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1
– Introdução
De
acordo com a teoria psicanalítica, a diferença anatômica
entre os sexos tem conseqüências psíquicas, mas não se nasce
psiquicamente homem ou mulher; logo, é necessário que o
sujeito se inscreva do lado masculino ou feminino das fórmulas
da sexuação, formalizadas por Lacan (1972-73) em seu Seminário
20: Mais, ainda. Em outras palavras, constituir-se enquanto homem ou
mulher requer um trabalho, um posicionamento ético do sujeito
frente à castração. A condição para que a inscrição do
lado masculino ou feminino ocorra é o atravessamento do Édipo.
Na resolução do complexo de Édipo o sujeito simboliza a Lei
edípica e se inscreve na partilha dos sexos. Dito de outro
modo, ao atravessar o Édipo o sujeito simboliza a falta no
Outro (registra a castração) e se insere na lógica fálica,
ou seja, o falo passa a operar como regulador do gozo.
Partindo-se
do pressuposto de que na psicose não há a simbolização da
Lei edípica, podemos dizer que o psicótico não se inscreveu
nem do lado masculino nem do lado feminino. Diante disso,
colocamo-nos as seguintes questões: 1) como fica a posição do
psicótico na partilha dos sexos? 2) de que recursos ele pode se
valer para situar-se na diferença sexual? 3) O empuxo-à-Mulher
pode ser considerado uma forma de o sujeito posicionar-se na
partilha dos sexos?
Em
seu Seminário 3: as
psicoses Lacan (1955-56) afirma que, para Schreber, não há
“nenhum outro meio de realizar-se, de afirmar-se como sexual,
senão admitindo-se como uma mulher, como transformado em
mulher” (Lacan,
1955-56, p. 286). Que conseqüências podemos tirar desta
passagem? Como depreender o conceito lacaniano de empuxo-à-Mulher
e sua importância para a clínica da psicose? Antes de darmos
prosseguimento é importante dizer que o empuxo-à-Mulher pode
sim desempenhar um papel crucial para a estabilização (como
ocorreu no caso Schreber), mas pode também ser vivenciado pelo
psicótico como um gozo altamente invasivo e colocá-lo ainda
mais em posição de objeto. Portanto, na clínica da psicose, o
encaminhamento a ser dado aos fenômenos de empuxo-à-Mulher
deve ser pensado no caso a caso. É relevante que isto fique
claro porque o empuxo-à-Mulher não é, de maneira nenhuma, uma
solução estabilizante para todos os casos de paranóia. Como
afirma Miller (2003), na impossibilidade de dar uma solução ao
enigma colocado pela linguagem apelando para discursos
estabelecidos, os psicóticos têm de inventar uma maneira inédita
para dar uma resposta ao impossível inerente à linguagem. Em
outras palavras, a solução dada por cada sujeito psicótico ao
enigma sobre o seu sexo, que retorna no real, é inédita no
sentido de que não passa pela significação fálica. É
importante deixar claro também que o delírio é uma
das formas de o psicótico alcançar a estabilização; existem
outras, como a arte. Temos notícia de pacientes em que a
estabilização não passa pelo delírio; por exemplo, pacientes
que alcançam a estabilização através da arte ou, ainda, pela
conjunção entre arte e delírio, como é o caso do Profeta
Gentileza2.
Este
trabalho será dividido da seguinte maneira: em um primeiro
momento abordaremos a sexuação feminina e apresentaremos as fórmulas
da sexuação para, em seguida, investigarmos as conseqüências
da não inscrição do psicótico na partilha dos sexos. Para
tanto, desenvolveremos o fenômeno do empuxo-à-Mulher, comum em
quadros de psicose, e averiguaremos se ele pode ser considerado
como uma forma de o sujeito se posicionar na partilha sexual.
Por fim, com o intuito de articular teoria e clínica, lançaremos
mão do clássico caso de paranóia do presidente Schreber.
2
– Sexuação
De
acordo com a teoria psicanalítica, a distinção anatômica
entre os sexos tem conseqüências psíquicas, mas não se nasce
psiquicamente homem ou mulher. Como afirma Lacan: “(...) ter
ou não ter o pênis não são a mesma coisa” (1957-58a, p.
192). Assim sendo, para se constituir enquanto homem ou mulher
é imprescindível que o sujeito simbolize a diferença sexual.
Dito de outro modo, ser homem ou mulher não é algo dado,
portanto, requer um trabalho por parte do sujeito; mais do que
isso, requer um posicionamento frente à castração. É
importante frisar que, ao inscrever a castração, o sujeito se
insere na lógica fálica. Voltaremos a este ponto.
Em
seu artigo “A Organização Genital Infantil (Uma Interpolação
na Teoria da Sexualidade)”, Freud afirma que tanto para os
meninos quanto para as meninas existe “apenas um órgão
genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não
é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do
falo” (Freud,
1923, p. 158). Em seguida, ele não só afirma como também
sublinha que “o significado do complexo de castração só
pode ser corretamente apreciado se sua origem na fase da
primazia fálica for também levada em consideração” (Id., p. 159/160). Diante disso, podemos afirmar que tanto o
homem quanto a mulher estão referidos à lógica fálica, que
ambos se posicionam na partilha dos sexos a partir da primazia
do falo. Em outras palavras, somente quando um significante se
diferencia de todos os outros é que alguma lógica pode ser
instaurada. Como nos diz Lacan, “para que alguma coisa falte
é preciso que haja o contado” (1968-69, p. 290). Neste
sentido, o falo é erigido a partir da inscrição de uma falta.
É apenas quando se coloca para o menino a possibilidade de
perder o seu pênis e para a menina o fato de que ela não o
tem, isto é, que de saída ela é privada, que podemos falar do
complexo de castração. Em outras palavras, quando falamos de
castração é porque alguma perda já está em jogo. Em seu
texto, “A significação do falo”, Lacan afirma que o falo
é o significante que “dá a razão do desejo” (1958, p.
270). Portanto, a inscrição de uma falta na cadeia
significante é essencial para que o sujeito possa desejar.
Lacan
(1957-58a), em seu Seminário 5: as formações do inconsciente, fala-nos da simbolização
da castração do Outro, ou seja, que a inscrição do
significante do Nome-do-Pai simboliza a falta no Outro. Ele
assinala que o pai é uma metáfora, ou seja, aquilo que vem no
lugar do desejo da mãe. Ora, se o desejo materno é caprichoso,
se ela goza de forma irrestrita do corpo do bebê, o
significante do Nome-do-Pai é o que limita este gozo materno.
Neste seminário, a castração é a simbolização da ausência
de pênis na mãe, do Outro primordial. Lacan afirma que “É
no lugar onde se manifesta a castração no Outro, onde é o
desejo do Outro que é marcado pela barra significante”
(1957-58a, p. 181). Portanto, o que se coloca para a criança é
a pergunta pelo significado
das idas e vindas da mãe. Afinal, “O que quer essa mulher aí?”
(Id., p. 181). Esta
pergunta feita pela criança nos mostra que, de início, este
gozo materno é enigmático, desenfreado e sem sentido. Em relação
à lei da mãe, Lacan assinala o seguinte: “essa lei é, por
assim dizer, uma lei não controlada” (Id.,
p. 195). Diante disso, podemos afirmar que o Nome-do-Pai
engendra uma significação fálica, significação esta que
limita, que coloca uma barra sobre o gozo materno. Deste modo, o
desejo materno, até então enigmático passa, através da metáfora
paterna, a ser o desejo do falo. Por conseguinte, ao simbolizar
a castração do Outro o sujeito se insere na lógica fálica,
ou seja, o falo passa a operar como regulador do gozo.
2.1
– A sexuação feminina
Antes
de apresentar as fórmulas da sexuação falaremos sucintamente
da sexuação feminina com o intuito de marcar que as mulheres
registraram a castração, portanto, estão na lógica fálica,
embora esta não dê conta do que é uma mulher. Este caminho se
faz necessário para traçarmos uma distinção entre empuxo-à-Mulher
e a posição feminina na partilha dos sexos, questão que pode
dar margem a confusões. Destarte, é importante frisar que o
lado feminino não coincide com a psicose.
Em
seu texto “Algumas conseqüências psíquicas da distinção
anatômica entre os sexos”, Freud afirma que, “nas meninas,
o complexo de Édipo levanta um problema a
mais que nos meninos” (1925, p. 280, grifo nosso). O que
Freud estaria querendo dizer com isto? Será que teria alguma
ligação com o gozo suplementar que Lacan (1972-73) atribui às
mulheres, ou seja, um gozo a mais, um gozo não capturado pela função fálica? Parece que
Freud e Lacan estão se referindo a um resto pulsional, a algo
que escapa à lógica fálica, algo que não pode ser dito.
Lacan nos diz que “há um gozo dela (mulher) sobre o qual
talvez ela não saiba nada a não ser que o experimenta – isto
ela sabe” (1972-73, p. 100).
Em
sua conferência XXXIII, intitulada “Feminilidade”, Freud
afirma o seguinte: “a psicanálise não tenta descrever o que
é a mulher - seria esta uma tarefa difícil de cumprir -, mas
se empenha em indagar como é que a mulher se forma”
(1933[1932], p. 117). A partir desta passagem podemos nos
perguntar até que ponto Freud não reconhece que é impossível
dizer o que é a mulher, pois ele coloca esta tarefa como um
limite da teoria psicanalítica. Claro que só podemos fazer
esta leitura a partir da teorização lacaniana de que A
Mulher não existe. Desenvolveremos este ponto adiante.
Freud
então se coloca a tarefa de descobrir como é que a menina se
transforma em mulher. Ele afirma o seguinte: “Há muito tempo,
afinal de contas, já abandonamos qualquer expectativa quanto a
um paralelismo nítido entre o desenvolvimento sexual masculino
e feminino” (1925, p. 234). Em outras palavras, Freud sustenta
que não há simetria em relação Édipo no menino e na menina,
o que aponta para o ponto central sobre o qual a psicanálise
gira, ou seja, a diferença sexual.
Freud
sublinha que a maneira pela qual a menina atravessa o Édipo é diferente
da do menino. Dito de outro modo, homens e mulheres se
posicionam de forma diferente frente à castração. Tal como
nos meninos, o primeiro objeto de amor da menina é a mãe; no
entanto, diferentemente dos meninos, elas têm de abandonar a mãe
enquanto objeto e investir no pai. Essa reviravolta ocorre
porque a menina constata a diferença sexual e se dá conta de
que o menino tem e ela não - “Ela o viu (o pênis), sabe que
não tem e quer tê-lo” (Freud, 1925, p. 281). De acordo com Freud, após este episódio,
as meninas se tornam vítimas da inveja do pênis. Podemos ler
nessa passagem que a menina está referida ao falo, ou seja, que
a sua inscrição do lado feminino passa pela norma fálica. A
partir do Penisneid, isto é, da inveja do pênis, Freud (1933 [1932]),
teoriza a sexualidade feminina. Ele afirma que, ao se deparar
com o órgão genital masculino, a menina se decepciona com a mãe
porque ela não tem e não lhe deu o falo. Devido a isso, a
menina abandona a mãe enquanto objeto de investimento sexual e
busca alhures, o significante que lhe falta no real do corpo. De
acordo com Freud (1931), a sexualidade feminina tem três saídas
possíveis:
1. Renunciar ao falo e abrir mão da sexualidade.
2. Não renunciar ao falo e ficar presa ao complexo
de masculinidade, isto é, querendo ser um homem.
3. Por fim, reconhecer a castração materna e a sua
própria e buscar o falo no homem. Busca-o, primeiramente no pai
e depois em um homem que lhe permita equivaler o desejo de ter
um pênis ao desejo de ter um bebê, um “falo-bebê”. De
acordo com Freud, essa terceira opção é o caminho normal em
direção à feminilidade.
Para
responder à questão sobre como a menina se transforma em
mulher, Freud circunscreve como ponto de impossível: descrever
o que é uma mulher. A partir da circunscrição desta
limitação, ele tenta responder, pela via da lógica fálica,
mais precisamente da inveja do pênis, como é que uma menina se
transforma em mulher. A tentativa de Freud é um paradoxo, pois
ao mesmo tempo em que só podemos elaborar algum dizer sobre a
mulher a partir da lógica fálica, esta lógica não pode dizer
toda a mulher. Ora, mas a mulher não pode ser dita. Como então engendrar algum saber sobre
a mulher que não passe pela lógica fálica?
Em
seu Seminário 20: mais,
ainda..., Lacan (1972-73) dá um passo adiante e teoriza que
a mulher é não-toda inscrita na lógica fálica. Deste modo,
ele dá um lugar para o feminino enquanto radicalmente distinto
do masculino, no sentido de que escapa à lógica fálica. Neste
seminário, Lacan postula que as mulheres possuem um gozo
suplementar ao fálico, um gozo Outro, portanto, não capturado
pelo significante; um excesso de gozo não civilizado. Em relação
a este gozo feminino, podemos dizer que ele é fora do discurso,
que ele é impossível de ser dito. Lacan nos chama a atenção
para o fato de que, sobre este gozo, “talvez ela não saiba
nada a não ser que o experimenta – isto ela sabe” (1972-73,
p. 100). A isto acrescenta que “Nada se pode dizer da
mulher” (Id., p.
109). Não se pode dizer nada sobre a mulher, precisamente
porque não há um significante que a represente. Daí o
aforismo lacaniano: A Mulher não existe.
Dado
que a lógica fálica não dá conta do que é ser uma mulher,
depreendemos que, para a menina, a travessia do Édipo não lhe
responde o que é ser uma mulher. No entanto, é importante
deixar claro que ao final do Édipo a menina reconhece que ela e
sua mãe não têm o falo. Este reconhecimento é crucial para a
sua inscrição na partilha dos sexos. Como assinala Lacan, “é
na medida em que o pai se torna o Ideal do eu que se produz na
menina o reconhecimento de que ela não tem falo” (1957-58a,
p. 179). A identificação com o pai, que Lacan chama de Ideal
do eu, ocorre na resolução do complexo de Édipo. Não
obstante, como falta um significante que a represente, algo de
sua condição sexuada permanece como enigma: “o sexo da
mulher não lhe diz nada” (1972-73, p. 15).
3
– As fórmulas da sexuação
Em
seu texto “O Aturdito”, Lacan afirma que “não há
universal que não deva ser contido por uma existência que o
negue” (1973, p. 450).
Partiremos
desta passagem para tentar mostrar que a condição de existência
do todo é a exceção, é algo que fica de fora. Como veremos,
o que funda o conjunto dos homens é a exceção. A mesma lógica
pode ser aplicada à teoria, visto que ela só é consistente a
partir da circunscrição de um ponto de impossível, de indecidível,
portanto, de uma inconsistência. No Seminário
16: de um Outro ao outro, Lacan (1968-69) nos ensina que o 1
sempre vem acompanhado de a,
isto é, que 1= 1+a. Dito de outra maneira, a unidade não vem sem o resto, sem que
algo fique de fora, e o que fica de fora é precisamente o real.
Neste seminário, Lacan afirma o seguinte:
O
objeto a [...] é exatamente o que vocês querem, esse branco, ou esse
preto, esse algo que falta
por trás da imagem, se se pode dizer, e que colocamos tão
facilmente, por um efeito puramente logomáquico da síntese, em
algum lugar numa circunvolução. É exatamente na medida em que
alguma coisa falta no que dela se dá como imagem que é o ponto
de força onde só há uma solução, é que, como objeto a,
isto é precisamente enquanto que falta e, se querem enquanto
mancha. A definição de mancha, é justamente aquilo que, no
campo, se distingue como o buraco, como uma ausência [...].
Colocar a mancha como essencial é estruturante, a título de
lugar de falta em toda visão (Lacan,
[1968-69, p. 283, grifo nosso).
Ainda
pensando a necessidade de um resto para que a unidade se
constitua podemos nos remeter ao conceito de ideal do eu, cuja
formação é condição para a constituição do eu. Freud nos
diz que o ideal do eu se constitui como “substituto do
narcisismo perdido de sua infância, onde ele era o seu próprio
ideal” (1914, p. 101). Podemos depreender desta passagem que a
constituição do ideal do eu se dá a partir de uma perda, de
uma renúncia ao narcisismo infantil. É somente a partir da
constituição do ideal do eu, portanto de uma perda, que o
narcisismo infantil torna-se o eu ideal. Assim, podemos
dizer que a constituição do ideal do eu é uma maneira de o
neurótico tentar reparar a ferida narcísica produzida pelo
registro da castração. Por conseguinte, a constituição do
ideal do eu ocorre a partir de uma perda. Vale dizer que o ideal
do eu é inalcançável, portanto, um ponto de impossível.
Lacan assinala que a constituição do ideal do eu se dá no
terceiro tempo do Édipo3, ou seja, tempo em que há
a identificação com o pai. Lacan é incisivo: “Essa
identificação chama-se Ideal
do eu” (1957-58a, p. 200).
É
importante ressaltar que a constituição do ideal do eu
comporta um paradoxo, pois “ser castrado é essencial na assunção
do fato de ter o falo” (Lacan,
1957-58a, p. 193). Em outras palavras, para ter o falo é necessário
que haja o registro de que não se pode tê-lo, é necessário
que haja a inscrição da falta. Nesse sentido, o menino só tem
o falo sob o fundo de não tê-lo, portanto, o registro da
castração, é a condição para que o menino o tenha.
É
sabido que o conceito de castração é central para a teoria e
a clínica psicanalíticas. Tendo isso em vista, citarei a
brilhante definição de castração formulada por Lacan em seu Seminário 20: mais ainda...: “para o homem, a menos que haja
castração, quer dizer, alguma coisa que diga não à função fálica (...)” (1972-73, p. 97, grifo nosso).
Esta passagem é bastante clara: a lógica fálica é instaurada
por algo que a nega, por algo que fica de fora, portanto, por
uma impossibilidade. Neste seminário, a castração aparece
como a simbolização de um impossível, ou seja, como a fundação
de um real. Este impossível, esta falha é estrutural, visto
que é inerente à linguagem: “quando se trata da estrutura,
eu já disse isso, deve ser tomado no sentido do que é o mais
real, o próprio real” (Lacan,
1968-69, p. 26). Por conseguinte, há um fora do sentido, um
irrepresentável para todo falante. Assim, a diferença entre
neurose e psicose reside no fato de que o neurótico, a partir
da inscrição do significante do Nome-do-Pai, simbolizou esta
falha do Outro e o psicótico não. O psicótico, portanto, é
aquele que não quis saber nada desta impossibilidade, desta
mancha inerente à linguagem. Na neurose, há o registro deste
irrepresentável e, conseqüentemente, a inserção na lógica fálica
e a inscrição na partilha dos sexos. Vale frisar que a lógica
fálica é fundada precisamente por este fora do sentido, por
isto que lhe escapa, ou seja, por um ponto de impossível. Ora,
se a condição de existência da lógica fálica é justamente
algo que a negue, algo que fique de fora, ou seja, um ponto de
impossível, na psicose essa lógica não é instaurada,
portanto, não há uma fronteira entre o masculino e o feminino.
Destarte, o psicótico não se inscreve na divisão dos sexos.
Exporemos
agora o quadro das fórmulas da sexuação, frisando que o psicótico
não se inscreve nem do lado do homem nem do lado da mulher.
Lado Homem
Lado Mulher
Do
lado esquerdo do quadro temos a posição masculina, onde há
uma exceção que funda o conjunto dos homens, ou seja, há um
que não está submetido à castração, representado pela fórmula:
. Para depreendermos este lugar de exceção é crucial que nos
reportemos ao texto de Freud (1913 [1912]), intitulado “Totem
e tabu” onde ele descreve o mito do pai da horda. Neste
recorte que estamos realizando, o importante é dizer que, nos
primórdios do totemismo, havia um pai que gozava de todas as
mulheres e, à medida que os filhos cresciam, expulsava-os da
horda. Porém, certo dia, os filhos expulsos retornam juntos,
matam e devoram o pai. É importante marcarmos que o que funda o
conjunto dos homens enquanto todo inscritos na lógica fálica
é o assassinato do pai, ou seja, é o pai enquanto símbolo. É
o pai morto que instaura a lei de proibição do incesto. Freud
é claro: “O pai morto tornou-se mais importante do que o fora
vivo” (1913 [1912], p. 146). Em seguida Freud afirma o
seguinte:
[...]
nenhum deles tinha força tão predominante para a ponto de ser
capaz de assumir o lugar do pai com êxito. Assim, os irmãos não
tiveram outra alternativa, se queriam viver juntos – talvez
somente depois de terem passado por crises perigosas –, do que
instituir a lei contra o incesto, pela qual todos, de igual
modo, renunciavam às mulheres que desejavam e que tinha sido o
motivo principal para se livrarem do pai (Freud,
1913 [1912), p. 147).
Portanto,
o pai horda assassinado representa a exceção,
, o “ao menos um” que não está submetido à lógica fálica.
Lacan (1972-73) nos ensina que, devido ao fato de haver uma exceção
do lado masculino (exceção que delimita o conjunto dos
homens), temos o seguinte:
, todos os homens estão submetidos à castração. Lacan
afirma: “O todo repousa, portanto, aqui, na exceção
colocada” (1972-73, p. 107).
Do
lado feminino, como não há exceção, todas as mulheres estão
submetidas à castração, ou seja, não há uma que não esteja
submetida à castração, que é representada pela fórmula:
. Não obstante,
, as mulheres estão “não todas” submetidas à função fálica,
dado que não existe exceção que funde o conjunto das
mulheres.
Vimos
com Freud que a mulher está referida ao falo, mais do que isto,
que é por esta referência que ela se constitui enquanto
mulher. Por conseguinte, é pela inscrição da castração que
a mulher se inscreve na partilha dos sexos. Não obstante, como
no lado feminino não existe exceção, o conjunto das mulheres
não existe. É nesse sentido que as mulheres só podem ser
contadas uma a uma, pois A
Mulher não existe, não existe um significante que a
represente. Deste modo, ao mesmo tempo em que todas as mulheres
são castradas, elas estão “não toda” inscritas na lógica
fálica; o que é o mesmo que dizer que a mulher está referida
à lógica fálica, mas que esta lógica não recobre o que é
ser uma mulher. Como vimos, Freud afirma que “a psicanálise não
tenta descrever o que é a mulher” (1932 [1933], p. 117).
Vimos
que é a lógica fálica que limita o gozo do Outro, portanto,
podemos dizer que a relação da mulher com o Outro é mais
direta que a dos homens, visto que elas são “não toda”
submetidas à norma fálica. A partir desta formulação Lacan
postula que as mulheres possuem um gozo suplementar, um gozo não
capturado pelo falo, portanto, um gozo Outro. Não obstante, é
importante ressaltarmos o seguinte: “Não é porque ela é não-toda
na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela não
está lá não de todo. Mas há algo a mais” (Lacan,
1972-73], p. 100). Depreendemos desta passagem que a mulher está
toda referida à lógica fálica, no entanto, como esta lógica
não dá conta do que é uma mulher, a mulher tem um gozo a
mais, um gozo não capturado pelo significante, não
regulado pelo falo. Acreditamos que é por isso que Lacan nos
diz que “contrariamente ao que se diz, de qualquer modo são
elas que possuem os homens” (1972-73], p. 99), pois elas estão
toda referidas à lógica fálica. Neste sentido, elas
possuiriam os homens. Dado que as mulheres possuem um gozo
Outro, isto é, um gozo que escapa à lógica fálica, podemos
dizer que nenhum homem possuirá de todo uma mulher, visto que
sempre ficará algo de fora. Por isso, como diz Miller (1998),
no que diz respeito ao gozo feminino as mulheres estão sempre
sozinhas. Cabe dizer que aquilo que, da mulher, escapa ao homem,
escapa também à mulher - “o sexo da mulher não lhe diz
nada” (1972-73, p. 15). É por isso que este gozo Outro, a
mulher o experimenta, mas sobre ele, nada sabe. Será por isso
que Lacan define como heterossexual “aquele que ama as
mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio” (Lacan, 1973,
p. 467). No Seminário
20:mais, ainda..., Lacan (1972-73) nos diz que a mulher tem
a ver com o Outro e que o Outro só pode ser o Outro sexo.
Levando-se em consideração que existe exceção apenas do lado
masculino e que, como afirma Freud, existe “apenas um órgão
genital, ou seja, o masculino” (1923, p. 158), será que
podemos afirmar que a mulher é o Outro sexo, inclusive para ela
mesma?
Podemos
dizer que as três saídas possíveis para a mulher teorizadas
por Freud não dão conta, não totalmente, do que seja a
mulher. Algo resta, escapa à norma fálica, portanto, fica de
fora. Depreendemos que é por este motivo que a mulher ocupa,
para o homem, a posição de objeto a,
ou seja, de causa do seu desejo.
Do
que até aqui foi exposto depreendemos que ser mulher está para
além da significação fálica, para além do fato de ser mãe
e/ou de desejar um homem. Como assinala Lacan:
A
questão é, com efeito, saber no que consiste o gozo feminino,
na medida em que ele não está todo ocupado com o homem, e
mesmo, eu diria que, enquanto tal, não se ocupa dele de modo
algum, a questão é saber o que é do seu saber (Lacan,
1972-73, p. 118).
Se
o fato de se colocar como objeto causa do desejo de um homem não
responde ao que é ser uma mulher, onde encontrar uma resposta?
Uma vez que esta resposta não está toda ela na via do sentido,
ou seja, da significação fálica, cabe à mulher, a cada
mulher, inventar, criar uma solução para este enigma que é a
sua própria feminilidade, o seu próprio sexo. Ora, se o gozo
da mulher não está todo ocupado com o homem como fazer Um com
o parceiro amoroso? Miller (1998) afirma que existe um gozo
dela, da mulher, em que nenhum homem pode segui-la, portanto, em
relação a este gozo a mulher está só.
Ele ainda afirma o seguinte:
“Lacan formula esta soledad como no
hay relación sexual, a partir de lo cual se cuestiona la
estructura de la comunicación, que hace creer que existe una
relación entre el significante y el Outro” (Miller, 1998, p. 374).
Miller
sublinha que, ao escrever as fórmulas da sexuação, Lacan
apresenta a dissimetria que há entre os sexos, mas não a relação
entre eles. Dito de
outro modo, o impossível é a relação sexual. As fórmulas,
portanto, nos mostram que homem e mulher se posicionam frente à
castração de maneira distinta. Miller (1998) pontua que o falo
é, ao mesmo tempo, mediador, isto é, possibilita a relação
entre homens e mulheres, e o que faz obstáculo à relação
sexual. No Seminário 16,
encontramos uma belíssima passagem:
A
Mulher, em sua essência, se é alguma coisa, e não sabemos
nada sobre isso, ela é recalcada – tanto para a mulher como
para o homem – e o é duplamente. Inicialmente, pelo fato de
que o representante de sua representação está perdido, não
se sabe o que é a mulher. E, em seguida, porque, esse
representante sendo recuperado, é o objeto de uma Verneinung,
pois, que outra coisa se poderia lhe atribuir como caráter, senão
o de não ter isso que precisamente jamais esteve em questão
que ela tivesse? (...), ao lado o falo e a negação de que ela
o tenha, isto é, a reafirmação de sua solidariedade com esse
troço que, talvez, seja mesmo o seu representante, mas que não
tem com ela qualquer relação. Então, isso deveria nos dar,
por si só, uma pequena lição de lógica e nos fazer ver que o
que falta ao conjunto desta lógica é precisamente o
significante sexual. (Lacan, [1968-69, p. 215, grifo nosso).
Esta
passagem deixa bastante clara a dissimetria entre os sexos
colocada pelo falo, o que nos remete à inexistência da relação
sexual. A inexistência da relação sexual se evidencia no fato
de que a mulher possui um gozo Outro, no qual homem nenhum homem
pode segui-la; e o homem, por sua vez, “não chega, eu diria,
a gozar do corpo da mulher, precisamente porque o de que ele
goza é do gozo do órgão” (Lacan,
1972-73, p. 15). Não obstante, é importante lembrar que o
falo, enquanto significante da falta, é a razão do desejo, é
o que possibilita que um homem deseje sexualmente uma mulher e
vice-versa. Por fim, esta passagem nos mostra que não há, para
o falante, um saber sobre o sexo. Portanto, no que diz respeito
ao sexo o sujeito tem de aprender a se virar aí.
Com
o intuito de articular teoria e clínica, discorreremos agora
sobre o caso do Presidente Schreber, clássico caso de paranóia
analisado4 por Freud.
4 – Schreber e o empuxo-à-Mulher
A
idéia germinal do delírio de Schreber é o pensamento, que
teve entre o sono e a vigília, de que ‘seria belo ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula’. É
relevante sublinhar que Schreber teve este pensamento após
receber a notícia de que seria nomeado juiz presidente da Corte
de Apelação de Dresden (cargo vitalício e elevado para sua
idade). Freud (1911), ao analisar5 este caso,
localiza neste pensamento a emergência de um impulso
homossexual e, conseqüentemente, a causa do desencadeamento da
paranóia de Schreber.
Lacan
(1955-56) assinala que o desencadeamento da paranóia de
Schreber foi a sua nomeação para o cargo de juiz presidente.
Pois, precisamente quando foi convocado a assumir um lugar de
autoridade, ou seja, quando o significante do Nome-do-Pai (forcluído
na psicose) foi requerido, ele desencadeia o surto. Assim, para
Lacan, o desencadeamento da psicose de Schreber é anterior ao
momento em que ele teve o pensamento de que ‘seria
belo ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula’.
Apoiados em Lacan, sustentamos que este pensamento que teve
Schreber já indica o empuxo-à-Mulher,
ou seja, uma maneira peculiar de o psicótico se haver
com o enigma sobre o seu sexo, visto que não
se submete à castração. Dito de outra maneira, o empuxo-à-Mulher
não se enquadra nem do lado masculino nem do feminino,
portanto, é uma exceção à função fálica.
O
delírio de Schreber passou por alterações significativas. Em
um primeiro momento, a idéia de ser transformado em mulher se
apresenta como inadmissível, pois como o próprio Schreber
(1903) afirma, esta idéia é alheia a todo o seu modo de sentir
e pensar que, em plena consciência, ele a teria rejeitado com a
maior indignação. Além disso, neste momento, Schreber seria
abusado sexualmente e depois “deixado de lado” (1903, p.
67). Podemos caracterizar esta etapa, em que Schreber se
encontra em uma posição de objeto de abuso do Outro, como um
delírio erotomaníaco persecutório. Posteriormente, ele
reconcilia-se com o seu pensamento, visto que, a partir do
trabalho do delírio, a sua eviração6 (transformação
em mulher) passa a ter um honroso objetivo: tornar-se A Mulher
de Deus e redimir a humanidade. Neste segundo momento, Schreber
seria fecundado pelos raios divinos e daria origem a uma nova raça
de homens. Assim, através do acréscimo de um delírio
religioso de grandeza, Schreber dá um fim nobre à sua inevitável
eviração. Nesta etapa de seu delírio, Schreber consegue certo
apaziguamento, pois, para ele, ser A Mulher de Deus é uma posição
possível de ser ocupada.
No
caso Schreber, tornar-se A Mulher de Deus, é colocado como um
ideal, pois, para ele, a concretização de sua eviração
dar-se-á em um futuro assintótico. O ideal, por definição,
é inalcançável; em outras palavras, demarca, circunscreve um
ponto de impossível. Por conseguinte, ao inventar uma
finalidade nobre para a sua transformação em mulher e, mais do
que isto, transformá-la em ideal, Schreber conseguiu apaziguar
o gozo avassalador que o invadia e situar-se na existência.
Depreendemos então que, no caso Schreber, a construção de um
ideal, a partir do trabalho do delírio, foi crucial para que
ele alcançasse a estabilização.
Vale
ressaltar que o lado feminino não coincide com a psicose porque
as mulheres passaram pelo Édipo, logo, estão inseridas na lógica
fálica. Pois, como nos diz Lacan (1972-73), a mulher é não-toda
inscrita na lógica fálica, o significa dizer que ela que ela
está inserida nesta lógica, porém, de forma não-toda. Deste
modo, o gozo em questão na psicose não é o gozo feminino,
pois este é um resto que não foi capturado pela significação
fálica, e na psicose, trata-se de um gozo radicalmente fora da
significação fálica, portanto, não regulado pelo falo. Em
relação a Schreber, Lacan afirma que “na impossibilidade de
ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a
mulher que falta aos homens” (Lacan,
1957-58b, p. 572). Por que ele não pode ser o falo? Schreber não
pode ser o falo precisamente porque não se inseriu na lógica fálica.
Vimos
que o registro da castração é a simbolização da falha do
Outro. Em relação ao buraco, a falha que existe em todo
discurso, ou melhor, que é a sua causa, Lacan nos diz que
“nomeá-la é tapá-la com uma rolha, nada mais” (1968-69,
p. 166). Ora, o que é o significante do Nome-do-Pai senão uma
nomeação desta falha? A simbolização é isso: nomear a
falha, a ausência de um significante que represente a
mulher. Como já desenvolvemos em um trabalho anterior,
falta significante para todo falante, ou seja, para todos há o
irrepresentável, para todos há o indizível e o significante
do Nome-do-Pai é uma suplência, ou seja, é o significante que
nomeia esta falha. No Seminário
5, Lacan afirma o seguinte em
relação aos psicóticos: “o sujeito tem de suprir a falta
desse significante que é o Nome-do-Pai” (1957-58a, p. 153),
lembrando que este significante foi forcluído na psicose. No Seminário
16, já aparece que para todo falante há o indizível.
Podemos verificar isto na seguinte passagem: "esse sujeito
é alguma coisa cujo saber está inteiramente determinado por
outra falta mais radical, mais essencial, que é a falta
do que lhe concerne enquanto ser sexuado" (1968-69, p.
284, grifo nosso). Neste seminário, Lacan já afirma “que não
há relação sexual” e que “não se sabe o que é a
mulher” (Id., p.
214 e 215, respectivamente), pois falta um significante que a
represente. No entanto, é no Seminário
20, mais precisamente com as fórmulas da sexuação, que
Lacan evidencia a inexistência da relação sexual e, por
conseguinte, também a inexistência de um saber sobre o sexual.
Como
afirma Miller: “Cuando Lacan convierte el falo en una función
– el lo que haremos con el síntoma – escribe, al mismo
tiempo, dos fórmulas distintas y separadas para ambos lados de
la fórmula de la sexuación, y no
escribe su relación” (Miller,
1998, p. 373, grifo nosso).
Assim,
a partir da inexistência da relação sexual, a partir desta
falta estrutural, Miller generaliza o conceito de forclusão,
teorizado por Lacan para falar da constituição psíquica na
psicose, e cunha o conceito de forclusão generalizada, ou seja,
que para todo sujeito há o irrepresentável. Deste modo, o
Nome-do-Pai passa a ser, ele mesmo, uma suplência, o nome desta
falha no Outro. É a partir da simbolização desta falha do
Outro que o sujeito se inscreve na partilha dos sexos. Em outras
palavras, é a partir do registro da castração, que evidencia
para o sujeito a sua falta enquanto ser sexuado, que ele pode
sustentar o seu desejo enquanto homem ou mulher.
5
– Conclusão
Para
finalizar, retomaremos uma das questões colocadas no início do
trabalho, qual seja: o empuxo-à-Mulher pode ser considerado uma
forma de o sujeito posicionar-se na partilha dos sexos?
Como
vimos, para que haja a inscrição do sujeito na partilha dos
sexos, é imprescindível que ele atravesse o Édipo, isto é,
simbolize a falha do Outro. Na resolução do complexo de Édipo
o sujeito internaliza a Lei edípica e se inscreve na lógica fálica.
Vale frisar que a Lei edípica instaura a realidade da castração,
que tem a função de limitar o excesso pulsional e localizar o
gozo. Dado que não simbolizou a falha do Outro, o psicótico não
se inseriu na lógica fálica. Em relação ao desencadeamento
da psicose, Lacan nos diz que “se esse oco ou esse vazio
aparece, é por ter sido evocado ao menos uma vez o Nome-do-Pai”
(1957-58a, p. 160). Nesse sentido, podemos dizer que a estrutura
psicótica evidencia a falha do Outro, a falta de significante
inerente à linguagem. Ora, o que é “recusado na ordem simbólica
ressurge no real” (1955-56, p.22) porque o psicótico, à sua
maneira, está na linguagem e, em algum momento, ao se deparar
com esta mancha inerente à linguagem, ou seja, com esta
impossibilidade de tudo dizer, o sujeito pode desencadear o
surto. Como teorizado por Freud, o delírio é um “remendo no
lugar em que originalmente uma fenda
apareceu na relação do ego com o mundo externo” (Freud,
1924 [1923], p. 169, grifo nosso). Ora, se Freud fala na
abertura de uma fenda por ocasião do desencadeamento da
psicose, Lacan assinala que na psicose “é realmente a própria
realidade que é em primeiro lugar provida de um buraco,
que o mundo fantástico virá em seguida cumular” (1955-56,
p.56-57, grifo nosso), isto é, a construção delirante.
Portanto, o delírio seria uma tentativa de tamponar a falha do
Outro.
A
partir do que foi elaborado até aqui, sustentamos que o psicótico
não se posiciona na partilha dos sexos, pois não inscreve a
castração. No caso Schreber, a sua transformação em
mulher é uma injunção, é algo que vem de fora, que lhe é
imposto pelo Outro7, por isso sustentamos que ele não
se posiciona na divisão dos sexos. Cito Lacan:
(...)
o delírio começa a partir do momento em que a iniciativa vem
de um Outro, com A maiúsculo, em que a iniciativa está fundada
numa atividade subjetiva. O
Outro quer isso, e ele quer sobretudo que se saiba disso,
ele quer significar (Lacan,
1955-56, p. 220, grifo nosso).
Contudo,
gostaríamos de salientar que, embora Schreber não se posicione
na partilha sexual, ele inventa um lugar para ele no mundo a
partir do empuxo-à-Mulher. Não podemos deixar de reconhecer
que foi a partir de uma árdua construção delirante que
Schreber inventou uma solução elegante para a sua inevitável
transformação em mulher e reconciliou-se com o pensamento de
que ‘seria belo ser
uma mulher e submeter-se ao ato da cópula’. Assim,
a solução elegante – tornar-se A Mulher de Deus (embora não
seja uma posição na partilha sexual), é uma maneira,
alternativa à fálica, encontrada por Schreber, de responder ao
enigma sobre o seu sexo que retornou de fora e alcançar a
estabilização. Cabe ressaltar que, no caso Schreber, a
concretização de sua transformação em Mulher de Deus se dará em um futuro assintótico, ou seja, ganha o
estatuto de ideal que, por definição é inalcançável.
Sustentamos que o fato de Schreber ter colocado a concretização
de sua eviração como um ideal foi crucial para que ele alcançasse
a estabilização.
Finalizamos
este trabalho com algumas respostas, mas também com uma questão:
a partir da solução elegante - tornar-se A Mulher de Deus -
Schreber faz existir A Mulher? Ele a faz existir ou, a partir da
invenção deste ideal, faz valer a impossibilidade de existir A
Mulher? Nossa hipótese é a de que Schreber, ao colocar a sua
transformação em Mulher como um ideal, não faz existir A
Mulher, mas circunscreve A Mulher como um ponto de impossível8,
o que lhe permite estabilizar e voltar à vida social9.
Notas
-
Optamos
por grafar mulher com letra maiúscula porque entendemos que
se trata de um empuxo ao lugar da Mulher que não existe, ou
seja, a exceção do lado feminino. Assim, na psicose
haveria uma tentativa de fazer existir A Mulher e, portanto,
a relação sexual.
-
Psicótico
que realizou 55 escritos murais sobre as pilastras do
Viaduto do Gasômetro, situado entre a Rodoviária Novo Rio
e o Cemitério do Caju (Guerra, 2007).
-
Lacan
(1957-58), em sua releitura de Freud, divide o Édipo em três
tempos. No entanto, não os abordaremos no presente
trabalho.
-
É
importante dizer que Freud nunca se encontrou pessoalmente
com Schreber, portanto, a análise do caso limitou-se ao que
este relatou em sua autobiografia, intitulada: “Memórias
de um Doente dos Nervos”, publicada em 1903.
-
Vale
dizer que Freud o analisou bastante influenciado pelo modelo
da neurose.
-
Quinet
ressalta que o termo eviração foi “proposto por
Lacan para nomear Entmanung, que significa desmasculinização,
desvirilização e não emasculação, que corresponderia,
antes, a uma castração” (QUINET, 2003, p. 22).
-
Cito
Schreber: “Desse modo foi preparada uma conspiração
dirigida contra mim (em março ou abril de 1894), que tinha
como objetivo, uma vez reconhecido o caráter incurável de
minha doença nervosa, confiar-me a um homem de tal modo que
minha alma lhe fosse entregue, ao passo que meu corpo –
numa compreensão equivocada da citada tendência inerente
à Ordem do Mundo – deveria ser transformado em um corpo
feminino e, como tal, entregue ao homem em questão para
fins de abusos sexuais, devendo finalmente ser “deixado
largado”, e portanto abandonado à putrefação”
(Schreber [1903], 2006, p. 67).
-
Frisando
que o psicótico não simboliza este impossível, ou seja, não
se insere na lógica fálica; entretanto, a partir do delírio,
pode construí-lo.
-
Lembrando
que Schreber surtou uma terceira vez, quando membros das
Associações Schreber o procuraram para que ele os
reconhecesse como herdeiros do legado de sua família, ou
seja, quando ele foi convocado a responder de um lugar simbólico.
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recebido em: 20/06/2007.
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em: 15/08/2007.
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