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Cresce,
na civilização globalizada, o gosto pela descrição fenomenológica
dos sintomas. Não se procura mais conhecer sua lógica,
compreender o mecanismo psíquico inconsciente que lhe confere
sua universalidade e sua irredutível particularidade. Uma parte
considerável da clínica psiquiátrica se reduz, hoje, à
prescrição de medicamentos. O que se medica se não se sabe de
que se trata? A resposta dominante é a prova terapêutica.
Medica-se o fenômeno na expectativa de reduzi-lo graças ao
medicamento. Quando o resultado é positivo, está concluída a
prova terapêutica. E quando o medicamento não funciona? O que
fazer?
A
psicanálise, diferentemente dessa tendência, persegue a causa
irredutível do sintoma. A extensão de sua abordagem a novos
campos tem nos levado a praticar a psicanálise aplicada nas
instituições de saúde, educacionais, jurídicas e até no
reduto mais refratário ao sujeito e ao inconsciente que é o
mundo do trabalho, das empresas e organizações. No Campo
Freudiano, graças à criação de um grande numero de Centros
de Atendimento, a psicanálise está cada vez mais ao alcance da
população de baixa renda que não chega aos consultórios
particulares. Não resta dúvida, trata-se de obter efeitos
terapêuticos por meio dessas novas práticas: a aceleração
dos efeitos terapêuticos da psicanálise. O que não significa,
de modo algum, contornar a necessidade de saber de quê se
trata. A psicanálise pura continua sendo a condição, o
fundamento, a base do exercício dessa clínica psicanalítica
aplicada graças a novos dispositivos terapêuticos.
O
sexto número de aSEPHallus é dedicado à psicanálise pura, em particular, à clínica
da neurose obsessiva. Em artigo inédito, baseado em sua tese de
doutorado, Irene Beatriz Greiser, nos apresenta uma discussão
cuidadosa da expressão sintomas sociais. Ela nos alerta para o
risco que representa a redução do sintoma, no discurso da
civilização contemporânea, a uma mera desregulação do
funcionamento social ideal. Afinal, é essa abordagem
reducionista que justifica o tratamento pela prova terapêutica.
O sintoma, como ela reafirma, é o modo particular pelo qual o
sujeito goza de seu inconsciente mas, quando esse gozo não
passa pelo Outro do inconsciente, quando esse laço se rompe,
temos o sintoma social. Há sintoma social quando o laço com o
Outro do inconsciente é anulado. A psicanálise enraíza-se na
sólida tradição psiquiátrica pois, como recorda Vera Gorali,
desde seus primeiros trabalhos sobre as paralisias orgânicas,
motoras, histéricas, Freud diferencia o corpo anátomo-patológico
do outro corpo, ligado ao simbólico e especialmente destinado a
desvelar as verdades mais secretas do sujeito sem que este saiba
nada disso. A libido inscreve mensagens codificadas no corpo
simbólico que perturbam, inibem, modificam a enervação
neuronal anatômica como ocorre na histeria, ou erotizando o
pensamento, como na neurose obsessiva.
A
leitura que propõe Esthela Solano do caso de Freud, “O homem
dos ratos”, incide sobre esse ponto: a neurose obsessiva
comporta uma erotização do pensamento. Todo pensamento
obsessivo que dê lugar a alguma construção, não importa o quão
louca ela seja, será sempre ligada à sexualidade. Vivemos numa
época em que os sintomas dos neuróticos obsessivos estão
sendo reduzidos à terminologia do DSM IV: são TOC. Nesse
sentido, convém lembrar, como esclarece Lacan, que um sintoma
obsessivo é uma frase que visa alcançar a destruição de
alguma coisa por intermédio da própria articulação da forma
verbal, isto é, pela via do significante. A psicanálise
funda-se no campo da fala e da linguagem. Serge Cottet lembra
que temos o hábito de falar da histeria no feminino e da
neurose obsessiva no masculino. Uma clínica dessa diferença
estrutural transcende a diferença entre os sexos? Lacan
raramente faz objeção a esta dissimetria, mesmo ressalvando,
ocasionalmente, que “o histérico não é obrigatoriamente
mulher e o neurótico obsessivo não é obrigatoriamente
homem”. Existiria, se pergunta Cottet, uma especificidade da
neurose obsessiva feminina que a atualidade traria novamente à
tona? Nós sabemos que são comuns, nos dias de hoje, os diagnósticos
de TOC em mulheres. Freud aborda a neurose obsessiva como um
dialeto da histeria. Isso nos permite localizar sintomas
obsessivos (rituais, defesas, obsessões) em momentos cruciais
da história da neurose em uma mulher. Vanessa Campbell,
partindo do pressuposto de que na psicose não há a simbolização
da lei edípica, pergunta se podemos dizer que o psicótico não
se inscreveu nem do lado masculino nem do lado feminino. Como
fica a posição do psicótico na partilha dos sexos? De que
recursos ele pode se valer para situar-se na diferença sexual?
O empuxo-à-Mulher pode ser considerado uma forma de o sujeito
posicionar-se na partilha dos sexos?
Trazemos
ainda, na seção clínica desse numero, quatro artigos
apresentados no VI Congresso Internacional da Associação
Mundial de Psicanálise, que aconteceu em Buenos Aires, em
abril, desse ano. Cláudia Lázaro comentou-os conforme se
segue: trata-se de quatro casos de neurose obsessiva masculina.
Ela levanta uma pergunta decisiva sobre a eficácia do
tratamento psicanalítico do sintoma: o que é que cada sujeito
ganha com o novo circuito pulsional que se constrói graças a
sua análise? Suzana Amado relata que suas intervenções
incidiram sobre circuito pulsional que impulsionava seu
analisando a caminhadas para abordar mulheres na rua e assediá-las
com palavras obscenas. Um circuito novo surge graças ao
encontro com uma parceira que não se intimida com suas
fantasias. Isso vai levá-lo a procurar silhuetas femininas na
internet, objeto que não precisa mais ser buscado nas perigosas
caminhadas pela rua. Roger Cassin fala de um caso de agorafobia
que envolve um gozo voyeurista com um pênis em ereção. Ao
final do tratamento, esse analisando encontrará uma nova relação
amorosa que ele não trata como um pênis morto. A agorafobia
desaparece e a importância de sua atividade voyeurística se
reduz. Finalmente, o caso que apresentei demonstra que a
drogadicção, sintoma social da contemporaneidade, não é uma
estrutura clínica. Este analisando me ensina que a droga é o
tratamento espontâneo que ele dá aos seus pensamentos
obsessivos. Essa análise faz surgir o que foi recalcado pela
neurose obsessiva. O desejo de ser um grande escritor, que lhe
permitiria triunfar sobre um pai medíocre. O debate sobre esses
quatro casos de neurose obsessiva masculina nos trouxe elementos
clínicos indispensáveis para sustentar uma aposta numa prática
orientada pelo diagnóstico do sintoma.
O
sintoma para psicanálise, como desenvolve Sérgio Laia, é um
problema que causa sofrimento, mas pode ser também uma solução.
A psicanálise pura não é uma experiência alheia à terapêutica.
O processo analítico, na orientação lacaniana, termina com a
produção de um analista, entretanto, o sintoma não é
eliminado como um problema nem é completamente solucionado.
Acredito que os casos apresentados na seção clínica sirvam
para mostrar isso muito bem. O psicanalista não é messiânico.
Não promete a cura dos efeitos da linguagem sobre o corpo do se
falante. Essa abordagem do sintoma no dispositivo analítico,
como esclarece Lêda Guimarães, envolve um tratamento ao
sofrimento que inclui produção de um saber pelo analista. A
autora se pergunta: qual é o papel da formalização do caso clínico?
A psicanálise é uma clínica, não é uma teoria abstrata, nem
uma elucubração obsessiva. Essa clínica, entretanto, não
existe sem a formalização teórica. A teoria da psicanálise
é essencialmente uma teoria da clínica que consiste nessa
articulação íntima entre o real da experiência e a teoria
relativa a esse real. A formalização do caso clínico em
psicanálise, diferentemente do que ocorre nas práticas que
dispensam o diagnóstico, é um instrumento para que o analista
venha a operar por meio de seu ato.
Maria
José Gontijo traz uma resenha do livro de Sílvia Tendlarz e
Carlos Dante intitulado: A
quién mata o asesino?. Os autores defendem uma posição inédita
que justifica que o psicanalista se interesse pelos criminosos.
Deve–se buscar, em todos os casos de homicidas, uma implicação
do sujeito, sua responsabilidade em relação ao crime. O que não
equivale a dizer que para todos os casos se deveria indicar um
tratamento psicanalítico. Contudo, o psicanalista deve procurar
localizar se depois do crime ocorreu uma mudança na posição
do sujeito, verificando se haveria umaresposta subjetiva ao ato.
Na
seção de Atualidades deixei registrada minha defesa pública,
por ocasião do Grand Meeting no Palais de La Mutualité, quando
fui surpreendida, durante esse encontro, por um convite
de Jacques-Alain Miller para que falasse do sistema de avaliação
das pós-graduações e da pesquisa no Brasil. O pequeno texto
que se segue contém as afirmações que constaram da minha
intervenção.
Muito
obrigado a todos que colaboraram conosco.
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