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Jacques
Munier –
Os comportamentos de risco dos adolescentes são habitualmente
abordados sob o ângulo sociológico, se nos referirmos
particularmente aos trabalhos de David Lebreton, mas muito pouco
a partir da dialética sutil da construção da personalidade.
Neste período, por natureza de grande fragilidade, a
auto-afirmação, sobretudo num meio social hostil, onde há
alguns anos acontecem explosões regulares de violência e uma
taxa elevada, o que parece ser inevitável, de suicídio de
jovens deveria, contudo, incitar-nos a pousar o olhar sobre
estas realidades menos visíveis, mais íntimas e no entanto,
decisivas na formação do sujeito. Este é o campo de investigação
de vocês enquanto psicanalistas.
Philippe
Lacadée - A
adolescência é efetivamente um momento difícil, na medida em
que o sujeito deve separar-se, como dizia Freud (1973. p. 157),
da autoridade parental, o que é ao mesmo tempo o momento mais
necessário, mas também, o mais doloroso de seu
desenvolvimento.
Por
outro lado, mais do que de crise da adolescência, nós
preferimos falar “da mais delicada das transições”,
fazendo referência ao poeta Victor Hugo. A metamorfose da
puberdade (Freud,
1987. p. 141) é um momento de transição que não vai se dar,
talvez, sem correr riscos. Mas, Freud já se
interrogava sobre o que seria uma vida que não
comportasse correr riscos (Id.,
1975).
Alguns
adolescentes se apóiam, sem o saber, neste formidável sintagma
do poeta Arthur Rimbaud (1991. p. 422), “a verdadeira vida”,
e o que, em seu nome, os impulsiona a correr riscos freqüentemente
vitais, sem nenhuma consciência do perigo iminente. Os
comportamentos de risco interessam muito aos sociólogos,
particularmente, a David Lebreton (2002), que apresenta esses
comportamentos sob a forma de uma nova modalidade de existência
moderna. Ele não fala de novos sintomas porque não há aqui,
para ele, uma patologia, mas antes uma nova abordagem da existência
e do que pode ser difícil nesta época de transição da
adolescência. Com esta noção de comportamento de risco,
podemos adicionar muitas coisas mais ou menos obscuras.
Preferimos chamá-los de novos sintomas, sinais de uma nova clínica,
que têm a ver com uma certa prática de ruptura, um
curto-circuito da relação ao Outro. Mas, paradoxalmente, estes
comportamentos de risco mantêm um certo endereçamento ao
Outro. De que Outro se trata? É o que estamos tentando
decifrar. Como e porque alguns adolescentes decidem prescindir
do Outro, e podem até mesmo recusar o Outro em que, enquanto
crianças, se apoiaram para, de um só golpe, colocarem suas
vidas em jogo, sua “verdadeira vida”. Esta vida autêntica,
aquela que justamente os jovens do subúrbio atribuem tanta
importância, e que pode conduzi-los ao pior, ou também a uma
solução, às vezes com impasses, para ter acesso a alguma
coisa Outra. Então, quem é este Outro? Permanece um mistério
a ser esclarecido.
J.M
– A lista destes comportamentos de risco é, infelizmente,
muito conhecida: a toxicomania, o alcoolismo, a velocidade nas
estradas, as tentativas de suicídio, os transtornos
alimentares, as fugas, e depois certamente os subúrbios.
Parece-me que essas explosões de violência estão se tornando
quase endêmicas.
P.L.
– Baseando-nos na clínica analítica para decifrar uma parte
não negligenciável destes comportamentos ditos de violência,
o que chamamos de provocações linguageiras, que são por um
lado inerentes a este momento de transição da adolescência.
Façamo-nos a pergunta buscando saber por que, num dado momento,
o adolescente não pode não fazer de outra forma senão
deixar-se capturar por esta atração de um ato a ser efetuado,
como se ele fosse mais autêntico do que as palavras. Podemos
fazer referência à “Carta 46”, endereçada por Freud a
Fliess: “O excedente sexual impede a tradução [em imagens
verbais]” (1956. p. 145). Dito de outra forma, todo excedente
de sensações, de tensões impede uma tradução em
significantes, é o que diríamos com Lacan, onde Freud fala de
imagens verbais.
Dessa
forma, pode-se melhor apreender como, em alguns momentos, certos
adolescentes podem confrontar-se com algo de novo: uma sensação,
uma tensão que surge justamente nesta época de delicada transição,
caracterizada pelo fato de que eles não possuem palavras que
possam traduzir o que lhes acontece no corpo ou em seus
pensamentos. É daí que pode surgir a provocação linguageira,
ou uma certa violência que se traduz através de um ato. Não
se esqueçam de que provocação vem do latim provocare, que quer dizer chamar para lado de fora. A questão
torna-se, desde então, a de saber que tipo de modalidade de
resposta iremos oferecer a estes jovens que talvez utilizem esta
cena, esta encenação, para poder dizer alguma coisa, quer seja
no privado, pelo viés de um sintoma, ou no espaço público,
através de uma conduta irruptiva, por vezes um tanto dramática.
J.M
– Eis aqui justamente, um extrato retirado da obra de Freud,
Resultados, idéias, problemas, especialmente com a resposta
dada ao advogado de defesa de um pedagogo que não queria deixar
pesar sobre a escola uma acusação injustificada, instituição
que lhe era muito cara: “Se os suicidas da juventude não
dizem respeito somente aos secundaristas, mas igualmente aos
aprendizes, entre outros, esta circunstância em si não
inocenta o liceu: talvez seja exigida a interpretação de que o
liceu serve aos seus egressos de substituto dos traumatismos que
outros adolescentes encontram em outras condições de vida. Porém,
o liceu deve fazer mais do que não incentivar os jovens ao suicídio;
deve propiciar-lhes o desejo de viver e oferecer-lhes amparo e
ponto de apoio em uma época de suas vidas onde eles são
afetados pelas condições de seu desenvolvimento, afrouxar a
sua relação na casa parental e com a sua família. Parece-me
incontestável que a escola não o faça, e que em muitas situações
ela fique aquém da sua tarefa: oferecer um substituto para a
família é despertar o interesse pela vida em outro lugar, no
mundo. Aqui não é o lugar para se criticar o liceu em sua
organização atual. Talvez me seja permitido destacar, contudo,
um só fator. A escola não
deve esquecer-se jamais de que tem se ocupar de indivíduos
ainda imaturos, aos quais não pode ser recusado o direito de
demorar-se em certas fases, mesmo desagradáveis de
desenvolvimento. Ela não deve reivindicar por sua conta, a
inexorabilidade da vida, ela não deve querer ser mais do que um
jogo de vida.” (Freud,
1991, p. 131-132) Bela reflexão de Freud sobre a escola “não
deve jamais esquecer que ela deve se ocupar de indivíduos ainda
imaturos”. Eu penso que os professores estão conscientes. E
vocês que trabalham num ambiente escolar?
P.L
– Este texto de Freud é surpreendentemente atual. A questão
da violência na escola, sobretudo no colégio, ocupa hoje em
dia, mais do que nunca, uma posição de destaque. Freud é
muito claro a este respeito: a escola: “não deve querer ser
mais do que um jogo de vida”. Isto não quer dizer que seja
necessário jogar na escola e nem por outro lado, que a
aprendizagem deve ser um jogo. Não, trata-se, para ele, de que
a escola não se esqueça de que deve introduzir o jogo na vida
do espírito ao sujeito, para poder desempenhar o seu papel
neste momento tão delicado, onde o adolescente deve se separar
daquilo que até então ele acreditava, daquilo sobre o que ele
apoiou-se para construir uma identidade. Quer dizer, separar-se
de sua família, quando, aliás, existe uma. Da forma como os
pais o desejaram e o acolheram, mas, sobretudo, da forma que o
discurso se estabeleceu ao longo de sua educação, a fim de
permitir-lhe alcançar sua dimensão subjetiva e uma certa
imagem de si, onde ele pôde perceber o valor que tinha para
seus pais. Num dado momento, “tarefa necessária, porém
dolorosa”, segundo Freud, ele deve separar-se disto, e os
professores têm um papel decisivo a desempenhar oferecendo-se
como substitutos dos pais. É nos professores que muito freqüentemente
as crianças percebem e calculam um ponto de onde se vêem
diferentes do que eram como crianças. A escola pode introduzir
este “jogo de vida”, de que nos fala Freud. Como grande clínico,
Freud relembra que o sujeito tem o direito de demorar-se nesta
fase desagradável do desenvolvimento, porque no fundo do ser
humano existe uma região, que Lacan chamou de gozo, que faz com
que às vezes o sujeito não queira necessariamente o seu próprio
bem. Ele pode também querer, conscientemente ou não,
prejudicar-se. A clínica do ato suicida é, sem dúvida, aquela
que ilustra melhor este paradoxo. Existiria para todo sujeito,
por um lado, uma tensão entre o ideal do eu, que lhe diria como
fazer com a sua vida e, por outro lado, esta região obscura que
habita profundamente o ser e que diz respeito à sua parte
pulsional. Esta mancha negra no coração do ser humano diz
respeito a esta parte de sofrimento bizarro que faz, justamente,
uma mancha em sua existência, e que é para a adolescência,
surpreendentemente atual porque esta mancha corresponde a alguma
coisa nova, que aparece com freqüência e de forma contingente.
O adolescente é parasitado pelas suas pulsões sexuais, que
podem ocupar toda a cena de sua vida, e das quais ele pode ter
vergonha. É isto que vem a ser a mancha negra no quadro de sua
infância e, empurrando-o ao exílio, ou a um certo outro lugar
que conduziu Rimbaud a equivocar-se através das línguas, logo
ele, que dizia querer encontrar uma
língua. Eis em nome de que Freud reconhece o direito do jovem
de demorar-se nesta fase desagradável do desenvolvimento. Vocês
faziam referência à minha implicação nos meios sociais
escolares: é uma implicação interdisciplinar no Centro
Interdisciplinar sobre a Criança, O CIEN, criado com
Jacques-Alain Miller e Judith Miller em 1996.2 O CIEN
permite que nós possamos trabalhar com parceiros de outras
disciplinas. Não estamos mais forçosamente na época, como
dizia Freud muito bem do mal estar na civilização, mas,
sobretudo, numa época onde existem impasses. Parceiros de
outras disciplinas se dizem igualmente confrontados por certos
“comportamentos” dos adolescentes que colocam suas ações
em xeque e mate: provocações linguageiras, gestos deslocados.
Porém,
a clínica do ato, tal como Lacan nos ensinou, particularmente
em seu seminário sobre a angústia (Lacan,
2004. p. 135.) onde ele distinguiu o acting
out e a passagem ao ato, permite a decifração do que está
em jogo neste momento específico. Lacan serve-se desta
diferenciação para ler e interpretar o que estava realmente em
jogo no caso de uma jovem paciente de Freud, uma adolescente
homossexual, que se fazia notar pelas ruas de Viena na companhia
de uma dama de má reputação. Para Freud, este estilo de
comportamento estava destinado a alertar o seu pai. Esta cena,
organizada por ela, talvez, sem o saber, foi concebida para
efetivamente ser endereçada a este pai como mensagem indizível.
Lacan lê este comportamento provocativo como um acting
out. Em contrapartida, ele interpreta como uma passagem ao
ato o suicídio da jovem que se segue ao olhar de desaprovação
do pai, quando ele cruza com ela nas ruas de Viena.
Imediatamente após este encontro, ela salta de uma ponte. Lacan
faz uma diferença entre a passagem ao ato, que é uma retirada
da cena do mundo, e o acting
out, que se organiza, e talvez demanda que se possa dizer
alguma coisa à criança ou ao adolescente.
Nas
trocas interdisciplinares que nós temos - particularmente no
colégio Pierre Sémard em Bobigny, onde trabalhamos com os
professores – nós os ajudamos, quando utilizamos os conceitos
provenientes da teoria psicanalítica, a tentar fazer diferenciações
em “comportamentos” provocativos de um adolescente. Eu
coloco aspas em “comportamento”, porque para nós, não se
trata forçosamente de uma desordem do comportamento que seria
produzido sem que ele tenha, como sujeito, a possibilidade de
dizer alguma coisa. Os comportamentos são para serem lidos como
um certo tipo de pantomima, como um texto que a criança agiria
sem necessariamente saber. O professor pode ajudá-lo um pouco
ao decifrar a parte de sofrimento que está incluída no
comportamento, que o agita sem ele saber, este “sofrimento
bizarro” a que se referia Rimbaud (1991, p. 185).
J.M.
– Você citou Lacan, eu lhe proponho de fazer um retorno a
Freud com esses discursos recentes de Danielle Rapoport:
Nós
acolhemos um certo número de adolescentes que fizeram
tentativas de suicídio. Freqüentemente, a problemática
subjacente à tentativa de suicídio é uma tentativa de separação
mãe-filha, das relações de uma grande proximidade; a
adolescente na ocasião de um conflito tenta finalmente se
separar da mãe. A questão que vai se colocar vai ser de
reintroduzir uma triangulação, e então a questão edipiana é
bastante presente no
nosso espírito e nós somos freqüentemente levados a convocar,
se não o pai real, de todo modo a figura paterna que vai ajudar
neste processo de separação. E lá, Freud é presente
cotidianamente, podemos dizer: isso tudo é Freud, o Édipo, o
complexo de Édipo, as relações mãe-filha, pai-mãe-filha, mãe-filho,
mesmo que haja menos garotos que fazem tentativas de suicídio,
isso tudo é Freud.
Em
maio de 2006, D. Rapoport, psicanalista, insiste, na ocasião do
centésimo qüinquagésimo aniversário do nascimento de Freud,
no complexo de Édipo. Vivemos numa época onde constatamos um
certo declínio da autoridade paterna que intervém com certeza
na vida psíquica dos jovens.
P.L.
– D. Rapoport utiliza uma palavra certamente importante –
separação - a dificuldade de separação entre a mãe e a
filha. Seguindo suas palavras, podemos pensar que poderia haver
um suicídio por separação, ou
para uma separação se produzir. Mas do que se trata de se
separar a partir deste ato? Eis que se trata, para a jovem que
passa ao ato através da tentativa de suicídio – que de todo
modo sempre se deve levar a sério – de se separar da sua mãe,
ou do pensamento que ela tem da sua mãe, ou do que ela pensa
ser para a sua mãe? Não procura ela, assim, se separar do que
ocupa a sua cabeça e de encontrar um outro pensamento, até
mesmo um outro significante que lhe permitiria parecer diferente
para ela mesma? Não se trataria nesse caso, para além deste
ato, de encontrar uma tradução possível de seu sofrimento
através de outra palavra que lhe permita, de repente, se
perceber diferente, esse famoso “ponto de onde” ela se veria
diferente, e que Lacan desenvolvia no seu Seminário “Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise”? (1973, p. 132
e 211). Este “ponto de onde” é com certeza importante no
momento do declínio do Édipo, já que o adolescente deve se
apoiar na função do pai, que é uma função de ideal do eu.
É como se o adolescente utilizasse este “ponto de onde” ele
se veria amável e digno de ser amado para se sustentar na existência
de outra maneira. Este ponto, utilizado a partir da função do
ideal do eu, faz referência ao terceiro tempo do Édipo, onde o
mais importante não é necessariamente o pai que diz não.
Jacques-Alain Miller (2000), como Lacan no seu Seminário “As
formações do inconsciente”, tinha indicado a importância do
pai que diz sim, ao novo que surge na criança.
Assim,
o adolescente traz em si alguma coisa de novo que Rimbaud (1991,
p. 440) chamava
nossos sofrimentos modernos. Aliás, o adolescente é sempre
moderno; ele é moderno em relação às pulsões que agem nele,
que se atualizam no que Freud nomeava “as metamorfoses da
puberdade”. Porque aí, de repente, tem algo de novo que
surge, e que pode ser a mãe que não quer, não pode acolher.
Se nos apoiarmos no que dizia D. Rapoport, a mãe não pode
aceitar. Ela queria que sua filha fosse sempre sua menina. Porém,
a jovem encontra em si mesma algo de novo que ela quer que o
Outro autentique, alguma coisa que ela quer que o Outro diga
sim. Freqüentemente este é um dos paradoxos do adolescente,
ele mesmo não consegue autenticar para si, traduzir em palavras
a angústia, a vergonha ou a solução radical de uma passagem
ao ato. Na crise da educação datada em 1954, Hannah Arendt (1972)
demonstra que os adultos não são responsáveis pelo mundo que
eles oferecem a criança, no sentido que eles não sabem aceitar
o elemento novo que a criança traz em si. A criança traz em si
um elemento novo ao nascer, já que ela surge como algo que não
existia antes dela. Mas ela traz também um elemento novo que
surge para ela no momento da adolescência. Victor Hugo, numa
bela frase, descreve este momento como a mais delicada das
transições, acrescentando que se trata “do início da mulher
ao final de uma criança”.
J.M.
– No livro que vai ser lançado e cujo título é O
despertar e o exílio, você coloca um certo número de
questões. Por que, por exemplo, se colocar em perigo nestas práticas
de risco que evocávamos no início? Você respondeu em parte a
esta questão. Você evocava neste instante, esta novidade
constante que, finalmente, a criança é para si mesma, e você
coloca no seu livro a questão: este corpo que muda, eu
acrescento: o corpo que cresce, seria ele o lugar de uma
identidade?
P.L.
– O adolescente é antes de tudo surpreso pelo surgimento da
dimensão do corpo. A psicanálise é certamente uma experiência
de palavra, mas somente enquanto a palavra é suportada por um
corpo. E, como dizia muito bem Lacan, um corpo, d’isso se
goza. Na adolescência, o corpo é experimentado pelo sujeito de
uma nova maneira, como testemunha, por exemplo, Robert Musil
(1960), no Les désarrois
de l’élève Törless, onde ele nos dá uma verdadeira lição
clínica sobre a adolescência e as passagens ao ato. Ele
descreve como, para o aluno Törless, “um elemento sexual se
insinuava assim, inesperadamente, sem relação com os
pensamentos” (Id.,
p. 31.). De repente, escutando um colega falar de seu pai, o
aluno Törless, inicialmente surpreso pela bizarria deste pai,
pensa que seu próprio pai é também um pouco bizarro. Ele se
sente, então, intrigado pelos movimentos das mãos de seu
colega, mas certamente pelo que ele sente de maneira contingente
no nível do seu corpo, uma fricção de gozo sem sentido que o
mergulha no maior do desespero. Isso demonstra bem que o corpo
é o lugar de experimentação de gozo. Esta fricção constitui
um acontecimento no corpo que não pode se traduzir em palavras.
Então lhe vem, como uma solução, a idéia de blasfemar e
insultar seu pai, mas isso fica incluído no seu pensamento, no
recalque.
Em
contrapartida, nos nossos dias quando certos jovens pensam no
insulto, eles o vivem como verdadeiro, já que eles o pensam.
Eles o sustentam, então, como autêntico e o proferem sem
contenção. Vocês compreendem que graças à Musil, a lógica
do insulto ilustra maravilhosamente este momento de desespero,
próprio ao adolescente, que visa o corpo, na medida em que seu
gozo enoda, ou não, as palavras. O termo desespero que não está
aí por acaso, vem do antigo francês “désarroyé”,
que quer dizer sem o Outro. Eis o momento, tão singular, onde o
adolescente tem dificuldade para traduzir em palavras o excesso
de sensualidade. A psicanálise é uma chance para os
adolescentes. Dizemos que eles não falam, isso não é verdade.
Basta saber aproximar-se deles um pouco, ganhar sua confiança
para perceber que eles têm muitas coisas a dizer com a condição
que saibamos ouvir aquilo que os perturba. Eles são muito sensíveis
a esta escuta.
J.M.
– Da psicanálise como uma via possível para abordar a arte
do insulto nos adolescentes como uma palavra. Você desejou,
Philippe Lacadée, que ouvíssemos um poema das Iluminações já que você citou Arthur Rimbaud. No seu livro, “O
despertar e o exílio”, você tinha, aliás, numerosas referências
literárias. Eis então “Vagabundos” (Rimbaud,
1991, p. 349) um
texto das Iluminações:
“Lastimável irmão! Quantas vigílias atrozes eu lhe devo! Eu
não me entregava com fervor a este negócio. Caçoava de sua
doença. Por minha culpa voltaríamos ao exílio, à escravidão.
Ele me achava um pé frio, e de uma inocência bizarra demais,
adicionava razões inquietantes. Eu respondia rindo deste doutor
satânico, e acabava saindo pela janela. Eu criava, mais além
do campo atravessado por bandas de música rara, os fantasmas do
futuro luxo noturno. Depois dessa distração ligeiramente higiênica,
me deitava numa esteira. E quase, toda noite, assim que dormia,
o pobre irmão se levantava, a boca podre, olhos esbugalhados, -
como ele se sonhava! – e me arrastava pela sala, uivando seu
sonho de mágoa idiota. Eu tinha prometido, de fato, do fundo do
coração, recuperar seu estado primitivo de filho de sol, - e
vadiávamos, alimentados pelo vinho das cavernas e pelo biscoito
do caminho, eu com pressa de encontrar o lugar e a fórmula.”
Rimbaud,
portanto, uma figura simbólica da modernidade afetado pela sua
juventude.
P.L.
– A última frase deste poema, “eu com pressa de encontrar o
lugar e a fórmula”, me parece paradigmático disto que está
em jogo neste momento da adolescência. Pelo quê o sujeito é
pressionado? Ele é pressionado pela pulsão, quer dizer, por
alguma coisa que se agita nele, que o agita e mesmo o age. Isso
o empurra no sentido de encontrar “o lugar da fórmula” onde
ele poderá dizer alguma coisa, para agarrar a fórmula de sua
existência. Rimbaud fala do errar. A fuga e a errância são
importantes durante a adolescência. Lacan, ele próprio, faz
referência à errância e observa que ela tem mais a ver com a
etimologia d’iterare
(Lacan,
1973-74, aula de 13/11/1973),
que não quer dizer forçosamente viajar, tal como todo mundo
havia entendido, e sim repetir. O sujeito, por meio de sua fuga
e na sua errância, repete alguma coisa da ordem do gozo sem
sentido. Não chegando a encontrar a fórmula, a palavra que lhe
permitiria se separar do pensamento que captura sua mente, a
solução de partir, de andar,
se oferece a ele, às vezes sem objetivo, em busca da
“verdadeira vida”. O príncipe do adolescente – como o
qualifica Michelle Perrot (1994,
p. 22.) –
dizia ainda: “Eu tive que viajar para distrair os pensamentos
reunidos do meu cérebro” (Rimbaud,
1991, p. 435), designando assim aquilo que o conduziu à errância
e à uma certa provocação. Mas ele acrescenta: “É falso
dizer: Eu penso, deveria dizer, sou pensado” (Rimbaud 1871,
op. cit., p. 183.), descrevendo como um pensamento pode
se impor na cabeça de um jovem, e como, para se separar, o
sujeito pode ser obrigado a passar ao ato. É por isso que é
necessário oferecer aos adolescentes lugares de conversação,
onde eles possam agarrar uma nova palavra que lhes permita,
enfim, traduzir suas sensações e dizer sobre esta delicada
transição. Aliás, a transição é antes de tudo para nós
uma figura retórica que permite passar de uma palavra à outra.
Passando de uma palavra à outra, você chega enfim a se separar
do que prendia sua cabeça, deste pensamento que poderia cortá-lo
do Outro e que produziria este estranho sofrimento. Quer dizer
que você se separa do valor de gozo a que estava incluso e ao
qual, de maneira paradoxal, você poderia estar ligado. Este
pensamento pode enquadrar um adolescente no desespero, fazendo-o
ruminar totalmente sozinho no seu exílio. De repente, por
exemplo, durante uma sessão de psicanálise, é possível que
ele possa entregar a esta tarefa do bem dizer do seu ser, o que
era uma mancha negra para ele. Sublinhamos ainda a importância
que Rimbaud concede neste poema à janela, porque os
adolescentes pensam freqüentemente que a “verdadeira vida”
é em outro lugar. Por meio da janela, Rimbaud situa este famoso
“ponto de onde” ele se vê errando no campo, escapando a
este “doutor satânico” que sua mãe, sempre angustiada,
chamava ao menor problema de saúde de seu filho. Ele chamava
sua mãe “a boca de sombra” (Rimbaud,
1871, p. 340), e compreendemos que é pela janela que ele
agarrava a luz que faltava na sua “verdadeira vida”. Esta
busca do Outro, este lugar onde ele procura a fórmula da sua
vida o conduz a se projetar em outro lugar, a encontrar este
famoso “ponto de onde” ele se veria em outro lugar para não
ficar preso nesta mancha de sombra que sua mãe poderia
encarnar.
Tradução:
Kátia Danemberg e Simone Bianchi
Notas
1.
Este texto foi publicado originalmente em: La
Cause freudiene: Nouvelle Revue de Psychanalyse. Paris:
Navarin Editeur, n. 65, p. 219-226
2.
N.R.: O CIEN é um laboratório de pesquisa interdisciplinar e
pertence o Instituto do Campo Freudiano.
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