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 A CAUSA DO CRIME

 
THE CRIME'S REASON

 



 

Maria José Gontijo Salum
Psicanalista
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/Universidade Federal do Rio de Janeiro

mgontijo.bhe@terra.com.br



Resenha do Livro:
Tendlarz, S.E.; García, C.D. A quién mata el asesino? Buenos Aires: Grama Ediciones. 2008, 203 p.

 

A ambigüidade presente na pergunta que intitula o livro de Silvia Tendlarz e Carlos Garcia pode escapar ao senso comum e ser respondida pelo discurso da obviedade. Nesta pergunta, os três eixos que direcionam o percurso dos autores ao longo da obra podem ser evocados: o ato de matar, quem o executa, e em direção à qual objeto. Cada um desses aspectos será extensamente trabalhado por eles.

O ato de matar - um homicídio - será relacionado a passagem ao ato, ato que deverá ter como conseqüência uma resposta jurídica, mas, também, uma resposta do sujeito. Contudo, a grande contribuição dos autores diz respeito à análise que eles fazem em relação a que se dirige o ato; isto é, considerar que o ato é orientado pelo objeto, além da vítima. Ao tomarem esta via, eles privilegiaram o trabalho na perspectiva do que conhecemos, com Jacques-Alain Miller, como o último ensino de Lacan.

Através de casos célebres da psicanálise e da literatura, a vertente do objeto é desenvolvida, considerando que, a partir dessa noção, está incluído o conceito lacaniano de gozo. Os autores lembram que o próprio Freud, ao dizer que o neurótico condensa crime e expiação, afirmava que alguns crimes são mais suicídios, embora envolvessem outra pessoa. Nesse mesmo sentido, Lacan, em sua tese de doutorado conhecida como o caso Aimée, apresentou o crime de autopunição, que consiste em matar através do outro o inimigo interior.

No encontro com aquele que cometeu um ato criminoso, o analista praticante não responde à pergunta que dá título ao livro pela obviedade, ele está advertido da complexidade que envolve esses atos.

Assim, a psicanálise tentará precisar para cada um, a incidência do crime e do encontro com a justiça. Ao interrogar o lugar que ocupa o criminoso em relação a seu crime o analista visa a responsabilidade, ou seja, a resposta de sua posição de sujeito, como nos ensinou Lacan.

Pode-se dizer que a psicanálise tem uma contribuição substancial a oferecer à Criminologia e seus impasses na contemporaneidade e, para desenvolver essa publicação, os autores fizeram um percurso em torno dos trabalhos de diversos psicanalistas em relação aos crimes e aqueles que os cometeram. Do sentimento de culpa em Freud, aos trabalhos de Alexander e Staub, Aichhorn, Guiraud, Legendre, dentre outros, chegando à contribuição de Lacan.

As conseqüências que podemos tirar em nossa prática na conexão da Psicanálise com o Direito, a partir do texto de Criminologia de Lacan são extraídas, além do percurso lacaniano em torno dos fundamentos deste tema, desenvolvido ao longo do seu ensino. A partir de Jacques-Alain Miller e suas considerações sobre o último ensino de Lacan, a clínica contemporânea da violência é elucidada.

Como os próprios autores explicitam, o interesse do livro é elucidar as questões que envolvem os atos criminosos na perspectiva psicanalítica, à luz de fragmentos de casos de psicose e de serial killers. Essa escolha é justificada devido à distinção, lembrada por Miller entre os crimes do imaginário, os do estádio do espelho; os crimes do simbólico, os regicidas, os que matam um representante de autoridade; e os do real, mistura do simbólico e real. Os dois primeiros tipos de crimes já foram bem explorados por vários autores da psicanálise, mas, sobre os crimes do real, ainda pairava um silencio.

Os serial killers seriam exemplos dos crimes do real, por isso a opção em debruçar sobre este tipo de crime. Constatamos que diante dos crimes em série, geralmente há uma oscilação entre o diagnóstico de perversão e psicose. Através de estudos de alguns casos, os autores tentam sustentar que se trata de crimes realizados a partir da estrutura psicótica e a referência é a psicose ordinária.

Para iniciar o estudo proposto, no primeiro capítulo, o livro contextualiza como a subjetividade de nossa época está afetada pelo fenômeno da violência. A violência é vista como um significante mestre que se impôs no discurso social. Walter Benjamin, Wolgang Sofsky, Eric Hobsawm, Zygmunt Bauman, são alguns dos autores citados para discutir o fenômeno da violência contemporânea.

Porém, para a psicanálise, mais além do fenômeno, interessa perguntar sobre a estrutura da violência e das subjetividades envolvidas. E os autores perguntam se haveria uma diferença na forma de apresentação da violência na contemporaneidade.

O livro apresenta todo um percurso histórico que permite traçar as raízes da equação violência, crime e anormalidade que vemos hoje. Leva, também, em consideração as conseqüências desta equivalência para os que cometeram crimes, como podemos ver através da designação do criminoso como um monstro, tal como ocorre nos casos dos serial killers. Canguilhem e Foucault são as grandes fontes para apresentar as hipóteses sobre esse tópico.

A partir do século XVIII, numa sociedade que começava a implantar as classificações para ordenar o mundo, o criminoso passou a ser localizado como aquele que foge a norma – ele é um monstro. O monstro sempre foi considerado, desde a idade média, como aquele que mistura características antagônicas - humano e animal, espécies, sexos, formas. O monstruoso é aquele que transgride os limites das classificações e da lei. A partir do século XIX, começou a instaurar-se a crença de que a monstruosidade estaria presente em todo ato criminoso.

 O direito concebe o homem como um indivíduo responsável e consciente, capaz de agir pela razão para governar seus atos. Quando esse homem idealizado comete um crime, a justiça tentará buscar os motivos que o levaram a cometer tal desatino. Agir fora dos limites da razão é concebido como algo que escapa ao que é próprio do ser humano. Dessa forma, a punição penal, cada vez mais, passou a recair sobre um indivíduo perigoso, inadaptado ou enfermo, sobre o qual se deve corrigir e normalizar. As perícias de sanidade mental surgiram nesse contexto. Elas teriam a função de estabelecer os limites da doença mental para determinar uma punição penal ou um tratamento médico.

A psicanálise não leva em consideração essas designações do criminoso monstro e perigoso; ao contrário, ela se orienta pelo ato. Por isso, Lacan desenvolveu os conceitos de acting out e passagem ao ato. Para ele, o ato de matar marca um tempo, um antes e um depois. Depois do ato, supõe-se que a posição do sujeito não será mais a mesma.

Para os autores, em todos os casos deverá ser buscada uma implicação subjetiva em relação ao crime. O que não equivale a dizer que para todos os casos a psicanálise deverá ser indicada. Contudo, no acompanhamento desses casos, o psicanalista deverá procurar localizar se ocorreu uma mudança, e é nisso que consiste a responsabilidade, que é de um sujeito. Trata-se de verificar se há uma resposta subjetiva ao ato.

Assim como existem diversas respostas em relação ao ato, ocorrem distintas passagens ao ato relacionadas a cada uma das estruturas clínicas. A passagem ao ato acontece nas diferentes estruturas, mas sua função não é a mesma em cada uma delas. Considerando a temporalidade lógica, a passagem ao ato corresponde ao tempo de concluir. Por isso, em alguns casos, como em Aimée, o ato traz como conseqüência a retração do delírio. Sabemos que isso não ocorre em todos eles, e os autores lembram a diferença de uma passagem ao ato na esquizofrenia, que pode desencadear um delírio, da paranóia de autopunição, caso de Aimée, que estabiliza. De qualquer forma, nos dois casos vemos a presença de um antes e um depois do ato.

Isso é diferente das repetidas passagens ao ato presentes nos casos de serial killers, esses atos colocam um impasse. Nesses crimes em série não é possível dizer que concluíram algo com a passagem ao ato. Ao contrário, o que se apresenta é um deslocamento metonímico dos atos, o que leva os autores a sustentarem a noção de delírio em ato.

Diante desses crimes que têm aumentado nos últimos tempos, aqueles que os praticam são, atualmente, considerados os monstros, as novas bestas feras da humanidade. Quanto mais brutal e injustificado o crime, mais se usa os termos perverso, malvado e, principalmente, monstro. Nos Estados Unidos, o conceito de maldade tem sido explorado para justificá-los. Bollas, citado pelos autores, é um dos principais teóricos sobre esta temática, chegando a propor uma teoria do mal.

A psicanálise também possui uma teoria do mal. Segundo Lacan, o mal é kakon, o inimigo interior, que se tenta eliminar através do ato homicida. Kakon é o objeto, o ser golpeado no exterior que é o mais íntimo. Para Lacan, não se trata de uma projeção. Topologicamente não existe oposição entre dentro e fora, o exterior é o mais íntimo. Portanto, para respondermos a pergunta do título, é preciso que nos orientemos pelo objeto, o kakon.

O homicídio, como todo ato, tem conseqüências. Em resposta a ele as legislações determinam a culpa do acusado e o castigo a ser aplicado. É assim em todas as sociedades e, em todas elas, a relação entre crime e lei se manifesta através de castigo, conforme Lacan.

O juiz determina a responsabilidade penal levando em conta dois elementos: discernimento do bem e do mal e a livre vontade ou liberdade para que possa escolher um ou outro. Os psicóticos, assim como os menores de idade, são considerados exceções à imputação de uma pena, de um castigo.

Para os autores há um impasse na Argentina em relação aos adolescentes. Segundo eles, o código desse país ainda não encontrou uma punição diferente da internação. Então, os adolescentes são punidos como os adultos, apesar de serem considerados inimputáveis. Neste sentido, o Brasil, com a experiência das medidas sócio-educativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA –, teria algo a transmitir sobre uma forma de responsabilização diferente do aprisionamento. Trata-se de levar em consideração que há outros modos de se responsabilizar, além da punição penal de aprisionamento e do castigo.

Contrapondo ao discurso jurídico, onde a responsabilidade é correlata ao castigo e a culpa, a psicanálise diferencia responsabilidade de culpa. A culpa não é o sentimento de culpa, ela é estrutural. Para a psicanálise de orientação lacaniana, a culpa é da ordem da causa, e a responsabilidade é o efeito. A responsabilidade é a resposta do sujeito diante da causa.

A psicanálise não se envereda na procura dos motivos dos crimes, ela se interessa pela causa. Nesse sentido, vale lembrar a definição de sujeito para Lacan: resposta do real. Diante do real do gozo, o sujeito responde. Portanto, a noção de gozo está envolvida na passagem ao ato homicida. Trata-se de uma satisfação que não remete a nenhuma razão, mas a um tratamento do gozo.

A partir dessa constatação, os autores trazem à tona os casos célebres de psicóticos que cometeram crimes, analisando-os na perspectiva de uma forma de tratamento do gozo pulsional. Passo a passo, serão questionados os argumentos da psiquiatria que classifica os serial killers no quadro das psicopatias.

Para a psicanálise, o conceito de psicopatia mantém a dubiedade diagnóstica entre perversão e psicose. Assim, os casos de serial killers descritos na literatura são discutidos à luz do tratamento do gozo pulsional e os autores recorrem ao empuxe à mulher para analisar alguns deles. Pode-se depreender desse livro que os serial killers podem ser considerados novas formas de apresentação das passagens ao ato nas psicoses no mundo.

O psicanalista, cada vez mais, tem sido convidado a operar na interface do Direito com a Psicanálise. A contribuição da Psicanálise neste campo, em termos epistêmicos, da prática e da política é hoje inquestionável. Silvia Tendlarz com seus trabalhos sobre passagem ao ato é, há muito, uma referência neste campo para a psicanálise de orientação lacaniana. Agora, junto com Carlos Dante Garcia, nos traz, novamente, pontos cruciais para seguirmos avançando em nosso trabalho.

 

Texto recebido em: 19/10/2007

Aprovado em: 14/11/2007