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 O sintoma como problema e como solução*

 


Sérgio Laia
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Professor titular da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura)
Mestre em Filosofia e Doutor em Letras pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG)
laia.bhe@terra.com.br

 

Resumo

A psicanálise aplicada é aplicada à terapêutica e implica intervenções sobre o sintoma. O tratamento psicanalítico exige uma eficácia sobre o sofrimento causado pelo sintoma que, neste contexto, pode ser tratado como um problema. Mas a clínica também nos mostra que este problema que causa sofrimento pode ser uma solução. A psicanálise pura não é uma experiência alheia à terapêutica, mas a inclui, podendo ser considerada, se não um efeito terapêutico, certamente um produto possível (mas não necessário) da terapia psicanalítica. Aplicar a psicanálise produz, ao fim, um analista. Mas, ainda que essa produção se faça com a depuração do terapêutico, na orientação lacaniana o sintoma não é eliminado como um problema, nem é completamente solucionado.

Palavras-chave: psicanálise, psicanálise pura, psicanálise aplicada, final de análise, sintoma.

 

   
 

 

  The symptom as a problem and solution

Abstract

The applied psychoanalysis is applied to therapy and it implies interventions over the symptom. The psychoanalytical treatment demands efficiency over the suffering caused by the symptom, which in this context can be treated as a problem. But the clinical also shows us that this problem that causes suffering can be a solution. The pure psychoanalysis is not an experience apart from therapy, but including it, certainly a possible product (but not necessary) of the psychoanalytical therapy. Applying psychoanalysis produces in the end, an analyst. But even if this production is not made with the depuration of the therapist, in the lacan orientation, the symptom is not eliminated as a problem nor it is completely solved.

Key words: psychoanalysis, pure psychoanalysis, applied psychoanalysis, end of analysis, symptom.

 

 

Convidado por José Vidal para falar na Seção Córdoba da Escola de Orientação Lacaniana (EOL-Córdoba) sobre “a psicanálise aplicada e suas conseqüências sobre a prática da psicanálise pura”, escolhi o tema do sintoma por três motivos:

1)  Lacan nos ensinou que a “psicanálise aplicada” (Lacan, 2001, p. 231) é sempre aplicada à terapêutica e a terapêutica implica intervenções sobre o sintoma. Mais ainda, o tratamento psicanalítico exige uma eficácia sobre o sofrimento causado pelo sintoma que, nesse contexto, pode ser tratado como um problema. Mas a clínica psicanalítica também nos mostra que esse problema que causa sofrimento para um sujeito tem sido para ele uma solução.

2)  O que Lacan chamou de “psicanálise pura” (Id., p. 230-231, 234-235), muito diferente do que a Associação Internacional de Psicanálise (IPA) consagrou como “psicanálise didática”, não é uma experiência clínica alheia à terapêutica, pois nós, lacanianos, não fazemos contra-indicações especiais para os que decidem começar (ou inclusive prosseguir) uma análise para se tornarem psicanalistas. Nós consideramos cada um dos que nos procuram um sujeito que sofre, ainda que esse sofredor não se apresente a nós exatamente nesses termos. Por sua vez, as indicações e contra-indicações da IPA para os candidatos a analistas são tão rígidas e ideais que me parecem tomá-los muito mais como sujeitos já praticamente curados (ou se preferem, depurados) de seus próprios sofrimentos neuróticos, portanto não necessitariam tanto de uma terapia. A psicanálise didática deveria ensinar-lhes a conhecer seus próprios inconscientes para que não fossem mais enganados, permitindo-lhes analisar os que não são propriamente normais e que, por isso, deveriam ser objetos de uma terapia psicanalítica. Na orientação lacaniana, ao contrário, a “psicanálise pura” inclui a terapêutica e pode inclusive ser considerada, se não um efeito terapêutico, certamente um produto possível (mas não necessário) da terapia psicanalítica. É a própria experiência da aplicação da psicanálise a uma terapêutica que promoveria, segundo Lacan, uma depuração do terapêutico e, nesse sentido, no final de um longo processo terapêutico (e não como uma seleção inicial baseada em indicações e contra indicações), a produção de um analista.

3)  Ainda que a produção de um analista se faça com a depuração do terapêutico porque, quando um tratamento está chegando ao final, a vida de um analisante pode apresentar-se tão boa e tranqüila que o propósito terapêutico de uma psicanálise parece haver perdido sua razão de ser, não podemos dizer que, na orientação lacaniana, o sintoma é eliminado como um problema, que é completamente solucionado. Lacan concebeu o final de análise como “identificação ao sintoma”1. Assim, por um lado, como vou tentar demonstrar, o que era um problema se apresenta como uma solução, mas essa solução não será mais a concepção freudiana do sintoma como “solução de compromisso”, porque esse tipo de solução tenta mascarar o problema real corporificado, nesse caso, pelo próprio sintoma. Ao contrário, para Lacan, o desafio do final de uma análise é o de tomar o sintoma como uma parte do real, uma “peça solta” (como nos fez ver Jacques–Alain Miller2) com a qual o falasser pode lidar porque, de uma maneira ou de outra, é isso que ele faz em toda a sua vida. A psicanálise se transforma, então, em um processo em que o analisante poderá depurar seu próprio savoir faire com o sintoma, em uma terapêutica na qual o analisante poderá se tornar analista na medida em que ele puder transpor, como nos lembrou Eric Laurent, para uma “linguagem pública” a “linguagem privada” de seu savoir faire com o sintoma (Laurent, 2005, p. 57-59).

O sintoma e o objeto real da libido

Em “A terapia analítica”, a última das Conferências introdutórias sobre a psicanálise, Freud afirma:

Um neurótico é incapaz de aproveitar a vida e de ser eficiente – incapaz de aproveitar a vida porque sua libido não é dirigida a nenhum objeto real, e incapaz de ser eficiente porque é obrigado a dispensar uma grande quantidade de sua valiosa energia para manter sua libido reprimida e para repelir seus sobressaltos (Freud, 1917, p. 529).

Segundo Freud, a libido do neurótico não está relacionada com nenhum objeto real devido a seu conflito com o eu desse sujeito, porque o eu não tem mais essa energia sexual a sua disposição. Sabemos que alguns analistas pós-freudianos preferiram transformar o tratamento analítico em uma reeducação para a realidade, em um fortalecimento do eu, quando suas experiências clínicas os fizeram se confrontar com o distanciamento e o conflito entre a libido e o eu, com esse distanciamento do objeto real na economia libidinal do neurótico. De minha parte, e graças ao ensino de Lacan, me pergunto se não poderíamos ler, nessa menção freudiana ao “objeto real da libido”, um vestígio antecipado do “objeto a” e, nesse viés, o tratamento analítico não poderá ser confundido com uma adaptação educativa à realidade. Ele é, como nos formulou Jacques-Alain Miller (1998), um trabalho de redução que permitirá ao sujeito localizar seus envolvimentos com o “objeto real da libido” que – também de um modo muito lacaniano – Freud diferencia dos “objetos irreais da libido” (1917, p. 530) investidos pelo neurótico ao longo de sua vida e do “objeto imaginário” (expressão freudiana também!) encontrado no analista. Também me pergunto se deixar a libido de novo disponível ao eu – proposta por Freud como um resultado do tratamento analítico – não pode ser considerada de uma maneira diferente de um fortalecimento do eu ou, inclusive, de uma inflação narcisista e, nessa direção, aproximaria essa nova disposição da libido ao eu e o que Lacan, na última aula do Seminário 23, tematiza, a partir de James Joyce, como o ego em sua função de amarrar, num mesmo nó, os registros do real, do simbólico e do imaginário (Lacan, 1975-76, p. 143-155) - voltarei a esse ponto ao final, a partir de um comentário sobre um testemunho de passe.

Se a energia sexual do neurótico não está relacionada com nenhum objeto real, se o investimento neurótico é sempre em outra coisa diferente daquela que ele supõe investir, a pergunta de Freud é: Onde se encontra, então, a libido do neurótico? Sua resposta é que essa libido “está ligada aos sintomas”, pois eles proporcionam ao neurótico “uma satisfação substitutiva” (Freud, 1917, p. 529-530). Dessa maneira, e se considerarmos a incapacidade do neurótico de extrair gozo de sua própria vida, a economia libidinal do neurótico pode ser escrita como:

Sintomas (satisfação substitutiva)           <                gozo da vida

                   Satisfação real

Freud nos legou uma concepção do sintoma envolvido com uma satisfação inconsciente: se há uma tal satisfação, é verdadeiramente difícil para o neurótico livrar-se de seu próprio sintoma, a relação do neurótico com seu sintoma é sempre aquela de uma tensão, e de uma tensão paradoxal, porque o sintoma é uma intenção de solucionar-lhe um conflito. Assim, o sintoma é uma solução porque é a resposta a um problema, a um obstáculo que a satisfação do neurótico encontrou. Trata-se da famosa concepção freudiana do sintoma como “solução de compromisso”. Uma vez que sabemos que Freud foi um leitor de Goethe, não me parece improvável definir sua concepção de sintoma como uma “solução fáustica”, ou seja, o sintoma é um pacto de um sujeito com uma força “demoníaca” e, como é comum nesse tipo de situação, no começo, não há grandes sofrimentos, a vida é mais tranqüila com a ajuda do demônio... até que ele venha exigir sua parte no pacto, até que ele cobre do sujeito neurótico seu próprio ser, sua alma – neste ponto, da cobrança desse demônio descoberto por Freud como supereu, a vida do neurótico se torna realmente um inferno.

Ainda que o sintoma seja, portanto, “solução de compromisso”, “satisfação substitutiva”, ele não deixa de ser potencialmente um problema: o termo “substituto” nos indica uma nostalgia do original, uma sensação de que há outra coisa melhor que a satisfação promovida pelo sintoma e o termo “compromisso” – em sua significação de “pacto” – não deixa de implicar a possibilidade de um arrependimento pela obrigação contraída. Então, há uma incapacidade do neurótico de aproveitar sua vida, porque a energia libidinal gasta para manter em movimento a satisfação substitutiva do sintoma torna-se maior que a satisfação extraída dessa manutenção. Assim, o início de um tratamento analítico é, muitas vezes, marcado pelo encontro de um sujeito com o que, a partir de Freud, chamaria de “desgaste libidinal do sintoma”: a máquina-sintoma não funciona mais tão bem como o que lhe havia sido prometido, pactuado, o demônio irrompe para cobrar do sujeito o próprio objeto de sua satisfação.

Diferente de uma perspectiva médica ou inclusive de uma série de orientações no campo da psicologia e no campo da psiquiatria, o sintoma em psicanálise, embora nos seja apresentado como um problema, não é tratado como algo que deva ser extirpado, silenciado. Nesse sentido, mesmo em Freud me parece já se poder encontrar uma concepção – a que Lacan nos formalizou e aperfeiçoou muito mais – do sintoma como uma solução diferente da “solução de compromisso”, do sintoma como uma solução da qual o sujeito não consegue propriamente se livrar. E será no tratamento analítico que o sujeito poderá, segundo Freud, encontrar uma solução para a solução de compromisso em jogo em seu próprio sintoma.

 

Sintoma e dominação

Na obra de Freud, eu diria que a solução da solução sintomática tem todo um traço das Luzes, quer dizer, do movimento iluminista. Assim, da conferência sobre a terapia analítica, extraio a seguinte citação: “devemos nos tornar senhores dos sintomas e solucioná-los” (1917, p. 530). Em outras palavras: a solução freudiana do problema-sintoma, a solução para a solução problemática que um sintoma acaba sendo para um sujeito é que esse sujeito possa se transformar, com o tratamento analítico, em um “senhor do sintoma”. Se a finalidade freudiana do tratamento analítico é o sujeito se assenhorear do próprio sintoma, então poderemos conceber que, antes e inclusive ao longo da sua análise, o neurótico é um escravo do sintoma e sua economia libidinal é desgastada, porque ele acaba perdendo muita satisfação quando investe os objetos “irreais ou imaginários” da libido como se fossem o “objeto real”. O percurso desse tratamento então seria:

O sujeito como escravo do sintoma      O sujeito como senhor do sintoma

 

Objetos irreais ou imaginários da libido (a’)        Objeto real da libido (a)

É interessante sublinhar que, segundo Freud, a solução terapêutica para o sintoma não é sua eliminação, mas uma troca, se assim posso dizer, utilizando uma terminologia lacaniana, da posição do sujeito com relação ao seu sintoma. Assim, para Freud, trata-se de tornar-se senhor do sintoma, saber separar o objeto real dos imaginários ou irreais que atraem sua libido.

Como Freud teoriza essa passagem? Extraio uma nova citação da mesma Conferência introdutória sobre a terapia analítica: para modificar a dominação do sintoma sobre o neurótico, devemos “voltar às origens” dos sintomas,

reconstituir o conflito de onde eles surgiram e, com a ajuda das forças motrizes que, no passado, não estavam disponíveis ao paciente, deveremos conduzir o conflito [corporificado pelo próprio sintoma] rumo a um estado diferente, em que a libido será de novo colocada a serviço do eu e não mais a serviço da satisfação substitutiva inconsciente corporificada também pelo sintoma (Freud, 1917, p. 530).

Entre essas “forças motrizes” não disponíveis ao analisante em seu passado, Freud nos autoriza a localizar o próprio analista, porque a neurose de transferência (doença artificial que surgiu no tratamento analítico) faz com que, já como um primeiro trabalho de redução, “no lugar dos vários objetos irreais da libido”, apareça um único objeto [...], um objeto imaginário” – o analista – que incitará o analisante, com suas intervenções, “a chegar a uma nova decisão”, quando a tendência neurótica era a de “se comportar do mesmo modo como o havia feito no passado” (Freud, 1917, p. 530).

Eu aproximaria a redução sublinhada por Freud do analista como o único objeto imaginário que passa a atrair a libido do neurótico na neurose de transferência e o ato do analista, ressaltado por Lacan, de “fazer reinar [...] o objeto a” localizando-o “no lugar do semblante” para estar “na posição mais conveniente de fazer o que é justo fazer, quer dizer, interrogar como saber o que é próprio da verdade” (Lacan, 1972-1973, p. 88). Assim, trata-se de extrair, da verdade corporificada no sintoma, um saber. Ou seja: no sintoma, está em jogo também um saber que, alguns anos mais tarde, Lacan vai chamar de savoir y faire – saber lidar com o real da satisfação libidinal, com o real do gozo.

Há, no entanto, uma diferença crucial entre Freud e Lacan, no que concerne ao destino do sintoma no tratamento analítico. Já demonstrei que Freud o concebia como uma apropriação do neurótico com relação ao seu sintoma. Por mais que a solução freudiana para o problema-sintoma seja interessante porque não o elimina, já que implica uma mudança da posição do sujeito com seu sintoma, essa mudança que leva alguém a se apropriar de seu próprio sintoma é como as transformações almejadas por um personagem do El Gatopardo, a novela de Lampedusa: que tudo se mude para que tudo permaneça como é3. Nessa transformação almejada por Freud – da escravidão ao sintoma em uma dominação sobre o sintoma –, há algo que não muda na economia libidinal do sujeito neurótico e que nos leva, com Lacan, a assinalar o próprio real da satisfação sintomática como o que não é modificável e como o que um psicanalista deve se confrontar em um tratamento.

Nesse contexto, para concluir por que fazer-se senhor do próprio sintoma não é exatamente uma solução na prática dos Membros da Associação Mundial de Psicanálise e dos envolvidos nas varias atividades do Campo Freudiano, eu citaria um chiste recontado por Lacan em “Kant com Sade”: se, como sabemos, o capitalismo é definido pela “exploração do homem pelo homem”, então “o socialismo [...] é o contrário” (Lacan, 1966, p. 777). Portanto, se retorno à solução freudiana do problema-sintoma, ainda que ser senhor do sintoma pareça diferente de ser seu escravo, o que permanece imutável nessa mudança é a dimensão da dominação, seja ela exercida pelo sintoma, seja ela exercida pelo neurótico. Para confrontar-se de outra maneira com o que não se muda, Lacan inventou essa solução chamada “identificação ao sintoma”: nem senhor, nem escravo, trata-se muito mais de tomar o sintoma como um parceiro do sujeito em sua lida com o real impossível de suportar.

 

Depuração de um savoir y faire a propósito do sintoma

Xavier Esqué, em seu texto “Mais longe que o inconsciente”4, oferece-nos uma clara abordagem do que Lacan chamou de “identificação ao sintoma”. Não se trata de uma “identificação ao inconsciente”, e essa expressão me parece nomear muito bem o que Freud almejava quando concebia o tratamento analítico como um trajeto no qual o neurótico deveria se fazer senhor de seu sintoma. Apropriar-se de seu sintoma seria, então, equivalente a se identificar ao inconsciente, esse Grande Senhor do Sintoma.

Identificar-se a seu sintoma, no entanto, implica colocar-se mais longe do inconsciente sem que esse distanciamento seja confundido com uma transformação, algumas vezes pretendida pelo próprio Freud e, sobretudo, por vários pós-freudianos, do inconsciente em consciente, isto é, com um processo de “conscientização”. Na identificação ao sintoma, trata-se de estar mais além do inconsciente e Xavier Esqué nos lembra, então, a seguinte passagem de Lacan no Seminário 24: “o inconsciente é que [...] alguém fala sozinho [...] porque não diz nada mais do que uma única e mesma coisa”, mas, se alguém “decide dialogar com um psicanalista” (Lacan, 11/01/1977, p. 7), não está mais tão só com o gozo inconsciente e acaba dizendo alguma coisa diferente, surpreendente. Nessa diferença, nessa surpresa, a libido poderá fazer-se disponível ao ego que, na última aula do Seminário 23, Lacan nos ensina a conceber não mais somente como o outro imaginário com quem um sujeito se identifica, mas como um corpo vivo, surpreendentemente próximo e tomado pela substância-gozo (Lacan, 1975-76, p. 143-155). Nessa perspectiva, se, no final da análise, temos uma identificação do analisante a seu sintoma é porque, segundo nos esclarece Xavier Esqué, o sintoma “é aquilo que se conhece melhor” (Esqué, 2004) ou, como eu disse antes, é o parceiro do sujeito em sua lida com o real impossível de suportar, é aquilo que é o mais próximo inclusive quando lhe parece muito longe, muito desconhecido.

Dessa maneira, uma análise, em seu percurso, é a depuração do sintoma como parceiro do sujeito e, por isso, exige um longo tempo para que essa depuração se decante e se mostre efetivamente praticável, ainda que a localização de tal parceria possa produzir, como também o constatamos, efeitos terapêuticos rápidos na psicanálise (Miller, 2005).

Se Lacan nos fala, a propósito do sintoma no final de uma análise, de um savoir y faire, não se trata, como sublinha muito bem Esqué (2004), de “um fazer técnico”, de um “saber fazer com” porque, nesse contexto, não estaríamos longe do apropriar-se freudiano do sintoma. Trata-se, sobretudo, segundo Esqué, de “saber se desenrolar partindo não do conceito, mas do rolo”. Esse saber se desenrolar tendo o sintoma à mão, como se fosse uma ferramenta, é depurado com a redução dos objetos da economia libidinal do neurótico ao que Lacan chamou de “objeto a” e nos mostra como o sujeito, no que concerne ao gozo de sua vida, identifica-se a seu sintoma sem transformar-se em seu senhor e sem permanecer como seu escravo.

No final de seu testemunho pronunciado no IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), Xavier Esqué assinala-nos não somente o olhar como o objeto em torno do que sua economia libidinal girava, mas também como ele passa, com o final do seu tratamento analítico, a lidar com esse objeto de uma maneira muito diferente e que não deixa de surpreendê-lo. Ele sustenta que sua “análise não terminou com o olhar” e que “há olhares que, felizmente, ainda, lhe importam” (Esqué, 2005, p. 56). Assim, por exemplo, em sua relação com a psicanálise e com a Escola, “sempre existirá um olhar”, que vai dividi-lo, mas agora é um olhar que o causa, que não o ameaça, nem o persegue porque é “como o farol para o navegante na escuridão da noite”, servindo-lhe de “orientação” (Esqué, 2005, p. 56).

Essa comparação promovida por um final de análise me parece muito instigante: o olhar como um farol. Pode-se dizer que há, então, uma modulação do objeto a como olhar que, antes, era importante para Esqué a ponto de atraí-lo, mas também de ameaçá-lo e persegui-lo e, com o final do tratamento analítico, o olhar se apresenta como uma orientação. Nesse sentido, o olhar-farol é o que orienta não somente quanto aos pontos que devem ser seguidos, mas também quanto aos que devem ser evitados. A economia libidinal permanece girando em torno do olhar, mas não da mesma maneira, inclusive porque o final da análise permitiu a Esqué apreender a dimensão pulsional do olhar, uma vez que o compara a um farol que, como é próprio aos faróis, pisca, oscila, vacila e, neste mesmo movimento de hesitação (e por que não dizer, de “enrolação”, de “rolo”?), como no apólogo dos três prisioneiros (Lacan, 1945, p. 197-213) orienta o sujeito rumo a uma solução.

Dessa maneira, o inconsciente pode ser captado como equivocação, tropeço e, nesse contexto, Xavier Esqué nos oferece um exemplo excelente de como a identificação ao sintoma lhe permite surpreender-se com as armadilhas de seu inconsciente sem permanecer como seu escravo e sem se transformar em seu senhor. Após nos ter mostrado como, na sua vida, ele se fazia reduzir a um “melequento” (mocozo), um “menino grudado” (mocozo) no pai, vai evidenciar também um dos efeitos terapêuticos de sua análise: a cura da sua rinite e da sua sinusite. Uma vez que, nessa liberação de seus sofrimentos nasais, ele não se torna senhor de seu sintoma, ele nos diz o quanto se surpreendia, durante muito tempo, colocando ainda a mão no bolso onde, por um longo tempo da sua vida, encontrava essa espécie de “objeto transicional”5 no qual um lenço se havia convertido para ele. Aliás, identificado ao sintoma, ele passa a comprovar, não sem surpreender-se, que “sua vida era possível sem estar apegado a um lenço” (Esqué, 2005, p. 56), acrescentaria eu, extraído desse tecido que o inconsciente é como discurso pronunciado de modo afônico pelo Outro e repetido pelo sujeito à maneira de um ventríloquo.

Nessa lida que eu qualificaria de divertida com o vazio deixado pelo lenço ao qual não necessita mais recorrer, com o furo corporificado no seu bolso, eu localizaria, por fim, outro modo de Xavier Esqué ajudar-nos, com seu passe, a apreender o que Lacan assinalou como identificação ao sintoma e a evidenciar como, para nós – analistas da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e do Campo Freudiano – a terapêutica não é afastada do mais puro que uma análise consegue alcançar.

 

Notas:

*Conferência apresentada originalmente em espanhol, na Escola de Orientação Lacaniana (Seção Córdoba), no dia 08 de novembro de 2007, proveniente de uma pesquisa, realizada com o apoio do Programa de Pesquisa e Iniciação Científica da Universidade FUMEC (ProPIC-FUMEC). Tradução: Maria Luiza Caldas. Revisão: Sérgio Laia.

1.  Essa expressão foi utilizada por Lacan na aula de 16 de novembro de 1976, no Seminário inédito chamado L`insu que sait de l´une-bévue s´aile à moure. Essa aula encontra-se publicada em: Ornicar? Bulletin périodique du Champ freudien. Paris, n. 12/13 (spécial), p. 6.

2.  “Peças soltas” é o próprio título do Curso de Jacques-Alain Miller de 2004-2005, anunciado numa intervenção na Biblioteca da École de la Cause Freudienne em 15/11/2004 e começado em 17 de novembro desse mesmo ano. Essa intervenção e algumas aulas desse curso foram publicadas na Revue de La Cause freudienne (2005, 2006).

3.  A frase literal dessa novela, pronunciada por Falconeri é a seguinte: “si vogliamo che tutto rimanga como è, bisogna che tutto cambi” (“se queremos que tudo permaneça como está, é necessário que tudo se mude”) (LAMPEDUSA, 1955).

4.  Publicado em Ornicar? digital, n. 277, e divulgado em 04/03/2004 pela lista eletrônica AMP-UQBAR. Disponível na Internet, para os inscritos na lista AMP-UQBAR: <http://elistas.egrupos.net/lista/ampuqbar/archivo/indice/161/msg/1268/&actn=findMsg&text=ornicar>

5.  Como sabemos, o “objeto transicional” é uma criação de Winnicott, mas aqui eu utilizei essa expressão a partir de um comentário de Eric Laurent ao testemunho de Xavier Esqué (LAURENT, 2005, p. 58; WINNICOTT, 1951, p. 316-331).

 

 

Referências Bibliográficas  

Esqué, X. Mais longe que o inconsciente. In: Ornicar? Digital, n. 277, de 04/03/2004. Disponível na Internet, para os inscritos na lista AMP-UQBAR: <http://elistas.egrupos.net/lista/ampuqbar/archivo/indice/161/msg/1268/&actn=findMsg&text=ornicar>  

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Texto recebido em: 19/11/2007.

Aprovado em: 14/01/2008.