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Venho
lhes propor uma leitura do caso de Freud, “O homem dos ratos”.
Eu penso que consegui apreender bem os ratos e posso lhes
demonstrar sua consistência. Vou me referir ao caso publicado nas
Cinq Psychanalyses e no Journal
d’une analyse, que compila as anotações feitas por Freud
ao final das sessões. Ao final não, durante! De fato, não é
Freud quem dizia que: “Eu não aconselho aos psicanalistas que
tomem notas do que dizem os pacientes durante o tempo da sessão;
a distração da atenção do médico faz tão mal aos pacientes
que não compensa ter uma exposição tão mais detalhada das
observações” (Freud,
1979, p. 202, n.1). Este tratamento durou onze meses; pode-se
dizer que produziu efeitos terapêuticos rápidos.
É
possível também referir-se aos aportes teóricos de Freud sobre
a neurose obsessiva posteriores a 1896 no “Manuscrit K” (1956)
e no texto “Nouvelles observations sur les psychonévroses de défense”
(1973).
Observações
sobre um caso de neurose obsessiva: o Homem dos ratos
O
paciente teme que coisas terríveis aconteçam com seu pai e uma
dama venerada. Ele está sujeito a impulsos obsessivos, tais como
fazer mal à dama, que lhe acometem quando ela não está
presente; mas estar longe dela lhe faz bem. Ele se impõe
interditos e se atrasa em seus estudos de direito, pois sofre de
inibições ligadas ao combate contra seus sintomas. Ele vem se
consultar com Freud após ler a Psychopathologie
de la vie quotidienne. Pode-se afirmar que foi seu encontro
com o sujeito suposto saber, que desembocou na hipótese de que
seus sintomas querem dizer alguma coisa.
A
neurose infantil
Primeira
sessão:
O
paciente fala desde a primeira vez de sua vida sexual. Seus
primeiros impulsos remontam aos quatro ou cinco anos de idade
quando tocou a Senhorita Robert. Ela tinha “órgãos genitais
curiosos”, segundo ele. Esta experiência deixou nele um rastro
indelével: a curiosidade de ver mulheres nuas. Mais tarde, a
mesma coisa lhe aconteceu com a Senhorita Rosa. Suas lembranças
remontam à idade de seis anos e são muito nítidas: “eu sofria
de ereções”, ele nota. Podemos supor com Lacan que até aí
ele ainda não tinha subjetivado suas primeiras experiências
sexuais. Estas primeiras ereções fazem furo no nível do sentido
e ele se queixa à mãe, pois alguma coisa, vivida como estranha,
lhe escapa. É o encontro com a realidade sexual que se mostra
traumático. Lacan, em sua “Conférence sur le symptôme”
(1985), proferida em Genebra, diz que o encontro com a ereção não
é auto-erótico, é tudo o que há de mais hétero, é traumático.
Em uma de suas Conférences
Américaines (1976), ele diz a respeito de Hans que seu pênis
parece-lhe pertencer ao exterior, pois ele o experimenta como
sendo estranho a seu próprio corpo.
Ernst
Lehrs suspeitava de que o fenômeno bizarro das ereções teria
uma relação com seus pensamentos e sua curiosidade sexual, isto
é, com sua fantasia de ver mulheres nuas, fantasia que sustentava
seu desejo de voyeur, mas também seu desejo de saber. Ele temia que seu pai
morresse se pensasse em coisas sexuais, portanto procurava afastar
estes pensamentos. Ele supunha que pronunciava seus pensamentos em
voz alta, pois tinha a impressão de que seus pais os conheciam,
sensação esta, que se origina no sentimento de exterioridade à
linguagem que todos nós conhecemos muito bem.
Freud
considera que tudo isso não é o início da doença e, sim, a
doença propriamente dita. Toda a neurose obsessiva está aí na
neurose infantil, que comporta, a título de sintoma, o eixo da
neurose posterior:
-
A
pulsão escópica na criança traz ao primeiro plano o gozo do
olhar tomado na fantasia de ver mulheres nuas, fantasia que
sustenta o desejo.
-
Uma
apreensão vem se opor ao desejo sob a forma de uma construção
lógica: “se... então”, “se eu tenho o desejo de ver
uma mulher nua, então meu pai deverá morrer”.
-
Do
registro da inquietante estranheza, a angústia se impõe ao
sujeito como afeto que causa sofrimento. Emerge então, em
defesa, a necessidade de cometer atos que se opõem à idéia
geradora de obsessão. Freud deduz daí que podemos encontrar
em um garotinho de seis anos todos os elementos da neurose.
Ele assinala que, quando a neurose obsessiva começa em tão
tenra idade, convém, quando se recebe alguém que apresenta
obsessões, que se procure o núcleo infantil da neurose para
assegurar-se que é de fato questão de um sintoma obsessivo.
Uma
outra característica seria uma atividade sexual precoce e infalível.
Esta não falta na histérica, mas cai no esquecimento devido ao
recalque.
A
grande apreensão causadora de obsessão
A
segunda sessão é dedicada à elucidação do sintoma obsessivo
tal qual ele se manifestou na idade adulta.
Ernst
chega dizendo a Freud que vai lhe relatar o evento que o estimulou
a procurá-lo, acontecido dois meses antes de sua vinda, no mês
de agosto, num momento em que ele deveria cumprir obrigações
militares. Dois eventos de pura contingência ocorreram: de um
lado, a perda de seus óculos durante uma manobra, e a comunicação
por telégrafo ao seu oculista, em Viena, solicitando a reposição;
de outro, o encontro com o “capitão cruel”. Quando ele chega
ao momento em que de fato deve relatar a história que ouviu, seu
discurso se torna confuso, se expressa de forma muito obscura e
guarda no rosto uma expressão complexa que Freud define como o
testemunho do “horror de um gozo por ele mesmo ignorado”. Ele
não consegue pronunciar o termo “ânus” e é Freud que o
nomeia em seu lugar. Ele explica também que, quando escutou a
história, um pensamento lhe veio, que ele refutou com violência
como lhe sendo estrangeiro: “isto vai acontecer com uma pessoa
que me é querida”. Simultaneamente ao pensamento, emerge a sanção:
para que o pensamento não se realize, ele deve realizar alguma
coisa.
A
partir daí, ele trava um combate sem trégua contra o pensamento
e é submetido à sanção. Ele se apóia em duas fórmulas de
defesa: uma palavra – aber
(“mais”, em alemão) – que ele pronuncia ao mesmo tempo em
que faz um gesto de rejeição, e palavras que se dirigem a ele
mesmo: “Ora vejam, o que você vai imaginar!” As pessoas às
quais o suplício deve ser infligido são o pai, que está morto há
muito tempo, e a dama por quem é apaixonado. Não é ele quem
suplicia; o suplício é impessoalmente infringido
(vai acontecer com...).
Ao
mesmo tempo, encena-se o “drama do sintoma obsessivo”: o cenário
da dívida impagável.
De
fato, em seguida à encomenda dos óculos, no dia seguinte, o
capitão cruel lhe remete o pacote. Ele lhe indica que deve
reembolsar o tenente A. Isto tem sobre Ernst um efeito devastador:
ele acredita que não deve devolver o dinheiro senão o suplício
dos ratos acontecerá. A isto se soma um comando: deve devolver o
dinheiro ao tenente A. Portanto, não pode se mexer!
A
história é confusa, vaga, contraditória e imprecisa. Ernst está
em um estado de estupor e de confusão tal que, em dado momento,
chama Freud de: “Meu capitão”.
Isto
demonstra que um neurótico obsessivo, preso em um transe
obsessivo grave, pode parecer confuso sem que todavia possamos
concluir que é um caso de psicose.
Freud
fica imbuído do desejo de saber e estuda o caso evitando entendê-lo
precipitadamente. O que importa, do ponto de vista de um diagnóstico
diferencial, são os detalhes: de fato, o capitão cruel se
enganou. Foi a agente dos correios quem pagou a encomenda e não o
tenente A. Ernst, todavia, promete restituir o dinheiro a A: começa
aí a comédia da impossível restituição do dinheiro.
A
falsa conexão afeto/pensamento
Seguem
duas sessões sobre o pai, morto quando Ernst tinha vinte e um
anos, em relação ao qual ele se sente culpado de negligência.
Após sua morte, ele se sente invadido por um sentimento de
descrença: ele imagina constantemente que seu pai está vivo. Um
ano e meio mais tarde, em seguida à morte de uma tia, ele se
lembra de sua negligência e esta se torna uma fonte infindável
de culpabilidade e de recriminações: ele se toma por um
criminoso. A conseqüência é uma grave inibição intelectual.
Freud emite a hipótese de um fantasma em relação com a morte do
pai que se prolonga no além, mas encontra os afetos ligados às
recriminações desproporcionais em relação ao conteúdo: estas
recriminações e esta culpabilidade não combinam. Existe um
desacordo entre as representações e os afetos; o afeto deve
corresponder a um outro conteúdo; é necessário supor uma falsa
conexão afeto/pensamento. Não se trada de desculpabilizá-lo,
mas, isto sim, de encontrar a verdadeira razão. Em toda neurose
obsessiva ocorre este tipo de má conexão lógica.
Freud
pesquisa então um desejo infantil: o desejo da morte do pai. O
Homem dos ratos se insurge, se defende, afirma que adora seu pai,
que o ama acima de tudo. Freud lhe explica que este amor tão
intenso é a condição de recalque do ódio, cuja fonte reside
nestes desejos sexuais infantis para os quais o pai era um obstáculo.
A despeito de sua recusa da hipótese de Freud, Ernst reconhece
que, mesmo depois da morte do pai, ele vai muito mal. Freud tenta
então reconstituir a causa contingente do desencadeamento da
neurose. Enquanto na histérica, a causa ocasional cai no
esquecimento, no obsessivo ela é conservada na memória, mas
destituída de sua carga afetiva. A contingência veio movimentar
os significantes de sua história e, em particular, antes de seu
nascimento, aqueles relativos à escolha de parceiras de seu pai.
Este era apaixonado pela filha de um açougueiro, à qual
renunciou para casar-se com a filha de um industrial do qual se
tornou empregado, o que lhe permitiu constituir fortuna. Isto
coloca para seu filho a questão da causa do desejo que une um
homem a uma mulher, dos antecedentes lógicos do objeto a
naquilo que uniu sua mãe e seu pai. Após a morte de seu pai, sua
mãe, um pouco alcoviteira, procura fazê-lo se casar com uma
mulher rica, mesmo ele amando uma mulher pobre, a dama à qual seu
pai não gostaria de que ele se associasse de forma duradoura. Se
ele persistir em seu amor, Ernst desagradará ao pai; a questão
para ele é, então, a de contrariar ou não a vontade paterna.
O
ódio inconsciente do pai
Foi
então que a transferência veio ajudar a decifrar o enigma: na
escada que leva ao consultório de Freud, o homem dos ratos cruza
com uma jovem; ele imagina que é a filha de Freud e que este quer
obrigá-lo a casar-se com ela. Segue um sonho, no qual uma jovem
tem fezes no lugar dos olhos: é questão de se casar com uma
jovem não pelos seus belos olhos, mas pelo seu dinheiro. Temos aí
dois objetos causa do desejo: o olhar e o dinheiro. A causa do
desejo do pai é o dinheiro.
No
momento em que Freud lhe faz esta interpretação, Ernst se
enfurece: em um acesso de intenso desespero, ele lança injúrias
a Freud. Tomado de assustadora angústia, ele protege sua cabeça
contra os golpes que Freud deveria lhe dar. Foi então que ele
elucidou um ritual do qual nunca tinha falado. Na época em que
fez seus exames, ele gostava de imaginar que seu pai estava vivo.
Ele estudava até tarde da noite. Entre meia noite e uma da manhã,
ele abria a porta de entrada e se contemplava diante do espelho
com o pênis ereto, sob o olhar do pai morto. Ele satisfazia seu
pai ao estudar até tarde, mas ao mesmo tempo se entregava a um
ato de subversão fálica diante desse.
Freud
insiste com ele no fato de que ele provavelmente se masturbava
quando tinha seus seis anos e que provavelmente foi severamente
castigado pelo seu pai.
Nesse
momento, Ernst encontra a seguinte lembrança: muito pequeno, no
momento da morte de sua irmã, ele cometeu um ato grave pelo qual
seu pai lhe bateu. Em resposta, ficou furioso e resolveu injuriar
seu pai. Por não conhecer nenhuma palavra ofensiva, ele lhe deu
todos os nomes de objetos que lhe passavam pela cabeça: “Você
lâmpada! Você toalha! Você prato!” Ao que o pai declara:
“Esse pequeno ou se tornará um grande homem ou um grande
criminoso.” É neste momento que seu caráter se modifica: de
colérico que era, ele se torna covarde.
As
ofensas sujas dirigidas a Freud assim como o ritual fazem o
sujeito admitir seu ódio inconsciente do pai; se esclarece o
enigma da obsessão pelos ratos.
O
neurótico obsessivo quer a destruição do desejo do Outro
O
que é este ódio inconsciente? No Seminário
V, As formações do
inconsciente (lições XXVI, XXVII, XXVIII), Lacan expõe que
um sintoma obsessivo consiste em uma forma verbal, tendo por
objeto uma destruição que se cumpre por intermédio da própria
articulação da forma verbal, isto é, pela via do significante.
A
destruição, para o obsessivo, se cumpre de fato pela via da
anulação. O obsessivo quer anular o desejo do Outro. Seu desejo
se encontra na dependência do desejo do Outro e quer destruí-lo
pois, para ele, representa um desejo de gozo. Ele quer destruir
tudo em seu entorno e o faz através de “um ataque silencioso,
uma usura permanente, que tende a resultar no Outro” (1957-58,
p. 468). Destruindo o desejo, ele se protege dele e o mantém em
um horizonte de impossibilidade. Esta anulação do desejo por
intermédio do significante supõe, para ele, uma inscrição no
quadro do simbólico, pois não se pode anular nada que não
esteja inscrito no simbólico. Ela é a presa do significante
dentro de um parêntesis, para dizer o que está dentro do parêntesis,
não é, como na fórmula de negação: “não é a minha mãe”.
É
sempre dessa forma que o obsessivo anula o desejo e ele anula também
tudo o que se conecta em volta, o que circunda este desejo. Por
fim, ele acaba por anular a própria palavra; isto vai até a
anulação da demanda que comporta toda palavra.
Por
que ele é forçado a anular toda a palavra?
Isto
é ligado a uma singularidade de uma relação com a demanda, que
comporta sempre, no horizonte, uma demanda de morte. Uma relação
como tal com a demanda comporta a necessária destruição do
local onde toda a demanda pode ser formulada, o local do Outro. É
questão de destruir o local onde se articula toda enunciação
possível mas ele, como sujeito, é um efeito deste lugar. Ao
destruir a articulação significante, ele vai apagar o local de
onde ele poderia se sustentar como sujeito; donde, o sentimento de
despersonalização, de desarticulação da cadeia significante
que o acomete às vezes. Como ele não saberia se manter como
sujeito se o Outro fosse efetivamente anulado, o obsessivo é
levado a exercer a ação contrária: proteger o Outro, preservá-lo.
O trabalho intelectual, o exercício de bem dizer, testemunham
esta preservação da articulação significante.
No
tangente ao tema da blasfêmia e da injúria, Lacan expõe que é
questão de rebaixar um significante eminente ao nível de um
objeto comum: Deus, o pai, o analista. É um ataque ao Phi,
signo o desejo do Outro, insígnia do Outro; é necessário
depreciá-lo, trazê-lo ao nível de objeto de uso e de troca,
transformar a insígnia do Outro em dejeto.
A
obsessão pelos ratos
Freud
sublinha a função eminente da contingência no gatilho da
neurose obsessiva. O tratamento permite encontrar o erro do pai,
um pecado de juventude ocorrido quando este estava no serviço
militar. Era um jogador, um Spielrat. Tinha perdido no jogo os fundos de seu regimento, só
foi salvo porque um de seus colegas emprestou-lhe a soma a ser
reembolsada. Quando tornou-se rico, foi procurar, em vão, aquele
que lhe emprestou o dinheiro; não tendo podido encontrá-lo,
nunca reembolsou a dívida. Aos dois jogadores, o paciente
substitui o tenente A e o tenente B. A contingência que dá início
à obsessão pelos ratos reside nas palavras do capitão cruel,
que constituem uma alusão à dívida de jogo não paga do pai, ao
erro do pai.
O
significante Rat (rato),
condensa em alemão diversas significações. Assim, jogador em
alemão, é Spielrat. Existe uma homofonia entre Raten (rateamento, pagamento parcial) e Ratten (ratos), a partir da qual o paciente constituiu para si um
verdadeiro lema sob a forma de rato, um escalonamento monetário
em ratos: ele mantém uma contabilidade em ratos. O erro do pai se
articula com a questão de sua sexualidade. As conseqüências da
sífilis relembram a ação do rato no suplício descrito pelo
capitão cruel. Ernst acredita que seu pai tinha sífilis. O
sujeito toma partido no gozo do pai e, em seu erro, deixa-se
nomear através do rato.
O
pai era um homem sociável, agradável, mas colérico e muito
severo com seus filhos. Era também vulgar e muito desvalorizado
pela mãe neste ponto. Quando criança, Ernst era solidário à mãe
sobre este ponto em que ela criticava o marido.
A
equivalência entre o rato e o dinheiro é reforçada pelo fato de
que o pequeno Ernst tinha uma infecção por vermes. Por outro
lado, o rabo do rato designa o pênis em alemão. O rato lembra
sujeira, prostituição. Ademais, o rato morde, Ernst, quando
menino mordia também. Devido a essas associações significantes,
o rato vem nomear o inominável do gozo sexual.
Convém
lembrar da morte de sua irmã Helga quando ele tinha três anos e
meio. Freud salienta no Journal
que ele havia esquecido este encontro precoce com a morte devido a
seus próprios complexos. Foi sobre o corpo de sua irmã que ele
notou pela primeira vez a diferença entre os sexos. Há, então,
um nó entre a morte de Helga e o desejo de ver uma mulher
indefesa e inerte. A morte da irmã faz surgir uma recriminação
fundamental em relação ao pai à qual se adiciona uma identificação
à crítica da mãe ao pai. O erro deste foi ter se casado com a mãe
por dinheiro e a recriminação se articula com a morte da irmã
mais velha: “é você quem deveria ter morrido, e não Helga.”
A solução trazida para o enigma da obsessão pelos ratos faz a
mesma desaparecer. O sintoma, depois de decifrado, some.
Teoria
da obsessão
Freud
estuda a formação do sintoma obsessivo. É necessário perceber
a importância dada aos elementos pulsionais, dentre os quais o ódio
infantil vem em primeiro plano.
Uma
doença do pensamento
Lacan
dá uma definição do sintoma obsessivo: a obsessão é um
pensamento, “une pensée dont l’âme s’embarrasse, ne sait
que faire” (Lacan,
2001, p. 512). O neurótico obsessivo é um doente do pensamento,
que sofre de seus pensamentos. Na neurose obsessiva,
contrariamente à histeria, o recalque não se dá pela amnésia e
pelo esquecimento, mas sim por uma disjunção da relação de
causalidade que ocorre devido a um deslocamento do afeto. O
sintoma obsessivo é o resultado de deformações destinadas a
mascarar o pensamento que provém da recriminação primária. O
pensamento obsedante se torna estrangeiro ao sujeito. A técnica
mais freqüente de deformação é a elipse: se eu me casar com a
dama // algo de ruim acontecerá com meu pai no além.
É
necessário rearrumar os encadeamentos do raciocínio: se meu pai
fosse vivo, ficaria furioso e me puniria novamente; eu me
revoltaria contra ele e, graças ao meu pensamento todo-poderoso,
ele morreria disso. A estrutura lógica é a da implicação:
causa - conseqüência, pois é necessário afastar ao máximo
possível a conseqüência da causa através de substituições e
deslocamentos metonímicos, criando conseqüências cada vez mais
absurdas. Se isso não funcionar, o sujeito pode recorrer a fórmulas
de defesa tais como o aber do homem dos ratos, pronunciado de tal maneira que o e
se torna sonoro, criando um equívoco com Abwehr
(defesa). Há também uma outra forma de proteção, destinada a
defendê-lo do risco de prejudicar uma prima amanda em conseqüência
da prática da masturbação: Glejisamen (anagrama do nome da amada + amen), mas, graças a essa fórmula, ao mesmo tempo ele se une com
ela (Samen = semente).
Clínica
diferencial neurose/psicose
O
obcecado está solidamente instalado no significante. Não se deve
nunca temer, nos informa Lacan, que uma neurose obsessiva possa
escorregar na direção da psicose (1957-58, p. 472). O sintoma
obsessivo oferece uma base muito sólida ao sujeito.
As
fórmulas de anulação não devem ser confundidas com a foraclusão.
O obsessivo, apesar de se apresentar confuso e perdido, não está
fora do discurso. As fórmulas de defesa não são erráticas, o
que significa que elas não provêm de um real sem lei. Elas são
ligadas ao fato de que “isto quer dizer alguma coisa”,
portanto não estão fora do laço, mesmo se estiverem fora do
sentido.
A
fórmula verbal, sob transferência, é submetida à articulação
S1-S2. O obsessivo em análise pode
restabelecer o texto da fórmula absurda. As fórmulas tomam
formas de histórias e são decifráveis a partir de significantes
da história do sujeito. O inconsciente no obsessivo é, portanto,
um inconsciente transferencial se levarmos em conta a distinção
estabelecida por Jacques-Alain Miller (2006-2007). As fórmulas são
cacos de lalangue – que se servem da língua como se fossem algo ouvido,
onde a linguagem comporta um ordenamento.
O
obsessivo se serve de lalangue
para introduzir uma confusão na linguagem. Era assim com uma
criança de sete anos que apresentava uma perturbação da
linguagem importante, pois não introduzia nenhum corte entre os
fonemas e as palavras. Era difícil entendê-lo e tomavam-no por
louco. Um dia ele me disse que entre as palavras não deveria
haver buracos, pois balas poderiam entrar neles e poderíamos
morrer.
Uma
tentativa de redução do buraco
O
obsessivo se dedica a pensar na paternidade, na duração da vida,
na morte, isto é, o impensável tal qual Lacan o define em seu
seminário Le sinthome: “A pulsão... ser pensado” (1975-76, p. 25). É
questão, então, de um combate de pensamento com o impossível. O
obsessivo pretende dominar o real com seu pensamento, donde sua
impotência. Ele é sujeito a um pensamento segundo o qual, se ele
conseguir pensar o impensável, ele poderá escapar, fugir dele.
Para
o obsessivo, a morte é um dos nomes da castração. Ele sabe que
ela é introduzida na linguagem pelo S1, que convoca o
outro significante, o S2. Havendo S1 e, em
seguida, S2, há o intervalo, o escancaramento. Este
buraco não é nada além de S(), a inconsistência do Outro, a impossibilidade de dizer a
verdade sobre a verdade, com um efeito de perda de gozo na posição
de a.
O
obsessivo procura reduzir o intervalo S1-S2
a Um Só, reduzir o buraco de S() ao Um, a fim de preencher o intervalo através de fórmulas
fora do sentido; assim, o Homem dos ratos importa no intervalo
entre relâmpago e trovão. São defesas contra a inconsistência
do Outro, contra o real como impossível. Questionar o Outro o
tempo todo e fazê-lo repetir para tentar captar, no equívoco, o
sentido do sentido... isto é reduzir S() ao Um.
Esta
compulsão de entender tudo, de procurar o sentido do sentido no
equívoco, o verdadeiro do verdadeiro, demonstra uma vontade de
anular o x enigmático do desejo do Outro. Para fazer isso, o
obsessivo dará antes que lhe seja pedido. Através de respostas
que antecipam toda demanda, ele opera o esmagamento do desejo do
Outro, vivido como um comando: ele crê que deve se dedicar a
satisfazer toda demanda e a ela sacrificar seu corpo e seu ser,
donde sua oblatividade. Ele efetua a anulação e a mortificação
do desejo enquanto turbilhão que pode aspirá-lo. Ele luta sem
cessar para escapar à aspiração no buraco turbilhonante de S().
Uma
voz que comanda
Este
sintoma não é desprovido de Outro. O obsessivo está em relação
permanente com o Outro do amor e do ideal, que se impõe a ele por
intermédio de um comando, de um imperativo, de uma ordem: ele é
submetido à ação de uma voz, mas não é uma voz exterior. Não
há, como na psicose, uma autonomia na função do comando. É
dentro dele que isso fala com efeito de divisão subjetiva, de dúvida.
O
comando é velado: ele não aparece maciçamente, mas sim sob a
forma de fragmentos. Ele é ligado à culpabilidade, ao pudor, à
vergonha, às recriminações que podem se transformar em angústia
social. São os afetos do sujeito dividido. O temor permanente de
um castigo social pode aproximar-se de um delírio de estar sendo
observado, mas sem nenhum elemento de certeza. Assim, o Homem dos
ratos acreditou ver ratos duas vezes mas, para Freud, é uma ilusão,
e não uma alucinação. Em defesa, instalam-se rituais, até
mesmo o alcoolismo, para aliviar o peso do pensamento. É necessário
procurar sempre o pensamento recalcado que se associa à
sexualidade infantil (o que não se encontra nunca num sujeito
esquizofrênico).
Gozar
de um pensamento secretado pelo corpo
Todo
pensamento obsessivo que dê lugar a alguma construção, não
importando o quão louca ela seja, será sempre ligada à
sexualidade; a neurose obsessiva comporta uma erotização do
pensamento.
A
fórmula no obsessivo comporta sempre uma equivalência que
introduz um valor fálico. O falo imaginário é a verdadeira
unidade de medida. O obsessivo demonstra que o pensamento é um
parasita, uma trava, um câncer que aflige o ser humano; a palavra
parasita o corpo a título de pensamento, o pensamento afeta o
corpo. É o que diz Lacan no Séminaire
XVII: L’envers de la
psychanalyse: “O pensamento... afeto” (1969-70, p. 176).
Na
neurose obsessiva, os pensamentos são o efeito de afetos no corpo
ligados ao entrelaçamento do corpo no discurso. Os pensamentos
que afetam o corpo fazem sofrer o obsessivo. Eles não estão fora
do discurso, eles vêm condensar um sentido gozado: o pensamento
é erotizado, o obsessivo goza de seu pensamento no sentido de uma
secreção do corpo. É necessário então tratar o sintoma
obsessivo como um evento de corpo, o que implica tomá-lo no
sentido de significante e no sentido de gozo que se satisfaz no
pensamento obsessivo, que Lacan denomina “a tripa causal”
(1962-63, p. 250).
É
necessário fazer cortes no texto do obsessivo para isolar pelo
equívoco o uso do gozo condensado em seu sintoma. É assim que o
obsessivo pode deixar o pathos
de seu pensamento e fazer de suas fórmulas um Witz.
Ele pode conseguir decifrar o que seu pensamento articula de
sentido gozado e é possível ouvi-lo rir de seus pensamentos ao
final de uma sessão em que o pathos foi derrubado.
O
tratamento do sintoma obsessivo comporta uma dimensão ética no
local em que uma terapia cognitivo-comportamentalista teria
exercido no homem dos ratos uma vontade de gozar realizando a
fantasia do capitão cruel. Teríamos dado consistência ao
sintoma, levando o sujeito a contar quantas vezes a obsessão se
apresentou. Na vertente cognitiva, querendo consertar as
representações do sujeito, lhe teríamos explicado que o pai não
poderia mais sofrer o suplício, pois estava morto e que os ratos
nada mais são do que pequenos roedores que nunca irão para o céu!
Referências
bibliográficas
Texto
recebido em: 13/06/2007.
Aprovado
em: 20/07/2007.
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