primeiro
parceiro delas não é um homem, mas a própria instituição
matrimonial. Afirma-se, entre outras coisas, que as mulheres
casam com o casamento! E os homens? Diz a opinião corrente que
eles continuam sendo eternas crianças, coladas à mãe e, enquanto
tais, solteirões inveterados. Cultivam durante uma vida inteira
um humor adolescente. Não têm a menor idéia de si próprios, não
entendem patavina de seu mundo íntimo. Se encontram um amigo em
algum happy hour, na passadinha regulamentar depois do
expediente, são capazes de esquecer a hora do jantar, a mulher e
a família com a maior displicência. Enfim, o que o senso comum
afirma, sem meias palavras, é que se ainda gozamos tão mal, nos
dias de hoje, é por culpa da solidão que solapa as mínimas
possibilidades de encontro entre o gênero masculino e o
feminino. Ou ainda, cai-se no ridículo de pensar que se tudo
isto acontece é devido ao feminismo e ao seu ideal de igualdade
entre os sexos: se as mulheres querem mandar, os homens, por sua
vez, aproveitando-se da situação, fazem apenas o que têm
vontade.
Parece-me
claro que a psicanálise não pode evitar lançar o seu próprio
questionamento sobre o mal-estar entre os sexos,
particularmente, quando este repercute sobre as diversas formas
de parcerias amorosas. Evidentemente, isto traz conseqüências
para a própria instituição do casamento. Se, no passado, o
casamento era um ideal, na época da inexistência do Outro, ele
tornou-se um instrumento, submetido à pergunta que cada um dos
cônjuges coloca para si mesmo: isto serve, ou, não serve à minha
maneira de gozar? Há algum tempo atrás, o casamento constituía o
destino inevitável de toda parceria amorosa, e mais ainda seu
laço era, praticamente, inquestionável e indissolúvel. Hoje, ele
tornou-se um instrumento para gozar: se ele nos serve…, tudo
bem! Se não serve…, joga-se fora, arruma-se outro, e ponto final[2].
Por outro lado, admite-se que essa desidealização, essa
banalização instrumental da relação conjugal não está em
contradição com os ideais do amor-paixão, em que se agregam
tanto o amor eterno quanto a paixão erótica sempre renovada.
Isto faz com que essa banalização do casamento não atenue nem
alivie as pressões do ideal. É por isso que a psicanálise toma o
casamento enquanto um laço, que para certos sujeitos, assume um
valor de cunho bastante exigente e, até mesmo, inatingível. A
clínica demonstra a cada dia de que maneira essa exigência é
posta em jogo em cada crise conjugal, em cada separação e,
mesmo, em cada divórcio litigioso.
Com a
psicanálise se pode afirmar que se os ventos da “maldição sobre
o sexo"[3]
continuam a soprar, eles agora se transmutam no
entrincheiramento, cada vez mais crescente, do ser falante no
chamado gozo do Um. Se, antes, a maldição sobre o sexo aparecia,
segundo a tradição judaico-cristã, como uma força perigosa,
destrutiva e negativa, uma força, inteiramente, assimilada à
idéia de pecado[4],
agora, essa mesma maldição sobre o sexo adquiriu novas
roupagens. Não é raro, formular-se, nos dias de hoje, a maldição
como sendo o efeito de contaminação próprio de uma epidemia dos
tempos atuais – a epidemia do desencontro que se abate sobre os
mais diversos estilos de parcerias amorosas. Há bem pouco tempo
atrás, ainda, corria o rumor de que se gozamos tão mal é porque
há muita repressão do sexo e, se isto acontece é por culpa da
família, da sociedade e, mesmo, do capitalismo. É o que se
reafirmava na interpretação freudo-marxista dessa epidemia do
desencontro entre os sexos. Parece que, hoje, já estamos
distantes de mais uma ficção produzida, com o intuito de
racionalizar o impossível de onde provém todo o impasse das
relações entre os sexos.
Gênero ou
sexuação
Como a crítica
freudo-marxista não tem a mesma força de antes, surgem, nos
tempos atuais, outras ficções que buscam dar conta deste
impossível, como é o caso do saber sociológico feminista, quase
sempre municiado pela idéia de que as diversas identidades de
gênero se constroem[5].
À luz de uma concepção que busca subverter a própria noção de
identidade de gênero, critica-se não apenas que as relações
sexuais tenham como fim a procriação ou que a família seja uma
unidade natural, denuncia-se, antes de tudo, o pensamento
binário, segundo o qual os sexos são somente dois[6].
Sugere-se ainda que as transformações e os deslocamentos que
tanto a condição masculina como a feminina sofrem ao longo das
épocas, não podem ser apreendidas pelas categorias estáticas e
normativas de homem e de mulher, categorias oriundas da
sociedade patriarcal e totalitária. Segundo esse ponto de vista,
para se desfazer de uma visão essencialista da diferença entre
os sexos – a crítica incluí a psicanálise, pois para esta existe
a diferença entre os sexos –, é preciso desvincular o gênero do
sexo, ou seja, desvincular o gênero de toda homologia do sujeito
com o sexo biológico.
Percebe-se, assim, que a inovação conceitual na
interpretação sociológica atual sobre a diferença dos sexos e
sobre a dominação masculina, funda-se na tentativa de definir o
gênero a partir das cadeias de representações, identificações e
comportamentos que permitem a construção de uma identidade
sexual. Assim, tanto o gênero feminino como o masculino, a
paternidade, a maternidade, o casamento, acabam funcionando como
"significantes-mestres" (S1), fornecidos pelo Outro,
significantes que, em última instância, explicam a emergência de
um sintoma que afeta a vida sexual, ou, mesmo, um conflito
causado pelo exercício, muitas vezes, conflitante da
paternidade.
Para o ponto de vista da identidade de gênero, se existe
mal-estar na esfera do sexual e da vida amorosa, isso ocorre não
apenas porque esses semblantes que o Outro social dispõe
como adequados ao masculino se tornaram anacrônicos e frágeis,
mas também porque faltam aos gêneros novas representações, novas
referências identificatórias. Prevalece, assim, o diagnóstico de
que não é preciso o homem contemporâneo apressar-se na busca
dessas novas representações, ressignificações e referências
identificatórias.
Goza-se mal hoje porque é difícil suportar o
tempo de transição entre uma representação do masculino
construída pelo modelo patriarcal e a possibilidade de conviver,
temporariamente, com a escassez dessas representações, de forma
que, no futuro, novas combinações e identidades de gênero sejam
possíveis.
O psicanalista não desconhece o processo de mutação que incide
sobre as identidades sexuais, nem tampouco negligencia que o
discurso do mestre busca, por meio dos seus diversos
dispositivos históricos, produzir e codificar as novas
representações e os novos trajetos para a diferença entre os
sexos. Ele sabe, também, que toda e qualquer tentativa de
estratificar, hierarquizar e dar prioridade a uma prática sexual
sobre as outras, é um procedimento que se inscreve sob as ordens
do discurso do mestre[7].
Não se pode, no entanto, esquecer que tanto o heterossexual,
como o homossexual, ou, alguma outra identidade sexual
emergente, constituem respostas sintomáticas ao real concernente
ao impossível da relação entre os sexos. Esta é a principal
diferença entre a psicanálise e as teorias político-sociológicas
sobre os gêneros. Para a primeira, essas identidades não são
apenas semblantes construídos pelos dispositivos que agenciam
sexo, saber e poder, pois é preciso admitir que a tensão
estrutural entre um significante-mestre e a modalidade
específica de gozo resulta de algo particular, de algo que
remonta ao percurso único dos descaminhos paradoxais próprios da
vida pulsional de um sujeito. Enfim, é insuficiente, para o
trabalho clínico cotidiano do psicanalista, achar que há apenas
semblantes acoplados aos diversos tipos de gozo. Há também o
real que resulta do impossível próprio da relação sexual e, a
sua necessária resposta pela via do sintoma, o qual vem suprir
esse exílio de que cada um padece devido a ausência de proporção
e de harmonia entre os sexos.
Enfrentar as dificuldades, os paradoxos da vida sexual, na
contemporaneidade e as perspectivas clínicas futuras que se
abrem, para o psicanalista, a partir daí, é confrontar-se com o
problema de que não
se capta o
real apenas com os semblantes, pois, existe, nele, esse gozo
impossível.Nesse sentido, interessa ao psicanalista virar a
página da dicotomia entre o gênero e o sexo, para aceder ao
capítulo magistral do ultimo ensino de Lacan sobre a diferença
dos sexos, capítulo que ele mesmo nomeou de sexuação. A esse
respeito, devo dizer que as elaborações do seminário Mais
ainda, descortinam todo um horizonte novo sobre as parcerias
sexuais contemporâneas.
É ao longo
desse seminário que se toma contato com a formulação clínica de
que a reticência do sujeito masculino à alteridade do feminino
se explica pelo seu refúgio no âmbito do Um fálico. Além disto,
afirma-se ainda que a epidemia do desencontro que contamina a
própria existência das parcerias sexuais, na atualidade, se
suporta no fator estrutural do mal-entendido dos gozos para os
dois seres sexuados.
É verdade que
Lacan levou um certo tempo para conceber esse mal-entendido, nos
termos de uma discordância inerente entre o modo de gozo no
homem e na mulher. Se, de um lado, considera-se que, apesar da
modalidade fálica do gozo ser preferencialmente masculina, as
mulheres não estão, portanto, excluídas dele, por outro, ao
definir-se pela relação de identidade, o gozo fálico se
apresenta como o inverso do Outro gozo, uma vez que este,
aparece, no lado feminino da sexuação, como puramente
contingencial, como gozo infinito, sem limites e, em última
instância, diz respeito ao significante da falta no lugar do
Outro S().
Em suma, se o masculino se apresenta como localizável, finito,
marcado pela relação de identidade é preciso, no entanto,
reconhecer que os fatores da extensão, da alteridade, do
ilimitado próprios do feminino não se confundem com uma
incompletude inefável.
O dandismo e vontade de castração inscrita no
Outro
Com relação à
sexuação masculina, eu diria que é no ponto preciso de um certo
uso do gozo fálico que advém o traço de atualidade das suas
formas de sintomas, para os homens, dentre as quais se destaca a
ação pretensamente consoladora dos gadgets. É como se,
por meio desses objetos – que não demandam e não desejam –, o
sujeito encontrasse uma espécie de fiador sexual que
garantiria alguma harmonia na sua parceria com o gozo do corpo[8].
Antes de abordar a atualidade clínica do intenso fascínio que os
gadgets provocam no homem moderno, é o caso de situar um
modo de gozo, tipicamente masculino, que surgiu ainda no início
do século passado. Trata-se da figura masculina marcante do
dândi, figura que se caracteriza pelo uso exacerbado da
estratégia do semblante como uma forma de dar expressão ao seu
modo de gozo. É sabido que o imaginário literário, de autores
como George Brummel, George Byron, passando por Charles
Baudelaire e Barbey d’Aurevilly, consagra extrema importância à
figura do dândi[9].
Há um modo de
gozo dândi que consiste em apresentar-se “sempre impecável, sem
se curvar, superior a tudo, impassível e impossível de ser
surpreendido”[10].
O modo masculino de gozo dândi implica uma disciplina severa,
uma verdadeira ascese, a qual Baudelaire tornava um exemplo do
heroísmo moderno, visto que, no fundo, este se efetua na órbita
da pura perda do que se constitui como os ideais prevalentes. O
poeta diz isto de modo explícito: “desabusado e melancólico, o
dandismo seria a ultima expressão do heroísmo nas decadências”.[11]
É uma ascese vã, em todos os sentidos do termo, pois mesmo o
culto da imagem expresso numa vaidade sem limites é centrada no
nada. Nela não há Outro do qual seria preciso assegurar a
satisfação. Pelo contrário, caso seja um modo de gozo, é um modo
de gozo centrado no “nada”, nesse “nada que aparece exaltado
pelo fútil, isto é, pela capacidade em retirar lucro da
futilidade dos pequenos nadas”. A posição do dândi repousa sobre
o respeito e o cuidado com os diversos pequenos nadas, que são
elevados ao valor da Coisa[12].
Talvez, se possa dizer que a figura do dândi importa porque ela
é um prenúncio do lugar preponderante que a moda passa a ocupar
nas sociedades contemporâneas. Tal como propõe o sociólogo, a
moda, hoje, não é mais um luxo estético e periférico da vida
coletiva, ela tornou-se um fator de agenciamento essencial, no
interior do tecido social, fator esse que comanda a produção e o
consumo dos objetos, a publicidade, a cultura, a mídia, as
mudanças ideológicas e sociais. Para além das inquietações que
se originam de uma sociedade devotada ao caráter obsoleto e
fútil das coisas e do sentido, a moda aparece, paradoxalmente, e
não sem ambigüidades, como um instrumento de consolidação da
dinâmica modernizadora destas sociedades.[13]
Ao elevar os
pequenos nadas ao valor da Coisa, o dândi cunha sua posição
subjetiva com uma sublimação perturbadora, tendo em vista que à
diferença da sublimação artística, seu produto é intransmissível[14].
Ao contrário da obra de arte, o produto do modo de gozo dândi
não circula, uma vez que esse produto é o próprio sujeito e seu
corpo. A obra, nesse caso, é revestimento elegante e requintado
de seu corpo. É a exposição pública de seu corpo. É claro que o
dândi circula, viaja. Foi o que, por exemplo, fez Byron, pois,
era um artista e um poeta. O intuito em evocar, aqui, a figura
do dândi é porque seu modo de gozo ilustra a sublimação
do homem celibatário e individualista, uma sublimação estéril –
nascida, no início do século XIX –, que aponta algo dos sintomas
do masculino que busca fixar-se nos tempos em que não existe
mais o Outro para fazer a lei.
Se o Outro
desaparece é a própria crença nele que se mostra ausente nas
manifestações e estilos de vida atuais. E isto tem
conseqüências, pois o que situa um determinado modo de gozo é o
Outro. Para que o sujeito possa se situar, se localizar, com
relação ao gozo, é preciso o Outro, é preciso sempre que o Outro
se faça presente. Nesse sentido, há sempre uma espécie de
situacionalidade fundamental do gozo, uma relatividade do
gozo para com o Outro. Porém, para situar o nosso modo de gozo
em relação ao Outro, é necessário ainda estar, de alguma
maneira, separado dele. É o próprio Lacan que adverte, para quem
quer estar separado dele, é preciso abrir a via de experimentar
não a demanda do Outro, mas, sua vontade de castração[15].
Vê-se, portanto, que o Outro apresenta faces distintas: uma
coisa é o Outro da demanda, outra é a vontade de castração que,
nele, se manifesta. Ir além do circuito da demanda do Outro,
supõe que o sujeito confronte-se com o que foi, para ele, a
incidência singular dessa vontade de castração, interpretando-a.
É sabido, então, que o que mantém um modo de gozo no lugar, para
que não haja descaminhos, desatinos, é preciso situar o laço
particular do sujeito com relação a vontade inscrita no Outro.
A esse
propósito, é esclarecedor o comentário que faz Jacques-Alain
Miller, sobre o parágrafo final de “A subversão do sujeito e a
dialética do desejo”, em que se discute os dois modos de gozo,
vistos como dois modos extremos de reposta ao que se instala
como a vontade de castração pertencente ao Outro[16].
Essa resposta do sujeito ao Outro desejante – exista ele ou não
–, pode consistir em ir até o final na sua própria realização
como objeto, ou, levar às últimas conseqüências a exaltação
narcísica do eu. Para a primeira destas soluções à vontade de
castração do Outro, que se presentifica na realização de si como
objeto, toma-se como exemplo o que ele próprio designa como o
“masoquismo objetal”. Trata-se, precisamente, da mumificação que
se prescreve na iniciação budista, e que se localiza para-além
do narcisismo. Como se sabe, exige-se daquele que se inicia na
ascese budista ultrapassar o plano da imagem para atingir um
status propriamente mumificado.
Segundo
Miller, nesta mesma passagem dos Escritos, Lacan se
refere a uma segunda via de solução que, também, se constitui
como um outro modo de gozo, que, nesse caso, se caracteriza pela
devoção a uma causa perdida, devoção denominada “narcisismo
supremo”. O termo narcisismo adquire, aqui, uma tonalidade
inteiramente particular, uma vez que, enquanto modo de gozo, ele
é obtido por meio de um sacrifício que se consuma pela crença em
valores que perderam a força e a consistência que já possuíram
antes. O inusitado e o mais belo, nisso tudo, é que se sacrifica
pelo que se mostra destituído de valor e de sentido. Não é sem
razão o fato de que Lacan tenha feito, desta segunda via um
traço marcante
da modernidade. Isto se exemplifica pela obra do escritor Paul
Claudel, tendo em vista que o autor revaloriza e restitui a
dimensão trágica, numa época em que se assiste a uma nítida
dissolução das circunstâncias para a enunciação do discurso
trágico.
Ora o dandismo é um modo de gozo masculino que apresenta uma
estratégia bastante particular com relação ao Outro, com relação
à vontade de castração inscrita no Outro. Em primeiro lugar, ele
se constitui como uma “aristocracia de imitação”, embora talvez
seja a única possível, interessante, inventiva, desde que Deus
está morto, para buscar uma referência em Nietzsche. É um modo
de gozar onde não mais se procura alegrar a Deus. Para que o
gozo não se extravie em todos os sentidos e direções, situa-se o
gozo em função de um Outro, que, embora não exista,
ambiciona-se, de algum modo, preservá-lo enquanto um lugar
vazio. Em segundo lugar, o dândi ocupa uma posição de
sujeito que encarna o controle, a vigilância, segundo uma
perspectiva em que prevalece o que Michel Foucault designa como
“preocupação de si”. Esta ocupação excessiva com o si
mesmo é levado a um limite tal, que o único dever que se
impõe, ao dândi, é de “nunca se deixar levar” pelas ofertas do
Outro da civilização. Eis, aqui, então, a maneira
especial pela qual emerge a recusa do dândi, visto que é
uma recusa em se submeter ao Outro da demanda[17].
Nesse ponto preciso, compreende-se porque o dandismo é uma via
de satisfação da chamada vontade de castração inscrita no
Outro, ainda que a crença nesse Outro, mostre-se fortemente
abalada. É a prova mais cabal de que uma tal vontade pode se
fazer presente, ainda que não se acredite mais no Outro. Apesar
do seu descrédito no Outro, o dândi encontra um meio de resposta
à vontade de castração presente no Outro, a partir de sua
localização no âmbito do gozo. É por isso que se pode
classificá-lo no interior das condutas de impassibilidade. Em
outros termos, a impassibilidade do dândi inscreve-se no plano
da “ética do solteirão”, da qual Lacan diz, em “Televisão”, que
tomam ao pé da letra a não-relação com o Outro[18].
Nesta conduta de impassibilidade, observa-se, como se disse
antes, uma ascese que se qualifica pelo desinvestimento, na
medida que se trata de encontrar algum recurso para evitar o
sofrimento e, de alguma maneira, por esse meio colocar o gozo
fora do jogo. Em suma, o dândi é um personagem que
empunha uma estratégia cujo intuito último é atingir o gozo do
Um pela via de uma separação com as ofertas do Outro, sobretudo,
se levarmos em conta a separação de seu corpo munido pela
elegância, ao mesmo tempo, fabricada e requintada.
A ética do solteirão
É possível também recorrer à figura do celibato para
caracterizar o essencial desse modo de gozo solitário do homem
moderno, que se exprime pela devoção dedicada a esses objetos
também fúteis que são os objetos que, por obra da ciência,
povoam o mundo. No fundo, se o homem lhes dedica tanto
interesse, é porque, neles, ele capta algo do gozo do corpo.
Esses objetos tornam-se, pouco a pouco, órgãos necessários,
ditando ao sujeito novas funções e impondo-se como próteses
suscetíveis de anular a relação singular do humano com o desejo.
A indagação que surge da constatação dessa adesividade libidinal
dos homens a esses objetos vai muito além do problema do aumento
do celibato na modernidade, para exprimir-se enquanto uma
pergunta sobre quem é o outro ou, ainda, quem é o
parceiro desses sujeitos.
O próprio
Lacan formula que o solteirão ergue, para si, uma dimensão
ética, tendo em vista a ousadia de sua ação em responder pela
não-relação com o Outro, principalmente quando se contenta em
tomar tal relação ao pé da letra.[19]
Tomar ao pé da letra essa relação com o Outro é considerá-la
segundo a verdadeira face em que ela se apresenta para o ser
sexuado, a saber, o Outro sexo. Logo, o celibatário evita o
encontro com o parceiro sexual por meio de uma ética que promove
um curto-circuito na relação com o Outro, ou, mais precisamente,
é alguém que não consente qualquer possibilidade de estabelecer
uma comunidade íntima e durável com o Outro sexo. Pode parecer
inteiramente paradoxal que se tenha, antes, formulado uma
questão sobre a parceria ou, ainda, sobre o outro
desse homem celibatário. Pela própria definição do termo
celibatário, era de se esperar que se tratasse de um sujeito que
excluísse, a priori, o estabelecimento de qualquer tipo
de aliança com um parceiro. Porém… não! Eis aí, então, o
paradoxo: o celibatário, tal como se pode depreender da
elaboração de Lacan sobre a sexuação masculina, é alguém que se
revela casado com o gozo do corpo, alguém que escolhe como
parceiro sexual: o Um fálico. O sujeito estando, assim, casado
com seu órgão, valendo-se desta forma de gozo com seu parceiro "parassexuado"[20]
rechaça qualquer laço com uma mulher. Aliás, como
se refere Lacan em A terceira, a vertente propriamente
parassexuada dessa modalidade paradoxal de parceria se ilustra,
aqui, pelos gadgets ready made.
Do ponto de
vista de seu modo de gozo, conclui-se que o verdadeiro parceiro
do celibatário não é o Outro e, sim, o que se substitui a este
enquanto objeto (a). Para Miller, exprime-se, neste ponto
preciso, a principal característica da contemporaneidade que é
esse transbordamento do parcial, do que se constitui como marca
do não-todo, em suma, o extravasamento do objeto (a) face
ao progressivo desaparecimento do grande Outro (A)[21].
Nesse ambiente
de inexistência do Outro, evidencia-se a tendência marcante do
sujeito a fixar-se do lado do gozo do Um, e isso ocorre por
causa de seu encontro com uma das diversas formas desse
condensador de gozo que é o objeto (a). No Mais ainda,
Lacan afirma, a esse propósito, textualmente : "[…] o
parceiro desse eu que é o sujeito, sujeito de qualquer frase de
pedido, é não o Outro, mas o que vem se substituir a ele na
forma da causa do desejo — que eu diversifiquei em quatro […],
em objeto da sucção, objeto da excreção, o olhar e a voz. É
enquanto substitutos do Outro que esses objetos são reclamados e
se fazem causa de desejo"[22].
Nesse sentido, a verdadeira face do parceiro do sujeito
celibatário são esses substitutos do Outro, no âmbito do gozo,
são esses objetos — é o caso da voz na ficção cinematográfica
referida — que se constituem como a própria marca da perda de
gozo para o ser falante.
Se o
celibatário responde pela não-relação com o Outro, ele o faz
porque consegue colocar o objeto (a) no lugar daquilo que
ele não pode perceber no Outro. Logo, a característica essencial
da vertente masculina da sexuação é fazer com que, em alguma
parte, o objeto (a) seja não apenas um ponto de partida,
mas também o "um só do macho — o papel do que vem em lugar do
parceiro que falta"[23].
Em função
desse parceiro que falta, o circuito da fantasia, muitas vezes
complexo e sinuoso, edifica-se e, por essa mesma razão, o homem
só tem acesso a uma mulher pela via do objeto mais-de-gozar.
Para Lacan, é patente que, do lado do homem, "aquilo com o que
ele tem a ver é com o objeto (a), e que toda a sua
realização quanto à relação sexual termina em fantasia"[24].
Essa vicissitude, extremamente singular, do modo
de gozo no masculino é o que permite esboçar uma resposta
problema assinalado, no início, sobre a obstinação do homem em
querer encontrar um parceiro que funcionaria como um "fiador
sexual”. É possível postular-se que a única caução que um homem
pode encontrar numa parceria é o fato de uma mulher consentir em
ocupar a posição de objeto (a), tornando-se, assim,
flexível às solicitações da fantasia do parceiro.
Por outro
lado, ao se insistir em que o objeto (a) aparece como
ponto de partida, é-se levado a considerar a máxima de que o
sujeito masculino só deseja em consonância com o dispositivo de
sua fantasia. É isso que permitiu a Lacan a escritura do matema
F(a),
cuja interpretação recai sobre uma certa homologia entre o
desejo masculino e o desejo fetichista, sendo que, no primeiro
caso, se destaca o valor de gozo da série de objetos que pode
localizar-se no lugar desse objeto situado entre parênteses.
Com efeito,
quando se circunscrevem os objetos entre parênteses, busca-se
equacioná-los — tal como o objeto pulsional ou objeto parcial —
enquanto uma resultante da vontade de gozo própria da fantasia
no masculino. Miller, por sua vez, propõe uma reescritura do
matema lacaniano do desejo masculino, de forma a obter o matema
da fantasia masculina — S à
F(a)
—, na medida em que o gozo masculino se sustenta de semblantes
falicizados[25].
Afirma, ainda,
que o sujeito masculino, ao atravessar os distintos níveis de
sua fantasia, experimenta, no percurso da análise, uma espécie
de aglutinação dos termos dessa fórmula, cujo efeito é um
intenso reforço da função F. Ocorre, assim, uma intensa
impregnação da fantasia nas formas de gozo do masculino, em que,
às vezes, longe de se permitir a travessia do lado do desejo
masculino, se observa, ao contrário, uma compressão dela. Essa
impregnação do gozo fálico no sujeito masculino tem como
contrapartida o próprio processo de subjetivação do órgão
genital, no qual se verifica, com freqüência, o sentimento de
superioridade do proprietário em face de seus bens e posses.
Percebe-se facilmente esse fenômeno na clínica, tendo-se em
vista que o chamado gozo do proprietário funciona sob o crivo de
uma performance, em que se pode contabilizá-lo,
acumulá-lo, compará-lo, vangloriá-lo e, mesmo, exibi-lo.
O
proprietário, porém, não está imune ao fato de que possam, de
uma hora para outra, retirar-lhe seus bens. Isso faz com que o
universo subjetivo do proprietário se mostre bastante permeável
à prudência e ao medo, que, visivelmente, contrasta com o lado
intrépido e sem-limites da posição feminina. É a exaltação do
gozo fálico que explica também que o sujeito masculino seja
levado a proteger-se da impotência por meio da agressividade,
pois é patente que, no momento em que é incitado a dar, ele age
como se fosse vítima de um roubo. A tal ponto, que lhe resta,
por outro lado, agarrar-se à saída autista com o gozo, mantida
como um refúgio que possibilita reservar, para si, suas pequenas
posses.
É evidente que
esse falocentrismo do proprietário torna o homem, um ser pesado,
estorvado, embaraçado pelo ter. O ter é um estorvo e, como o
sujeito tem algo a perder, está condenado, como se disse, antes,
à prudência. Isto quer dizer que ele é fundamentalmente medroso.
E, se vai à guerra, é para fugir das mulheres, para fugir do
buraco da castração[26].
Assim, o homem não existe sem semblantes, porém são semblantes
para proteger seu pequeno ter. É exatamente nesse ponto que
Lacan pôde colocar os homens do lado do sintoma e as mulheres do
lado da devastação. Se a resposta do homem à castração é fazer
de uma mulher um sintoma, é porque enquanto proprietário que tem
horror à perda, esse sintoma tem um nome: agarrar-se aos
semblantes para evitar o amor.
Referências Bibliográficas
[1]
“Desde o início da década de 1960, testemunhamos uma mudança
dramáticas nas unidades humanas. O casamento tornou-se uma
variável, no sentido social e não apenas no estatístico. Ele
não está· simplesmente declinando. Mais do que isso,
tornou-se um fenômeno variado nas sociedades
ocidentais e entre elas”. THERBORN, Gran. Sexo e Poder: a
família no mundo 1900-2000. SP: Ed. Contexto, 2006, p.
287.
[2]THERBORN,
Gran. Op. Cit., p. 291.
[3]
“Nenhuma efervescência [...] seria capaz de suspender o que
ele atesta de uma maldição sobre o sexo, evocada por Freud
em seu Mal-estar”. LACAN, Jacques. (1973).Televisão.
Em: Outros escritos, RJ: JZE, 2003, p. 530.
[4]
“As noites cristãs de sexualidade irão pouco
a pouco, apreciar o ser humano desligado do mundo físico. O
calor genitalis, o espírito abrasador desatrelado no ato
sexual, já não era tratado, como no mundo pagão, com a
antiga reverência. A sexualidade deixa de ser encarada como
uma energia cósmica que ligasse os seres humanos aos
rebanhos férteis e as estrelas flamejantes. Nada é
mais acentuado do que a severidade com que os bispos do
Ocidente latino passaram a censurar as ocasiões em que a se
podia constatar que o animal e o humano se uniam”. BROWN,
Peter. Corpo e sociedade- o homem, a mulher e a renúncia
sexual no início do cristianismo. RJ: JZE, 1990, p. 355.
[5]
Apesar da crítica radical da hegemonia da
heterossexualidade, a autora problematiza os pressupostos
básicos da sociologia do gênero como É o caso da categoria
de identidade e a maneira usual em que, nesse‚ âmbito, se
compreende a construção dos gêneros sexuais.
BUTLER, Judith. Corpos que importan: sobre los límites
materiales y discursivos del “sexo”.
Buenos
Aires: Paidós, 2002, p. 27.
[6]
Além de admitir que a “regulação binária da sexualidade
suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que
rompe a hegemonia heterossexual, reprodutiva e
medico-jurídica, a autora é contra toda e qualquer
perspectiva “fundacionista” para uma política da
sexualidade. Sua perspectiva pós-identitária.É levada a tal
ponto que o próprio uso de um “nós” feminista é recusado
como uma construção fantasística que nega a complexidade e a
indeterminação de todas as configurações possíveis dos
gêneros e dos corpos. BUTLER, Judith.
Problemas de gênero – feminismo e subversão
da identidade.
RJ: Civilização, 2003, p. 41.
[8]
LACAN, J. La troisième. Lettres de l’École
Freudienne – bulletin interieur de l’EFP, 1975, n.
16, p. 203.
[9]
“árbitro da moda, déspota do espírito, amante
da beleza, o dândi para transformar, ele próprio, em obra,
ponto de partida e ponto de chegada de um circuito egoísta,
genial e luminoso. Ele se cria, se fabrica, se mostra,
sempre o mesmo e sempre superior, querendo impor a diferença
de sua presença, a singularidade de sua pessoa, sem utilizar
outras vias que não seja a da elegância e a da conversa.”
COBLENCE, Françoise. Le dandysme – obligation
d’incertitude. Paris: PUF, 1988, p. 9.
[10]MILLER,
J.-A. (1994-95). Silet. RJ: JZE, 2005, p. 156.
[11]
BAUDELAIRE, C. Le peintre de la vie moderne. Oeuvres
completes Paris: Gallimard-Plèiade, 1976, t. 2,
p. 710-711.
[12]MILLER,
J.-A. (1994-95). Op. Cit., p. 157.
[13]
LIPOVETSKY, Gilles. L’empire de l’Éphemère.
Paris: Gallimard, 1987, p. 21.
[14]
MILLER, J.-A. (1994-95) Op.
Cit.,
p. 157.
[15]
LACAN, J. (1960) Subversão do sujeito e a
dialética do desejo no inconsciente freudiano.
Escritos.
RJ: JZE, 1998, p. 841.
[16]
MILLER, J.-A. (1994-95) Op. Cit., p. 157-158.
[17]
Id., Ibid., p. 157-158.
[18]
LACAN, J. (1973), Op.
Cit.,
p 539.
[20]
LACAN, J. La troisième. Lettres de
l’École Freudienne – bulletin intérieur de l’EFP, 1975,
n. 16.
[21]
LAURENT, E. ; MILLER, J.-A. L’Autre qui
n’existe pas et ses comitês d’Éthiques.
L’orientation lacanienne. Cours du 21 mais, 1997.
(Inédit).
[22]
LACAN, J. (1972-73) O seminário, livro 20,
Mais ainda. RJ: JZE, 1992, p. 171.
[23]
Id. Ibid., p. 85-86.
[25]
MILLER, J.-A. Des semblants dans la relation
entre les sexes. La Cause freudienne. Revue de
Psychanalyse de l’ECF, Paris, n.
36, mai 1997, p. 11.
[26]
MILLER, Jacques-Alain. Des semblants dans la
relation entre les sexes. La Cause freudienne.
Revue de Psychanalyse de l’ECF, Paris, no.
36, p. 11, mai 1997.
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