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Convidado
por José Vidal para falar na Seção Córdoba da Escola de
Orientação Lacaniana (EOL-Córdoba) sobre “a psicanálise
aplicada e suas conseqüências sobre a prática da psicanálise
pura”, escolhi o tema do sintoma por três motivos:
1)
Lacan
nos ensinou que a “psicanálise aplicada” (Lacan, 2001, p. 231) é sempre aplicada à terapêutica e a
terapêutica implica intervenções sobre o sintoma. Mais ainda,
o tratamento psicanalítico exige uma eficácia sobre o
sofrimento causado pelo sintoma que, nesse contexto, pode ser
tratado como um problema. Mas a clínica psicanalítica também
nos mostra que esse problema que causa sofrimento para um
sujeito tem sido para ele uma solução.
2)
O
que Lacan chamou de “psicanálise pura” (Id., p. 230-231, 234-235), muito diferente do que a Associação
Internacional de Psicanálise (IPA) consagrou como “psicanálise
didática”, não é uma experiência clínica alheia à terapêutica,
pois nós, lacanianos, não fazemos contra-indicações
especiais para os que decidem começar (ou inclusive prosseguir)
uma análise para se tornarem psicanalistas. Nós consideramos
cada um dos que nos procuram um sujeito que sofre, ainda que
esse sofredor não se apresente a nós exatamente nesses termos.
Por sua vez, as indicações e contra-indicações da IPA para
os candidatos a analistas são tão rígidas e ideais que me
parecem tomá-los muito mais como sujeitos já praticamente
curados (ou se preferem, depurados) de seus próprios
sofrimentos neuróticos, portanto não necessitariam tanto de
uma terapia. A psicanálise didática deveria ensinar-lhes a
conhecer seus próprios inconscientes para que não fossem mais
enganados, permitindo-lhes analisar os que não são
propriamente normais e que, por isso, deveriam ser objetos de
uma terapia psicanalítica. Na orientação lacaniana, ao contrário,
a “psicanálise pura” inclui a terapêutica e pode inclusive
ser considerada, se não um efeito terapêutico, certamente um
produto possível (mas não necessário) da terapia psicanalítica.
É a própria experiência da aplicação da psicanálise a uma
terapêutica que promoveria, segundo Lacan, uma depuração do
terapêutico e, nesse sentido, no final de um longo processo
terapêutico (e não como uma seleção inicial baseada em
indicações e contra indicações), a produção de um
analista.
3)
Ainda
que a produção de um analista se faça com a depuração do
terapêutico porque, quando um tratamento está chegando ao
final, a vida de um analisante pode apresentar-se tão boa e
tranqüila que o propósito terapêutico de uma psicanálise
parece haver perdido sua razão de ser, não podemos dizer que,
na orientação lacaniana, o sintoma é eliminado como um
problema, que é completamente solucionado. Lacan concebeu o
final de análise como “identificação ao sintoma”1.
Assim, por um lado, como vou tentar demonstrar, o que era um
problema se apresenta como uma solução, mas essa solução não
será mais a concepção freudiana do sintoma como “solução
de compromisso”, porque esse tipo de solução tenta mascarar
o problema real corporificado, nesse caso, pelo próprio
sintoma. Ao contrário, para Lacan, o desafio do final de uma análise
é o de tomar o sintoma como uma parte do real, uma “peça
solta” (como nos fez ver Jacques–Alain Miller2)
com a qual o falasser pode lidar porque, de uma maneira ou de
outra, é isso que ele faz em toda a sua vida. A psicanálise se
transforma, então, em um processo em que o analisante poderá
depurar seu próprio savoir
faire
com o sintoma, em uma terapêutica na qual o analisante poderá
se tornar analista na medida em que ele puder transpor, como nos
lembrou Eric Laurent, para uma “linguagem pública” a
“linguagem privada” de seu savoir
faire
com o sintoma (Laurent,
2005, p. 57-59).
O
sintoma e o objeto real da libido
Em
“A terapia analítica”, a última das Conferências
introdutórias sobre a psicanálise, Freud afirma:
Um
neurótico é incapaz de aproveitar a vida e de ser eficiente
– incapaz de aproveitar a vida porque sua libido não é
dirigida a nenhum objeto real, e incapaz de ser eficiente porque
é obrigado a dispensar uma grande quantidade de sua valiosa
energia para manter sua libido reprimida e para repelir seus
sobressaltos (Freud,
1917, p. 529).
Segundo
Freud, a libido do neurótico não está relacionada com nenhum
objeto real devido a seu conflito com o eu desse sujeito, porque
o eu não tem mais essa energia sexual a sua disposição.
Sabemos que alguns analistas pós-freudianos preferiram
transformar o tratamento analítico em uma reeducação para a
realidade, em um fortalecimento do eu, quando suas experiências
clínicas os fizeram se confrontar com o distanciamento e o
conflito entre a libido e o eu, com esse distanciamento do
objeto real na economia libidinal do neurótico. De minha parte,
e graças ao ensino de Lacan, me pergunto se não poderíamos
ler, nessa menção freudiana ao “objeto real da libido”, um
vestígio antecipado do “objeto a”
e, nesse viés, o tratamento analítico não poderá ser
confundido com uma adaptação educativa à realidade. Ele é,
como nos formulou Jacques-Alain Miller (1998), um trabalho de
redução que permitirá ao sujeito localizar seus envolvimentos
com o “objeto real da libido” que – também de um modo
muito lacaniano – Freud diferencia dos “objetos irreais da
libido” (1917, p. 530) investidos pelo neurótico ao longo de
sua vida e do “objeto imaginário” (expressão freudiana
também!) encontrado no analista. Também me pergunto se deixar
a libido de novo disponível ao eu – proposta por Freud como
um resultado do tratamento analítico – não pode ser
considerada de uma maneira diferente de um fortalecimento do eu
ou, inclusive, de uma inflação narcisista e, nessa direção,
aproximaria essa nova disposição da libido ao eu e o que
Lacan, na última aula do Seminário
23, tematiza, a partir de James Joyce, como o ego em sua função
de amarrar, num mesmo nó, os registros do real, do simbólico e
do imaginário (Lacan, 1975-76, p. 143-155) - voltarei a esse ponto ao final,
a partir de um comentário sobre um testemunho de passe.
Se
a energia sexual do neurótico não está relacionada com nenhum
objeto real, se o investimento neurótico é sempre em outra
coisa diferente daquela que ele supõe investir, a pergunta de
Freud é: Onde se encontra, então, a libido do neurótico? Sua
resposta é que essa libido “está ligada aos sintomas”,
pois eles proporcionam ao neurótico “uma satisfação
substitutiva” (Freud,
1917, p. 529-530). Dessa maneira, e se considerarmos a
incapacidade do neurótico de extrair gozo de sua própria vida,
a economia libidinal do neurótico pode ser escrita como:
Sintomas
(satisfação substitutiva)
<
gozo da vida
Satisfação real
Freud
nos legou uma concepção do sintoma envolvido com uma satisfação
inconsciente: se há uma tal satisfação, é verdadeiramente
difícil para o neurótico livrar-se de seu próprio sintoma, a
relação do neurótico com seu sintoma é sempre aquela de uma
tensão, e de uma tensão paradoxal, porque o sintoma é uma
intenção de solucionar-lhe um conflito. Assim, o sintoma é
uma solução porque é a resposta a um problema, a um obstáculo
que a satisfação do neurótico encontrou. Trata-se da famosa
concepção freudiana do sintoma como “solução de
compromisso”. Uma vez que sabemos que Freud foi um leitor de
Goethe, não me parece improvável definir sua concepção de
sintoma como uma “solução fáustica”, ou seja, o sintoma
é um pacto de um sujeito com uma força “demoníaca” e,
como é comum nesse tipo de situação, no começo, não há
grandes sofrimentos, a vida é mais tranqüila com a ajuda do
demônio... até que ele venha exigir sua parte no pacto, até
que ele cobre do sujeito neurótico seu próprio ser, sua alma
– neste ponto, da cobrança desse demônio descoberto por
Freud como supereu, a vida do neurótico se torna realmente um
inferno.
Ainda
que o sintoma seja, portanto, “solução de compromisso”,
“satisfação substitutiva”, ele não deixa de ser
potencialmente um problema: o termo “substituto” nos indica
uma nostalgia do original, uma sensação de que há outra coisa
melhor que a satisfação promovida pelo sintoma e o termo
“compromisso” – em sua significação de “pacto” – não
deixa de implicar a possibilidade de um arrependimento pela
obrigação contraída. Então, há uma incapacidade do neurótico
de aproveitar sua vida, porque a energia libidinal gasta para
manter em movimento a satisfação substitutiva do sintoma
torna-se maior que a satisfação extraída dessa manutenção.
Assim, o início de um tratamento analítico é, muitas vezes,
marcado pelo encontro de um sujeito com o que, a partir de
Freud, chamaria de “desgaste libidinal do sintoma”: a máquina-sintoma
não funciona mais tão bem como o que lhe havia sido prometido,
pactuado, o demônio irrompe para cobrar do sujeito o próprio
objeto de sua satisfação.
Diferente
de uma perspectiva médica ou inclusive de uma série de orientações
no campo da psicologia e no campo da psiquiatria, o sintoma em
psicanálise, embora nos seja apresentado como um problema, não
é tratado como algo que deva ser extirpado, silenciado. Nesse
sentido, mesmo em Freud me parece já se poder encontrar uma
concepção – a que Lacan nos formalizou e aperfeiçoou muito
mais – do sintoma como uma solução diferente da “solução
de compromisso”, do sintoma como uma solução da qual o
sujeito não consegue propriamente se livrar. E será no
tratamento analítico que o sujeito poderá, segundo Freud,
encontrar uma solução para a solução de compromisso em jogo
em seu próprio sintoma.
Sintoma
e dominação
Na
obra de Freud, eu diria que a solução da solução sintomática
tem todo um traço das Luzes, quer dizer, do movimento
iluminista. Assim, da conferência sobre a terapia analítica,
extraio a seguinte citação: “devemos nos tornar senhores dos
sintomas e solucioná-los” (1917, p. 530). Em outras palavras:
a solução freudiana do problema-sintoma, a solução para a
solução problemática que um sintoma acaba sendo para um
sujeito é que esse sujeito possa se transformar, com o
tratamento analítico, em um “senhor do sintoma”. Se a
finalidade freudiana do tratamento analítico é o sujeito se
assenhorear do próprio sintoma, então poderemos conceber que,
antes e inclusive ao longo da sua análise, o neurótico é um
escravo do sintoma e sua economia libidinal é desgastada,
porque ele acaba perdendo muita satisfação quando investe os
objetos “irreais ou imaginários” da libido como se fossem o
“objeto real”. O percurso desse tratamento então seria:
O
sujeito como escravo do sintoma
O sujeito como senhor do sintoma
Objetos
irreais ou imaginários da libido (a’)
Objeto real
da libido (a)
É
interessante sublinhar que, segundo Freud, a solução terapêutica
para o sintoma não é sua eliminação, mas uma troca, se assim
posso dizer, utilizando uma terminologia lacaniana, da posição
do sujeito com relação ao seu sintoma. Assim, para Freud,
trata-se de tornar-se senhor do sintoma, saber separar o objeto
real dos imaginários ou irreais que atraem sua libido.
Como
Freud teoriza essa passagem? Extraio uma nova citação da mesma
Conferência introdutória sobre a terapia analítica: para
modificar a dominação do sintoma sobre o neurótico, devemos
“voltar às origens” dos sintomas,
reconstituir
o conflito de onde eles surgiram e, com a ajuda das forças
motrizes que, no passado, não estavam disponíveis ao paciente,
deveremos conduzir o conflito [corporificado pelo próprio
sintoma] rumo a um estado diferente, em que a libido será de
novo colocada a serviço do eu e não mais a serviço da satisfação
substitutiva inconsciente corporificada também pelo sintoma (Freud,
1917, p. 530).
Entre
essas “forças motrizes” não disponíveis ao analisante em
seu passado, Freud nos autoriza a localizar o próprio analista,
porque a neurose de transferência (doença artificial que
surgiu no tratamento analítico) faz com que, já como um
primeiro trabalho de redução, “no lugar dos vários objetos
irreais da libido”, apareça um único objeto [...], um objeto
imaginário” – o analista – que incitará o analisante,
com suas intervenções, “a chegar a uma nova decisão”,
quando a tendência neurótica era a de “se comportar do mesmo
modo como o havia feito no passado” (Freud,
1917, p. 530).
Eu
aproximaria a redução sublinhada por Freud do analista como o
único objeto imaginário que passa a atrair a libido do neurótico
na neurose de transferência e o ato do analista, ressaltado por
Lacan, de “fazer reinar [...] o objeto a”
localizando-o “no lugar do semblante” para estar “na posição
mais conveniente de fazer o que é justo fazer, quer dizer,
interrogar como saber o que é próprio da verdade” (Lacan,
1972-1973, p. 88). Assim, trata-se de extrair, da verdade
corporificada no sintoma, um saber. Ou seja: no sintoma, está
em jogo também um saber que, alguns anos mais tarde, Lacan vai
chamar de savoir y faire
– saber lidar com o real da satisfação libidinal, com o real
do gozo.
Há,
no entanto, uma diferença crucial entre Freud e Lacan, no que
concerne ao destino do sintoma no tratamento analítico. Já
demonstrei que Freud o concebia como uma apropriação do neurótico
com relação ao seu sintoma. Por mais que a solução freudiana
para o problema-sintoma seja interessante porque não o elimina,
já que implica uma mudança da posição do sujeito com seu
sintoma, essa mudança que leva alguém a se apropriar de seu próprio
sintoma é como as transformações almejadas por um personagem
do El Gatopardo, a
novela de Lampedusa: que tudo se mude para que tudo permaneça
como é3. Nessa transformação almejada por Freud
– da escravidão ao sintoma em uma dominação sobre o sintoma
–, há algo que não muda na economia libidinal do sujeito
neurótico e que nos leva, com Lacan, a assinalar o próprio
real da satisfação sintomática como o que não é modificável
e como o que um psicanalista deve se confrontar em um
tratamento.
Nesse
contexto, para concluir por que fazer-se senhor do próprio
sintoma não é exatamente uma solução na prática dos Membros
da Associação Mundial de Psicanálise e dos envolvidos nas
varias atividades do Campo Freudiano, eu citaria um chiste
recontado por Lacan em “Kant com Sade”: se, como sabemos, o
capitalismo é definido pela “exploração do homem pelo
homem”, então “o socialismo [...] é o contrário” (Lacan,
1966, p. 777). Portanto, se retorno à solução freudiana do
problema-sintoma, ainda que ser senhor do sintoma pareça
diferente de ser seu escravo, o que permanece imutável nessa
mudança é a dimensão da dominação, seja ela exercida pelo
sintoma, seja ela exercida pelo neurótico. Para confrontar-se
de outra maneira com o que não se muda, Lacan inventou essa
solução chamada “identificação ao sintoma”: nem senhor,
nem escravo, trata-se muito mais de tomar o sintoma como um parceiro
do sujeito em sua lida com o real impossível de suportar.
Depuração
de um savoir y faire a propósito do sintoma
Xavier
Esqué, em seu texto “Mais longe que o inconsciente”4,
oferece-nos uma clara abordagem do que Lacan chamou de
“identificação ao sintoma”. Não se trata de uma
“identificação ao inconsciente”, e essa expressão me
parece nomear muito bem o que Freud almejava quando concebia o
tratamento analítico como um trajeto no qual o neurótico
deveria se fazer senhor de seu sintoma. Apropriar-se de seu
sintoma seria, então, equivalente a se identificar ao
inconsciente, esse Grande Senhor do Sintoma.
Identificar-se
a seu sintoma, no entanto, implica colocar-se mais longe do
inconsciente sem que esse distanciamento seja confundido com uma
transformação, algumas vezes pretendida pelo próprio Freud e,
sobretudo, por vários pós-freudianos, do inconsciente em
consciente, isto é, com um processo de “conscientização”.
Na identificação ao sintoma, trata-se de estar mais além do
inconsciente e Xavier Esqué nos lembra, então, a seguinte
passagem de Lacan no Seminário
24: “o inconsciente é que [...] alguém fala sozinho
[...] porque não diz nada mais do que uma única e mesma
coisa”, mas, se alguém “decide dialogar com um
psicanalista” (Lacan,
11/01/1977, p. 7), não está mais tão só com o gozo
inconsciente e acaba dizendo alguma coisa diferente,
surpreendente. Nessa diferença, nessa surpresa, a libido poderá
fazer-se disponível ao ego que, na última aula do Seminário
23, Lacan nos ensina a conceber não mais somente como o
outro imaginário com quem um sujeito se identifica, mas como um
corpo vivo, surpreendentemente próximo e tomado pela substância-gozo
(Lacan, 1975-76, p.
143-155). Nessa perspectiva, se, no final da análise, temos uma
identificação do analisante a seu sintoma é porque, segundo
nos esclarece Xavier Esqué, o sintoma “é aquilo que se
conhece melhor” (Esqué,
2004) ou, como eu disse antes, é o parceiro
do sujeito em sua lida com o real impossível de suportar, é
aquilo que é o mais próximo inclusive quando lhe parece muito
longe, muito desconhecido.
Dessa
maneira, uma análise, em seu percurso, é a depuração do
sintoma como parceiro
do sujeito e, por isso, exige um longo tempo para que essa
depuração se decante e se mostre efetivamente praticável,
ainda que a localização de tal parceria
possa produzir, como também o constatamos, efeitos terapêuticos
rápidos na psicanálise (Miller,
2005).
Se
Lacan nos fala, a propósito do sintoma no final de uma análise,
de um savoir y faire,
não se trata, como sublinha muito bem Esqué (2004), de “um
fazer técnico”, de um “saber fazer com” porque, nesse
contexto, não estaríamos longe do apropriar-se freudiano do
sintoma. Trata-se, sobretudo, segundo Esqué, de “saber se
desenrolar partindo não do conceito, mas do rolo”. Esse saber
se desenrolar tendo o sintoma à mão, como se fosse uma
ferramenta, é depurado com a redução dos objetos da economia
libidinal do neurótico ao que Lacan chamou de “objeto a”
e nos mostra como o sujeito, no que concerne ao gozo de sua
vida, identifica-se a seu sintoma sem transformar-se em seu
senhor e sem permanecer como seu escravo.
No
final de seu testemunho pronunciado no IV Congresso da Associação
Mundial de Psicanálise (AMP), Xavier Esqué assinala-nos não
somente o olhar como o objeto em torno do que sua economia
libidinal girava, mas também como ele passa, com o final do seu
tratamento analítico, a lidar com esse objeto de uma maneira
muito diferente e que não deixa de surpreendê-lo. Ele sustenta
que sua “análise não terminou com o olhar” e que “há
olhares que, felizmente, ainda, lhe importam” (Esqué,
2005, p. 56). Assim, por exemplo, em sua relação com a psicanálise
e com a Escola, “sempre existirá um olhar”, que vai
dividi-lo, mas agora é um olhar que o causa, que não o ameaça,
nem o persegue porque é “como o farol para o navegante na
escuridão da noite”, servindo-lhe de “orientação” (Esqué,
2005, p. 56).
Essa
comparação promovida por um final de análise me parece muito
instigante: o olhar como um farol. Pode-se dizer que há, então,
uma modulação do objeto a como olhar que, antes, era importante para Esqué a ponto de atraí-lo,
mas também de ameaçá-lo e persegui-lo e, com o final do
tratamento analítico, o olhar se apresenta como uma orientação.
Nesse sentido, o olhar-farol é o que orienta não somente
quanto aos pontos que devem ser seguidos, mas também quanto aos
que devem ser evitados. A economia libidinal permanece girando
em torno do olhar, mas não da mesma maneira, inclusive porque o
final da análise permitiu a Esqué apreender a dimensão
pulsional do olhar, uma vez que o compara a um farol que, como
é próprio aos faróis, pisca, oscila, vacila e, neste mesmo
movimento de hesitação (e por que não dizer, de “enrolação”,
de “rolo”?), como no apólogo dos três prisioneiros (Lacan, 1945, p. 197-213) orienta o sujeito rumo a uma solução.
Dessa
maneira, o inconsciente pode ser captado como equivocação,
tropeço e, nesse contexto, Xavier Esqué nos oferece um exemplo
excelente de como a identificação ao sintoma lhe permite
surpreender-se com as armadilhas de seu inconsciente sem
permanecer como seu escravo e sem se transformar em seu senhor.
Após nos ter mostrado como, na sua vida, ele se fazia reduzir a
um “melequento” (mocozo), um “menino grudado” (mocozo)
no pai, vai evidenciar também um dos efeitos terapêuticos de
sua análise: a cura da sua rinite e da sua sinusite. Uma vez
que, nessa liberação de seus sofrimentos nasais, ele não se
torna senhor de seu sintoma, ele nos diz o quanto se
surpreendia, durante muito tempo, colocando ainda a mão no
bolso onde, por um longo tempo da sua vida, encontrava essa espécie
de “objeto transicional”5 no qual um lenço se
havia convertido para ele. Aliás, identificado ao sintoma, ele
passa a comprovar, não sem surpreender-se, que “sua vida era
possível sem estar apegado a um lenço” (Esqué, 2005, p. 56), acrescentaria eu, extraído desse
tecido que o inconsciente é como discurso pronunciado de modo
afônico pelo Outro e repetido pelo sujeito à maneira de um
ventríloquo.
Nessa
lida que eu qualificaria de divertida com o vazio deixado pelo
lenço ao qual não necessita mais recorrer, com o furo
corporificado no seu bolso, eu localizaria, por fim, outro modo
de Xavier Esqué ajudar-nos, com seu passe, a apreender o que
Lacan assinalou como identificação ao sintoma e a evidenciar
como, para nós – analistas da Associação Mundial de Psicanálise
(AMP) e do Campo Freudiano – a terapêutica não é afastada
do mais puro que uma análise consegue alcançar.
Notas:
*Conferência
apresentada originalmente em espanhol, na Escola de Orientação
Lacaniana (Seção Córdoba), no dia 08 de novembro de 2007,
proveniente de uma pesquisa, realizada com o apoio do Programa
de Pesquisa e Iniciação Científica da Universidade FUMEC (ProPIC-FUMEC).
Tradução: Maria
Luiza Caldas. Revisão:
Sérgio Laia.
1.
Essa expressão foi utilizada por Lacan na aula de
16 de novembro de 1976, no Seminário inédito chamado L`insu
que sait de l´une-bévue s´aile à moure. Essa aula
encontra-se publicada em: Ornicar?
Bulletin périodique du Champ freudien. Paris, n. 12/13 (spécial),
p. 6.
2.
“Peças soltas” é o próprio título do Curso
de Jacques-Alain Miller de 2004-2005, anunciado numa intervenção
na Biblioteca da École de la Cause Freudienne em 15/11/2004 e
começado em 17 de novembro desse mesmo ano. Essa intervenção
e algumas aulas desse curso foram publicadas na Revue de La Cause freudienne (2005, 2006).
3.
A frase literal dessa novela, pronunciada por
Falconeri é a seguinte: “si vogliamo che tutto rimanga como
è, bisogna che tutto cambi” (“se queremos que tudo permaneça
como está, é necessário que tudo se mude”) (LAMPEDUSA,
1955).
4.
Publicado em Ornicar?
digital, n. 277, e divulgado em 04/03/2004 pela lista eletrônica
AMP-UQBAR. Disponível na Internet, para os inscritos na lista
AMP-UQBAR: <http://elistas.egrupos.net/lista/ampuqbar/archivo/indice/161/msg/1268/&actn=findMsg&text=ornicar>
5.
Como sabemos, o “objeto transicional” é uma
criação de Winnicott, mas aqui eu utilizei essa expressão a
partir de um comentário de Eric Laurent ao testemunho de Xavier
Esqué (LAURENT, 2005, p. 58; WINNICOTT, 1951, p. 316-331).
Referências
Bibliográficas
Esqué,
X. Mais longe que o inconsciente. In:
Ornicar? Digital, n. 277, de 04/03/2004. Disponível na
Internet, para os inscritos na lista AMP-UQBAR: <http://elistas.egrupos.net/lista/ampuqbar/archivo/indice/161/msg/1268/&actn=findMsg&text=ornicar>
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Texto
recebido em: 19/11/2007.
Aprovado
em: 14/01/2008.
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