|
Simon
é agorafóbico. Seus deslocamentos são muito limitados. Quando
se dirige ao trabalho, ou ao meu consultório, ele fica muito
angustiado. Ele calcula seu trajeto, balizando-se pelas farmácias
em seu caminho, e evitando atravessar praças e espaços
abertos.
Esta
angústia que ele sente, quando anda nas ruas, apareceu no
momento em que ele preparava uma viagem ao país de origem de
sua família, em companhia de seu amigo. Ocorre que o casal está
em crise. Seu amigo se afasta e o abandona. Ele ficará muito
triste. Amava o rapaz, a relação dos dois havia durado muitos
anos.
Simon
teria medo de morrer na rua? Ele consulta médicos com freqüência,
temendo uma crise cardíaca. Ele pensa freqüentemente na morte.
A AIDS causou devastação entre seus amigos. Ele tem poucas
aventuras, mas seu amigo era mais volúvel. O destino dos cadáveres
o preocupa. Ele gostaria de ser incinerado.
Uma
questão estranha aparece: “o que acontece com o membro ereto
dos enforcados, também apodrece?”
Mas,
aquilo que ele mais teme, é desmaiar em público. O que fariam
dele, de seu corpo?
Muito
mais tarde, ele evocará uma lembrança: seus colegas brincavam
de perseguir um deles. A vítima foi desnudada em público.
Quando chegou sua vez de ser capturado, ele simulou uma síncope,
assim, escapou ao suplício.
Desde
que se separou do amigo, sua vida sexual – da qual ele fala
com discrição – consiste em encontros anônimos em bosques,
à noite. Não nos conhecemos antes, nos afastamos depois.
Mais
tarde, estas atividades vão ficar mais precisas: é voyeurismo2.
Ver homens em atividade sexual, ou melhor, ver pênis em ereção.
Seu gozo é fixado na visão do falo, fascínio que o cativa.
Ele
insiste sobre o fato de ter pouco interesse nesses homens, a única
emoção que ele sente, segundo ele, é com a visão dos pênis,
a pessoa do falóforo lhe é indiferente
Entretanto,
o Outro está presente para este voyeur, o Outro que pode
surgir, Outro que o surpreenderia em sua atividade voyeurista:
Ver, mas ver furtivamente, pois isto poderia desagradar aos
portadores de pênis vítimas de seu voyeurismo, e ele diz temer
represálias que poderiam ser violentas.
Nas
ruas, Simon está “na dependência do visível em relação àquilo
que nos põe sob o olho do que vê.” (Lacan,
1964, p.73).
A
fixação do gozo perverso em ver o falo às escondidas, retorna
como angústia, e, quando, na rua, ele se torna coisa vista, ele
está sob o olhar do Outro.
Ele
poderia desmaiar e então, diz-ele, “o que fariam dele, de seu
corpo?”.
A
síncope não seria o risco de ser desnudado, de ter seu pênis
nu posto a céu aberto, retorno horrível de sua pulsão em ver
pênis de desconhecidos? Ele, que se fez olhar para o Outro,
seria, em retorno, entregue ao olhar.
Após
a conclusão de seus estudos de nível superior, ele entrou em
uma administração, na qual se manteve por mais de dez anos no
cargo no qual havia sido recrutado. Ele não tem, segundo ele
mesmo, nenhuma ambição. Ele age com muita discrição, quer
passar despercebido, e consegue. Ele cuidou para que sua orientação
sexual ficasse secreta em seu local de trabalho.
Ele
tem, fora do meio profissional, numerosas amizades. Gosta muito
das mulheres. Agrada-lhe sua companhia, sua graça, sua beleza.
Quando
criança, ele era muito próximo de sua mãe. Seu pai dizia que
ele estava sempre debaixo de sua saia.
Ele
traz uma lembrança de infância que lhe causa perturbação:
ele viu o corpo da mãe, que contra a luz ficou visível através
de um leve vestido de verão. O pai é classificado como sendo o
interditor dos prazeres da intimidade materna. Uma jovem tia
também perturbou sua adolescência, lembra-se de seu decote
atraente, e do mal-estar sentido durante uma permanência
prolongada em sua casa. A junção do mal-estar com a perturbação
fizeram do retorno à casa um alívio.
Quanto
à mãe, ele tem por ela muita afeição, mas evita estar em sua
presença. Ele lhe telefona e lhe escreve, mas evita os
encontros. Uma amiga, vizinha de muito mais idade, tem uma função
asseguradora para ele. Ela lhe franqueia sua mesa, e acalma sua
ansiedade com sua acolhida calorosa.
Simon
sempre soube que era homossexual. Desde seus 7 ou 8 anos, o pai
o chamava de mulherzinha, dizendo que era afetado, que era uma
verdadeira menina.
Ele
odeia este pai que o desprezava. Ele evocará também as brigas
dos pais, nelas seu pai insultava e batia na mãe, a jogava no
chão e batia nela mais ainda. Ele gostaria de ter intervindo.
Deveria tê-la defendido, mas temia esse pai. O casal acabou se
separando. Ele não tem mais nenhuma relação com o pai.
Uma
lembrança desse pai o persegue e o surpreende: eles estavam na
praia, num programa familiar. Um grupo de homens, muçulmanos,
estava postado na falésia olhando as mulheres. Após
ordenar-lhes que se afastassem seu pai lhes mostrou o sexo, sem
dúvida com o objetivo de insultá-los.
A
situação evolui lentamente, seus deslocamentos na cidade são
menos angustiados, mas ele não consegue se afastar, logo ele
que gostava tanto de viajar. Ele tenta limitar a carga de
ansiedade com a qual tem de conviver, através da presença em
seu bolso de um antidepressivo prescrito em uma de suas
numerosas consultas médicas. Ele nunca toma nenhum, mas é
“para o caso de precisar”.
Quando
sobrevém a morte desse pai, que o rebaixou ao nível de dejeto
e, ao mesmo tempo, lhe prescreveu sua escolha sexual não
precisará conter nenhuma tristeza. Ele hesitará em ser
acompanhado, ou não, ao seu funeral. Finalmente, tomará uma
decisão: não irá ao funeral, não tem dever nenhum em relação
a “este homem que não merece respeito.”
É
pouco depois, que através de um retorno do desejo, a carga de
angústia será eliminada. Ele está apaixonado. De um homem
formidável, belo, vivo, alegre. Um sedutor. Ele terá uma relação
que irá reduzir a importância de sua atividade voyeurística.
Ele sabe muito bem o que mudou, ele encontrou alguém cuja
presença lhe agrada. Ele gosta de falar com o rapaz. Gosta de
desejar seu desejo. Gosta de vê-lo. Portanto não é mais um pênis
anônimo.
Esse
relacionamento será bastante breve, mas a agorafobia não
voltará. Ele retoma as viagens. “Eu sei que isto existe”,
isto, é o desejo do Outro. Novamente ele investiu um homem, um
desejante. O que ele encontra em seus parceiros passa a ter uma
atração diferente da do engodo do pênis fetichizado do traço
perverso, sem dúvida sem apagar totalmente o gozo de olhar. O
que ele vê no outro, no olhar do parceiro pelo qual ele se
declara apaixonado, é i(a), ele mesmo, como sendo amável,
desejável4.
Ele
decidirá, pouco depois, fazer os exames profissionais que lhe
permitirão ser promovido na hierarquia da administração na
qual é empregado.
A
fixação do gozo perverso, pode ser situada na cena da praia em
sua infância, a cena da exibição por seu pai do pênis,
mostrado a homens. Esta cena encontra uma outra visão, aquilo
que ele entreviu, contra a luz, através do vestido leve de sua
mãe, e que será negado.
Esse
pai do desprezo e do rebaixamento, não foi apto a transmitir a
seu filho a humanização do desejo. No imaginário, em lugar do
rastro do vivente, da falta - j,
do significante do desejo, o que se inscreveu foi o falo morto (Miller,
1988, p. 28-31), que Simon evoca ao interrogar o destino do pênis
ereto dos enforcados.
Ele
presentifica este falo morto sob a forma de um pênis ereto
entrevisto nos matagais, pênis este,que na rapidez do instante
permanece intumescido, nunca cai. O desejo, ao contrário, seria
a aceitação do caráter evanescente do olhar enquanto objeto a5.
A
morte do pai e, mais do que esta morte, o ato de Simon de não
homenagear este morto que “não merece seu respeito” permite
um afastamento dessa presença do “falo perdido de Osiris
embalsamado”. Simon pode então fazer parceria com seu
semelhante.
A
fixação do gozo na pulsão escópica para esse neurótico
obsessivo, que faz disso um traço de perversão, é enquadrada
por sua relação com a castração, isto é, que o objeto a é
delimitado e construído a partir do modo de inscrição do
Nome-do-pai.
Notas:
-
Proposta
de apresentação de trabalho para o VI Congresso da AMP.
-
“O
olho e o olhar, esta é para nós a esquize na qual se
manifesta a pulsão ao nível do campo escópico” (Lacan,
1964, p. 74).
-
“[...]
O que se trata de discernir [...] é a preexistência de um
olhar – eu só vejo de um ponto, mas, em minha existência,
sou olhado de toda parte”. (Lacan,
1964, p. 73).
-
“[...]
o olhar de minha parceira, porque esse olhar me reflete e,
por me refletir, não passa de meu reflexo, vapor imaginário”
(Lacan, 1962-63,
p. 277).
-
“Na
medida em que o olhar, enquanto objeto a, pode vir a
simbolizar a falta central expressa no fenômeno de castração,
e que ele é o objeto a reduzido, por sua natureza, a uma
função puntiforme, evanescente – ele deixa o sujeito na
ignorância do que há para além da aparência”. (Lacan,
1964, p. 77).
Referências
bibliográficas
Goldenberg,
M. Fobia e Nome-do-Pai. In: Opção Lacaniana. São
Paulo: Eólia, n. 50, p. 150-152.
Lacan,
J. (1962). Kant con Sade. In:
Escritos 2. México: Siglo Veintiuno Ed., 1989, p.
744-770.
_________.
(1962-63).
O Seminário. Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2005.
_________.
(1964) O Seminário.
Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
_________.
(1975-76). El Seminario 23: el sinthoma. Buenos Aires: Paídós,
2007.
Mauricio,
T. (2007) Sintoma
e Nome-do-Pai. In: Opção Lacaniana. São Paulo: Eólia,
n. 50, p. 362-365.
Merlet,
A. Perversão e Nome-do-Pai. In: Opção Lacaniana. São
Paulo: Eólia, n. 50, p.
304-306.
Miller,
J.-A. (1988) Sur le Gide de Lacan (transcription de quatre séances
du séminaire de D.E.A.). In: La Cause freudienne. Paris:
Seuil, n. 25, 1993, p. 28-31.
_________.
(1996-97) A teoria
do parceiro. In: EBP (2000) Os circuitos do desejo na vida e
na análise. RJ: Contra Capa, p. 153-207.
_________.
(1997-98). Uma partilha sexual. In: Clique. Revista dos
Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano. MG:
Instituto de Saúde Mental de Minas Gerais, n. 2, p. 12-29, ago.
2003.
Solano-Soarez,
E. (2007). Gozo e Nome-do-Pai. In: Opção Lacaniana. São
Paulo: Eólia, n. 50, p. 168-171.
Texto
recebido em: 24/10/2007.
Aprovado
em: 18/12/2007.
|