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A
formalização de um caso clínico vem sendo concebida de várias
maneiras ao longo da história da psicanálise, desde um
historial clínico até um fragmento de caso, sem resultar no
estabelecimento de um standard,
nem mesmo num consenso nas Escolas da AMP para definir com
precisão em que consiste um caso clínico. Para dar um
tratamento a essa questão, falarei a partir do que meu percurso
permanente de formação em psicanálise vem me ensinando no
sentido formalizar um caso clínico. Tomarei como referências
teóricas algumas articulações conceituais da primeira com a
segunda clínica de Lacan1, para formular alguns
norteadores que venho utilizando no trabalho de construção do
caso clínico.
Apresento
algumas considerações preliminares antes de propor esses
norteadores. A psicanálise é uma clínica, não é
restritamente uma teoria, ainda que tenha um corpo teórico. Mas
é uma clínica que não existe sem a formalização teórica,
assim como a teoria da psicanálise é essencialmente uma teoria
da clínica. Portanto, a psicanálise consiste nessa articulação
íntima entre o real da experiência e a teoria relativa a esse
real. Dizer isso não é um jogo retórico. Vejamos por quê.
No
momento do ato analítico, o analista não pensa (Lacan,
1967-68), pois o ato irrompe abruptamente. Se no ato o analista
não pensa, isso não quer dizer que ele seja da ordem do que
poderíamos chamar de uma intuição do analista, pois não convém
que esse ato seja movido pelas singularidades da subjetividade
do analista; para isso, é indispensável a análise pessoal na
formação psicanalítica. Porém, mais além das condições
subjetivas que permitem a sustentação da posição analítica,
é ainda fundamental que o analista esteja bem orientado em seu
ato. Orientado em quê? Aqui entra a articulação do ato analítico
com a teoria da psicanálise, não simplesmente o conhecimento
do seu corpo teórico em si mesmo, mas fundamentalmente a
utilização da teoria enquanto instrumento conceitual para
definir a direção da cura caso a caso. Será a leitura dos
dados clínicos, do que ocorre a cada sessão de análise,
utilizando os instrumentos conceituais da psicanálise para
efetivar esta leitura, que permitirá ao analista um trabalho
constante de formulação da direção da cura para cada caso.
Assim, a teoria da psicanálise instrumentaliza a posição analítica
para que o analista venha a operar em seu ato. Desse modo, a
posição analítica articulada à formalização teórica,
constitui dois lastros indissociáveis para que a clínica
psicanalítica ocorra.
A
partir desse preâmbulo, podemos já dizer que a formalização
do caso clínico, além de se prestar como um trabalho voltado
para a transmissão da psicanálise, antes de qualquer coisa,
consiste num trabalho essencial no dia-a-dia
da clínica para orientar o analista na direção da cura, por
meio de uma constante formalização do material bruto dos
pacientes em casos clínicos.
Para
traçar alguns norteadores para a formalização do caso clínico,
utilizarei o caso Karine, publicado sob o título “Um modo de
fazer consistir o pai” (Guimarães,
2006). Para suas formulações teóricas, esse texto tomou como
ponto de mira a consistência crescente que a função paterna
foi alcançando na estrutura subjetiva ao longo da cura desse
sujeito. É um caso que também se presta para discutirmos a temática
das neuroses “histéricas” contemporâneas. Neuroses que
denominei como “mal-ditas histéricas” num outro texto que
estou preparando para publicação. “Mal-ditas” com a
duplicidade homofônica de sentido que esse termo comporta:
“mal-nomeadas” como histéricas, já que suas estruturas
subjetivas ainda não estão bem amarradas no amor ao pai, como
também “malditas” quando são tomadas pela contra-transferência
do analista como “insuportáveis”, exatamente quando ele não
se deixar ser ensinado por elas.
Tomarei
agora o caso Karine para formular teoricamente alguns elementos
que já estão presentes nos dados clínicos de modo subjacente.
Esses dados podem ser referidos como norteadores para a construção
desse caso clínico. Norteadores que orientaram a seleção e a
ordenação dos dados clínicos, os quais agora nomearei de modo
explicito, contando também com algumas formalizações teóricas
de Esthela Solano acerca desse caso clínico (Solano-Suarez,
2007).
Primeiro
norteador: as condições de abertura para o ato analítico
O
início de um atendimento psicanalítico requer a verificação
da abertura subjetiva para o ato analítico. Conforme parâmetros
da primeira clínica de Lacan, podemos verificar essa abertura
por intermédio da demanda do sujeito: o que demanda e como
formula sua demanda no campo dos ditos.
Quando
Lacan conceitua que demandar é tomar a palavra dirigida ao
Outro, ele indica que a demanda já situa no campo do Outro o
que o sujeito quer obter com a sua demanda. Assim, a demanda do
sujeito também indica a que Outro o sujeito se dirige (Lacan, 1954-55).
A
importância fundamental da verificação da demanda do sujeito,
para a direção da cura poderá ser articulada com as formulações
da segunda clínica de Lacan acerca do parceiro-sintoma (Miller,
1996-97). É indispensável
que o analista, para a sua orientação, venha a ler no caso clínico
alguns dados essenciais que indiquem o estatuto da amarração
da neurose, formulando uma hipótese acerca do modo de gozo que
o sujeito mantém na sua parceria sexual com o Outro, fixando o
nó de amarração da estrutura.
Desse
modo, a análise da demanda do sujeito dirigida ao analista na
transferência já indica a posição que o sujeito ocupa na sua
parceria sintomática com o Outro. Para tanto, convém
perguntar: como o sujeito se impõe ao Outro na sua demanda?
Como exige que o Outro o receba enquanto parceiro-sintoma?
Karine,
com idade em torno de trinta anos, chegou ao consultório
apresentando-se por meio de um pedido que consistia numa condição
de suportabilidade, que dependia de uma ressalva em relação ao
modo como a analista deveria operar. Quando interrogada sobre as
razões da sua vinda, disse: “vim porque sei que preciso muito
fazer análise”, “sempre precisei”. Afirmou ainda que
levou muito tempo para reunir toda a coragem e se decidir a dar
esse passo. Justificou esse pedido apoiada numa posição
subjetiva de um certo pavor controlado, dizendo que há mais de
cinco anos havia iniciado uma análise na qual só pôde
suportar permanecer em torno de quatro ou cinco meses, pois se
sentia encurralada com o modo de intervenção do analista e com
o fato de fazer as sessões deitada no divã. Passou a sofrer de
uma doença psicossomática que precipitou sua saída. Karine
chegou a considerar que a doença teria alguma coisa a ver com
essa experiência de análise.
O
que dizer desse modo de formular uma demanda ao analista? Que
Karine chega impondo uma restrição à maneira como a analista
deverá operar com ela. Esses dados indicam, desde a primeira
entrevista, o modo sintomático da relação dessa paciente com
o Outro ao qual ela dirige uma demanda que pode ser interpretada
do seguinte modo: “Peço que você me responda, mas que você
responda como eu decido. Você tem que me permitir e aceitar que
eu domine, quer dizer, que eu possa controlá-la para que nada
do que você disser ou fizer seja imprevisível para mim. E,
sobretudo, nada de surpresas”.
Na
verificação das condições de abertura ao ato analítico, além
de localizar na demanda do sujeito sua parceria-sintomática com
o Outro, é importante também verificar uma condição
estrutural fundamental: Qual foi o fator mobilizador da demanda?
Em que circunstâncias esse fator emergiu? Desde quando? Isso
consiste em delimitar o ponto de desestabilização da
estrutura.
Karine
diz: “vim porque sei que preciso muito fazer análise”,
“sempre precisei”. O que esse dado clínico nos indica?
Podemos levantar uma hipótese de que, para esse sujeito, a
estabilização da sua estrutura não se mantinha numa
homeostase de gozo bem fixada. Mas em que ponto?
Encontramos,
num dado clínico, o motivo que levou esse sujeito ao analista
anterior e a partir do qual verificamos que sua questão
dirigida à análise foi sobre o amor. Ainda que, nesse novo
pedido de análise, Karine não se ocupasse inicialmente em
falar sobre essa questão, o modo como foi traçada a direção
da cura lhe permitiu retomá-la seriamente mais adiante. O que
nos permitirá verificar que o ponto de desestabilização da
sua estrutura situava-se no campo do amor.
Como
Karine enunciou essa sua questão na análise anterior?
Questionando se verdadeiramente gostava do namorado. Mas não
chegou a uma resposta sobre isso, ou melhor, abandonou esse modo
de enunciar sua questão quando interrompeu aquela análise. Fez
um acting out: decidiu
noivar e, a partir daí, a questão sobre o amor se inverteu,
passou a enunciar que não tinha certeza se o namorado
verdadeiramente a amava. Com esses dados já podemos ler algum
índice acerca do modo de suplência que esse sujeito mantém
para tamponar a fenda que se abre em sua estrutura. Diante da
pergunta acerca do amor que quer obter do Outro, esse sujeito
faz uma suplência ocupando-se com o amor que falta ao Outro.
Na
verificação da demanda dirigida à analista, que elementos
norteadores fundamentais já puderam ser delimitados para a direção
da cura desse sujeito?
-
Alguns
indicadores do seu modo sintomático de parceria com o Outro.
-
Se já
houve na estrutura desse sujeito uma estabilização bem fixada
ou não.
-
O ponto
de desestabilização onde a fenda na estrutura se abre para uma
intervenção analítica.
-
Indicadores
do modo de suplência que tenta tamponar o ponto de
desestabilização da estrutura.
O
que requer ainda verificar: como opera a suplência na
estrutura?
Segundo
norteador: o modo de suplência
O
modo de suplência presente no nó de amarração da estrutura
opera por meio da estratégia do eu, do eu como absoluto, não
aceitando a falta nem o intervalo no qual pudesse emergir o
enigma do desejo do Outro. Em lugar de se interrogar acerca da
falta relativa à dimensão do amor no campo do Outro, Karine
desdobra seu eu numa estratégia que consiste em completar
permanentemente os outros, sempre se fazendo metade do outro, a
metade imprescindível. Ela diz: “Não sei dizer não” nem
aos pais, nem aos amigos, nem aos colegas. Demonstra
permanentemente a sua abnegação, seu zelo, seus dons, todas as
virtudes do eu. Oferece presentes, socorre os amigos
emprestando-lhes dinheiro, é amigável, divertida, agradável.
Ela sempre satisfaz os outros.
O
que quer demonstrar com essa estratégia? Por um lado, que ela
tem. E por outro, que ela pode preencher todas as faltas. Com
relação a seus pais, ela está sempre ocupada se dedicando a
eles, principalmente, ajudando sua mãe a tomar conta do pai
doente, o que a obriga a viver sempre atarefada, trabalhando em
vários lugares ao mesmo tempo. Pode-se dizer que é um sujeito
que está permanentemente numa dinâmica de trabalhos forçados.
E é isso que sustenta seu eu.
Com
esse modo de fazer sintomático, Karine tenta recobrir com o
imaginário, com o eu, todo o real. Pode-se dizer que, nesse
caso, a consistência imaginária do eu é o seu modo
privilegiado de fazer aparecer o seu ser no campo do Outro. Quer
dizer, não encontramos aqui nessa suplência um enlaçamento
simbólico consistente que lhe forneça um S1
privilegiado, identificatório, para se fazer amável ao Outro,
mas fundamentalmente o Eu ideal, narcísico.
Examinar
o estatuto da suplência na estrutura consiste em interrogar a
consistência das identificações centrais nos três registros:
Com que recursos simbólicos, imaginários e fantasmáticos o
sujeito conta para sustentar o seu ser no campo do Outro, como o
sujeito se faz ser para o Outro?
A
prevalência do eu na parceria-sintomática de Karine nos
permite verificar que esse sujeito não dispõe na estrutura de sua neurose de um
lastro firme do pai. Desse modo, não dispõe de ferramentas
para fixar solidamente no registro simbólico uma identificação
ao Ideal do Outro – I(A), como resposta ao enigma do desejo do
Outro. Isso equivale a dizer que as operações lógicas de
efetuação da estrutura denominadas por Lacan, no Seminário
11 (1964), como alienação e separação, ainda não
encontraram recursos libidinais suficientes para se fixar
firmemente no nó que amarra a estrutura. Para esse sujeito, lhe
restou um lastro de gozo mais bem fixado na posição de objeto
da demanda da mãe, que lhe fornece uma consistência de ser de
gozo enquanto dejeto do Outro, recoberta pela estratégia do eu
imaginário. Isso não permite assegurar que esse sujeito tenha
constituído na amarração da estrutura um recurso fantasmático
para a parceria sexual com o Outro, já que se mantém distante
da dimensão do desejo do Outro. Desse modo, essa estrutura
subjetiva pode ser situada no campo do que hoje tem sido
denominado como “neuroses contemporâneas”.
A
partir dessas formulações, é importante indicar que o Outro
privilegiado da parceria sexual desse sujeito institui-se, de
modo mais consistentemente, como Outro da demanda e não como
Outro do desejo. Trata-se do Outro da demanda imperativa,
intransitiva, inegociável, como Lacan conceitualiza no texto
“Subversão do sujeito e dialética do desejo” (Lacan,
1960). Abre-se aqui uma questão, a qual levei muito tempo na
minha formação psicanalítica para começar a conceber de modo
operativo na clínica: o sujeito situa no analista, em ato na
transferência, o objeto que ele é para o Outro. Pois bem, esse
caso clínico nos permite ilustrar essa vertente real da
transferência. Para tanto, convém retomar a questão: na
demanda inicial ao analista, o sujeito situa o Outro em que posição?
Exatamente como objeto da sua demanda massiva, intransitiva, sem
nenhuma negociação, exigindo que o Outro aceitasse seu
controle absoluto.
Terceiro
norteador: a estratégia do analista na transferência
A
transferência não se interpreta, como diz Lacan em “A direção
do tratamento...” (1958),
já que ela se apresenta em ato, portanto fora do recurso da
palavra, fora do estatuto simbólico. Será, portanto, em ato
que o analista também poderá traçar a sua estratégia de modo
que esta venha a operar seus efeitos.
Logo
na primeira entrevista, acolhi imediatamente a demanda de Karine
oferecendo todas as garantias de que tudo faria para ter a
delicadeza necessária para lhe deixar tranqüila. Isso
significa que, imediatamente, pude ler alguns dados essenciais
da singularidade sintomática dessa mulher e, diante dessa
singularidade, pela via do semblante, me fiz dócil à sua
demanda. Por quê? Para poder ocupar na sua subjetividade a função
de parceiro-sintoma. Só desse modo é possível existir uma análise.
Essa estratégia permitiu a fixação da transferência, de modo
que o analista, ao se
deixar aí ser incluído na economia libidinal do sujeito, venha
operar pouco a pouco, desde essa inclusão, uma barradura mais
efetiva no campo do Outro. Operação de incisão no Outro que não
poderia ter lugar na estrutura sem essa estratégia na transferência.
Quarto
norteador: a tática utilizada pelo analista
Iniciou-se
um primeiro período de análise no qual logo constatei que o
insuportável consistia em deixar aberta qualquer questão que
tocasse, de algum modo, na posição subjetiva central que
Karine mantinha com o Outro em sua vida; questões levantadas
por ela mesma ao longo da sua fala. Buscava logo uma resposta
que lhe fornecesse uma significação fechada, formulando ela
mesma uma resposta, ou pedindo que lhe ajudasse a encontrá-la.
A busca de uma significação fechada, diferentemente do efeito
de sentido evanescente próprio à tática da interpretação
como enigma, indicava o quanto esse sujeito necessitava desse
recurso eminentemente imaginário na sua estrutura. Recurso que
tem valor de suplência, o que não poderia ser desmontado de
modo abrupto.
Sempre
que não se sentia segura da resposta obtida durante a sessão,
utilizava o recurso da atuação. Digamos que esse período de
análise consistiu no uso de uma tática que, na construção
desse caso clínico, denominei de “atuação dirigida”. A
direção da cura serviu-se do cálculo relativo a quais questões
Karine poderia suportar fazer uma pequena pausa, sem uma
resposta conclusiva imediata. Essa tática permitiu instituir um
pequeno espaço de tempo entre a pergunta e a verificação da
resposta por meio da atuação. Esse pequeno espaço produzia o
efeito de inserir uma nova pausa entre a atuação e o dito
sobre a atuação, o qual só poderia advir na próxima sessão,
ocasião em que Karine tentava se assegurar de uma resposta
formulada a partir do que buscou verificar em ato. Essa “atuação
dirigida” foi a primeira tática da analista para começar a
introduzir, de forma muito sutil, uma pequena fenda no discurso
desse sujeito, dentro dos limites da sua suportabilidade, para não
provocar uma desestabilização maior na estrutura.
O
que é que causava o insuportável para Karine quando não
obtinha uma resposta rápida? Podemos supor que a exigência de
uma resposta rápida era seu modo de defesa diante da angústia,
já que não contava com recursos simbólicos suficientes para
fornecer um tecido que contornasse a fenda da qual emergia a angústia.
Ela não suportava que uma questão fosse mantida em aberto.
Portanto, não era sem razão que a resposta rápida, a
significação definitiva fosse o objeto que ela esperava do
Outro, que ela demandava ao Outro na transferência.
Diante
dessas condições estruturais da parceria sintomática com o
Outro, qual foi a manobra da analista, articulada à tática da
“atuação dirigida”? Precisamente, não responder
exatamente o que a paciente exigia e, ao mesmo tempo, não
contrariar essa exigência. No texto “A dinâmica da transferência”
(1912), Freud se orientava do mesmo modo em relação à demanda
de amor do paciente dirigida ao analista. Ele propõe um jogo de
cintura delicado que consiste em não atender a demanda, mas, ao
mesmo tempo, não desiludir inteiramente o paciente.
Assim,
a tática da “atuação dirigida” articulada à estratégia
na transferência de atender a demanda sem corresponder a ela
inteiramente consistiu no cálculo da pausa, no cálculo do
intervalo suportável na estrutura. Pode-se dizer que existiu um
cálculo da pontuação na medida em que a pausa introduzida aos
poucos entre o que Karine solicitava e a resposta dada teve o
mesmo valor de uma pontuação muito especial, o valor
introduzido pelas vírgulas num texto escrito. Assim, um tecido
simbólico passou a ser constituído, pouco a pouco, de modo
mais consistente em torno da fenda na qual emergia a angústia
na estrutura. Privilegiar especialmente a tática da pontuação
no campo da palavra se fez necessário aqui, já que a
interpretação como enigma, enquanto um x que não remete a uma
significação fechada, ainda não teria lugar na condução da
cura, diante da precariedade simbólica dessa neurose.
Quinto
norteador: O imperativo do supereu
Rastrear
as trilhas silenciosas do imperativo do supereu consiste num
trabalho fundamental não apenas para a direção do tratamento,
como também para a construção de um caso clínico, pois só
desse modo os efeitos terapêuticos operados poderão ser
concebidos como efeitos analíticos, enquanto efeitos de redução
do gozo mortificante.
No
caso Karine, aparece um objeto privilegiado: o dinheiro. Ela
trabalha muito, ganha um salário razoável, mas nunca tem
dinheiro. E então, o que acontece com o dinheiro? O dinheiro
entra como objeto fundamental na relação sintomática com o
Outro, desequilibrando a suplência imaginária do eu. Se, através
da estratégia do eu - sendo amigável, solícita, prestativa -,
ela alcançar uma suposição muito forte de que tem aquilo que
pode recobrir a falta do Outro, emerge aqui, com o objeto
dinheiro, um fracasso dessa estratégia de preencher a falta, já
que, no final das contas, a falta se abre diante dela. Não tem
dinheiro.
Nessas
condições, pede dinheiro à sua mãe. Isso quer dizer que a mãe
tem o que falta a ela. Porém, dessa forma, ela entra no
infernal circuito superegóico da dívida. O que a dívida
implica? Implica que, no bolso da mãe, falta o dinheiro que ela
deve, isto é, por meio da dívida ela introduz a falta na mãe.
Vejam que esse é um modo sintomático de introduzir uma falta
no campo do Outro. Isso também ocorre nas anorexias ditas
contemporâneas, já que o Outro da parceria sintomática desses
sujeitos não se situa no campo do dom do amor, de dar o que não
se tem, portanto, trata-se de um Outro mais bem situado no campo
do escamoteamento da dimensão do amor.
Mas,
diferentemente do que é produzido por essa estratégia nas
anorexias, a introdução forçada de uma falta no Outro não
teve como efeito a emergência da angústia no Outro. Com essa
estratégia, a paciente obteve essencialmente as recriminações
e críticas da mãe, as quais incidiam na sua estrutura como injúrias
superegóicas, que Karine alimentava se mantendo em dívida. Em
outras palavras, a dívida teve por função sustentar a
ferocidade sem limite do supereu, no ponto onde fracassava a
suplência em tentar recobrir o real. Pode-se dizer que essa
paciente não devorava, era devorada, devorada pelo Outro em seu
imperativo mortífero de gozo. O que nos faz considerar que
sobre essa base superegóica, de sujeição extrema aos
imperativos de gozo, advém a sua compulsão de comer, a sua
insuportabilidade de esperar qualquer coisa que tenha a fazer,
saber, ou dizer.
Como
foi introduzida, na direção da cura, uma leitura para esse seu
gozo superegóico? Foi estabelecida uma nova estratégia na
transferência, a qual consistiu em aceitar a dívida, aceitar
que a falta se inscrevesse do lado da analista, aceitando que
Karine, conforme seus próprios ditos, num esforço de não mais
pedir empréstimos à sua mãe passasse a dever o pagamento das
sessões à analista.
O
resultado dessa estratégia no campo dos afetos foi uma aflição
de não poder satisfazer a analista, mas a conseqüência maior
foi o efeito de surpresa produzido no sujeito, pois não recebeu
recriminações nem exigências como resposta. Reconhecendo a dívida,
tolerando-a sem anulá-la, a analista aceitou que o sujeito
descompletasse o Outro, isto é, aceitou ser para o sujeito um
Outro incompleto, um Outro barrado.
Esse
caso clínico nos ensina uma questão essencial acerca da incidência
do imperativo superegóico no campo transferencial. A demanda
imperativa inicial que esse sujeito impôs à analista situava
Karine na posição de objeto do próprio imperativo, exigindo
controlar o modo como deveria ser tratada pela analista. Ao
fazer semblante de dócil, a analista se deixava incluir na
economia subjetiva da paciente como parceiro-sintoma. Em relação
ao ponto insuportável para a paciente de não obter respostas
às suas questões, a analista atendeu a essa demanda sem
corresponder a ela inteiramente, visando a introduzir as pontuações
próprias a um tecido simbólico que começou a ser construído
em torno da fenda na estrutura. Entretanto, quanto à demanda de
que a analista encarnasse o imperativo de gozo do supereu,
diante do qual o sujeito restaria como objeto desse imperativo,
só houve uma resposta por parte da analista: não.
Especifica-se, assim, nesse caso clínico, a natureza da demanda
em relação à qual o analista não tem nada a conceder: a
demanda de avalizar o imperativo de gozo superegóico. Seja no
campo da transferência ou no campo dos ditos do sujeito, a única
resposta que cabe ao analista diante desse modo de gozo é ‘não’.
Essa
estratégia na transferência constituiu-se como fundamental na
cura, pois só assim o sujeito pôde começar a aceitar uma
surpresa enigmática que pudesse advir do Outro, resultando,
depois de três anos de trabalho, numa mudança radical da posição
desse sujeito diante da demanda do Outro.
Sexto
norteador: o modo de defesa privilegiado
Uma
frase se destacou desde o início, servindo como uma peça
fundamental na direção da cura: “sou gorda, feia, nenhum
homem vai me querer”. Frase sempre repetida em bloco, imutável,
à qual Karine estava identificada, como uma significação
fechada acerca do seu ser de mulher. Frase que sempre advinha
quando pensava em terminar a relação com o seu noivo, pois
passou a constatar que não sentia por ele nenhuma paixão, nem
admiração, nem desejo sexual.
Trata-se
de uma frase que constitui um modo de defesa ao estilo
obsessivo, pois mantém na estrutura do seu argumento uma relação
lógica entre dois elementos de ligação para sustentar os
enunciados: “se... então...” – “se
sou gorda e feia, então
nenhum homem vai me querer”. Essa lógica aristotélica reina
no cogito do eu, engendrando o estatuto de verdade nos
enunciados e introduzindo desse modo a debilidade mental no
campo da neurose.
A
importância de localizar esse modo de defesa - “Sou gorda,
feia, nenhum homem vai me querer” – consiste em verificar
que essa defesa sustenta uma função de nó nos três
registros:
1)
No
imaginário: sustenta a consistência ideacional do seu corpo -
“gorda” e “feia”.
2)
No simbólico:
os S1 “gorda” e “feia” fornece um nome para
se fazer representada, mas não para um outro significante (S2),
já que eles não têm o estatuto de identificações simbólicas
relativas ao I(A). A forte consistência imaginária articulada
a esses significantes fornecem uma significação absoluta para
seu ser de mulher, tamponando qualquer questão sobre o
feminino.
3)
No real:
“gorda” e “feia” recobrem o real com a ideação da
imagem do corpo, funcionando aqui como nome de gozo, enquanto
dejeto do Outro.
Uma
forte insistência da analista foi necessária para introduzir
uma escuta que permitisse romper a consistência de nó da
defesa fundamental. Sempre que Karine repetia em seus ditos
“sou gorda, feia, nenhum homem vai me querer”, a analista
perguntava de modo insistente: “quem lhe disse isso?”.
Introduzia, desse modo, uma questão acerca da frase axiomática
sem jamais enunciar o nome de gozo, para que este não viesse a
ser localizado como um dito do Outro na transferência, de modo
a não reafirmar esta fixação de gozo. Introduzir essa
pergunta implicava também enunciar, desde o lugar do Outro na
transferência, que não acreditava que era ela quem o dizia,
retirando da frase o verbo “sou”, deslocando para um outro o
lugar da enunciação. Diante da insistência da analista, as
respostas de Karine passaram por várias modulações:
“Eu sei que sou assim”
ß
“Todo mundo diz”
ß
“Meu irmão e minha mãe diziam”
ß
“Minha mãe disse”
Depois
que o lugar da enunciação dessa voz imperativa pôde ser bem
localizado na mãe, a analista introduziu esse sujeito na dimensão
da crença no estatuto de verdade dos ditos da mãe: “Sempre
acredito que tudo que minha mãe diz é verdade”. Desse modo,
abriu para o sujeito a oportunidade de passar a questionar as
razões dessa crença.
Dizer
que o analista adotou aqui uma posição ativa, sustentada num
desejo férreo, consiste em um modo de formulação epistêmica,
conforme enunciado por Eric Laurent em A
conversação de Arcachon (Miller
et alli, 1977), a propósito da direção da cura na psicose.
Naquela ocasião, Laurent propôs que o analista deve sustentar
uma posição ativa para localizar os sinais mínimos de amarração
da estrutura, sustentando um desejo férreo de se fazer destinatário
desses sinais. Retomo aqui esses termos propostos por Eric
Laurent para dizer que, nesse caso de neurose, a analista adotou
firmemente essa posição de desejo para intervir decididamente
na quebra da defesa que sustentava a amarração da estrutura.
Entretanto, adotou também de modo decidido a direção de
introduzir simultaneamente um novo elemento na amarração da
estrutura, um gozo mais vivificante, localizando ou fazendo
aparecer na fala de Karine os signos do amor ao pai. Esse
trabalho de reenodamento é fundamental para a amarração da
estrutura, pois não convém que uma defesa seja desmontada sem
que o sujeito já tenha instalado os lastros firmes sustentação
num outro lugar mais apaziguador.
Sétimo
norteador: A função materna e paterna no caso clínico
Em
um caso clínico, os pais não interessam enquanto pessoas
acerca das quais venha a ser traçado um perfil conforme o que,
nas teorias da psicologia, é denominado de personalidade. Para
a psicanálise, os pais interessam enquanto funções operativas
na estrutura do sujeito:
- funções
imaginárias: o Outro onipotente absoluto, tanto na vertente do
ideal quanto na de numa encarnação terrorífica.
- funções
simbólicas: o DM (desejo da mãe) e o NP (Nome-do-Pai),
operadores da significação fálica.
- funções
de gozo: o pai, que se posiciona como macho, sexuado, que toma
uma mulher como objeto a causa do seu desejo, que transmite um traço sintomático do seu
gozo sexual. A mãe enquanto uma verdadeira mulher, Medéia que,
enlouquecida pelo seu gozo feminino, toma seus filhos como
objetos de sacrifício a esse gozo.
Quando,
num relato de caso clínico, os pais são referidos em bloco –
“meus pais”, ou “os pais” – passamos muito longe das
funções operativas que interessam à psicanálise em cada
caso. Quando o pai e a mãe permanecem referidos por meio de
semblantes imutáveis ao longo do caso, verifica-se que não
houve qualquer efeito analítico para aquele sujeito. Um
tratamento requer que o ato analítico tenha operado as mudanças
de estatuto da mãe e do pai. Tais mudanças vão sendo operadas
em par, pois a modificação do estatuto de um resulta
diretamente na mudança do estatuto do outro na estrutura de um
sujeito.
No
caso clínico de Karine, na medida em que a onipotência da mãe,
enquanto Outro da demanda, foi sendo gradativamente reduzida, o
estatuto do pai foi sendo modificado numa seqüência que se
inicia por uma forte consistência imaginária, para dar lugar
gradativamente ao seu estatuto simbólico:
- Pai que
nunca a apoiava diante da sua mãe porque ele assim não o
queria. Pai suposto como pai ideal, que poderia abrigá-la de
todo o mal, se assim o quisesse.
- Pai
covarde, decaído do ideal, que não tinha coragem de enfrentar
a mãe para não contrariá-la. Pai situado como homem sexuado
no seu modo de fazer parceria sexual com sua mulher. Pai do qual
o sujeito pode extrair um uso, operando uma identificação ao
seu traço sintomático.
- Pai do
amor, que apesar das suas falhas, a ama. Pai castrado porque ama
dando o que não tem. Pai da armadura histérica, pois introduz
o sujeito Karine num novo modo de discurso, passando a supor o
estatuto de verdade no saber inconsciente e não mais nos ditos
da mãe.
A
partir dessas mudanças operadas no estatuto do pai e da mãe,
Karine pôde assentar-se na posição de sujeito dividido e,
desse modo, pôde abrir uma questão acerca do enigma da
feminilidade.
Oitavo
norteador: foco central do caso clínico
Um
caso clínico pode ser diferenciado de um historial clínico, de
um relato de caso e de um fragmento de caso na medida em que é
formalizado para dar tratamento epistêmico a uma questão
conceitual. Nela, a seleção dos dados clínicos toma como
ponto de mira a demonstração de uma hipótese, a abertura de
uma questão etc.
Nesse
sentido, tanto os norteadores aqui propostos como outros mais
que possam ser formulados só interessam para cada caso clínico
como ordenadores dos dados clínicos conforme o foco central
epistêmico que foi escolhido para formalizar o caso.
Nota
-
Trata-se
de uma referência ao modo como Jacques-Alain Miller se
refere à clínica em Lacan como decorrência dos três
tempos do seu ensino (Miller,
2002).
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revista eletrônica da Escola na Bahia, número 1, 2007. Disponível
em: http://www.ebp.org.br/bahia/agente/
Texto
recebido em: 20/08/2007
Aprovado
em: 10/10/2007
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