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A ambigüidade
presente na pergunta que intitula o livro de Silvia Tendlarz e
Carlos Garcia pode escapar ao senso comum e ser respondida pelo
discurso da obviedade. Nesta pergunta, os três eixos que
direcionam o percurso dos autores ao longo da obra podem ser
evocados: o ato de matar, quem o executa, e em direção à qual
objeto. Cada um desses aspectos será extensamente trabalhado
por eles.
O ato de
matar - um homicídio - será relacionado a passagem ao ato, ato
que deverá ter como conseqüência uma resposta jurídica, mas,
também, uma resposta do sujeito. Contudo, a grande contribuição
dos autores diz respeito à análise que eles fazem em relação
a que se dirige o ato; isto é, considerar que o ato é
orientado pelo objeto, além da vítima. Ao tomarem esta via,
eles privilegiaram o trabalho na perspectiva do que conhecemos,
com Jacques-Alain Miller, como o último ensino de Lacan.
Através
de casos célebres da psicanálise e da literatura, a vertente
do objeto é desenvolvida, considerando que, a partir dessa noção,
está incluído o conceito lacaniano de gozo. Os autores lembram
que o próprio Freud, ao dizer que o neurótico condensa crime e
expiação, afirmava que alguns crimes são mais suicídios,
embora envolvessem outra pessoa. Nesse mesmo sentido, Lacan, em
sua tese de doutorado conhecida como o caso Aimée, apresentou o
crime de autopunição, que consiste em matar através do outro
o inimigo interior.
No
encontro com aquele que cometeu um ato criminoso, o analista
praticante não responde à pergunta que dá título ao livro
pela obviedade, ele está advertido da complexidade que envolve
esses atos.
Assim, a
psicanálise tentará precisar para cada um, a incidência do
crime e do encontro com a justiça. Ao interrogar o lugar que
ocupa o criminoso em relação a seu crime o analista visa a
responsabilidade, ou seja, a resposta de sua posição de
sujeito, como nos ensinou Lacan.
Pode-se
dizer que a psicanálise tem uma contribuição substancial a
oferecer à Criminologia e seus impasses na contemporaneidade e,
para desenvolver essa publicação, os autores fizeram um
percurso em torno dos trabalhos de diversos psicanalistas em
relação aos crimes e aqueles que os cometeram. Do sentimento
de culpa em Freud, aos trabalhos de Alexander e Staub, Aichhorn,
Guiraud, Legendre, dentre outros, chegando à contribuição de
Lacan.
As conseqüências
que podemos tirar em nossa prática na conexão da Psicanálise
com o Direito, a partir do texto de Criminologia de Lacan são
extraídas, além do percurso lacaniano em torno dos fundamentos
deste tema, desenvolvido ao longo do seu ensino. A partir de
Jacques-Alain Miller e suas considerações sobre o último
ensino de Lacan, a clínica contemporânea da violência é
elucidada.
Como os
próprios autores explicitam, o interesse do livro é elucidar
as questões que envolvem os atos criminosos na perspectiva
psicanalítica, à luz de fragmentos de casos de psicose e de serial
killers. Essa escolha é justificada devido à distinção,
lembrada por Miller entre os crimes do imaginário, os do estádio
do espelho; os crimes do simbólico, os regicidas, os que matam
um representante de autoridade; e os do real, mistura do simbólico
e real. Os dois primeiros tipos de crimes já foram bem
explorados por vários autores da psicanálise, mas, sobre os
crimes do real, ainda pairava um silencio.
Os serial killers seriam exemplos dos crimes do real, por isso a opção
em debruçar sobre este tipo de crime. Constatamos que diante
dos crimes em série, geralmente há uma oscilação entre o
diagnóstico de perversão e psicose. Através de estudos de
alguns casos, os autores tentam sustentar que se trata de crimes
realizados a partir da estrutura psicótica e a referência é a
psicose ordinária.
Para
iniciar o estudo proposto, no primeiro capítulo, o livro
contextualiza como a subjetividade de nossa época está afetada
pelo fenômeno da violência. A violência é vista como um
significante mestre que se impôs no discurso social. Walter
Benjamin, Wolgang Sofsky, Eric Hobsawm, Zygmunt Bauman, são
alguns dos autores citados para discutir o fenômeno da violência
contemporânea.
Porém,
para a psicanálise, mais além do fenômeno, interessa
perguntar sobre a estrutura da violência e das subjetividades
envolvidas. E os autores perguntam se haveria uma diferença na
forma de apresentação da violência na contemporaneidade.
O livro
apresenta todo um percurso histórico que permite traçar as raízes
da equação violência, crime e anormalidade que vemos hoje.
Leva, também, em consideração as conseqüências desta
equivalência para os que cometeram crimes, como podemos ver
através da designação do criminoso como um monstro, tal como
ocorre nos casos dos serial
killers. Canguilhem e Foucault são as grandes fontes para
apresentar as hipóteses sobre esse tópico.
A partir
do século XVIII, numa sociedade que começava a implantar as
classificações para ordenar o mundo, o criminoso passou a ser
localizado como aquele que foge a norma – ele é um monstro. O
monstro sempre foi considerado, desde a idade média, como
aquele que mistura características antagônicas - humano e
animal, espécies, sexos, formas. O monstruoso é aquele que
transgride os limites das classificações e da lei. A partir do
século XIX, começou a instaurar-se a crença de que a
monstruosidade estaria presente em todo ato criminoso.
O
direito concebe o homem como um indivíduo responsável e
consciente, capaz de agir pela razão para governar seus atos.
Quando esse homem idealizado comete um crime, a justiça tentará
buscar os motivos que o levaram a cometer tal desatino. Agir
fora dos limites da razão é concebido como algo que escapa ao
que é próprio do ser humano. Dessa forma, a punição penal,
cada vez mais, passou a recair sobre um indivíduo perigoso,
inadaptado ou enfermo, sobre o qual se deve corrigir e
normalizar. As perícias de sanidade mental surgiram nesse
contexto. Elas teriam a função de estabelecer os limites da
doença mental para determinar uma punição penal ou um
tratamento médico.
A psicanálise
não leva em consideração essas designações do criminoso
monstro e perigoso; ao contrário, ela se orienta pelo ato. Por
isso, Lacan desenvolveu os conceitos de acting
out e passagem ao ato. Para ele, o ato de matar marca um
tempo, um antes e um depois. Depois do ato, supõe-se que a posição
do sujeito não será mais a mesma.
Para os
autores, em todos os casos deverá ser buscada uma implicação
subjetiva em relação ao crime. O que não equivale a dizer que
para todos os casos a psicanálise deverá ser indicada.
Contudo, no acompanhamento desses casos, o psicanalista deverá
procurar localizar se ocorreu uma mudança, e é nisso que
consiste a responsabilidade, que é de um sujeito. Trata-se de
verificar se há uma resposta subjetiva ao ato.
Assim
como existem diversas respostas em relação ao ato, ocorrem
distintas passagens ao ato relacionadas a cada uma das
estruturas clínicas. A passagem ao ato acontece nas diferentes
estruturas, mas sua função não é a mesma em cada uma delas.
Considerando a temporalidade lógica, a passagem ao ato
corresponde ao tempo de concluir. Por isso, em alguns casos,
como em Aimée, o ato traz como conseqüência a retração do
delírio. Sabemos que isso não ocorre em todos eles, e os
autores lembram a diferença de uma passagem ao ato na
esquizofrenia, que pode desencadear um delírio, da paranóia de
autopunição, caso de Aimée, que estabiliza. De qualquer
forma, nos dois casos vemos a presença de um antes e um depois
do ato.
Isso é
diferente das repetidas passagens ao ato presentes nos casos de serial
killers, esses atos colocam um impasse. Nesses crimes em série
não é possível dizer que concluíram algo com a passagem ao
ato. Ao contrário, o que se apresenta é um deslocamento metonímico
dos atos, o que leva os autores a sustentarem a noção de delírio
em ato.
Diante
desses crimes que têm aumentado nos últimos tempos, aqueles
que os praticam são, atualmente, considerados os monstros, as
novas bestas feras da humanidade. Quanto mais brutal e
injustificado o crime, mais se usa os termos perverso, malvado
e, principalmente, monstro. Nos Estados Unidos, o conceito de
maldade tem sido explorado para justificá-los. Bollas, citado
pelos autores, é um dos principais teóricos sobre esta temática,
chegando a propor uma teoria do mal.
A psicanálise
também possui uma teoria do mal. Segundo Lacan, o mal é kakon,
o inimigo interior, que se tenta eliminar através do ato
homicida. Kakon é o objeto, o ser golpeado no exterior que é o
mais íntimo. Para Lacan, não se trata de uma projeção.
Topologicamente não existe oposição entre dentro e fora, o
exterior é o mais íntimo. Portanto, para respondermos a
pergunta do título, é preciso que nos orientemos pelo objeto,
o kakon.
O homicídio,
como todo ato, tem conseqüências. Em resposta a ele as legislações
determinam a culpa do acusado e o castigo a ser aplicado. É
assim em todas as sociedades e, em todas elas, a relação entre
crime e lei se manifesta através de castigo, conforme Lacan.
O juiz
determina a responsabilidade penal levando em conta dois
elementos: discernimento do bem e do mal e a livre vontade ou
liberdade para que possa escolher um ou outro. Os psicóticos,
assim como os menores de idade, são considerados exceções à
imputação de uma pena, de um castigo.
Para os
autores há um impasse na Argentina em relação aos
adolescentes. Segundo eles, o código desse país ainda não
encontrou uma punição diferente da internação. Então, os
adolescentes são punidos como os adultos, apesar de serem
considerados inimputáveis. Neste sentido, o Brasil, com a
experiência das medidas sócio-educativas previstas pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA –, teria algo a
transmitir sobre uma forma de responsabilização diferente do
aprisionamento. Trata-se de levar em consideração que há
outros modos de se responsabilizar, além da punição penal de
aprisionamento e do castigo.
Contrapondo
ao discurso jurídico, onde a responsabilidade é correlata ao
castigo e a culpa, a psicanálise diferencia responsabilidade de
culpa. A culpa não é o sentimento de culpa, ela é estrutural.
Para a psicanálise de orientação lacaniana, a culpa é da
ordem da causa, e a responsabilidade é o efeito. A
responsabilidade é a resposta do sujeito diante da causa.
A psicanálise
não se envereda na procura dos motivos dos crimes, ela se
interessa pela causa. Nesse sentido, vale lembrar a definição
de sujeito para Lacan: resposta do real. Diante do real do gozo,
o sujeito responde. Portanto, a noção de gozo está envolvida
na passagem ao ato homicida. Trata-se de uma satisfação que não
remete a nenhuma razão, mas a um tratamento do gozo.
A partir
dessa constatação, os autores trazem à tona os casos célebres
de psicóticos que cometeram crimes, analisando-os na
perspectiva de uma forma de tratamento do gozo pulsional. Passo
a passo, serão questionados os argumentos da psiquiatria que
classifica os serial
killers no quadro das psicopatias.
Para a
psicanálise, o conceito de psicopatia mantém a dubiedade diagnóstica
entre perversão e psicose. Assim, os casos de serial
killers descritos na literatura são discutidos à luz do
tratamento do gozo pulsional e os autores recorrem ao empuxe à
mulher para analisar alguns deles. Pode-se depreender desse
livro que os serial
killers podem ser considerados novas formas de apresentação
das passagens ao ato nas psicoses no mundo.
O
psicanalista, cada vez mais, tem sido convidado a operar na
interface do Direito com a Psicanálise. A contribuição da
Psicanálise neste campo, em termos epistêmicos, da prática e
da política é hoje inquestionável. Silvia Tendlarz com seus
trabalhos sobre passagem ao ato é, há muito, uma referência
neste campo para a psicanálise de orientação lacaniana.
Agora, junto com Carlos Dante Garcia, nos traz, novamente,
pontos cruciais para seguirmos avançando em nosso trabalho.
Texto recebido em: 19/10/2007
Aprovado em: 14/11/2007
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